sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Covid um ano depois: estamos melhores enquanto seres humanos e sociedade?

Cá estamos, os sobreviventes, um ano de coronavírus no Brasil, quase um ano de isolamento social. Me ponho a pensar o ponto onde nos encontramos. 250 mil mortos depois, o que é o tal "novo normal" que foi apregoado - para além da normalização desse (mais esse) horror transformado em fria estatística banal? Boa parte do Brasil conta esses mortos como conta os mortos por arma de fogo anualmente, como conta os milhões de africanos escravizados e assassinados: números.

Estamos sempre uns passos atrás da maioria da humanidade, discutindo e disputando questões que já se tornaram ponto pacífico: se é uma doença de fato ou uma invenção da mídia, se é uma gripezinha ou um vírus mais sério, se cloroquina salva ou é charlatanismo, se isolamento resolve algo, se vacina funciona, se precisa mesmo usar máscara, se existe segunda onda. O nível do debate rebaixado a esse ponto esconde que o que foi de fato rebaixado é a vida humana: todos vão morrer, e daí? Se de tiro da PM, de coronavírus, fome ou enfarto, e daí? Segue o baile: aqui na Terra estão jogando vartibol, tem muito culto, muito choro e BBB.

Outro ponto é que ao aceitar o debate em termos constrangedoramente simplistas, na ânsia de afirmar o óbvio e negar os negacionistas, a esquerda nega a si própria e recusa a política: ao pôr a ciência acima de qualquer questionamento e de qualquer disputa, deusa suprema cuja palavra deveria ser a lei inquestionável, se esquece que a ciência serve para balizar as ações políticas, que envolvem uma miríade de aspectos que extrapolam mesmo os métodos mais rigorosos. A necessidade de isolamento social é óbvia desde o início, com qual amplitude e como fazê-lo, contudo, é um campo legítimo de disputa, pois não se trata de mera aplicação de uma fórmula: é negociar com vários atores sociais, pesar e sopesar aspectos secundários à doença, mas relevantes à sociedade: de sobrevivência material de toda a sociedade à moradia precária de boa parte dela: não, não é uma questão simples; diferentemente de qual medicamento ministrar, não se limita a conhecimento técnico, mas ambas foram tratadas da mesma forma - e essa afirmação da ciência como detentora da palavra final sobre a organização social abre espaço para o mesmo diante da “ciência econômica”, e se ela diz que privatização e estado policial (também chamado de mínimo) salvam...

Há um ano eu e meus colegas de fração de classe (classe média, branca, universitária, de esquerda e/ou progressista) nos trancávamos em casa, temerosos como se vivêssemos em Gaza, enxergando uma precariedade do ser onde havia apenas uma restrição à nossa liberdade pequeno burguesa - desde sempre limitada, mas que poucos percebem e menos ainda se incomodam.

Na bolha dessa fração, a qual estou (muito bem) inserido, nos "stories" e postagens das redes sociais despontavam dicas de bem viver: lembrar de tomar sol, de fazer exercícios, de fazer yoga, de meditar, de comer frutas, de comprar plantas. Platitudes proferidas como se fossem novidades inéditas por uma classe cuja vida parece não ir além de um fluxograma de trabalho alienado (não percebido), compras, viagens clichês e pequenas tormentas sentimentais. Parecia cuidado, mas eram apenas demonstrações narcísicas.

Como ficou claro em texto publicado pela editora n-1, na sua série (em geral muito boa) Pandemia Crítica, "Um tiro em mim: quando ficar em casa é também estar em perigo", um texto muito bem escrito, em estilo de filme de ação, mas que escancara toda a futilidade dessa classe média que adora encher a boca para falar mal de seus congêneres bolsonaristas ou novistas: a autora (anônima) que precisa se reafirmar narcisicamente, individualmente e até um tanto infantilmente na sua prepotência, da sua tarefa sublime e sem fim que é a produção de conhecimento científico (porque a faxineira, o entregador, o motorista de ônibus, que seguiram seu trabalho de peão, não parecem capazes de produzir conhecimento, provavelmente nem devem saber o que é ciência): “elxs atiraram em alguém que estava estudando e pensando o mundo de forma crítica para reinventar o lugar das coisas”. Eis uma frase gritante pela precariedade da percepção da autora, pela superestimação do eu e seus afetos limitados e limitadores, alguém que vai reinventar o lugar das coisas, como deus ou, como diria Freud, “sua majestade, o bebê”. Pensa o mundo de forma crítica, mas foge de pensar a si própria da mesma maneira: daí que o lugar das coisas reinventado promete ser mais do mesmo, entre a tecnocracia, a hierarquia e a alienação. Foi quando notei: a vida segue normal, só se aceleram os processos de mudança do trabalho em alguns setores. E de vez em quando acontece um tiro de chumbinho num apartamento classe média, um simulacro de baixa periculosidade de um policial invadindo uma comunidade e atirando com arma letal a queima roupa.

Houve os que anunciavam um mundo mais solidário e humano que estava sendo gestado na pandemia, o despertar de outra consciência - afinal, diziam, o vírus igualou todos. Até então eu não negava a possibilidade (ainda que negasse essa igualdade), porém não conseguia ver onde estaria esse mundo novo, enquanto eu, em teletrabalho (home office, na língua descolada da classe), terceirizava a morte ao entregador do aplicativo (isso até ter que começar com trabalho presencial, no início de maio).

Não estou com isso igualando negacionistas e reacionários a quem aceita a ciência e tenta ter uma visão progressista, mas apontando que o ethos de classe, se a crítica não é feita com afinco e persistência, acaba por prevalecer.

Nossa resistência e disposição em seguir os protocolos de distanciamento social diante de uma terra onde o salve-se quem puder suicida domina foram sendo minadas - e o atos de muitos deixaram de corresponder às palavras. É o cansaço pelo isolamento drástico (e, vemos agora, desproporcional, ou ao menos pessimamente coordenado, que impingiu custos emocionais extras), pelas notícias da ilha brasiliense, que segue passando as boiadas; pela eleição da desesperança, pela naturalização da morte, pela denegação da realidade. Boa parte dos que se precaviam no início, ao invés de tentar passos cuidadosos de afrouxamento, aderiu à esbórnia - usando máscara tampando o nariz, quando dá para usar, se enganando que isso é seguir os protocolos e é suficiente.

A vida volta ao normal (isso foi notável nos dez quilômetros que percorro à pé na volta do trabalho, desde maio, o tráfego lentamente adensando, os moradores de rua, apesar de seguirem muitos e em número maior, voltando a fazer figuração diante da multidão a ocupar o centro para as compras), negacionistas e não-negacionistas se misturam no metrô, no trajeto para o trabalho ou para as compras, nas praias lotadas, nas viagens, no bar com os amigos (e inimigos), no shopping, nos restaurantes, nas academias (inclusive as do empresário bolsonarista), e agora, teatro. E tudo devidamente registrado e divulgado nas redes sociais, para ajudar os recalcitrantes, que seguem o esquema casa-trabalho-mercado-casa (com encontros mensais ou quinzenais a um ou outro amigo que se sabe também cuidadoso), a se sentirem otários, talvez uma tentativa inconsciente de sabotar a fibra desses idiotas da cientificidade. 

Mas resistimos quixotescamente, em parte por cuidado com nossa saúde, com nossa vida, em parte por preocupação com a pólis, com nossos concidadãos, com você que me lê, “hipócrita leitor, meu igual, meu irmão” - porque o que a pandemia evidenciou é que “ninguém aqui é são”.

Um ano, 250 mil mortes depois, contrariamente ao que muitos dos meus amigos imaginavam e vislumbravam, não saímos melhores dessa experiência - nem piores. Os que sobrevivemos (ao menos os sobreviventes sem grandes traumas) saímos o que sempre fomos - e tem quem prefira não se olhar no espelho.


26 de fevereiro de 2021


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Bruno Covas e seu filho no Maracanã: a mensagem da imagem

"À mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". A importância da aparência na cultura ocidental vem de longa data - do imperador romano Julio Cesar, ao menos -, mas sob a sociedade do espetáculo essa velha máxima foi superada pela de que "à mulher de César não é preciso ser honesta, basta parecer honesta". Em muitos casos, nem parecer, apenas aparecer como honesto no momento oportuno - Temer, Doria Jr, Bolsonaro que o digam, despontaram como se porto de Santos, rachadinhas e Embratur nunca tivessem existido.

Não entrei na comunhão nacional gerada pelo início da vacinação nestes Tristes Trópicos, em 17 de janeiro: sabendo dos entraves gerais e das inoperâncias nacionais, não vislumbro ser vacinado antes de dezembro e ainda temo receber uma vacina que já pouco protege, por conta das mutações do vírus (ainda que isso, por enquanto, não tenha sido posto no horizonte pelos cientistas, até onde me consta). Minha mãe, prioritária, quem sabe consiga ser vacinada meio logo e possa vir me visitar ainda este ano, depois de mais de um ano nos vendo apenas por videochamada. 

Entendo o sopro de alento que o início da vacinação trouxe a muitos, mas não deixou de me causar assombro como esse sopro veio desprovido de qualquer construção crítica mais bem fundamentada. “Doria Jr fez um golaço”, comentavam, como se aparecer ao lado da primeira pessoa vacinada redimisse o governador de todos seus atos contra a saúde pública, a pesquisa científica, a universidade pública - isso já em plena pandemia, já quando ele se dizia defensor da ciência - e a produção de remédios - e não falo aqui de troca, quando prefeito, de isenções fiscais por "doação" remédios quase vencidos cuja boa parte seria incinerado a um custo elevado, mas do sucateamento da Furp e do Instituto Butantã. Vale lembrar que este só não virou peça histórica graças à combinação pandemia e negacionismo da ciência por Bolsonaro, no qual Doria Jr viu oportunidade de se apresentar como a extrema-direita racional (Adorno e Horkheimer mostram como o nazismo era racional) e “razoável” (se privatizar e tirar direitos de trabalhadores, as elites brasileiras acham qualquer coisa razoável). Todo seu histórico de destruição virou fumaça diante da vacina: Doria Jr, “o político da ciência e da sensatez”. Só não se tornou também “o homem da tolerância política” porque Dilma Rousseff fez algum alarde ao avisar que não aceitava seu convite para furar a fila - e com esse ato, Dilma reforça a frase do primeiro parágrafo, ao lembrar que ela e Lula, dois dos políticos mais probos da história do país, são taxados como os maiores corruptos, simplesmente porque não conseguiram vencer a máquina midiática e aparecer como honestos: quem controla a produção de imagens e narrativas detém incomparável poder, incompatível com a democracia, mesmo a espetacular.

Assim como Doria Jr, Bruno Covas não precisa temer a mídia. Como seu padrinho político, o prefeito parece esquecer que a mulher de César no século XXI não precisa ser honesta, basta parecer honesta; contudo, à diferença dele, não possui qualquer jogo de cintura, quem dirá a lábia canastrona de vendedor de enciclopédia no interior e a desfaçatez do gigolô que se diz arrependido e promete fidelidade.

Junto com Doria Jr, Covas repetiu o mantra do "fique em casa". Como Doria Jr, assim que pode, saiu passear: mas ao invés de ir pra Miami (onde poderia achar qualquer álibi inconsistente: que foi em jatinho particular com a esposa para ficarem enfurnados e isolados na sua casa florida, sei lá, pra não ter o risco de alguma garota constrangê-los cobrando uma conta antiga), o prefeito foi assistir ao jogo da final da Libertadores no Maracanã, com mais alguns convidados VIPs - ele, que estava em tratamento contra o câncer até quinze dias antes, ou seja grupo de extrema vulnerabilidade, que mais deveria se resguardar.

A final da Libertadores ter público em plena pandemia já é uma afronta, um reescancarar daquilo que as “modernas arenas” que substituíram os estádios já escancaram há anos: futebol é cada vez mais um espetáculo para poucos usufruírem ao vivo - só para os VIPs. Neste caso, só para os VIPs dos VIPs. Para um político que tem tentando trabalhar uma imagem pública de progressista desde que assumiu a Disney, digo, a prefeitura de São Paulo, um deslize desses é grave - até porque não foi só uma notícia de jornal, mas uma foto que rodou a internet, e na sociedade imagética, uma imagem pode ser avassaladora (Roseana Sarney sabe bem). A explicação para seu ato, dado em seu Instagram, só piora a situação. A questão pode ser abordada pelo aspecto político e sociológico.

Politicamente é um movimento que causa estranhamento. Bruno Covas trabalhava com afinco sua imagem de um “velho PSDB”, um PSDB de direita democrática e progressista, retomando projetos êxitosos da gestão Haddad; esse passeio com o filho, junto com as ações que tem tomado desde que ganhou a reeleição, vão na contramão de todo esse trabalho. Ao que tudo indica, a eleição serviu para que Covas e o partido notassem que ele é um quadro eleitoralmente frágil, quase inviável: se largar a prefeitura para disputar o estado, perde votos dos paulistanos sem conseguir compensar no interior (como foi o caso de Serra e Doria Jr). Daí a impressão de ter entregue a prefeitura toda para o grupo de Doria Jr (representado pelo vice Ricardo Nunes?) desde já, talvez com o plano de tentar imitar seu padrinho e ver se consegue superar as próprias fraquezas; assim, todos os movimentos de respeito aos direitos humanos - que, por mais que tímidos, marcaram uma diferença significativa frente a gestão desumana de Doria Jr - terem sido jogados fora: do cercamento de praças (o caso noticiado é da praça no bairro nobre, mas na 25 de Março, por exemplo, a Ragueb Chohfi já foi cercada há tempos) às pedras antimendigos, passando pela intensificação no confisco dos pertences dos moradores de rua (só esperando pelas operações da GCM na (mal) dita cracolândia). Se for esse o caso, entende-se o mandar às favas a construção da sua imagem pública e ir curtir a final da Libertadores com o filho.

Aqui entra o ponto sociológico de minha análise: ao ser pego no Maracanã, a resposta de Covas explicita sua adequação à sociabilidade perversa brasileira, recentemente assumida como virtude por políticos como Bolsonaro, Moro ou Doria Jr: o privilégio do verdadeiro líder de estar acima do bem e do mal - e das leis. Ser aspirante a um mini-Luís-XIV-versão-século-XXI seria a demonstração cabal do seu valor, como era outrora o despotismo do senhor de engenho perante suas posses - terras, mulheres, escravos, estado. O problema de Covas é que ainda que formado nessa sociabilidade, ele não é um perverso: ele não consegue jogar flores no chão, falar "e daí, não sou coveiro", grasnar qualquer atrocidade; por isso seu passo atrás, seu tentar se justificar com sua excepcionalidade: mereceria estar no Maracanã em meio a uma pandemia, 230 mil mortos, crise na saúde, na economia, no estado, porque "é um direito" seu "usufruir de um pequeno prazer da vida" depois de passar pelo tratamento de um câncer - contrariamente ao que sempre diz aos seus comandados. Só ele quer desfrutar de um pequeno prazer da vida? Só ele ficou doente durante a pandemia? Filhos com saudades de seus pais idosos que moram longe, se tem responsabilidade (e um emprego), não tem esse direito. Pais e mães cujos filhos estão entre os que tiveram a vida levada pelo coronavírus - só no estado de São Paulo os mortos já lotam o Itaquerão e começam a encher um segundo estádio -, não podem mais ter esse pequeno prazer. Mas hipócrita é quem segue as recomendações que o governador do estado e o prefeito da cidade repetem.

Pelo posto que ocupa, Bruno Covas deveria ser o primeiro a dar o exemplo. E ele dá: se o exemplo é positivo ou negativo, é outra história. Prefeitos acusados de furar fila da vacina podem, inclusive, usar essa questão com o álibi: estão dando o exemplo da importância da vacina, já que o chefe do executivo nacional faz campanha contrária (isso não vale para parentes, mulheres e amigos do prefeito que furam a fila, aí o exemplo volta a ser de apropriação privada do público). Ao dizer que seu caso é especial e merece ser excluído das restrições que todos deveriam estar submetidos, simplesmente “porquessim”, qualquer um pode alegar o mesmo - como já é feito, mas agora há uma legitimidade a mais: o prefeito da maior cidade do país, que repete diariamente “fique em casa” e “cuide-se” também assume que qualquer motivo serve para não ficar em casa nem se cuidar devidamente. "Pequenos prazeres" justificariam a negligência com o vírus - nem precisa ser "grandes prazeres".

Uma atitude dessas de um político, de um homem público, é um deslegitimar a política e recusar a coletividade em nome de um hedonismo mesquinho. É um passo a mais no nosso caminhar para o abismo da convivência social, onde tem voz uma ideologia darwinista-social-ultra-individualista que apregoa a sociedade como feita de mônadas e recusa a óbvia interdependência de todos na construção do bem comum (do mal comum também); é um reforço ao que temos de pior da nossa sociabilidade forjada na escravatura e no estupro, um individualismo tacanho e incapaz de enxergar o próprio bem no dia de amanhã. Bruno Covas tem a consciência tranquila.

09 de fevereiro de 2021