quarta-feira, 29 de maio de 2013

Passenger

Apresso o passo para atravessar a Paulista. No cruzamento com a Augusta, em frente ao Conjunto Nacional, uma mulher com um violão e vozeirão meio a la Aimee Mann faz uma versão mais lenta e sem firulas de “The Passenger”, do Iggy Pop. Algumas poucas pessoas assistem. Um casal se abraça. Uma mulher, jaqueta rosa sob a marquise de luzes amarelas, acende um cigarro. Páro na esquina, esperando, junto com outros transeuntes, o sinal para pedestres abrir. São nove horas da noite – faz frio em SP. Uma garota passa ágil por mim. Cabelo curto preto, blusa vermelha, calça preta, tênis – a vejo apenas de costas. Atravessa a rua como se o vermelho fosse para os carros. O asfalto está molhado, tem uma cor mais escura e reflete com um brilho fosco as luzes da cidade. Vejo algo da minha tristeza do momento nas marcas que, a cada passo seu, sobram no chão úmido – a perco de vista tão logo chega do outro lado. The bright and hollow sky. You know it looks so good tonight. I am the passenger. O homem verde indica que podemos cruzar a rua sem perigo e sem pressa. Relampeja. Me ponho a atravessar a Augusta – recolho minhas melancolias caídas na faixa de pedestres.

São Paulo, 29 de maio de 2013.

domingo, 26 de maio de 2013

A sombria cor-vazio do branco.

Foto de Luis Felipe Labaki [j.mp/10Ykne6]
Subindo as escadas, primeira porta à esquerda, entra-se em um grande salão, circular no extremo oposto. À direita da entrada, uma sala anexa, retangular, sem separação. Em todo ambiente, o chão é de cimento (reparo algumas manchas coloridas, ou ao menos que rompem com o monocórdio cinza), o teto é preto, as paredes, brancas. Não há janelas. As luzes do grande salão estão apagadas – apenas um abajur sobre um mesa, mais ou menos no centro. As da sala contígua estão acesas: luzes brancas em uma sala branca – e vazia. No salão há cadeiras, dispostas aleatoriamente quanto ao lugar e direção – mas tendendo para o centro, para o abajur. Há pessoas nesse salão, muitas – eu chutaria perto de cem. Estão em silêncio, o olhar perdido, sem saber para onde mirar. A maioria está sentada nas cadeiras. Há pessoas sentadas no chão – algumas deitadas. Outras poucas caminham – em geral logo páram e se sentam (ou deitam) novamente. Há músicas que ocupam todo o espaço – feitas para isso. É o concerto NME13, de música eletroacústica, em uma das salas de exposição do Instituto Tomie Ohtake. Um rapaz se levanta, transita pelo salão, adentra a sala adjacente, até então vazia. Ele vai até próximo da parede oposta, se senta defronte a ela, de costas para o salão. De onde o vejo, ele perde a sombra. A sala é branca, a luz é branca, a música que é executada no instante, “Cor”, de Clayton Mamedes, tem um clima sombrio. No salão, na penumbra, a música a transitar pelas caixas, preenchendo de diversas maneiras o espaço, o olhar faz as vezes geralmente reservada aos braços: o que fazer com eles? Não há instrumentista a executar a peça, não há vídeo a ilustrá-la, não há foco – a não ser o estático o abajur ao centro, a iluminar timidamente o computador e a mesa de som. Olhar para baixo, fechar os olhos? (São alguns dos momentos em que vi manchas coloridas). Pode-se flanar o olhar por entre os colegas de público, até se deparar com outra pessoa a fazer o mesmo e baixar os olhos, um pouco constrangido. O rapaz resolveu esse problema: pode olhar para frente, não se deparará com ninguém, com nada além do branco e da música sombria nomeada cor. Mas o que ele vê diante do branco? Lembro de uma tira do André Dahmer: um homem defronte um grande aparelho de tevê, comentando que algo está deixando sua alma pequena. Eu não conseguiria ter esse tipo de reflexão diante de um televisor.
Mas envolto por três paredes brancas, sentiria minha alma de que tamanho? O branco, tão vinculado à idéia de paz, de pureza cristã. O quanto não fujo do branco? Paz que pode ser a ausência de vida – a vida sempre tão conflitiva, não necessariamente uma guerra. Pureza que pode significar a falta de marcas, de sombras, da exata noção da profundidade, o raso. O vazio. Lembro da música do Marilyn Manson: um grande mundo branco, que suga nossas cores. Também poderia ser o inverso: um grande mundo colorido que mancha nossa brancura. Ou então apenas um mundo que não respeita nossas cores. As cores, elas vêm para preencher esse vazio ou disfarçá-lo? De início penso nas cores da publicidade, das cores que vazam brilhantes da tevê, e me parecem enganadoras. Mas e as cores sombrias da obra que escuto aquele momento? Por que só estas seriam as verdadeiras? A pop-art desbotada de Arthur Bispo do Rosário é colorida. A primeira obra do concerto, “Impulso e impacto n° 3”, de Caio Kenji, é colorida – colorida e sinestésica, a ponto de ver traços coloridos a la Malevich sendo desenhados pelo som no espaço escuro. Música para exposição. Cores, e não preto no branco. A publicidade engana e encobre? Até que ponto? E os pontos coloridos que resistem em meio ao cinza? E a flor de Drummond a desabrochar em meio à náusea? Mais tarde, durante a última peça da noite, “Pato Rei I”, de Tiago de Mello, eu andaria sozinho por aquele espaço branco. Algum pensamento sobre minha relação com o Outro brilharia e eu sentiria leve angústia, que me faria retornar logo ao breu. Estar diante do branco, revela ou apaga?

São Paulo, 26 de maio de 2013.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Sopa de feijão

No céu, a bela lua minguante cercada por nuvens que, como um véu, insinuam cobri-la sem terem capacidade para fazê-lo de fato. No meio do meu caminho, um Sesc. Freqüento eventualmente as atividades culturais do circuito Sesc – não que não sejam boas, me desagrada o seu clima excessivamente asséptico: empregados apagados como bons serviçais, ausência de pobres, pouco espaço para inesperados. Mas a comida é boa, mais saudável e mais barata que um qualquer-coisa no bar da esquina – e eu estava com fome. Opto por sopa – feijão com macarrão. Não está frio para sopa; não estou doente para sopa, porém gosto de sopa de feijão. Sento em uma mesa, a sopa demora – não esperava por essa espera toda, e ao invés de seguir com a leitura de Correio do tempo, do Benedetti, fico a observar as pessoas do local, em silêncio, porque não sou do tipo que consegue puxar papo. É um público um pouco diferente daquele que me deparo nas apresentações culturais: há mais idosos e famílias com filhos, menos jovens descolados. Na minha frente estão sentadas duas garotas – bonitinhas –, uma oriental e uma negra. Tento adivinhar suas idades, não consigo: vinte, vinte e cinco, trinta, trinta e pouco? São jovens, porém não adolescentes. Branquelo, creio que tenha me habituado a analisar os sulcos da idade com meu reflexo no espelho, com a imagem de meus pais – daí que orientais e negros acabem sempre me parecendo mais jovens. As duas moças conversam animadas, mas quando uma sai para ir ao banheiro, a outro logo confere o celular, como se estivesse a espera da mensagem salvadora. A oriental tem uma tatuagem no braço, a parte que dá para ver deixa a impressão de ser parecida com os primeiros rabiscos em camisetas que fiz. Uma senhora começa a gritar com um senhor, parece sério de início, logo noto que não é o caso, está indignada por ter chegado depois: “como você já está aqui, se eu saí antes”. Finalmente o sinal chama a minha senha. A sopa é de feijão carioca, para minha surpresa – quando faço, ou minha mãe faz, sempre é de feijão preto. Sem pré-julgar, tomo a primeira colherada. Nessa hora, sinto o gosto da noite na casa de meu avô: a toalha xadrez vermelha, o teto azul, as paredes com azulejos laranjas sustentadas pela folhinha do sagrado coração de jesus e por uma espécie de calendário permanente da Bayer, a caneca marrom para pôr a dentadura depois da sopa – a janta era invariavelmente sopa –, o tic-tac pesado do relógio, tudo isso iluminado por uma fraca luz amarela. Jogo um pedaço de torrada na sopa, ver como fica, e todo esse sabor de passado se quebra. A fila no caixa, o aviso sonoro da senha do pedidos, as pessoas que conversam ao meu redor: volto ao presente. Longe de São Paulo, a casa de meu avô deve estar agora povoada tão-somente de memórias – dentre elas, nossa risada cúmplice e sem maior motivo que uma troca de olhares em silêncio, na hora da sopa.

São Paulo, 15 de maio de 2013.

domingo, 5 de maio de 2013

No último trem ao voltar de Campinas

São Paulo, mon amour, pensei quando o ônibus chegou no terminal Tietê. Acho que já me declarei à cidade em crônica anterior. Essa sensação aumenta ainda mais ao voltar de Campinas – cidade que sinto como uma prisão, e que por dez anos abstrai para suportá-la. Como toda prisão – desconfio –, fiz meus amigos de cela, e este sábado na “Princesa do Oeste” revi duas das pessoas mais queridas que tenho na cidade. Os lugares não se encontram, constroem-se, disse Mia Couto. Concordo em partes: os lugares são construídos do nada, mas de uma configuração prévia que autoriza certas construções e limita outras. Para mim, Campinas se construiu como Ercília, do livro de Ítalo Calvino. Os fios das relações construindo as ruas pelas quais eu transitava e as paredes da casa que me abrigava. Porém, conforme muitos dos meus amigos foram levantando acampamento de lá, ela foi ficando mais limitada do que já era – minha Ercília exigia reconstrução diária dos seus laços. No breve trajeto pelo Cambuí e centro, até chegar na rodoviária, onze horas da noite, uma cidade que se nega a si como tal. É sábado mesmo? Um milhão de habitantes? Pato Branco, no seu interiorano hábito das pessoas irem para a avenida principal curtir a noite sem opções, se concentrando nos postos de gasolina, ainda lembra que é uma cidade, quase (quase!) dá para fazer um paralelo com a rua Augusta, em São Paulo. E Campinas? Pode ser desconhecimento meu, mas não sei de rua parecida. Na praça do Centro de Convivência Cultural, jovens de classe média se rebelam conformísticamente bebendo em trajes darks sob a vigilância de câmeras de segurança e da base da PM – podiam chamar aquela de base infanto-juvenil da PM. Na sua ânsia de progresso, Campinas deixou o que era para não se tornar nada – e nisso Pato Branco, deitando abaixo construções com alguma história para construção de torres classe média, acompanha a cidade paulista. Uma pena. Se tivesse se mantido como cidade-museu, estilo as cidades histórias de Minas, creio que hoje Campinas seria uma cidade mais interessante, quem sabe até convidativa – certamente mais bonita. (Pato Branco não chegaria a isso). Talvez minhas reclamações sobre Campinas e Pato Branco (na primeira vivi dez, na segunda, dezessete anos) sejam as mesmas que moradores antigos dirigem contra São Paulo, que diante das possibilidades abertas parece ter sempre optado pela pior (o site “Quando a cidade era mais gentil” dá uma boa mostra disso [j.mp/16cKaah]), até se tornar no mostrengo cosmopolita atual – que graças a skatistas, putas, alguma classe-média com boa vontade, e alguns poucos outros, resiste em ser um deserto de asfalto e concreto. É quase a mesma amargura de Trevisan com sua Curitiba perdida. No meio da tarde, enquanto esperava por um dos amigos, na praça do Centro de Convivência, um casal na minha frente namorava como se vivesse em cidade pequena, como se estivesse nas férias: calmamente, sem afobação, carícias entrecortadas de silêncio e olhares. Campinas merecia isso e não ruas em que carros passam apressados enquanto tiozões desfilam Ferraris (que eu imaginei de início ser um Miura; semana passada a confusão se deu com um Porshe placa preta na Augusta). Mas ela optou por ser um local de passagem, que demarca sua forte segregação social com avenidas túneis e rodovias. Chego em São Paulo a tempo de pegar o último metrô. É sábado, não está vazio, mas está silencioso. Num canto um homem parece voltar do trabalho, cabeça baixa, parece cansado. Ao seu lado, um casal gay tira fotos: um negro, outro branco e loiro, cada um com seu moicano. Um homem já começando a ficar grisalho, cabelo e barbas compridos, camisa verde-musgo, meio estilo hippie-limpo, tem o olhar perdido – fosse Campinas e seria o estereótipo de quem mora na Vila São João e toca numa banda de músicas folclóricas. Um rapaz com dois brincos (e provavelmente alguma tatuagem que não enxergo) mexe no celular. Um homem gordo e calvo tem um livro na mão e mexe no celular. Também mexe no celular uma moça com uma grande tatuagem no braço, que não consigo identificar. Uma mulher de vestido colorido em tom pastel – branco preto vermelho –, óculos, grandes orelhas e forte estrabismo olha irriquieta para os lados, mais ou menos como deve estar fazendo o branquelo alto magricelo que emana cheiro de café – além dos amigos, há um café e o preço da paçoquinha diet que considero pontos positivos de Campinas – e que faz anotações sobre as pessoas do vagão em um caderno. Embaixo da teletela do metrô, que a essa hora passa propaganda institucional, um outro rapaz gordo dorme esparramado – ele usa bermuda jeans. Perto dele, um casal descolado, uma bela morena (que mexe no celular) e um rapaz que me lembra quase um “Sérgio Malando cool” pelo estilo do boné – talvez eu esteja influenciado pela tenebrosa propaganda de refrigerante com o referido artista nas paredes do trem. Atrás desse casal, um outro – ao menos um par –, ele com roupa mais justa, ela, com roupa super curta. Dois homens conversam, tem-se a impressão que a noite caminha para o final para ambos, apenas esperando chegar em casa – diferentemente de quatro amigas, prontas para a balada. Trechos de Arcade Fire, François Breut e Interpol se revezam em minha mente. Me dou conta que a festa que fui em Campinas não tinha música – e não fez falta. Por um mês não quero sushi. Travestis fazem ponto perto do circuito de rua do Anhembi. Lembro com saudades dos bons tempos da categoria, em meados dos anos 90, Gugelmin, Moreno, Gil de Ferran, Zanardi, Montoya, Vasser – pois é, eu gosto de automobilismo. Sinto mais receio de andar à noite por Campinas do que no centro de São Paulo – nesta me sinto em casa e não tem porque temê-la, apesar de saber que sempre há riscos. Por falar em casa, ao chegar, vejo na internet que em Fukuoka faz sol.

São Paulo, 05 de maio de 2013.