terça-feira, 14 de novembro de 2023

Sobre os tempos que não voltam mais [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]

Estávamos conversando aleatoriedades no pós almoço e acabamos entrando no papo “de um tempo que não volta mais”, como diz o poeta - ainda que esteja pra ver tempo que volte (a não ser como farsa), e mesmo ver algum poeta de verdade usar uma frase tão ruim. Enfim, conversávamos sobre nossa juventude, em especial os tempos de faculdade. Quem falara até então fizera questão de contar seus feitos pretéritos - quase difíceis de acreditar, a se ter como parâmetro as tristes figuras atuais, Dons (e Donas) Quixotes derrotados pelos moinhos de vento (ok, exagero, estamos todos ótimos, nem parecemos tão velhos assim).

Nisso, Macedo, talvez também descrente daqueles feitos todos, resolveu encarnar o Álvaro de Campos, e sem mudar o assunto, resolveu diversificar o tom da conversa, ao melhor estilo do Tabucchi: “Perguntei-lhe sobre aquele tempo, quando ainda éramos tão jovens, ingênuos, impetuosos, tontos, despreparados. Algo disso restou, menos a juventude - me respondeu”. Contou dois de seus feitos em não conseguir ficar com ninguém.

Eu ia perguntar se ele estava contando isso para provar aos solteiros da mesa que um início pífio não necessariamente não culminaria num final feliz, redentoso - e esse papo good vibes era mais a cara do Carnegie, que já tinha contado seus feitos futebolísticos, que só não tinha virado um grande astro ludopédico porque se recusava a vestir um uniforme que não fosse verde, e o seu amado clube não o quis, digo, ele teve outras prioridades e precisou abdicar do esporte -, mas Goreti se intrometeu e interjeitou, cabal: 

Esse é dos meus!

Como assim? Não entendi e pedi para ele se explicar. 

Empolgado, contou que não era só um pega ninguém (palavras dele), como ainda conseguia se queimar com as garotas nas baladas: no meio da tentativa de corte vinha uma frase absolutamente infeliz, e a seguir, rapidamente, a consciência de que tinha falado merda e perdido a chance - só não mais rápido que havia sido pra proferir tamanha groselha. Preferia nem se alongar muito, e como o atacante que perde o gol a dois metros do travessão e sem goleiro, isolando a bola nas arquibancadas, ele perdia o gol e já saía para buscar a bola e não voltar. 

Pior - continuou ele -, dei fora em duas garotas que eu estava super apaixonado. E contou os casos. 

Me sensibilizei com sua tentativa de não deixar Macedo sozinho como o fracasso juvenil, mas éramos da mesma faculdade e eu conhecia sua fama.

Que fama?!

Achei manjado esse lance de se fazer de humildão, depois de desentendido. Entretanto, me pareceu tão convicente nessa atuação que resolvi entrar no jogo e ver até onde iria.

A de mineirinho come quieto.

De onde você inventou isso?!

Inventei coisa alguma, era sua fama!

De onde inventaram isso?!

Ué, sempre tinha um monte de mulheres correndo atrás de você, você acha que a gente não sabia que você devia ficar com a maioria delas, só não saía contando por aí.

Que mulheres correndo atrás de mim?!

Muitas! Você arrancava suspiros apaixonados, quase o Tom Cruise da faculdade (só se for no tamanho da napa, ele pontuou). Era um dos mais requisitados! Disse o nome de três delas. Ele murchou e disse que era apaixonado pela primeira citada.

Pois ela era por você, achamos que vocês tinham ficado, não tinha dado liga e por isso ela parou de falar de você. Na verdade todo mundo achava que você tinha ficado com as três.

Certo, as mais cobiçadas da faculdade, totalmente factível! Quem mais?

Disse mais uma.

Ela não me achava com cara de psicopata?

Isso você soube, é? Mas uma coisa não invalida a outra.

Vai ver ela tinha uma paixão pelo perigo - completou Macedo.

O perigo com o Goreti é a de morrer esperando - contra argumentou Meireles.

Garantiu que não tinha ficado com ela também, porém ainda não me convencia que não era o galã pega todas da faculdade, por mais que Meireles confirmasse que já tinha ouvido suas histórias de fracasso. Sem falar que isso acabava até com a moral da história do Macedo (ao menos a que eu tinha imaginado), já que Goreti era um dos solteiros da mesa - e é solteiro não por convicção.

Com quem você viu eu ficando, ou soube de boa fonte, salvo minha namorada do primeiro ano e a ficante do último semestre?

De fato, eu nunca tinha visto ninguém além dessas duas, e ninguém tinha nunca contado uma fofoca do tipo. Mas e a fama?

Eu quem pergunto: por que você nunca me avisou?!

E eu lá ia saber que você não percebia as mulheres caindo em cima de você?

Porra, eu com essa fama toda e não pude aproveitar! E você só me conta duas décadas depois!

Macedo, talvez um pouco decepcionado por ver que seu caso era menos de competência e mais por outros atributos, assim como abriu, fechou o assunto:

Pois veja pelo lado bom, caro colega: ficou com a fama sem ter tido todo o trabalho.

Achei justa a colocação, Goreti é que já vai para mais de uma semana desolado com os tempos que não voltam mais.


09 de novembro de 2023


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sábado, 4 de novembro de 2023

Imprensa, ética e a formação do público para o jornalismo

No jornalismo de manchetes, de impacto imediatista, em um tempo de necessidade constante de novidades de hora em hora, a busca por furos jornalísticos se tornou a tônica de muitos jornalistas na grande imprensa - os sem escrúpulos, ansiosos por crescer na carreira a qualquer custa, sejam eles novatos ou experientes. O importante é dar sempre a notícia antes de todos os demais, na expectativa de que uma dessas seja uma grande notícia - o autor de um Watergate tupiniquim, só que sem todo o trabalho jornalístico de Woodward e Bernstein. Ao invés de investigações detalhadas, checagem dos fatos, dar voz ao outro lado, solta-se a notícia, simplesmente. 

Alguns profissionais da imprensa sabem segurar o andor, não por cuidado jornalístico, mas por terem noção do que é ou não relevante e pode se tornar uma reportagem de causar impacto. Mais que isso, porque costumam ter acesso a fontes de atores políticos importantes (políticos eleitos ou nomeados ou aqueles disfarçados de agentes estatais que atuam como poder à parte), que são quem lhes dão a perspectiva de em algum momento dar o famigerado furo, os primeiros a dar o ato consumado ou escancarar os bastidores desse ato.

O ponto é que para ter acesso a essas fontes, é preciso mais que algum renome e bom relacionamento: é preciso ter a simpatia desses atores. E para ter essa simpatia, esse acesso facilitado a fontes importantes, é preciso fazer o jogo deles até (quem sabe) surgir o grande momento. Ou seja, atuar como quinta coluna na imprensa: ser um amigo desse poder, mandar às favas o jornalismo, atuar como relações públicas ou assessor de comunicação extra-oficial, à espera de um momento em que possa se destacar por uma grande reportagem, que vai apagar esse seu passado “eticamente livre orientado” (para usar expressão do Overman, da Laerte). 

O que sobra é um jornalismo de notas de personagens em off, de denúncias surgidas do nada ao gosto de políticos, promotores ou juízes; de ouvi-dizeres, de ameaças dadas via imprensa, de balões de ensaio. Sim, estou falando dos muitos jornalistas que trabalharam para a Lava Jato (e que agora renegam o passado, não por conta do erro cometido na profissão, mas por terem apostado no cavalo errado - na verdade por terem tomado um cavalo por enxadrista), como estou falando das recentes famigeradas ASCOM de milicos, mas também de quem projetou Demóstenes Torres como paladino da ética (bem documentado no último livro do Nassif), dos mil balões de ensaio de ministros para o STF - ou mesmo Alckmin para vice de Lula. Um desses jornalistas que eventualmente soltou uma balão de ensaio que deu certo, no futuro vai cobrar dessa personalidade por esse serviço prestado.

Alguém mais ingênuo poderia perguntar como as empresas jornalísticas admitem esse tipo de profissional em suas fileiras. A resposta é simples: essas empresas têm o jornalismo como meio, não como fim; sua finalidade é aumento de lucro e poder dos patrões - e isso nem é novidade ou exclusividade brasileira, Orson Welles já denunciava no início da década de 1940 em seu clássico Cidadão Kane. Do apoio nem à ditadura militar (ou seria ditabranda?) ao bolso-guedismo; do golpe branco no Lula, em 1989, ao golpe efetivo na Dilma, em 2016, a imprensa brasileira nunca disfarçou que o Brasil só lhe interessa enquanto lhe der lucros privados - seu projeto de país é o projeto das elites que cá aportaram desde Cabral: saque e fuga para o exterior. 

Daí a importância da imprensa alternativa, que com a internet permitiu que jornalistas reconhecidos e de carreira sólida, forjados na grande imprensa, mas sem negar seus princípios, em especial os de ética e da profissão, pudessem ganhar projeção - ainda que reduzida, frente o poderio das cinco famílias e seus tentáculos na internet, sem falar na imprensa de internet que pratica o mesmo que a imprensa corporativa, publicidade “orgânica” disfarçada de jornalismo. Vale lembrar que essa imprensa alternativa desde sempre existiu, ligada ao contexto de resistência, como a imprensa operária.

Esses jornalistas, aferrados ao fazer correto da profissão, acabam por ter uma dupla tarefa: não apenas noticiar os fatos de maneira justa e fiel aos ocorridos como capitanear um processo de educação, de mostrar o que é notícia e como se faz jornalismo, um processo de formação de público à notícia enquanto bem público e não enquanto mercadoria para negociar com quem paga mais - isso a um povo forjado há gerações nesse ambiente de “empresa de comunicação” e “showrnalismo” (na expressão do Arbex). Não é tarefa pouca, mas é tarefa capital de quem ainda pensa em uma sociedade democrática e mais justa.

04 de novembro de 2023