domingo, 30 de outubro de 2022

Lula, Um Índio

Da minha casa, quando a festa na vizinhança se acalma, ouço ecos vindos da avenida Paulista. Tenho vontade de ir para a rua comemorar também, gritar o grito de alívio dessa batalha ganha, mas o cansaço fala mais alto. Cansaço, não: exaustão. 
Diferentemente das pessoas com quem cruzei durante a tarde, ao almoçar na Ocupação 9 de Julho e depois subir a Augusta e atravessar a Paulista hiper policiada, eu estava esperançoso, mas não confiante, e não consegui relaxar até o resultado final da apuração - mesmo agora, uma da manhã, sigo alerta: não haverá tentativa de golpe? 
Esse peso todo que senti aliviar às oito horas da noite, não era de hoje, nem do último mês. Mais que alívio, o que sinto nesta noite de 30 de outubro é um esgotamento que penetra feito frio os ossos. Estamos prestes a encerrar mais um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata. 
São oito anos de golpe contra a democracia e a economia brasileira, iniciados no conluio grande mídia e judiciário, sob a batuta do Departamento de Estado dos EUA; são seis anos do início da militarização do Estado e implementação do ultra liberalismo, que joga milhões de pessoas na fome, enquanto militares se empanturram de picanha e viagra; são quatro anos do início da necropolítica explícita, aprofundada pela pandemia de Covid, em que todo brasileiro se tornou um muçulmano da vida nua; quatro anos de ampliação da destruição e da pilhagem de tudo o que fosse possível - deixarão para Lula administrar não exatamente um país, antes, escombros. 
São oito anos de derrotas em sequência, nas votações nas urnas e no parlamento (excluo daqui os nordestinos, que têm mais consciência política e tiveram um respiro em seus estados), que só foram estancadas agora, com a dramática vitória de Lula. Tivemos a vitória de Dilma, em 2014, é certo, porém uma vitória de Pirro, uma vez que se acreditou que vencida a batalha estava encerrada a guerra. Depois de oito anos de golpes permanentes contra o Brasil e sua população, depois de uma campanha eleitoral tensa, com abuso de todo tipo de crimes por parte do presidente, a vitória de Lula foi um alívio e se desenha como possibilidade de redenção nacional - e internacional, no combate ao neofascismo. 
Seu discurso de vitória foi grandioso, não por ter falado algo extraordinário em uma retórica sublime, mas por ter dito o óbvio para qualquer ser humano que não perdeu a humanidade e a empatia. Me emociono - justo por ser o óbvio, justo por ser o que perdemos no debate público desde 2013, justo por ver o quanto nosso tecido social foi esgarçado pela estratégia da extrema-direita. “É hora de baixar as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. As armas matam e nós escolhemos a vida". 
Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante. Estou cansado, preocupado, feliz. Amanhã vai ser outro dia, mas não é uma vitória eleitoral (a margem estreita é mentirosa dos verdadeiros anseios da maioria da população) que fará o óbvio retomar seu estatuto de óbvio - a mobilização e o trabalho de base serão mais necessários que nunca para, quem sabe, daqui oito anos, possamos estar discutindo os problemas do Brasil durante a campanha presidencial. Ouço fogos vindos da Paulista. Estou esgotado, e amanhã seguiremos nossa luta, impávidos como Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, o axé do afoxé Filhos de Gandhi, conscientes como um nordestino - porque a máquina da extrema-direita segue atuando na hora do almoço.


30 de outubro de 2022

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Nem cara metade, nem inteiro: a incompletude.

Na tentativa de desfazer as armadilhas do amor romântico é senso comum em postagens "good vibes" da internet - e mesmo materiais mais sérios - criticar a ideia da cara metade argumentando que seríamos inteiros, completos, não precisaríamos de ninguém para nos completar. 

A intenção pode até ser boa - diminuir essa dependência emocional de uma única pessoa. Contudo a tentativa é tão ruim quanto o original, a não ser que entendamos por sermos inteiros sê-lo na nossa incompletude. E se somos inteiros na incompletude, o clichê da metade da laranja volta a ser plenamente válido nessa argumentação. 

O que subjaz a tal raciocínio da inteireza do sujeito é a lógica ultraliberal dos tempos atuais (um dos combustíveis para o neofascismo que assola o mundo), de que um ser humano seria auto-suficiente, (quase que) plenamente independente dos demais, que "adicionaríamos" como complemento (ou  mesmo suplemento) em nossas vidas, mas longe de serem essenciais. 

A ideia de cara metade, fruto de uma leitura um tanto literal d’O Banquete reatualizada permanentemente pela indústria cultural, sem dúvida é bastante precária em várias dimensões. Em meio a sete bilhões de pessoas que habitam este rochedo que gira ao redor de uma pequena estrela haveria aquela única que nos completaria. Mesmo que insiramos o tempo nessa equação, acreditar que uma única pessoa naquele momento seria capaz de nos completar é também uma responsabilidade e tanto. Não só isso, acreditar que uma única coisa (pessoa, objeto, sensação, experiência, crença) seja capaz de nos completar, independente de todo resto é diminuir o humano a algo muito pequeno. 

Acreditar na completude do ser humano (no sentido de que nada lhe falta) é pobre. E aqui, a antítese pós-moderna de internet entra na mesma lógica que pretensamente critica: o ser humano completo sozinho é só uma versão ainda mais diminuída daquele que precisa da sua cara-metade para ser completo. Quem vai querer se relacionar se é inteiro, se é completo? Isso é o nirvana, e no nirvana não há desejo, nem interação - e não me parece que alguém que alcançou o nirvana estará buscando visualizações no youtube ou likes nas redes sociais com auto-ajuda rasteira (mesmo que embasado em títulos de doutor). Há algo errado nessa pretensa inteireza. E, como diz Álvaro de Campos, que reiteradamente cito em meus textos:

“E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...”

O ponto que escapa a essa crítica ao “cara-metadismo” - talvez fruto de uma crença iluminista? - é que somos incompletos, somos seres em permanente falta - para si e para os outros. E é essa falta que nos mobiliza. Como todos os seres vivos, somos dependentes do nosso entorno (daí a questão das mudanças climáticas), dependentes dos outros seres vivos, nos fazemos e refazemos permanentemente em nossas interações (e vale lembrar que em várias cosmologias indígenas a ideia de ser vivo é ampliada para muito além do nosso olhar viciado pela modernidade - e que o misticismo de classe média branca não rompe com essa lógica). Como seres inseridos no simbólico, dotados de uma “segunda natureza”, nossa dependência dos outros e das nossas interações é elevada à enésima potência - Robinson Crusoé, mesmo isolado numa ilha deserta, não consegue deixar de seguir os ritos da sociedade, como uma âncora mínima para lembrar da própria humanidade que o constitui (enquanto homem branco europeu). Quando não reconhecemos nossa incompletude, nossa falta, alguém vai mobilizá-las por nós - daí, por exemplo, a compulsão pelo consumo, como forma de dourar a pobreza a que aceitamos nos reduzir ao aderir à ideia de que seríamos inteiros. 

Há quem leve essa pretensa crítica (com a consequente defesa da autonomia absoluta do sujeito) a uma questão mais ampla, para além do amor romântico. Dia desses vi uma postagem, um desenho de quatro homens e uma mulher de quatro, na coleira, levados por bebida, cigarro, celular, jogos e remédios; na legenda: “Você é escravo de tudo aquilo que não consegue abrir mão”. O moralismo aqui explícito não é, no fundo, diferente de quem se opõe ao cara-metadismo com a ideia de completude. Somos escravos das outras pessoas, do amor, do sexo, do trabalho dos outros (ou então a sociedade colapsa), do dinheiro, da natureza, da Bíblia, da água, dos escravos que nos servem, dos senhores que servimos sem ver. Se algum grau de dependência ou necessidade é escravidão, não temos nenhuma possibilidade de fuga.

E é curioso como nessa busca iniciada no Iluminismo por superar deus, não tenhamos sido capazes de criticar um dos pontos principais do que fundamenta as religiões judaico-cristãs: a existência do completo, do que não falta. Nós, sujeitos da modernidade, incorporamos da ideia de deus (seja na sua versão laica, seja na religiosa) não no que ele teria de libertador, de potência criativa (que pressupõe alguma falta, algum desejo, ou não teria razão da criação), mas na prepotência castradora de quem saberia tudo - e vale recordar que o próprio deus não sabia bem o que fazia ao criar ao mundo, fazendo tudo aos poucos e sempre precisando se certificar de que o que acabara de criar era bom. 

O amor posto como um dado - e não como algo construído na relação, a cada relação, a cada dia -, o sujeito como completo e que prescinde dos outros. O que está em jogo é nossa relação com o mundo, é nosso envolvimento político com pessoas próximas e distantes: vai muito além de algo pessoal e menor.

14 de outubro 20222