quarta-feira, 17 de março de 2021

Fase emergencial: é proibido, mas se quiser pode (até porque os governos não dão alternativas)

Foto de paralela da 25 de Março, no dia 17
Há um meme na internet, foto de uma placa que remete a bailão do interior, em que diz: "É proibido dançar agarrado. Mas se quiser pode". A fase emergencial na capital paulistana, com várias e rígidas restrições, parece esse aviso: é proibido, mas se quiser pode. No trajeto para o trabalho, oito da manhã, várias pessoas nas ruas, o habitual fluxo de ida para o trabalho, com as bancadas de café da manhã imantando trabalhadores de diversos setores. Na Sé, a prefeitura se esmera na limpeza da rua com um caminhão pipa - e azar de quem está dormindo sobre o asfalto ainda frio. Aparentemente, tudo normal. Na volta, meio da tarde, é que se percebe pequenas mudanças, entre elas o "se quiser, pode". 

Na 25 de Março, os vendedores estão nas ruas, anunciando cabelos, tênis, camisas de times, acessórios para celulares, armação para óculos e outros artigos do gênero (achei exótico um que oferecia "cigarro, remédio, eletrônico"). As lojas estão com as portas fechadas, mas basta bater nela que você está autorizado a comprar algum dos bens de primeira necessidade citados acima; há também a opção delivery pelo WhatsApp: você chama no número e eles abrem para sua você entrar escolher o que vai ser entregue após pagar a conta. Afinal, o que é a vida se não for para consumir, mesmo que produtos falsificados, numa vã esperança de que sua vida se pareça com as peças publicitárias que vendem uma felicidade irreal? 

Nas periferias - extremo leste e sul, que foi onde circulei -, algumas lojas maiores estão fechadas, mas o pequeno e médio comércio seguem normais. O motorista critica que pobre não respeito as leis, eu tento dar uma suavizada nessa moral simplória de certo e errado sem atentar para qualquer nuance: a situação é complicada: sem um auxílio emergencial que faça minimamente frente aos gastos habituais, os trabalhadores ou trabalham ou morrem de fome (esses R$ 250,00, conseguido às custas do salário futuro de médicos do SUS, professores, policiais e outros funcionários públicos, é um arremedo que soaria como escárnio não estivéssemos em situação calamitosa); donos de pequenos negócios - no fundo proletários iludidos que são proprietários de algo -  sem apoio governamental correm o risco iminente de falir; os grandes capitalistas e seus asseclas, esses se opõem a medidas restritivas por união carnal do capital com o sofrimento, que tem a morte, a escravidão e a miséria como seus frutos mais abundantes - nada de novo na essência, apenas explicitado sem verniz ideológico. 

O que notei de mudança grande diante do meu trajeto de duas semanas atrás foi o tanto de pessoas usando máscara: até parece que estamos numa pandemia!

Esse fato me chamou a atenção e me fez pensar muito sobre: de onde teriam as pessoas voltado a perceber que a pandemia está grave - ou melhor, que há uma pandemia -, se há mais de um mês essa bola é cantada por gente séria, com estados então beirando o colapso e Manaus dando um trailer do inferno que nos espera? Dez dias atrás, no centro de São Paulo, reparei que máscara tinha virado pulseira, que se punha no rosto na hora de entrar no transporte público, alguns ainda ostentavam o nariz pra fora, para mostrar que não são maricas ou medrosas; tanto que faz umas semanas que, tendo notado a esbórnia geral, tratei de me conformar a pagar caro em máscaras hospitalares PFF2, já que ficar em casa não me era permitido, e apesar de saudade enorme de uma sala de teatro (já autorizadas pelo protocolo do governo - pretensamente atento à ciência - de São Paulo), preferi me resguardar todo tempo no qual não sou obrigado a sair. Terá sido passar 2.500 mortes diárias, porque até 2.499 não surtia efeito? Não me parece o caso.

Sei que é fácil fazer previsão de fatos consumados, mas me parece que, para além do mau exemplo dado pelo prefeito e governador (o presidente é desnecessário dizer), houve uma falha grave na hora de estabelecer as fases de abertura dos setores da economia. Não que não se possa dizer que não havia como prever: a forma como foi estruturada essa abertura gradual poderia ter se utilizado como uma das referências as pesquisas sobre rotulagem de alimentos ultraprocessados: as versões coloridas e nuançadas não tem o mesmo efeito das que imprimem um triângulo de alerta para alimentos com alto teor de açúcar, sódio e gorduras (pouco importa se esse alto é excessivamente alto, muito alto ou apenas alto, se é alto é alto. O site O Joio e o Trigo tem acompanhado com ótimas reportagens o assunto: http://bit.ly/JoioRotulagem). O mesmo dá para imaginar que se passou com as fases de abertura da economia: ao propôr quatro fases antes da volta à normalidade, e ter em novembro admitido que se chegara à verde - a quarta e última com restrições -, o recado passado foi: relaxa que a coisa já se encaminhou pro final. As amigas da minha então companheira, por exemplo, cansadas do isolamento e se sentindo autorizadas pelas autoridades, aproveitaram novembro para ir para a praia: máscara no caminho, mas chegando lá, área aberta e fase verde, para quê seguir com ela? O sinal verde é sinal de avançar - a pandemia está ficando para trás.

Deixo de lado a questão do quão essa entrada na fase verde - ao menos sua duração - foi eleitoreira, o ponto é: numa pandemia, ainda sem vacina e sem tratamento efetivo para a doença, não se pode dar a impressão de que o pior já passou e é questão de tempo de tudo se normalizar. Não se tratava de manter restrições rígidas, pois há de fato um esgotamento da situação de confinamento (dos que puderam ficar isolados), mas ao se estabelecer as etapas de abertura, deviam ter pensado nos seus efeitos psicológicos também, e decidido que as duas últimas antes da normalidade só poderiam ser alcançadas com total segurança: nem que para dar essa impressão se aumentasse de quatro para seis fases restritivas antes da normalidade, e não se passasse da quarta, que seguiria os parâmetros tal qual é hoje (que me parecem bastante lassos); haveria nesse caso sempre um aviso implícito de: ainda temos duas etapas antes de chegar à normalidade, então aproveita um pouco, mas não relaxa demais. Tenho a impressão de que foi esse o recado dado pelas restrições severas impostas atualmente, e por mais que as pessoas sigam saindo, por obrigações laborais ou fadiga de confinamento, o desdém com as máscaras voltou a ser minoritário.

Queria que esta fosse uma reflexão impotente, uma vez que, graças às vacinas, a pandemia estaria caminhando para seu fim. Infelizmente, a inoperância do governo federal não nos autoriza vislumbrar fim próximo para esta tormenta. Que ao menos consigamos passar pelos próximos momentos mas cientes do que devemos fazer - os que tiverem oportunidade de seguir vivos.

17 de março de 2021

PS: vejo nas notícias que o governo do Estado, com um ano de atraso, toma algumas medidas para tentar evitar uma maior quebradeira de pequenas e médias empresas e minorar o sofrimento de trabalhadores. Não havia um economista sério na equipe de Doria Jr, capaz de prever isso logo no início da pandemia? Já o prefeito Bruno Covas, ao invés de decretar um lockdown, antecipa feriados. A ver como será este ano, mas em 2020 as pessoas levaram bem ao pé da letra essa antecipação de feriados: trataram de aproveitar o feriado: descer pra praia, ir para a parte não cercada do Ibirapuera, passear, curtir com a família. Novamente, ao recusar o lockdown, a mensagem que se passa é de que não é tão grave assim. São Paulo é governada por dois amadores incompetentes que se destacam apenas porque no governo federal temos um competente genocida que se regojiza com a morte.

sábado, 13 de março de 2021

Sábado de exílio

“O Brasil caminha para um colapso”, avisavam os especialistas semanas atrás. Seguimos a marcha como se fosse inexorável, não sei se por cega inércia ou se por néscia convicção de que era alarmismo paranóico, e o colapso veio - agora é ser testemunha ocular da tragédia, torcendo para não ser mais que isso. Repetiremos o Equador, com mortos jogados nas ruas, ou conseguiremos uma saída italiana, com caminhões frigoríficos a retirar dos hospitais corpos humanos como se saíssem do abatedouro? Um amigo que reside no Canadá me manda uma foto de três anos atrás e pergunta se está tudo bem. Pergunta errada, ainda mais depois de ver a foto de um outro tempo, quando a necropolítica não tomara a sociedade brasileira como um todo. Vou bem no que posso estar, respondo, sem saber até onde pode-se estar bem com o que vivemos e o que nos espera para os próximos dias (quarta feira percorrerei a periferia sul de São Paulo, a trabalho, isso me deixa mais apreensivo). Meu irmão me envia uma foto do que encontraram no porão da casa da minha mãe: um gambá a assaltar a ração dos gatos. Lembro de gambá aparecer no quintal de casa faz mais de vinte anos: não tinha uma perna. O prendemos numa caixa de sapatos e o levamos, eu e meu pai, para próximo da zona rural e longe da Tandi, nossa cachorra, que por sorte não conseguiu pegá-lo antes de nós. Faz mais de um ano que não encontro pessoalmente com minha mãe, uma angústia me bate. Quando será a vez dela ser vacinada? Ainda valerá para algo a vacina? Pela segunda vez na vida me arrependo não saber dirigir: nesse um ano poderia ter alugado um carro e ido visitá-la, como meu irmão tem feito (meu outro arrependimento por não ter carteira era quando pegava carona na faculdade com colegas bêbados, sendo eu o único sóbrio). Dormi com pouca coberta, acordei com dor de garganta; faço as contas: não, saí há menos de quatro dias, logo não tem como ser manifestação de sintoma de covid. A vida na sua permanência tênue, a saudade batendo forte, a distância. É sábado à noite, eu estou em casa, na rede, jogando bingo no celular (quando deveria estar assistindo às aulas da faculdade). No som, não sei porquê, coloquei músicas que escutava quando adolescente (e ainda ouço): Metallica, Oasis, Pato Fu, Sheryl Crow, Gonzagão, Toquinho e Vinícius. Vinte e cinco anos atrás, eu estaria em casa, no computador, entrando em sala de bate papo do mIrc. Hay dias que no sé lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol. Quinze anos atrás, estaria em casa, lendo qualquer coisa, talvez escrevendo, talvez jogando algo - ouvindo Radiohead, Mogwai, Mombojó ou Goldfrapp. Come on rain down on me, from a great heigh. O que me pega não é estar em casa num sábado à noite, é a condição que me faz estar aqui. Covid lá fora, aqui dentro ainda a remoer o fim de relacionamento: a sala vazia de móveis, apta para dançar, me lembra que falta meu par dos embalos das madrugadas de 2020. Amigos me perguntaram do meu sumiço, expliquei: é meu processo de lidar com tudo isto. E tenho dificuldade, não com o fim do relacionamento, que isso a experiência nos ensina a não superdimensionar, a dificuldade é a saudade, a distância forçada dos amigos, da minha casa de Pato, o não poder flanar despreocupadamente pela cidade para desanuviar pensamentos e sentimentos - quem sabe encontrar al diablo mal parado en la esquina de mi barrio, ahí donde dobla el viento y se cruzan los atajos. Dez anos atrás eu estaria no “QGinho” da Misson, ouvindo Kiss FM, em companhia do Marcos e do Djalma - em conversas sobre crises existenciais e piadas ruins, ela insistindo que eu lembro o Sheldon Cooper enquanto toca Teatro dos Vampiros: então os meus amigos estavam procurando emprego, enquanto nestes dias tão estranhos fica poeira se escondendo pelos cantos, as perdas se acumulando na memória (eu ainda custo a acreditar que César se foi). O rádio segue tocando as músicas de antigamente: canções do exílio - eu que por quatro anos recitei Gonçalves Dias para ganhar nota em português, com a irmã Maria José (e não entendia esse José se ela era mulher). Na playlist faltaram La Renga, Molotov e os rocks en castellano para completar minha trilha sonora adolescente. Faltaram os rocks bielorrussos em som alto que meu pai ouvia. Algumas vezes nesse último ano mandei mensagens acusando saudade a vários amigos. Responderam que também sentem. E a conversa encerra sem avançar muito, nessa saudade abafada que não consegue pôr em dias as não novidades dos dias sempre iguais nem trocar obviedades sobre o horror homeopático que nos corrói feito lepra confundida com uma psoríase. Mesmo a amiga que vinha encontrando com alguma frequência - cada duas semanas -, também ela está em seus momentos de se fechar, e há dois meses não fomos além de algumas poucas linhas. Não é falta do que dizer: talvez seja o cansaço, o fracasso, mesmo quando temos novidades. As notícias da minha mãe sobre o gambá e os gatos da sua casa fazem eu me sentir no exílio, um anti London London. Guile e Lilbertad permitem não me sentir tão sozinho. Lá fora faz uma noite bonita, famílias choram em velórios rápidos, pessoas tomadas pela loucura coletiva recusam toda dor que não seja a das suas alucinações como mimimi, o presidente debocha - não é coveiro. Noto que envelheci rapidamente estes últimos dias, tenho medo, sinto saudades, e tudo o que me resta é a sensação de impotência.

14 de março de 2021