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segunda-feira, 9 de junho de 2025

Usos alternativos da escada de emergência [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

 O clima não anda muito bom na empresa. Não que isso seja novidade - e nem é culpa especificamente da empresa (mas é também). “Não há trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar”, já dizia o Seu Madruga. Mas sempre dá para piorar. Dunker e Safatle apresentam o neoliberalismo, no nível micropolítico, como forma de gestão do sofrimento psíquico - a tal qualidade de vida que o modelo de gestão de pessoas 4.0 apregoa é coisa do passado, se é que algum dia existiu de verdade tal preocupação por parte das empresas (eu acho que sempre foi uma mentira). Atualmente, devem seguir uma versão corrompida dos dois fatores de Herzberg, as melhores, quando não é a lógica do chicote no lombo, mesmo.

Mas por que toda essa introdução? Hoje Goreti chegou com uma garrafinha nova. Um emoji feliz e os dizeres: “Uma garrafinha feliz, porque o resto aqui é só tristeza”. Ousado. Temero. Eu receio a hora que o chefe a veja. Talvez abra um sorriso sarcástico e pense “vamos apertar a coisa, para ele ver o que é tristeza de verdade”, e use seus conhecimentos de coach para assediá-lo. Ou seja mais direto e ofereça a porta da rua, caso ele esteja descontente - com certeza não vai demiti-lo, porque vai ser difícil achar alguém para substituí-lo. Mas pode ser que nada disso aconteça: ele não veja a garrafinha e vida que segue, em doses homeopáticas de assédio e ranço. Goreti já distribuiu exemplares do Manifesto Proletário, do Capirotinho, e até agora nada aconteceu - a não ser formas difusas de boicote, apesar que eu preferiria uma revolta, com coquetéis molotov, fascistas e militares pendurados de ponta cabeça e tudo o mais. Como isso não está no horizonte, nos resta as recusas silenciosas.

Está ruim para nós, mas está ainda pior para Shôri, colega do setor ao lado, apresentada a mim e a Macedo pelo Fernandez, Colega do Topo (que anda meio sumido). Fora os assédios no trabalho, ainda tem que dividir o fumódromo com a chefe - que faz questão de ir pouco depois de ela sair -, que aproveita o momento de relaxamento para cobrá-la mais por mais resultados (não foi engano o duplo mais). Cansada disso, Shôri passou a fumar escondida na escada de emergência - onde não há câmeras nem detectores de fumaça -, ao menos algumas vezes.

Pois estava ela, semana passada, terminando seu cigarro quando escutou um barulho estranho, alguns andares abaixo. Foi até a fonte de ruído e encontrou a funcionária de algum outro setor sentada, chorando.

Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

Está tudo bem - foi a resposta em meio ao choro e soluços, e Shôri decidiu não insistir: se ela disse, está dito.

Voltou para o trabalho e refletiu: eis um bom uso para as escadas de emergência, sempre vazias (ou quase): melhor que chorar no banheiro, onde tem que segurar para não fazê-lo alto. Mal terminou seu raciocínio e resolveu aceitar a realidade, não a resposta: era óbvio que a moça não estava bem. Pegou um copo d’água, algumas folhas de papel toalha, uma barra de chocolates que guarda para emergências e foi ao encontro da mulher, que seguia chorando.

Olha, não sei o que aconteceu, mas te trouxe isto.

Foi aí que a mulher desandou a chorar de vez e contou do último episódio de assédio recebido. Nada de novo sob o sol, nem sob o teto da empresa; só uma gota a mais no co(r)po cheio.

Pois hoje estávamos conversando na escada de emergência quando escutamos uma voz:

Achei mesmo que fosse te encontrar por aqui! 

Pronto, a chefe encontrou Shôri, e vai tomar um sabão por estar fugindo do trabalho - além da advertência por estar fumando em local proibido. E eu vou de carona, mesmo sendo apenas fumante passivo. Nos viramos e demos com duas mãos segurando uma caixa de bombons.

Obrigada pelos chocolates.

Shôri mal teve tempo de agradecer, a mulher saiu, quase uma assombração, assim como chegou.

Pois é... um texto sem graça, mas achei gracioso o gesto de ambas.


09 de junho de 2025

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Acho que recebi um elogio [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Acho que recebi um elogio, não sei bem.

Macedo está de férias, tem feito falta. Não apenas por saber tudo do trabalho, como por ser um bom ouvinte - ainda que involuntário. Na falta dele, os colegas tagarelas que o cercam vão atrás de novas vítimas, digo, novos interlocutores. 

Hoje fui cercado pelos indivíduos que sentam à frente e à esquerda de Macedo, Mello, o colega que oferece chocolate e depois cobra um preço por isso (escutá-lo se repetir e se repetir e se repetir várias e várias e várias vezes por dia) e Pacheco, respectivamente. Costumo estar sempre de fones de ouvido, justo para tentar evitar certos tipos de interpelação, digo, de interação, e hoje cometi a séria falha de, após responder a uma questão de trabalho, não subi-los imediatamente. Foi a deixa. Já que estavam falando de música, julgaram que nada melhor que chamar o colega sempre com fones para a conversa.

Papo vai, papo vem, eu não conseguia achar uma sobra de respiro para voltar ao trabalho - por mais que estivesse enfadonho. E lá iam eles falando sobre punk, pós-punk, new wave, skate rock, e eu só ouvindo. Se me perguntassem, capaz de eu dizer que gostava apenas de Chico, Vandré, Gil, Caetano, Arrigo, só para conseguir fugir da conversa - e quem disse que me perguntaram?

A certa altura, com uma meia hora de parlatório, entraram no assunto Iggy Pop - ambos muito fãs. O colega do chocolate-com-papo (que aceitei desta feita, porque o papo já tinha chegado, ao menos pude aproveitar o chocolate) contou que foi no show de 2009 e fora muito bom.

Eu bem queria ter ido, mas era menor de idade na época - respondeu Pacheco.


Foi quando ao menos consegui participar da conversa.

Fui em 2005 e foi muito louco! Ele pulou no meio da galera, depois chamou para subirem no palco, pegaram o microfone dele para cantar I wanna be your dog, e os seguranças totalmente perdidos.

Que idade você tinha para conseguir entrar no show em 2005? - perguntou, incrédula, Pacheco

Contei minha idade, e ela se mostrou estarrecida:

Julguei que tivesse a minha idade, entrando nos trinta.

Não, já passei dos quarenta.

Nossa, então você até que está conservado!

Fiquei tentando entender o porquê de ter me subtraído mais de dez anos. Seriam minhas roupas sem passar? Meu corte de cabelo diferentex? Não sei, e não tenho Macedo aqui para perguntar. Mas nas entrelinhas foi possível ler: se para quarenta eu estava “até conservado” (feito um picles?), para o trinta que ela (e quantos mais no setor?) achava que eu tinha, devo estar só o pó da rabiola. Não tiro a razão. 


21 de maio de 2025

 

Este é um texto ficcional (a imagem também), teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

terça-feira, 13 de maio de 2025

Macedo está há três dias de férias [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Nota-se a importância de alguém pela falta que faz quando está ausente. Lembro de quando tirei trinta dias seguidos de férias. Quando voltei, na segunda-feira, a colega Bella me viu, fez cara de estranhamento e perguntou:

Você não veio quinta e sexta da semana passada, veio?

Pois é, trinta dias ausente para acharem que eu tinha pego um atestado curto.

Apesar que, pensando bem, também dá para notar a ausência de alguém pelo alívio que traz. Pelo visto, não é meu caso; e não vou citar exemplos, mas quem me lê assiduamente (sim, tenho desocupadas e desocupados leitoras e leitores) sabe a quem me refiro, ao menos algumas dessas pessoas.

Quem está de férias agora é Macedo. É apenas o terceiro dia, mas parece fazer trinta. Estamos todos aqui perdidos, batendo cabeça e sentindo falta do nobre colega. Noto que ele é uma espécie de professor de jardim da infância, com as crianças sempre carentes de atenção, umas pedindo informações, outras pedindo ajuda, outras querendo conversar, e ele se desdobrando para atender a todos, o que faz com uma impressionante paciência de professora do ensino infantil. Detalhe: além de ajudar colegas inoperantes (como este escriba), ele convive com tagarelas à esquerda, à direita, na frente e atrás (sendo que nenhum desses sou eu). Tudo isso e ainda dá conta de fazer sua parte do trabalho com esmero.

Por respeito às férias de meus colegas, evito mandar qualquer tipo de mensagem, até para que a pessoa não se lembre que sou também um colega de trabalho e, portanto, ele tem emprego e que uma hora as férias acabam - sempre cedo, muito mais cedo do que deveria. E costumo esperar a recíproca. Pois tem quem não se aguente - e nem falo de Robervals com sua culpa cristã, por roubar os bombons que eu nem sabia que tinha ganhado. Pouco antes das onze, Macedo me manda uma mensagem indignado (do jeito que ele consegue se indignar), pois Gambitto, o golden boy do setor e aspirante a novo Doutor Sabujinho, havia perguntado se ele iria participar da reunião (on line) da tarde. “Completa falta de noção”, foi minha resposta. Pouco antes da uma, ele me manda nova mensagem, ainda mais indignado: agora era a chefe perguntando se ele iria participar da reunião. Sem saber o que dizer, me restringi a dizer “Completa falta de noção, nível superior hierárquico. Você está de férias!”.

Como ele havia dado abertura, achei que poderia mandar algo também, e no meio da tarde enviei uma postagem engraçada do instagram, que tinha a ver com ele (enviei pelo whats, pois sei que não abre o chat do insta). Seria só hoje, depois voltaria a meus princípios de classe e não o lembraria de que eu existo. A resposta dele foi desoladora:

Depois vejo, agora estou em reunião.


13 de maio de 2025


Este é um texto ficcional (a imagem também), teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

 


terça-feira, 8 de abril de 2025

Macedo, o rapaz multi-tarefas [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Disse em meu texto passado que Macedo merecia (mais) um texto. Como comentei, ele entende tudo do trabalho. Se Pacheco, a nova funcionária, teve como trote ter que aguentar a conversa de Floriano, o nobre colega Macedo tem seu trote permanente, que é ser tutor em todos os assuntos de quem chega ao setor (e desta vez são dois), o que não deixa de prejudicar um pouco seu trabalho - mas confiamos que ele, no fim, dará conta de resolver tudo a contento, como sempre o fez. Não que sejamos acomodados, é apenas saber que ele tem competência suficiente para tutorar a nova colega, ajudar os antigos e ainda cumprir suas demandas - tudo dentro de oito horas. Poderíamos ajudá-lo? Poderíamos. Porém, como o próprio tempo verbal aponta, atuamos no futuro no pretérito, esperando que esse futuro chegue, mas ele nunca vem. Se algum dia ele não souber de algo, serei o primeiro a ajudá-lo, se eu souber como fazer (apesar que, se ele não souber, nós do setor que certamente não saberemos).

Se entende tudo do trabalho, fora dele Macedo reconhece sua ignorância, apesar de sua vasta cultura geral em assuntos muito aleatórios. E se Goreti, que também se diz um ignorante (e eu complemento: nos dois aspectos do termo), faz faculdade atrás de faculdade, geralmente desistindo no último ano, quando é preciso fazer estágio (como sênior, não tenho mais idade para isso, ele justifica), Macedo foca nas artes manuais. Maceda, por seu turno, se dedica à organização [bit.ly/cG230405] e a artes manuais mais artísticas.


Podemos dizer que ambos são versões proletárias do Rodrigo Hilbert, a Pequena e o Pequeno Hilbert. Até dá para parafrasear o Pequeno Wilber, dos Sobrinhos do Ataíde: estava o Pequeno Hilbert lépido e saltitante andando pela cidade com sua lancheira divertida do Patolino quando de repente se deparou com um pedaço de madeira abandonado na rua... [https://bit.ly/cGYTpeqwilber]

Voltemos à seriedade. Há tempos que nem ele nem Maceda compram carteiras e bolsas: quando enjoam da antiga, ele elabora e costura um novo modelo. Roupas? Ao menos as mais simples saem da própria casa. Em um ano, Macedinho até agora só teve fraldas, meias e calçados comprados. Precisa instalar um móvel? Chame um montador, porque nosso Pequeno Hilbert prefere construir o seu. Caneta? Ganhei uma feita de pena, em que só faltou ele produzir a tinta. 

Contudo, foi no casamento que essa dupla mostrou de vez suas habilidades. Enquanto a Pequena Hilberta fez toda a decoração do casório para 150 pessoas, com convites pintados em aquarela, sousplats bordados com fios de bambu em folhas de bananeira (ela diz que costela de Adão seria melhor, mas o nome da planta a desestimulou) e todo um jogo de luzes para quando discotecasse, o Pequeno Hilbert se dedicou a fazer as alianças, apenas. Tenho certeza de que só não fizeram também o jantar porque não tinham tempo hábil para tanto trabalhando oito horas. E porque as maçarocas que Macedo cozinha talvez causassem estranhamento entre os convidados (o pão de amêndoa de Maceda bem que cairia bem). Ao menos teve o maravilhoso licor de jabuticaba que Macedão e Macedona fazem.

Eram outros tempos, diz Macedo, com Macedinho as coisas mudaram de figura. Hoje o máximo que ele diz fazer são pequenas coisas, como o porta crachá todo incrementado com que apareceu semana passada, com direito a um led para caso seja necessária uma lanterna.


08 de abril de 2025


Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Floriano, o colega que sabe de tudo [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Colegas que sabem tudo me cansam, admito. A depender do meu humor, me irritam (mas depois passa). E quando falo tudo, digo tudo tudo (tipo jornalista), e não tudo do trabalho, como Macedo, que pode ser questionado no que for do setor que sabe em detalhes e ainda apresenta as provas do que está afirmando. Aposto que se algum dia Macedo não souber de algo vai afirmar seu desconhecimento com a mesma modéstia peremptoriedade que o faz quando sabe - apenas que esse dia ainda não aconteceu. E que conste uma vez mais: ele sabe tudo do serviço. Porque fora do serviço, Macedo pode não saber tudo, mas merece um texto à parte.

Enfim, aqui eu queria falar do Floriano e não do Macedo. Diferentemente do Rivarola [bit.ly/cG230413], o doutor Sabujinho que não está mais entre nós, pois foi transferido (e eu não soube de ninguém que assumiu seu posto), Floriano não é puxa saco. Talvez seria melhor que fosse, sobraria menos tempo para conversar com os colegas. 

Reconheço, todavia, uma grande vantagem de Floriano frente Rivarola: quando é preciso comandar uma reunião, sabe conduzi-la de modo objetivo e, mais importante, divertido. São reuniões com boas gargalhadas e que terminam sem nada importante decidido, como é comum nesse tipo de evento. Nessas situações ele tem uma modéstia que não condiz com seu talento de stand upper amador - e resiste a fazer um curso e começar de fato nessa área.

Fora das reuniões, em compensação, Floriano é um cara pesado, como diriam nuestros hermanos. Pesado não por reclamar, e sim por seu jeito de falar enfadonho sobre todos os assuntos como se fosse formado na área, com a assertividade de um aluno de primeiro ano de graduação nas reuniões de fim de ano com a família.

Por falar em fim de ano, se o fim do ano passado terminou com medo de um passaralho, por ora o que temos são mais contratações. Basso, recém contratado, mostrando o quanto é competente (é sobrinho do chefe) [bit.ly/cG250121], foi promovido, e já substituído por um novo funcionário - que parece um tipo simpático (até oferece chocolate), trabalhador (não sei se isso é um elogio), e não é seboso como seu antecessor. Além dele, ainda chegaram uma estagiária e outras duas funcionárias. Se é preparativo para o tal passaralho (eu acho que é), estão fazendo muito bem, porque o clima aliviou, e não fosse por aquela sábia sabedoria do Seu Madruga, “Não há trabalho ruim; ruim é ter que trabalhar”, diria que estamos quase bem.

Enfim, eu queria aqui reclamar do Floriano e não do trabalho. Estava eu, ontem, contente e feliz no meu canto (minto, estava como sempre, cansado e desanimado de ter o couro esfolado sem a devida remuneração, como sói a todo trabalhador, num trabalho sem sentido, como sói à maioria dos trabalhadores), quando vejo Floriano se aproximar. Temo. Tremo. Travo. Estou no meio da leitura de uma notícia importantíssima sobre o futebol, não queria interrompê-la. Ele vem mesmo. Estica a mão para me cumprimentar, educadamente devolvo o gesto. Pergunta se estou bem, respondo com o protocolar “tudo bem” e devolvo a pergunta, que ele responde como sempre: “Não tão bem quanto vossa senhoria, mas estou bem”. Pergunta se sigo minha rotina de exercícios e nessa hora cometo a besteira de devolver a pergunta. Pronto, lá vem ele com seu palanfrório. Sobre sequências de calistenia que ele não faz; as vantagens de caminhadas seguidas de tiros curtos de corrida intensa, que ele também não faz, de dieta com bastante proteína - que parece que ele faz -, e alguns assuntos mais, para terminarmos em uma palestra monocórdia sobre artes marciais. E eu ainda fui tentar interagir e falar de systema e samba, ao que ele comentou por alto (e não me corrigiu que é sambo e não samba), para logo encetar uma aleatória arte marcial tailandesa, a Muay Lao, que ele deve ter visto na wikipedia. Isso durou uns trinta, quarenta minutos, mas foi como se eu tivesse tido oito horas de trabalho intenso.

E olha que ainda tive sorte. Porque logo ele foi se apresentar à nova funcionária, Pacheco, que o chamou para pedir uma ajuda. Podemos dizer que foi um verdadeiro trote, talvez até mais violento que raspar o cabelo, dar um apelido qualquer e fazer andar de elefantinho (em tempo, quem me acompanha desde o Trezenhum. Humor Sem Graça. sabe minha opinião sobre trotes universitários, a chamada “Semana Hitlerista da Universidade”: resquícios de nazifascismo naturalizados e louvados por muitos, de modo que não me surpreende que boa parte dos neofascistas deste país terem diploma superior). Foi mais de uma hora nessa conversinha de cerca-lourenço (como está sendo esta crônica) em alto e bom som, ao menos para quem estava num raio próximo, como era meu caso. 

Contou da água esmerdada do prédio aqui próximo, o Martinelli, e o porquê ter acontecido lá e não onde trabalhamos, ainda que corrêssemos o risco, por conta de sei lá o que de engenharia que o prédio tem, dado seu ano de construção; apresentou umas quatro doenças diferentes que ela poderia ter e não saber, dando os sintomas e passando os remédios que deveria buscar, inclusive com interações medicamentosas a evitar, casos estivesse com duas dessas enfermidades (nenhum momento sugeriu buscar um médico, que seria o mais razoável, ainda mais que duas das moléstias eram razoavelmente graves) e terminou com uma longa fala sobre segurança pública, ações policiais e quetais, dentro do mais raso senso comum, sob a justificativa de ter um amigo PM com quem conversa sobre o assunto - como se PM (ou qualquer militar)  entendesse patavinas de segurança pública. 

Pacheco fazia que sim com a cabeça e fingia se mostrar interessada, enquanto tentava achar uma brecha para perguntar algo do trabalho, sem sucesso. Logo chegou outro colega, ele se despediu d’ela e foi conversar com ele, deixando-a com sua dúvida, quase como um psicanalista lacaniano que faz o corte em seu analisando no momento da fala mais importante a ser dita.

Claro, não se compara ao assediador do Rivarola, mas Pacheco não merecia uma decepção, digo, recepção dessas. Trote precisa ter limites!


04 de abril de 2025


Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas


segunda-feira, 24 de março de 2025

O vizinho invisível [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Não que eu seja fofoqueiro, longe de mim! Não sou de inventar nada, nem exagerar histórias, muito menos falar dos outros pelas costas. Na verdade, sou apenas uma pessoa observadora e atenta, especialmente no que diz respeito às ações alheias.

Como comentei alhures, ao lado do meu prédio levantaram uma torre de trinta andares - dessa arquitetura em voga por SP, que parece essas gaiolas de expôr galinhas em loja agropecuária do interior -, de modo que da minha cozinha dá para ver a sacada de algumas das kitnets - agora rebatizada de studios. São três apartamentos que tenho visibilidade de uma nesga do interior, além da varanda. Pela alta rotatividade que teve nos dois primeiros anos, suspeitava serem para locação de curta temporada, mas que os últimos inquilinos me fizeram ficar em dúvida.

O de baixo está vazio desde sempre. O do meio já teve três ou quatro moradores nesse curto tempo. Atualmente, há mais de um ano, acho que mora um jovem, ainda que tem dias que imagino ser uma república, outros acho que é um casal. Sei que não houve mudança porque são os mesmos móveis e estilo: jovens na sacada, em conversas animadas e barulhentas; som potente, com baixos marcantes e um gosto musical ok (nada de sertanejo e bolsomusic). O que chama a atenção é a discussão mensal de um homem com uma mulher. Se é sempre a mesma ou uma diferente por mês, não sei. O que sei é que o rapaz grita, berra, dá chilique, enquanto a moça tenta manter uma conversa racional. Não tem como não ouvir. A mulher, espero que não seja a mesma, ou ela precisa de ajuda profissional. Se for uma diferente a cada mês, parece que o jovem tem um modo repetitivo (e nem tanto peculiar na nossa sociedade machista) de se livrar delas e precisa de ajuda profissional também. 

Contudo, é o apartamento de cima que me chama a atenção. Após um tempo vazio, três inquilinos passaram pelo lugar, o mais longevo deles pouco mais de meio ano. O atual está há mais ou menos o mesmo tempo.

De início, apareceram coisas de limpeza na nesga do interior que me permite observar. Vez ou outra a luz aparecia acesa, às vezes a noite toda, o que me fez desconfiar que ainda não havia se mudado. A situação permaneceu assim por muito tempo, sem nenhuma mudança. De repente, uma planta! Ah, agora vão se mudar, pensei. Mas em menos de uma semana a planta sumiu. Um (bom) tempo depois, os apetrechos de limpeza sumiram também, a luz começou a ficar acesa mais dias, inclusive aparecendo ligada e desligada na mesma noite. Agora se mudaram, pensei novamente. E nada de ver uma alma viva no referido apartamento - segue tão silencioso quanto o apartamento dois andares abaixo. Há um mês uma mudança radical: apareceu um varal de chão na sacada, com um pano de chão pendurado. E assim segue até hoje. Porém, também notei que algumas vezes a porta estava fechada, em outras, aberta. Sinal de vida humana pisando ali!

Ontem à noite, diante da luz do banheiro acesa e do vapor no vitrô sempre fechado, resolvi deixar a timidez de lado e ficar encarando a maldita sacada, ver se aparecia alguma pessoa. Lembrei que quando adolescente dizíamos que se olhássemos insistentemente para a nuca do garçom ele se incomodava e vinha nos atender. Sempre deu certo, desde que tivéssemos certa paciência e erguêssemos o braço quando ele se virasse, às vezes duas ou três vezes. Fim da divagação pertinente. Como disse, a luz do banheiro estava acesa, logo, a pessoa seria obrigada a passar pelo trecho que consigo ver. Fiquei ali, de gaiato, um bom tempo, disposto a aguentar o tempo que fosse. Pois foi então. Algo me chamou a atenção. Era Calvin, meu gato-jamanta, se esfregando na minha perna e miando atrás de carinho. Olhei para ele, disse silenciosamente não, e voltei a olhar para o studio de cima. A luz do banheiro já estava desligada. 

Fosse uma casa antiga, e este poderia ser um texto de terror. Mesmo se fosse um prédio velho poderia dar essa interpretação: em algum apartamento de A vida: modo de usar, do Perec, há o fantasma de alguém que ali residiu e morreu, e que volta para assombrar os vizinhos com atos disparatados, algum parente do Fantasma de Canterville. Mas sendo novo, nem deu tempo para as assombrações acharem o endereço, já que, pelo que vi no Instagram, assombrações e quetais não podem usar o maps; pensei que poderia ser o Dalton Trevisan tentando vida nova como anônimo em SP, depois de ter plantado a notícia de sua morte, mas não faz nenhum sentido para o Vampiro de Curitiba sair de Curitiba, ainda mais com a idade que tinha; quem sabe algum terrorista húngaro, como no porão de Rubem Braga; algum foragido da polícia federal ou, mais emocionante, um espião vindo do futuro para me espiar, ver qual lógica paraconsistente eu segui a ponto de me tornar o que hei de me tornar em breve (e que nem eu sei, antes que me perguntem)? 

Decidi parar de divagar e pôr os pés no chão, encarando a coisa do jeito mais rasteiro e razoável possível. Primeiro premissa: o apartamento é novo, todo tecnológico; segunda premissa: ninguém mora no apartamento; terceira premissa: vez ou outra aparece não sei se o inquilino (seria um quarto para encontros íntimos, como em A insustentável leveza do ser?) ou alguém para fazer faxina (por isso a porta aberta às vezes); conclusão lógica: nada de fantasmas e conto de terror, certamente é apenas uma Alexa se sentindo abandonada,  tentando chamar a atenção.


24 de março de 2025

Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

segunda-feira, 17 de março de 2025

O garalho de meu sobrinho [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Meu sobrinho veio passar o sábado comigo, a pedido do próprio, que me acha legal – para infelicidade de meu irmão e minha cunhada. Já contei alhures que ele estuda numa escola de metodologia Wondermort, e por isso os pais o privam de muitas coisas – não que precisem ensinar a ser um canalha super adaptado ao mundo cão laboral em que vivemos, mas acreditar que criar uma criança alienada do mundo vai lhe dar repertório quando crescer não me parece muito razoável. Não sei bem a idade de meu sobrinho, suponho que tenha algo entre sete e doze anos, mas não é certeza – eu achava isso há uns dois anos, mas pelo visto ele era mais novo.

Pois fomos ao teatro, ver uma peça infantil que muito lhe agradou – houve consentimento de meu irmão, que deve ter analisado bem a sinopse, antes de autorizar -, tanto que o moleque ficou matraqueando sobre o espetáculo por muito tempo. Depois do almoço viemos para minha casa, fazer hora e jogar algum jogo de tabuleiro permitido até que o sol arrefecesse um pouco (porque anunciaram que a onda de calor havia passado, mas esqueceram de avisar que só a onda passaria, o calor persistiu) e fôssemos ao parque.

Nesse ínterim, eis que contra todas minhas admoestações, Carnegie, o Arauto do Apocalipse, me manda uma mensagem de trabalho no whatsapp. É de conhecimento público e notório que se tem uma coisa que me causa ira é receber mensagens de trabalho fora do expediente; que dizer, então, em pleno final de semana – já sacrifico quarenta horas semanais de minha vida, o pouco tempo que me resta quero utilizá-lo para mim, nem que seja para passá-lo com meu sobrinho. Acho que desta vez me fiz entender quando perguntei para ele se gostaria de receber uma figurinha do Corinthians às onze horas da noite de domingo, depois do Palmeiras tomar uma goleada do Timão em pleno Parque Antártica.

Diante de tão inoportuna mensagem, não tive como não conter a exclamação “caralho!”, dita assim, clara e límpida, na frente de meu sobrinho puro e ilibado. Consegui me conter a tempo de seguir enfileirando palavrões, mas ele ouviu e se animou com a palavra, parece que a sonoridade lhe agradou:

Caralho! Caralho! Caralho! Que significa caralho, tio Sérgio?

Não falei caralho.

Falou, sim.

Não. Foi garalho, com g de grilhões, respondi – nessas horas sempre gosto de ampliar o vocabulário do menino, ainda que ele raramente me pergunte o que significa a palavra que ensino.

E o que significa garalho?

Quer dizer “Que coisa”. Recebi uma notícia aqui, e ao invés de dizer “que coisa”, acho mais fácil e mais bonito falar “garalho”. 

Vi que havia sido infeliz na minha colocação e complementei: 

Mas você, que é criança, melhor seguir dizendo “que coisa”, está bem?

Convenhamos, não menti de todo: os linguistas vão dizer que vale o contexto da palavra mais que seu significado cru. Ele anuiu, se deu por conformado e seguimos nosso sábado.

Na quarta-feira meu irmão me ligou. Quando isso acontece, sei que lá vem bronca.

Escuta aqui, Zé Bobão (sim, meu irmão me chama de Zé Bobão quando está muito puto comigo, era como ele me tirava do sério quando éramos criança), já não pedi trocentas vezes para você não falar palavrão perto do meu filho?

Palavrão?, perguntei como quem não está entendendo o motivo de tudo aquilo.

Sim! E ainda ensinou ele errado!

Como assim?!

Não seja cínico! O menino agora está sofrendo bullying na natação. Estão chamando ele de garalhinho.

Como assim?! Por que isso?!

Aconteceu qualquer coisa na aula, e ele soltou um sonoro “garalho”. Ao repetir uma segunda vez, tentaram corrigi-lo e ele insistiu - ainda insiste - no tal garalho. Se fosse ensinar um palavrão, ensinasse logo certo, caralho!

Espero que ele não esteja aí perto. Ou você está querendo ensinar palavrão para ele?

Ele está na aula. E pare de dar uma de desentendido!

Claro, resumi um pouco o sermão do meu irmão, porque ele é bastante prolixo quando diz respeito a me dar broncas envolvendo seu pimpolho (espero que seja um pouco mais breve com a criança, porém não creio). Nesse meio tempo, consegui pegar o dicionário e ver se não existia mesmo a palavra garalho. Havia “garalhar”, que significa “gralhar”. Não ajudou muito, mas gralhar, além de ser barulho de gralhas, tem como sentido figurado “tagarelar”. Ah, salvador pai dos burros!

Escuta aqui, eu falei e quis falar garalho, mesmo, nunca pensei em caralho!

Ah, conta outra!

É sério. Ele voltou do teatro todo empolgado, não te contou?

Sim, gostou muito da peça. Não fuja do assunto.

Então, veio que veio tagarelando, e eu disse “que garalho”, “que tagarela”, do verbo garalhar.

Você quer que eu acredite nessa lorota idiota?

Pois busque no dicionário.

Ele fez a busca e teve que dar o braço a torcer, ao menos eu achei que seria assim - nessa hora também fui puro e ilibado.

Certo, existe garalho. E por que você deu o significado errado da palavra? Quando perguntei se ele sabia o que significava garalho, ele disse que era “que coisa”.

Que coisa! Sério? Acho que me entendeu errado. A certa altura eu falei, “Que coisa, garalho”.

Ele disse que você explicou que garalho significava “que coisa” de modo mais bonito.

Ainda tentei desconversar, entretanto, no fim, tive que assumir o caralho involuntário. Ele não me deu razão para a vocalização do referido vocábulo, apesar de eu tê-la. E ainda emendou mais um sermão - haja paciência, o pai me enche mais que o filho! Próxima vez que me escapar um palavrão, preciso consultar o dicionário antes, para a desculpa colar melhor.


17 de março de 2025



Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Sabonete da discórdia [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Este fim de semana meu sobrinho, sem querer, acabou gerando uma pequena crise entre mim e o Brotinho.

Quando meu irmão, sua esposa e seu filho chegaram, eu estava no banho. Não me apressei por isso, afinal nos vemos seguidamente. Saí do banheiro, já entrou correndo meu sobrinho - que tem algo entre seis e doze anos, não sei - dizendo que a marmota estava se mordendo para sair da toca. Sim, meu irmão se queixa e me recrimina toda vez que vem aqui por ter ensinado essa piada do final dos anos 90 e que hoje soa como de tiozão.

Cheguei na sala e tratei de começar pelas perguntas de praxe, ver se meu irmão esquecia da marmota nesse ínterim. Melhor que tivesse lembrado e não dado atenção ao filho. Eis que a criança vem correndo do banheiro e me interpela:

Credo, tio, por que está aquele cheiro de lavanderia de petshop no banheiro?

De pronto Brotinho saltou do sofá, dedo em riste, alternando sua direção entre mim e meu sobrinho:

É isso! É isso!

E com o ânimo que meu sobrinho falou sobre a marmota, ela pegou meu irmão e a cunhada e os levou até o banheiro.

Venham! Venham ver se ele não tem razão!

E lá foi ela expôr meu ridículo ao meu irmão. Olhei para o sobrinho, pronto para fazer um draminha (não era nada que merecesse dar bronca), ele devolveu com um sorriso inocente de quem me prestou uma grande ajuda (o que faz com que acredite que ele esteja entre seis e oito anos).

Eles voltaram às gargalhadas. Gargalhavam de mim, graças à ingenuidade do sobrinho. E Brotinho, ao invés de me ajudar, ir apenas ela ao banheiro comprovar sua tese, ou melhor, a tese do sobrinho sobre o cheiro do meu sabonete, ligar o exaustor e esperar o cheiro ir embora, não! Ela preferiu me expôr, e fazer com que meu irmão tirasse sarro da minha cara a tarde inteira - com direito a apelidos bobos de quarta série, mas daqueles que incomodam. E de nada adiantou reconhecer que, agora que falaram, eu também sentia o cheiro de petshop.

Foi então que a indisposição entre mim e Brotinho começou:

Eu vinha mesmo sentindo um cheiro estranho em você por estes dias, achava que poderia ser a roupa que demorou para secar. Agora que sabemos que é seu sabonete, dá para jogar fora e está resolvido, disse ela.

Eu comprei uma dúzia.

Como assim?!, Brotinho trazia um meio sorriso nervoso, de quem espera uma pegadinha tosca.

Gostei do cheiro, comprei vários...

Eles estavam em promoção?, questionou meu irmão, abrindo outro flanco na batalha.

Mas não foi por isso!

Ainda que foram baratos, não vai custar tanto jogar fora, né?, insistiu Brotinho

Já disse, gostei do cheiro de petshop.

Mas te abraçar vai me trazer a imagem de um cachorro ainda úmido com uma estrelinha na testa. Não precisa, né?

Vai parar de me abraçar só por causa do sabonete?

Meu contra ataque parecera certeiro, amolecia seu coração de pedra e faria ela parar de implicar com o cheiro de meu sabonete,

Claro que não! Se você gosta, tem que usar mesmo! Mas não vai ter como eu não te chamar pelo apelido que seu irmão te deu, meu Doguinho.

Porra! Doguinho, não. Apelido bocó, de quarta série.

Após agradecer por ter usado um termo de baixo potencial ofensivo na frente de meu sobrinho, meu irmão começou a fazer careta enquanto me provocava “Doguinho, eu sou Doguinho, eu adoro os tios e as tias do petshop”, apesar das admoestações de minha cunhada, que tropeçava nas sílabas do tanto que ria.

Doguinho, não!, fui enfático.

Que tal petinho, então?, propôs Brotinho.

Não sou garrafa plástica. 

Não teve como não discutirmos e nos acertarmos naquela mesma hora, como duas pessoas da pólis. Assim, chegamos a um meio termo: seguirei com meus sabonetes de petshop, sob a condição de não comprar mais depois desses, enquanto Brotinho me dará meia dúzia do que ela acha mais adequado, para ir alternando - fiz questão de meia dúzia para ela não comprar um fedorento, só para seguir me tirando, junto com meu irmão. Ademais - numa óbvia troca desigual - ela podia me chamar de Doguinho quando usasse meus sabonetes, mas (foi o que consegui barganhar) com parcimônia e apenas depois do banho, quando o cheiro fosse evidente.

Acordo de fim de DR firmado sob o testemunho de meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho, que nos abençoou com os dedos em forma de quem pede dinheiro.

O pior da DR foi à noite, quando ela me chamou de Doguinho e eu perguntei qual raça seria a minha. Melhor parar por aqui.


13 de fevereiro de 2025


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Ladrão que rouba ladrão [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

O primeiro debate do dia na bancada foi se o ditado “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão” era válido. Disputávamos pelo sim e pelo não, quando Meirelles sugeriu irmos pela dosimetria dos delitos. A discussão passou a ser, então, quem teria cometido a falta maior.

Eu bem havia dito que antipatizara com o novo colega, Basso [bit.ly/cG250121], que já foi apelidado de Cabaço e para não ficar tão na vista agora chamamos de Mr. K. Pois me deram novo motivo para tanto. Quer dizer, ele tem dado reiterados motivos. Não que eu não possa mudar de opinião, estou aberto a ser contradito (é assim que se diz?), mas ele tem que ajudar também. A antipatia começa, claro, pela meritocracia que o levou à empresa, e continua com seu aspecto seboso e seu olhar baço, de quem não tem sonhos, apenas um fluxograma de vida, sua conversinha de cerca lourenço insistente e enfadonha e sua disposição para mostrar trabalho a qualquer custo, mesmo sem ter ideia do que fazer (espero ao menos que saiba em que área atua a empresa que seu tio é diretor geral).

Quem trouxe a notícia foi novamente Carnegie, o Arauto do Apocalipse. Nos contou ele que Robervals estava indignado pois ontem havia ido ao médico e por isso chegara mais tarde. Sentou na sua cadeira e estranhou de pronto: não estava na sua configuração, sequer era do mesmo modelo. Olhou ao redor: todo mundo agia normalmente - inclusive Mr. K., que estava com a sua cadeira. Cínico, pensou. Reparou melhor na cadeira que lhe restara, era a da antiga estagiária, a que possuía uma grande mancha no assento - e justo por isso sobrara para ela. Carnegie não deixou de reiterar seu ponto:

Eu bem disse que ele é um fresco! Esse burguês almofadinha dos infernos!

Falou em inferno, você entende, não, Arauto do Apocalipse - não perdeu a piada Goreti.

A discussão que citei no início do texto se deu, claro, por conta do roubo de bombons feito Robervals, no fim do ano. 

Macedo argumentou que Robervals cometera o pior delito, pois o bombom era um bem próprio e não algo cedido pela empresa para o período em que estávamos labutando:

Não tem como ser roubado naquilo que não é seu.

Me opus ao nobre colega, afinal, bombom come-se de uma vez, enquanto a cadeira passa-se o dia todo, o ano todo, quase a vida toda nela. 

Fosse ainda um Lindt - reforçou Goreti. 

Carnegie, que diz não gostar de chocolate, mesmo assim defendeu Robervals:

Ele é um cara legal, tem uma visão política coerente com a do proletariado.

Meirelles, sempre ela, trouxe toda sua experiência e sabedoria para dar o veridicto mais ponderado sobre a questão:

Basso é sobrinho do diretor, ponto. Ele só reitera o apelido que ganhou. Sem perdão para o Mr. K., portanto.

Impecável no argumento, fomos obrigados a concordar com ela.

Confesso que fiquei com dó de Robervals, não gostaria de estar no lugar dele, sou partidário do “minha cadeira minha vida”, mas que fazer se nosso colega é parente do chefe?


21 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



 

Basso, o colega com as melhores qualificações [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Um espectro ronda a empresa. Com o novo diretor geral, o diz-que-me-diz corre solto e ganha vulto a tese de que vai rolar um passaralho. Tem gente que se animou no Natal e se antes se dizia enforcado, agora começa a lamentar que Round Seis é só uma série de televisão.

Estávamos nessa tensão quando apareceu um funcionário novo no setor, o Basso. O alívio foi geral: se estavam contratando, o tal passaralho provavelmente não aconteceria, no máximo um ou outro demitido, digo, desligado para recolocação profissional.

Confesso que logo de cara não simpatizei com o novo colega. Não que isso seja novidade, eu não simpatizo com ninguém de fora da bancada - o que não quer dizer que eu antipatize, como é o caso de Basso. Acho que foi a foto do seu whatsapp: ele parece um desses falidos metidos a coach de criptomoedas: uma foto de estúdio, todo engomadinho em mangas de camisa azul, os braços cruzados, o sorriso forçado. Comparando com a realidade, percebe-se ainda camadas e camadas de filtro, quase uma plástica online.

Tudo ia muito bem com sua chegada até Carnegie, sempre muito diplomático quando não está indignado, conversar um pouco mais com o cidadão e trazer detalhes sobre o novo funcionário.

Aspirante a intelectual, metido a escritor, enfadonho e fresco: parece estar falando de mim, mas essa foi a definição inicial que ele deu de Basso. Até aí, tudo bem. Foi quando Carnegie nos conta que não se trata de um funcionário qualquer, e sim de um sobrinho do novo diretor geral. Porém, é claro que o parentesco não teve nenhuma relação com sua contratação: conseguiu a vaga estritamente pelas suas qualificações técnicas. Puro suco da meritocracia.

Essa informação trouxe o pânico no setor. Primeiro pensamento: o passaralho vai acontecer, visto que essa contratação não sustenta a tese antes aventada. Segundo pensamento: ele foi posto no setor adrede como P2, para analisar o trabalho de cada um, ver quem será ceifado, quem vai continuar. Ou seja, estamos todos crentes de que o passaralho virá, e não será pequeno.

No setor, ele já ganhou o apelido de Cabaço, graças ao Macedo, enquanto Carnegie agora tem sido chamado de Arauto do Apocalipse. O clima segue tenso, mas ao menos temos bom humor.


21 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Sem perspectivas de teletrabalho, Goreti parte para a ação direta [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Já contei alhures da mudança de diretor geral e o fatídico episódio da máquina de café - e esqueci de complementar: o liberal engomadinho que agora segura o “chicote da motivação” não deu conta da pressão dos funcionários e três dias depois estavam as máquinas funcionando normalmente. Nenhuma novidade efetiva desde então (parece que ele resolveu tirar férias neste fim/início de ano, apesar de estar recém começando na função), porém as fofocas já correm a mil. Elas vão de cortes no pessoal à contratação de novos funcionários, passando pelo diz-que-me-diz que a promessa de que o dia (um mísero dia na semana de cinco dias!) de teletrabalho não acontecerá tão cedo. 

Claro que ficamos indignados. Comentamos pelos cantos sobre nossa frustração com essa possibilidade, compartilhamos textos sobre o assunto, sendo o mais interessante o do Hamilton Carvalho, “O problema do home office” (https://www.poder360.com.br/opiniao/o-problema-com-o-home-office/); e xingamos muito no Bluesky (no Whatsapp estamos nos segurando um pouco, vai que Zuzu já esteja vendendo conversas em seus detalhes para quem estiver disposto a pagar?). Goreti, contudo, não é de ficar se queixando na cadeira e partiu para a ação direta.

Hoje ele estava com um comportamento estranho: chegou com uma grande mochila e de tempo em tempo verificava a hora e saía da sala. Nos olhamos curiosos, mas preferimos não falar nada num primeiro momento: estava agitado e parecia preocupado. Meia hora antes do horário de almoço começamos a sentir um apetitoso cheiro de tender - certamente saído do refeitório, que fica no meio do corredor. Foi então que Goreti tirou da mochila uma pequena panela de arroz e uma sacola de mercado e saiu novamente da sala. Dessa vez não me aguentei: fui atrás dele.

Fomos até o refeitório (que além de microondas é também servido de um forno elétrico), e eis que o nobre colega estava fazendo um tender, e agora iria preparar o arroz. Perguntei o que era aquilo, ao que me respondeu:

Já perco as manhãs de sábado fazendo faxina na casa, cansei de perder também as de domingo cozinhando pra semana. A partir de agora, vou economizar nas contas da casa usando a estrutura que a empresa nos oferece. Se não teremos teletrabalho, que lidem com isso. Já é muito que eu trouxe a lentilha pronta de casa.

Do bolso sacou um papel em que mostrava a economia que teria ao não usar sua cozinha. E da sacola tirou alface, tomate, cenoura, brócolis, uma tigela e vinagre. A alface e o tomate deixou de molho; o brócolis e a cenoura pôs na parte para fazer legumes no vapor da panela de arroz. E voltou ao trabalho.

Na hora da refeição, causou frenesi no refeitório seu banquete. Nós crescemos os olhos e perguntamos se ele não iria dividir com os colegas, ao menos os da bancada. Ao que o nobre colega, para além da humilhação que era seu cardápio, respondeu com sua habitual muquiranice argumentativa:

Não.

Foi só depois de insistirmos explicou que seria sua marmita dos dias seguintes. Mas nos deu a deixa:

Amanhã o forno estará liberado, é só trazer o frango ou a carne já temperada.

E ainda ofereceu a panela de arroz, desde que dividamos o custo do insumo e a lavemos.

Ninguém por enquanto decidiu entrar na ação direta iniciada por ele, mas tem gente pensando seriamente em aderir. Um pessoal, inclusive, tem conversado animadamente em usar o forno para fazer bolo ou pão, para o lanche da tarde. Se isso vai comover a diretoria a instaurar o teletrabalho, não sabemos, mas nosso expediente promete ser cheiroso.


13 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A confraternização cheia de mistérios [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Então é dezembro, último mês para tentar que o ano tenha sido mais que trabalhar, fazer faxina e marmita aos finais de semana (e quando falo marmita, estou sendo literal, aquela com arroz, feijão e mistura), viajar nas férias (cuidando para não gastar demais) e se queixar da vida. Mas não desanimo, vale lembrar que o Paraná Clube, em 2020, perdia de dois a zero para o Bahia de Feira de Santana até os 46 do segundo tempo e conseguiu a virada - se o Paraná consegue isso, qualquer pessoa consegue dar uma reviravolta no ano em dezembro (pedir demissão seria um exemplo, ainda que não esteja entre minhas alternativas, graças ao senhor Boleto).

Fim de ano traz, além dessa sensação de desperdício, por não ter feito quase nada, a Simone, o Roberto Carlos e agora, segundo o Brotinho, a Mariah Carrey (já não bastasse o rélouim e a bléquifraidei) e todos aqueles eventos desnecessários (os melhores), quando não desesperantes: reunião de família (a coisa boa do bolsonarismo foi acabar com esse evento de irritação e hipocrisia, como se realmente nos quiséssemos bem, quando no fundo só queremos fofocar e falar mal da vida alheia, mesmo), amigo secreto (para gastar dinheiro e ganhar algo indesejado em troca) e confraternização de fim de ano na empresa (são cerca de 1700 horas anuais em convívio com pessoas que não faço questão, por que sofreria outras quatro ou até mais?). Também é momento de rever amigos que não vimos o ano todo, em bares lotados, tentando encaixá-los numa agenda caótica por conta desses mesmos encontros.

Enfim, quase me desviava do móbil desta crônica, que é a confraternização aqui da empresa. 

Fui a uma e me arrependi - não sei onde estava com a cabeça. Decidi que nunca mais. A deste ano, menos ainda, pois terá um elemento novo: cada um paga a sua parte - e o valor é bem mais caro que um PF no centro, e eu desconfio que a comida não seja muito melhor que um por quilo daqui que se pretenda chique, que comentei alhures. Então é isso: não bastasse todo o ano junto a essa gente, ainda tem que pagar para passar um tempo a mais - e depois do expediente! 

Desculpem-me, colegas, mas um panetone caro compensa mais que sua companhia. Apesar que mesmo que fosse de graça eu não iria: ficar em casa sem fazer nada é mais interessante - e não que eu tenha uma má relação com a parte boa da equipe, digo, com boa parte da equipe.


Eu já havia avisado que não iria e dava por encerrada essa história para mim, quando o nobre colega Macedo - que também não vai porém é mais bem relacionado - me contou que havia um elemento especial, que me fez lembrar de um meme que comenta que só é a favor da escala 6x1 quem tem amante no serviço. Pois bem, a inovação maior é que será proibido celulares: eles ficarão do lado de fora. Isso mesmo: confraternização da firma virou uma reunião secreta - talvez para substituir o amigo secreto? Fosse qualquer outra festa, quero dizer, com outras pessoas, esse elemento iria me aguçar o interesse: afinal, se não é para filmar, coisas interessantes devem acontecer. Entretanto, o que me fica é a desconfiança de que algum superior, cidadão de bem e defensor da família tradicional, já esteja no modo pegação (quem sabe sem o Doutor Sabujinho as mulheres tenham baixado a guarda) e não quer que sua mulher veja o batom na cueca (ou na calcinha) em algum grupo de whatsapp - ou no Insta.

É certo que pode não haver provas materiais, contudo Macedo recordou que não tem como deixar de convidar todo o setor, por razões óbvias de criar o maior climão, fora a acusação de assédio moral. Nisso, Metodista, a pessoa que mais sabe dos subterrâneos do setor, assim como da empresa, já confirmou presença - logo ela, que nunca vai a confraternizações da firma.

Parece que só proibir celular não vai ser suficiente para manter os segredos.


03 de dezembro de 2024



quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Descapetização total instantânea [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Quando mudei para o apartamento onde atualmente resido, um dos meus maiores medos era que no terreno vazio ao lado fosse construída uma igreja evangélica. Meus avós, no interior, tiveram essa sorte, e aos finais de semana é aquela cantoria e gritaria de gente tentando acordar um Deus surdo e desdenhoso - pois pelo tanto que gritam, sinal que tudo o que têm recebido do ser supremo do bem é o desdém divino. E quando você acha que terminou, ainda tem mais de meia hora de conversação animada na rua, já perto da meia-noite.

Pois não construíram a temida igreja - o terreno foi ocupado por uma torre de trinta andares, nessa arquitetura da moda em SP, em que os apartamentos parecem galinheiros apertados. Menos mal, ainda que o novo edifício faça sombra no meu, e se um dos vizinhos for voyeur, deve haver fotos minhas desnudo circulando pela internet.

De volta ao meu edifício. Ano passado mudaram os moradores do apartamento acima do meu. Há pouco mais de um mês essa vizinha fez um aniversário evangélico, com cantorias desafinadas e toda uma comemoração murcha na hora dos parabéns. Até aí, ok, cada um tem sua fé, e aniversário deve-se mesmo comemorar, mesmo que de uma forma deprimente como essa - o vizinho anterior possuía filho ainda criança e fez festas de aniversário todo mês durante a pandemia. Impliquei, mas não reclamei.

Duro que depois dessa “festa” parece que acharam que o apartamento é apropriado para a realização de cultos e sessões de exorcismo. Uma vez por semana passou a ter cantorias incrivelmente desafinadas (ainda bem que Deus é surdo, ou já tinha mandado um meteorito no meu prédio), seguidas de uma verborragia gritada por longos minutos, talvez uma hora, numa chorosa língua inventada - que deve ser a tal língua dos anjos, os quais, deduzo, devem ser seres muito rudimentares para não conseguirem articular sequer sílabas simples. Claramente todo esse festival sonoro se dedicava não a louvar Deus, mas a atazanar o todo poderoso do mal, o Diabo, que diferentemente do todo poderoso do bem, está sempre acordado e à espreita, disposto a dar a mão a quem lhe pedir, e não só aos VIPs.

Como bom vizinho, tentei não implicar, apesar da irritação - afinal, também não sei se o vizinho de baixo não usa de muita tolerância para suportar meus barulhos, em especial de Calvin, meu gato-jamanta pulador.


Pois ontem, lá estava a vizinha no seu culto-exorcista semanal, com a devida cantoria desafinada, com o chororô dos anjos, tudo em volume muito alto, quando decidiram também pular, como se fossem crianças hiperativas num jardim da infância. Ou melhor, elefantes felizes num jardim zoológico. Foi demais. Reclamei para a síndica, que se prontificou a resolver o quiproquó no ato. 

Fiquei na porta a escutar (o prédio é antigo, as escadas não possuem portas). Escutei a campainha sendo tocada - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei o bater na porta - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei, então, murros na porta e o milagre se fez: repentinamente o silêncio. Evidentemente que o Diabo fugiu tão logo viu a síndica e tudo aquilo que meus vizinhos estavam fazendo se tornava desnecessário. Fui dormir tranquilo e com a sensação de missão cumprida. Como não sou egoísta, deixo aqui a dica às igrejas evangélicas e todos aqueles preocupados com o Diabo: para uma descapetização total e instantânea, sem dores, sem gritos, sem lamúrias, chamem o síndico!


24 de outubro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


terça-feira, 10 de setembro de 2024

A Legião dos Esmurradores de BÍblia do Centro e AdjacênciaS e as rinhas de pregadores [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Quem anda pelo centro de São Paulo já deve ter se deparado com algum pregador alucinado esmurrando a Bíblia como se fosse a origem de todas as suas frustrações existenciais, decepções com a vida e abdicação de desejos. Ao parar para ouvir, ou ouvir sem se deter, mesmo, dá para ver que fazem pregações moralistas, teoricamente defendendo o que estaria escrito no referido livro - talvez em algum evangelho oculto. 

De início (uma década atrás, pelo menos) eram dois ou três, que não pareciam ter conhecimento um do outro, apesar de todos socarem sem dó a Bíblia. Com o passar dos anos, além de se aprimorarem na arte de esmurrar o livro cristão, foram se unindo, crescendo, fazendo sucessores. Sucesso, não fazem, a não ser pelo freak show que oferecem aos transeuntes da região central. Hoje devem estar em sete, pelo menos - já dá para dizer que são uma legião. Daí que eu e Macedo os denominamos Legião de ESmurradores de BÍblias do Centro e AdjacênciaS (LEsBiCAs).

Tem o Atarrachadinho sem pescoço que só sabe falar que “dar o cu é pecado!”, “chupar rola é pecado!” “se esfregar no pinto de outro homem é pecado!”, e por aí vai. Tem o senhor do Radinho, que usa o livro sagrado como antigamente se usava radinho de pilha nos estádios de futebol, com a diferença que de tempo em tempo desce a Bíblia para esmurrá-la com a raiva de um pênalti perdido aos 45 do segundo tempo - coisa que se alguém fizesse com um radinho de antanho perderia o aparelho, por mais robusto que fosse. Outro ancião melhorou na técnica do esmurro, parece ter uma pedaleira dupla na mão de tanto que sua Bíblia reverbera. 

Tem também um que chamamos de Franguinho, pois esmurra sem critério e sem força sua Bíblia. Geralmente ele não está sozinho, está com dois ou três dos esmurradores, ao menos, assistindo. Por um tempo, estavam os outros seis lá, só o observando pregar, no alto da ladeira General Carneiro - como se fosse o alto do monte das oliveiras. Levamos um tempo para entender o que se passava ali. De início achávamos que era algo como uma defesa de tese - mas não fazia sentido tantas defesas da mesma pessoa. Nossa segunda alternativa foi que se tratava de treinamento, mas nunca vimos ninguém intervir, ninguém ensiná-lo como se esmurra de verdade uma Bíblia: eram sempre eles assistindo ao pobre coitado perdendo os pulmões e fazendo calo nas mãos sob o sol do meio dia. Terceira explicação, que acabou aceita: era teste de CNH de esmurrador de Bíblia, e ele não conseguia passar, por isso também não pregava sozinho, como já havíamos visto todos os demais fazerem. Tanto que foi depois que pararam de se reunir seguidamente ali que passamos a vê-lo esmurrando solitariamente a Bíblia pelo centro.

O trem fica interessante mesmo quando rola uma rinha de pregadores. Explico. Algum outro pregador das adjacências, provavelmente sem conseguir vencer a concorrência dos que aparentam ser mais sérios, resolve que a culpa dos seus problemas de baixo quórum é dos LEsBiCAs - apesar de eles não terem quórum algum -, ou então acham que discutir eles pode dar alguma visibilidade, quem sabe um verniz de pregador sério da Bíblia. 

Contudo, preciso admitir: não é fácil tirar os esmurradores do sério, ou melhor, do seu transe.

Já vimos um pregador que foi até o alto da General Carneiro questionar onde estavam os calos nos joelhos, e diante da sua exaltação, ser tirado por outras pessoas, sem fazer com que o Franguinho se alterasse. Esta semana presenciamos outra contenda teológica: a cada frase falada pelo atarrachadinho sem pescoço, a cada soco dado na Bíblia, o pregador desafiante o desafiava: prove, prove, prove, prove. E nada: o esmurrador seguia impassível em sua pregação, como se seguisse pregando para ninguém, como faz todos os dias.

Mas eles não têm sangue de barata, preciso admitir. Já presenciei um grupo de adolescentes perturbar o veterano Atarrachadinho sem pescoço. Não sei se falaram alguma coisa ou se apenas dois dos homens do grupo se beijaram na sua frente, sei que ele estava totalmente transtornado com aquele grupo, gritando a plenos pulmões que dar o cu era pecado e coisas nessa linha - daí que também o chamamos do Atarrachadinho do cu piscante. Contudo, se a discussão for pelo lado pugnoteológico, eles permanecem imperturbáveis, invencíveis.


10 de setembro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Um trauma chamado restaurante por quilo do centro [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Faz um bom tempo comentei que costumo ter minhas três opções de almoço, ainda que o centro tenha centenas de restaurantes, os mais variados - ao menos aparentemente. De lá para cá, pouca coisa mudou: sigo frequentando duas das três casas de pasto referidas dois anos atrás, tendo substituído a terceira. Sou uma pessoa de hábitos. Vez ou outra cedo às pressões de Macedo, meu nobre colega e companheiro de almoços, e vamos a algum lugar diferente - ou mesmo ao terceiro restaurante de antanho, só para confirmar que segue salgado (não falo do preço, que nesse sentido se aplica só à sobremesa do local).

Nessas variações, acontece de irmos a algum restaurante por quilo do centro. E até hoje,  tem sido sempre uma decepção. Mais que isso, já se transformou num trauma. Um trauma reiterado a cada padaria que serve almoço, a cada portinha de sobrado com uma escada para um grande salão, a cada restaurante e lanchonete apertada. 

Existem basicamente três tipos de restaurantes por quilo no centro.

O primeiro são uns que tem pela cidade toda, a mesma apresentação visual, o mesmo preço, a mesma comida salgada, muda só o nome e o endereço.

O segundo são os baratos: tem um bifê (ou buffet, como preferem os chiques) com poucas opções, saladas desmilinguindo de tão cozidas, arroz, feijão, macarrão e a maior variedade é de frituras.

Por fim, há os por quilos caros e que parecem bons, alguns até tentam parecer chiques: os pratos (aqui me refiro ao utensílio) são enormes, para perdemos a noção do quanto estamos pegamos, bifê amplo e sortido, tanto nas saladas quanto nos pratos quentes, e churrasco (bregamente chamado de grill) também com muita variedade. Dentre esses, tem os que - além do trauma - me deixam puto da vida, porque claramente roubam no peso (a partir dos 400 gramas preciso empurrar a comida, mas nesses como 600 e não me pesa, e não, não é a comida que é leve). Não que os outros sejam honestos (e já vou explicar o porquê), mas esses tem uma desonestidade explícita e que poderia ser enquadrada por uma fiscalização.

Enfim.

Em um dia comum, num desses pseudo-chiques, me sirvo de sushi, ceviche, salada de broto de bambu, de cenoura, de tomate, de pepino e de agrião (pulo as conservas, também fartas), no bifê quente, pego paella, salmão ao molho de maracujá, arroz branco, bobó de camarão, fraldinha ao molho madeira, nhoque, tutu de feijão; na churrasqueira, picanha ao alho, fraldinha e frango. E aí vem o passe de mágica que só esses restaurantes conseguem: praticamente tudo tem o mesmo gosto! O agrião não arde, a cenoura parece um chuchu, o tomate parece a cenoura, o pepino o tomate, e o chuchu, esse eu não peguei para saber se tem gosto de alguma coisa outra. O sushi e o ceviche, por seu turno, se não são de chuchu, eu realmente não sei do que seriam. Nos pratos quentes, alguma diferença no molho de maracujá - ruim -, porque peixe, frango, frutos do mar, carne bovina, tudo tem o mesmo gosto, um indefinido tempero que vale para tudo. Paella, bobó de camarão e molho madeira são a mesma coisa - e ruim! Esses restaurantes parecem bandas de formatura, que tocam de tudo, mas sempre do mesmo jeito, de modo que só quando você escuta a letra (e entende o que estão cantando, porque isso também não é sempre) que descobre se estão tocando Beatles, Nirvana, Beyoncé, Banda Calypso, Leandro e Leonardo, Raça Negra, Titãs, Vivaldi, Shostakovich ou funk pancadão. Aí está a desonestidade do lugar: o vasto bifê não é nada mais que uma versão ampliada e repaginada dos por quilo baratos; se fôssemos dividir por gosto, teríamos umas três saladas, duas conservas e seis pratos quentes (contando o churrasco), no máximo, e raramente seriam bons.

Ainda assim, de vez em quando eu cedo à minha esperança de achar uma casa de pasto  por quilo realmente boa e honesta e às pressões do Macedo, e vou a um desses restaurantes. Sou uma pessoa de hábitos - e reclamar é um deles.


21 de agosto de 2024


PS: Lembrei apenas depois: os restaurantes que querem parecer chique ainda põe azeite de oliva de marcas boas para temperar a salada, mas quando você usa é capaz de sentir o sabor dos oliveirais do Mato Grosso...


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Um colega imperial [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]



Precisava de material de um outro setor e mandei um e-mail à pessoa responsável. Educadamente ela me respondeu que somente César Augusto estava autorizado a fazer tal pedido meu setor. Me veio o estranhamento: quem é César Augusto? É certo que não sou a pessoa mais sociável, mas não me lembrava de ninguém com esse nome. 

Dei uma passada de olhos pela sala. Seria um dos novos funcionários? Algum novo estagiário que eu não percebera? Algum colega que eu sempre esqueço o nome, por nos chamarmos pelo sobrenome (ainda que eu sempre saiba o nome de quem sei o sobrenome)? 

Não conseguindo lembrar de nenhum César Augusto, fui pela lógica: quem na sala parecia subir num pedestal quando era chamado? Pedestal não por metidez, mas pelo próprio nome, afinal, César Augusto é imponente demais para alguém com feições como a minha, por exemplo. Novamente, sem sucesso na minha segunda tentativa de adivinhar quem era o misterioso colega César Augusto. 

Envergonhado, pedi ajuda ao nobre colega Macedo. Ele ajudou, mas poderia ter sido mais direto, não ter respondido minha pergunta com outra pergunta (o Chaves já ensinava que só os idiotas fazem isso).

Macedo, sabe me dizer quem é o César Augusto?

Sabe aquele que senta na terceira baia?

O Nilo, claro que sei! Que tem ele? (só os idiotas respondem a uma pergunta com outra pergunta, eu sei).

Sabe o nome dele? Não digo o sobrenome.

Sei, sim. César.

Pois então, tem um Augusto entre o César e o Nilo. Na verdade um Augusto Trajano.

Olhei novamente para o Nilo. Uma boa pessoa, jeito de bonachão, baixinho, fala baixa também, tranquilo, almoçamos seguidamente eu ele e Macedo (havíamos almoçado juntos no dia anterior), parece o Júlio, do Cocoricó, não parece alguém com nome tão imperial, César Augusto Trajano Nilo da Silveira.

Acho que as pessoas deveriam poder mudar de nome quando adultas, para melhor se adequar ao seu estilo. Até isso acontecer, pedi para Macedo não comentar com Nilo minha gafe e torço para que ele não acompanhe meus textos.


16 de agosto de 2024


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Reformas das calçadas do centro sentidas no trabalho [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Há um meme na internet que põe três variáveis para os serviços, nos quais só se pode escolher dois: ser rápido, ser barato e ser bom. Se é rápido e barato, não é bom; se é rápido e bom, não é barato; se é barato e bom, não é rápido.

O meme é engraçado e quase realista, ainda que às vezes ele se equivoque: dá para algo ser lento, caro e ruim. Parece que as reformas da prefeitura nas calçadas do centro de São Paulo seguem essa conjunção de tudo do pior.

Ainda que, penso agora, a questão de rápido ou lento não seja exatamente um ponto: o importante é que as obras fiquem prontas na antessala da eleição, para o prefeito mostrar que fez algo, mesmo que tenha sido uma obra inútil e que serviu para fechar ainda mais lojas de um centro cujo comércio já estava devastado pela pandemia.

Mas os reflexos para os prédios da região também não foram menos desastrosos - ao menos no edifício onde trabalho. Comentei alhures da vez que a filha de uma funcionária meteu um “banheiro interditado” que obedecemos fielmente por uma semana, até descobrirmos que nunca esteve; também falei das marcas de animais na porta da cabine, provavelmente de algum mamífero que sobe pelo ralo ou retrete [https://bit.ly/cG230706]. Pois essas obras pelo centro fizeram relembrar dessas historietas, com agravantes.

Para além da barulheira que se estendia há mais de mês, com marretadas, britadeiras e máquinas cimenteiras disputando o ambiente sonoro com músicos, pregadores e esmurradores de bíblia, a coroação foi quando deram a obra em frente por encerrada.

Dois dias depois, um dos banheiros do andar foi interditado. Dia seguinte, o outro banheiro do andar e banheiros de outros andares também foram interditados. Ainda assim, recebemos notícia da chefia, dizendo que usássemos os banheiros dos andares que ainda não estavam entupidos (os mais altos), e seguíssemos normalmente com os trabalhos. Assim se tentou fazer, mas esse terceiro dia praticamente todos os banheiros do prédio foram sendo interditados, um depois do outro, com animais e excretas fugindo das retretes dos andares mais baixos. Para evitar que se tornassem chafarizes de merda, cortaram a água do edifício também. A contragosto das chefias, os funcionários foram mandados para casa no meio do expediente. No quarto dia, sexta-feira, fizemos todos teletrabalho, para desespero dos chefes, que assim podem comprovar que rendemos tanto em casa quanto de corpo presente.


Dado esse festival de interdições, investigação vai, investigação vem, e os banheiros seguiam entupidos, nada descia, pelo contrário, muita coisa subia. Foi no domingo que descobriram o que havia acontecido: na reforma das calçadas, haviam obstruído a saída de esgoto do prédio.

Conseguiram desobstruir a tempo para terça-feira voltarmos no meio do expediente. Ponto para a prefeitura, rápida nesse momento, deixando apenas como efeito colateral britadeiras destruindo o resto da calçada recém feita para adequá-la às saídas de esgoto do edifício.

Da nossa parte, lamentamos duas coisas: a velocidade com que resolveram esse problema  - sempre dizem que destruir é fácil e rápido -, e o fato de não haver reformas do tipo na frente da casa do chefe.


15 de agosto de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Sanspaieux, a professora com um sonho da casa própria em SP [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Vida de professor não é fácil. Brotinho tem uma amiga, a Sanspaieux, que é professora da rede pública há vários anos. Dava aula no estado, prestou concurso da prefeitura, prometendo a si própria que se passasse iria comprar um apartamento e sair do aluguel. 

Pois passou - e foi fazer as contas para a casa própria. Descobriu que com o novo emprego até conseguiria pagar as prestações, porém não conseguiria mobiliá-lo - e sabemos que nos apartamentos de hoje em dia, se não for móvel sob medida, você não cabe na casa, simples assim. Solução: manter os dois empregos por um ano. Como era pouco tempo, decidiu encarar essa aventura.

Pois surgiu um novo problema: uma escola na zona leste, a outra no extremo sul: não tinha como chegar a tempo no segundo emprego se não tivesse carro. Decidiu, então, comprar um carro. Comprou um celtinha usado, inspirado num deputado que - esperamos - será o novo prefeito de São Paulo. 

Claro, que isso não poderia acarretar um novo contratempo: para pagar o carro e mobiliar a casa, precisaria ficar dois anos - e não mais apenas um - com dois empregos. Quem aguenta um, aguenta dois, pensou, e seguiu firme na sua promessa de casa própria.

Como já teria o carro, resolveu comprar um apartamento em algum lugar bem localizado, na região central, perto das coisas que ela gosta de fazer, e não perto do emprego. 

Tudo ia bem para Sanspaieux - salvo sua saúde física e mental -, saindo de casa às seis e meia da manhã, voltando sete da noite, com reunião às sete e meia duas vezes por semana. Isso até seu celtinha deixá-la na mão. E não foi de uma vez. Num dia, furou o pneu. Foi atrás de borracheiro e chegou em casa quase dez da noite. Dois dias depois, o carro pifou de vez. Chamou o mecânico, que avisou que iria precisar de no mínimo sete dias úteis para consertar. Nos relata ela seu diálogo epifânico:

Mas, moço, eu preciso do carro para trabalhar!

Você trabalha com o que?

Sou professora.

Ah, achei que fosse Uber. Vou pôr o seu como semi-prioridade, mas antes de quatro dias não fica pronto.

Pelas suas contas, como ela mora longe dos dois trabalhos, até poderia ir de transporte público ao primeiro emprego, saindo uma hora antes, depois teria que pagar uber para o segundo emprego, e na volta, novamente transporte público, chegando cerca de nove da noite em casa. Inviável, não só pela questão do tempo, como pelo gasto com uber, que comeria o que ela ganharia no mesmo período com um dos empregos e mais um pouco. 

A solução foi dada pela conversa com o mecânico: alugar um carro e fazer Uber nos trajetos e mais uma horinha depois do expediente. Assim o fez. Problema: se com isso ela quase conseguiu fechar o aluguel do carro, para pagar o conserto do seu celtinha vai precisar fazer mais um tempo de Uber, para complementar renda - mesmo odiando dirigir, ainda mais em Éssepê, não sendo alguém que se anima muito em conversar com estranhos (ainda mais essa galera que fala merda pelos cotovelos, já xingaram professores umas três vezes, nos conta, quase em lágrimas), e estando cansada de tanto trabalhar. 

Ela tenta se conformar: é só por dois meses. Sanspaieux merecia ser entrevistada em qualquer um desses podcast de coach, mesmo sem ser uma, para ensinar resiliência e pensamento positivo - ou auto-engano, como preferir. Ao menos ela tem sua casa própria!


01 de agosto de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.