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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O espantalho de 2013

O movimento dos coletes amarelos na França têm feito muitos verem semelhanças com as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil, e torcem contra, por ser, pretensamente, um movimento de extrema-direita. Surpreende que muitos que fazem análises nessa linha são professores universitários - não raro marxistas -, que parecem presos demais aos livros para entenderem a história, que não quando contada a devida distância. Os "deve ser!", os "es muss sein!", das revoluções só são necessários porque aconteceram - até o momento derradeiro eram possibilidades em disputa, com infinitos devires de possibilidades -, e a pretensa pureza do movimento e de seus participantes é uma ideologia moderna que boa parte da nossa sociedade insiste em acreditar - mesmo os que denunciam ideologias mil mundo afora.
Já li acusações de que o MPL - Movimento Passe Livre - teria sido financiado com dinheiro da direita, para desestabilizar o governo petista. Se assim fosse, a direita não necessitaria criar um movimento cacofônico naquele instante, o MBL. Se o MPL ia de escola em escola agitar os protestos, o MBL foi um ensaio do uso das novas tecnologias - aliadas às velhas mídias - para mobilização popular. Também ignora-se que o MPL agia desde muito com a bandeira do - vejam só! - passe livre, e contra reajustes nas tarifas. O que houve diferente em 2013 foi o contexto, o caldo criado, insatisfações latentes que eram engolidas junto com o Big Mac e o refrigerante de dois litros, nos churrascos do fim de semana, nas prestações do carro e da casa nova. Como comentou Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept_Brasil, as novas mobilizações - junho de 2013, rolezinhos, greve dos caminhoneiros, coletes amarelos na França - são mobilizações espontâneas, ambíguas, com sua direção desde sempre em disputa e seus participantes de forma alguma coesos [http://bit.ly/2zMeVqf]. O ponto é que a direita tinha alguma estratégia e muito dinheiro, e foi capaz de direcionar o movimento - inicialmente de esquerda -, enquanto a esquerda cobrava pedágio de pureza de ideias e ideais para acolher quem ia às ruas, se negava a ouvir e dialogar de fato com quem não aderia desde o princípio com suas teses, e acreditava demais na democracia liberal-burguesa e no determinismo histórico (ainda que sempre discurse no sentido contrário)
Junho de 2013 foi um ponto crítico, um catalisador de insatisfações, que tomou uma direção que a esquerda não esperava - o agir político para boa parte da esquerda, desde a ascensão petista, foi um esperar e assistir e publicar alguma análise crítica em revista indexada. E boa parte dessa esquerda segue achando que ação política é esperar, e os grandes momentos acontecerão quando tudo estiver pronto, e o que vier antes é farsa e manipulação. A esquerda perdeu a noção do tempo kairótico, talvez porque tenha desaprendido a enxergar o mundo diretamente, na angústia do sem sentido que se desenrola à nossa frente, sem controle e com mil possibilidades. De modo algum, contudo, as jornadas de Junho de 2013 foram inauguradoras do mal estar, criadoras de algo novo - no máximo ajudaram fomentar o que já vinha sendo cevado nos meandros da sociedade, sob nossos narizes. Falo isso porque reli recentemente três artigos da edição 12 da revista Casuística. artes antiartes heterodoxias, que fui idealizador e agitador, entre 2009 e 2012. São, portanto, quase um ano anteriores a junho de 2013, seis anos anteriores à emergência fascista das urnas de 2018. Nesses três artigos estão explicitados o neofascismo paulista (texto de Anna Coloda), as fake news (ainda nomeadas como mentiras) aceitas como mentiras, mesmo, sem necessidade de lastro com a realidade (texto meu); e o desejo de autoridade violenta, do juiz que quer ser general, "a justiça dos carrascos que punem antes de julgar" (texto de Cassio Correa); encerra o bloco uma foto de Natasha Mota, quatro crianças negras vislumbram um horizonte em aberto.
Parar as análises em 2013, como muitos doutores tem feito, é pedir para falhar fragorosamente novamente diante das urgências do presente. Os fatores que levaram à vitória (temporária) do fascismo vem de antes - e ouso dizer, os questionamentos da década de 1960 são os que tem emergido nestes anos 10: as resoluções do sistema aos problemas e insatisfações levantados naquela década caducaram e essas mesmas insatisfações e problemas ressurgem (num novo contexto, claro, mas no seu cerne, muito próximos). Ou abandonamos o espantalho de 2013 e partimos para um questionar profundo da produção, da sociabilidade e da mobilização política neste século XXI - acompanhado de tentativas de reorganização da mobilização política, com vistas a novas formas de sociabilidade e produção -, ou seguiremos em discussões acadêmicas beletristas e estéreis enquanto eles ganham as almas de trabalhadores e desempregados e fazem a guerra contra quem reagir à destruição do mundo que almejam.

05 de dezembro de 2018

Os textos da Casuística, páginas 24 a 30 (www.casuistica.net)

Neofascismo à Paulista (Anna Coloda)
O movimento de recrudescimento da direita fascistóide é visível em todo o país: militares queimam documentos enquanto a sociedade civil, Veja à frente, defende torturadores e, por conseqüência, a tortura – para não falar na “ditabranda” brasileira, conforme a Folha de São Paulo –, sob a desculpa de punição para os dois lados – o que significa punição dupla para torturados ou prescrição de crimes contra a humanidade.
No estado de São Paulo, sob a égide do PSDB, esse movimento ganha cores neofascistas, ao se tornar bandeira eleitoral e política de governo – a ponto de dar legenda para um jagunço disfarçado de policial. Fato para ser lamentado por todos os que defendem a democracia, dada as diretrizes que deram origem ao partido. Liderados pela dupla Serra-Alckmin – um dia antagonistas no partido –, o PSDB se tornou refugo do malufismo – a foto de Lula e Haddad com o próprio, assim como o discurso “tradição, família e propriedade” da propaganda petista, é mostra da tentativa de evitar a sangria desse eleitorado conservador-tosco, em nome de um projeto de poder.
As ações contra populações carentes – cujo exemplo mais simbólico é Pinheirinho –, os programas de assepsia social oficiais e extra-oficiais da cidade de São Paulo – Projeto Nova Luz, “limpeza” da cracolância dos nóia, reiterados e inexplicados incêndios em favelas –, para não falar no “atire antes, pergunte depois”, prática que se inspira no velho bordão “Rota na rua” – apenas prescindindo da Rota, ao se tornar ação corriqueira e banal de toda a PM do estado –, mostram que o partido caminha para agradar um nicho eleitoral que, a princípio, pretendia acabar. O discurso eleitoral de Serra e seus apêndices jornalísticos – em especial o mentiroso Folha de São Paulo –, em 2010, é prova que o PSDB, perdido com a reorientação conservadora na política econômica do PT, aceitou se diferenciar dele no quesito direitos humanos.
Se enquanto política de governo isso assusta – e quase chega a surpreender, mas não esqueçamos da criminalização dos movimentos sociais durante os anos FHC –, enquanto ideologia é velha conhecida dos paulistas. Talvez o que tenha mudado ao longo dos anos, que dê uma cara mais moderna a esse neofascismo seja a troca do discurso contra “raça” em nome de discurso (e atitudes) contra “escolhas”: não se discursa mais sobre a incompetência de negros, mas dos favelados; não são mais os nordestinos que emporcalham o Estado e a cidade, são os homossexuais. Persiste, de qualquer modo, o velho orgulho paulista, da locomotiva do Brasil (mesmo que já tenhamos visto o Concorde ser aposentado e planejarmos um trem em alta velocidade, São Paulo segue sendo uma locomotiva. Emblemático), em que “nove de julho é dez”. Para além das práticas políticas e policiais, o neofascismo paulista é visível em algumas representações artísticas.
No coração financeiro da capital, próximo ao Masp, se levanta em sua sisudez que lembra o neo-clássico-nazista – uma releitura racional dos modelos classicistas – o prédio do Bradesco. Pela ideologia ensinada nas escolas do grupo, em que crianças são submetidas à ética do trabalho, à anulação de demonstrações de personalidade e execrados em qualquer demonstração crítica, a arquitetura do prédio da Avenida Paulista é o que menos choca – no natal, em sua decoração kitsch, até ajuda a fazer a festa da família paulistana.
Na música, o grupo de rock Ira! ofereceu por duas décadas os hinos da intolerância paulista. Eles, que queriam lutar, mas não com a farda brasileira, não tiveram pudores em cantar contra a gente feia e ignorante, em favor de gente da sua terra e do seu sangue (quer algo mais nazista que isso? Nasi poderia responder). “Pobre Paulista” talvez seja o hino mais bem acabado de uma época, em que nordestinos eram acusados pelos males paulistas – intolerância essa que se aplacou com a escassez de empregadas domésticas. Aplacou mas não acabou: o problema do nordeste que só faz festa e vive às expensas de São Paulo, que é onde se trabalha, continua – e tem voz mesmo entre professores doutores em políticas educacionais das universidades estaduais paulistas. Para o consumo interno, a ira paulista apenas trocou de foco, como dito acima: o neofascismo paulista não vê problemas na agressão contra homossexuais, pobres, esquerdistas – seja feita por civis ou militares. Os chamados “excessos”, como a morte de um publicitário que não parou em uma blitz, são acidentes lamentáveis, mas plenamente justificáveis.
Onde essa política higienista irá acabar? Não sei, e tenho medo: não vem de agora, não é obra de um partido – que um dia se pretendeu progressista –, é algo que vem arraigado, e que, a depender da educação oficial, apenas será aprofundado. Não se trata de cair no maniqueísmo bem e mal, mas não é o caso de ser indiferentes, pois, como a música do Ira! atesta: é ódio mortal.

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“Quem não reagiu está vivo”: a mentira aceita como mentira (daniel gorte-dalmoro)
O desenho estatal contemporâneo é fundado e dependente da mentira. Não existe Estado se não na mentira.
A mentira ideológica, tão denunciada por marxistas, de que o Estado não é neutro, antes um órgão de uma classe específica, destinado a favorecê-la, em detrimento da grande maioria da população. Aos que rejeitam de cara essa visão, convém dar uma olhada na proporção de renda da população e dos que teoricamente são seus representantes no legislativo – e isso pode ser no Brasil ou nos EUA.
Outra mentira é o chamado “segredo de Estado”. Acreditar que um Estado possa existir sem segredos – e mentiras, que não raro são necessárias para ocultar tais segredos – é desconhecer a essência do Estado. Não existe possibilidade de novas relações entre Estado e sociedade, é tudo ou nada. Maior transparência não significa fim das mentiras. A perseguição a Assange é mais necessária do que a qualquer grupo terrorista – pois estes desestabilizam governos, aquele é capaz de chacoalhar Estados. A questão que o wikileaks põe é: o que pôr no lugar?
Há ainda a terceira mentira, tratada no século passado como “mentira totalitária”, em que a verdade empírica perde poder de veridicção sobre si própria, ou se torna irrelevante, porque a mentira passa a ser aceita como mentira, mesmo. Mentira e verdade deixam de ser polos antagônicos e passam a conviver pacificamente conforme o interesse do momento do governo, de uma classe, de um grupo. A lei passa a ser relativizada, e o Estado se desobriga de cumpri-la, uma vez que a mentira tem autoridade sobre a verdade.
Falar em “verdade” e “mentira” pode soar um tanto absoluto. Reconheço que são termos que podem ser postos em dúvida. O ponto aqui não é que a verdade seja posta em dúvida: a verdade Estatal já é sabida de antemão mentirosa, sem chance de réplica dos fatos, e isso não é tido como um problema.
Em 2 de outubro completam vinte anos de um dos muitos lamentáveis atos de barbárie do Estado brasileiro. O assassinato imediato de 111 pessoas indefesas pelo Estado (a se acreditar nos seus números oficiais, altamente questionáveis), para não falar nos mortos em decorrência de doenças contraídas na chacina.
111 deveria ser um número interdito no Brasil: em memória do silêncio daqueles que não puderam se defender de cães treinados para matar, o silêncio dos que sequer tiveram direito a clamar a verdade dos fatos, o número real de mortos, as condições em que foram mortos – e, antes disso, na qual eram tratados.
Ao contrário disso, o que temos? O assassino-mor, Antônio Fleury (sobrenome que só tem a marcar negativamente a história brasileira), livre, leve, solto, eventualmente eleito. O comandante da época, Coronel Ubiratan Guimarães, até ser morto em crime passional, se candidatava com grande orgulho das 111 pessoas que assassinara – e ganhava.
“Quem não reagiu está vivo”. Essa frase é sempre mentirosa quando dita por um agente do Estado.
Nos teóricos clássicos do Estado, este é fundado para garantir, antes de tudo a vida. Diante de um Estado que a desrespeita, é legítimo se voltar contra esse Estado. “Quem não reagiu está vivo” é mentirosa, contudo, não só por isso: com a mentira generalizada institucionalizada, todos sabem que as pessoas foram assassinadas indistintamente de terem reagido ou não. Por que alguém que está sendo julgado pelo tribunal do crime iria reagir contra a Rota? Por que e com o que um publicitário desarmado iria reagir contra a PM? Que espécie de confrontos são esses que os tiros saem sempre só de um lado? Só a Rota já matou 45 pessoas em 2012: o PCC tem toda razão de existir e agir.
Não que os chamados “bandidos” sejam bonzinhos, ou matem menos que polícia, mas a partir do momento que a polícia age como “bandida”, perde razão de ser, se torna tão bandido quanto aqueles que diz combater: escolher quem mata menos é uma falsa escolha.
Se a polícia não dá garantia, muito menos dão os responsáveis por ela. Geraldo Alckmin, acima de todos, ainda que ele não possa ser elevado a bode expiatório: é política de seu partido, o PSDB paulista, criminalizar movimentos sociais, populações carentes e usar de meios paralegais para combater pessoas abaixo de uma certa linha de renda – não existe auto-combustão em favelas, por mais que a mídia divulgue essa outra mentira estatal, sabida mentira, e aceita assim mesmo. É bandeira do seu partido e com fortíssimo respaldo na população. “Quem não deve não teme” é mentira também apregoada. Se a polícia não respeita a lei, como saber o que temer? No crime, ao menos, sabe-se que suas leis são cumpridas.
Resisto em chamar de neofascismo a esse movimento que toma São Paulo. Há várias similaridades entre a política tupiniquim atual e a do Partido Nacional Socialista Alemão, sim, mas há muitas diferenças também – de contexto, antes de tudo –; acho que o termo causa um certo choque, o que poderia ser positivo, mas simplifica em demasia a questão e impede uma crítica mais acurada do que está acontecendo agora, século XXI.

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Cartão vermelho (Cassio Correa)
O juiz vem correndo, com o cartão já empunhado. Sacou, como arma. Como revólver que atira. Não reflete, não analisa – arranca, com voracidade.
Estica a mão, furando o céu da expectativa, rasga o ar pesado com sua faca vermelha. O braço estica, catarse, como um zagueiro que tira de cima da linha. A cara se contorce, o olho fecha, e abre, com a justiça dos carrascos que punem antes de julgar. Prazer, gozo, ordem.
O juiz de futebol é carrasco, executor – não árbitro. É choque, não mediador.
O arbítrio é substituído pelo autoritarismo. Não falo com ninguém, sai daqui, sai daqui, diz, negando réplica, recurso, argumento, conversa. Sai daqui, aponta os dedos pra longe.
Vem o capitão (ó capitão, meu capitão). Sai daqui, eles gritam, ninguém entende, já não são palavras. Ah, é? Saca o amarelo e interdita a palavra. Vai falar mais? Vai? Sai daqui!
Nas cabines de comentários (ó comentário), seus mentores aplaudem a restauração da ordem. Manutenção do estado de direito de permanecer calado. Ele quis controlar a partida. Ah, o controle… A partida controlada, a palavra controlada, Batman devolvendo a paz à partida. Dizem: são garotos mimados, precisam de controle. São divas ricas, precisam de controle. São malandros, precisam de controle. O controle (dizem) que a cidade não tem…
A cidade, com suas catracas e viaturas nas esquinas.
Autoritarismo. É esse o caminho das coisas, aqui, Brasil, século XXI.
A escola é autoritária. A universidade é autoritária. Cada vez menos se admite a participação dos alunos nos rumos do seu próprio aprendizado. Qualquer contestação deve ser resolvida por uma mão pesada, dita dura, que dissolveria os problemas. O fracasso aumenta e faz aumentar o pedido de mordaça, no espaço da sociedade em que mais se espera o diálogo.
Nas ruas? Só a força do cassetete pode salvar. Limpar o resto de gente que fica nas calçadas. Expulsar o povo, transformando a cidade em deserto. Bandidos e mocinhos autoritários, brincando de guerra com a cidade. Dando cavalos de pau com seus camburões.
No trabalho? É só assim que o trabalhador vai entender seu lugar na máquina social. Que se cale. Sai daqui! Sai daqui! Há um direito divino em cada chefe, guiando seu povo pelo moedor de carne. O trabalhador moderno não questiona. Precisa entender hierarquia, mesmo que errada, mesmo que injusta. Se questiona, rua. Se rua, cassetete.
E a justiça? Há um homem e sua capacidade de julgar. Há a defesa da propriedade dos tabletes de manteiga furtados nos bolsos magros dos famintos. Há o livre-arbítrio pra desumanidade das corporações. Audiências que não escutam as partes, sentenças dadas como raios divinos, desprezo e humilhação contra aqueles que invocaram o que se chama justo.
Lembram do tanque de guerra na Praça da Paz? Esses juízes torcem para o tanque.
E o esporte, enfim, com seus presidentes vitalícios – generalíssimos que justificam o esporte controlado (na mão deles).
No Brasil, primeiro se atira, depois se impede a pergunta.
O país do futebol é um país, afinal.