domingo, 26 de fevereiro de 2023

A descida e a decadência


Foi no meio de uma trilha na Cordilheira Ocidental que imaginei que a idade havia chegado, finalmente. Eu, entrado nos "enta", ainda me achava o "xovem", tão apto quanto aos vinte para subir um morro, afinal, por mais que não pratique um esporte, levo uma vida ativa, caminho cerca de dez quilômetros por dia e corro outros três uma a duas vezes por semana.

No dia anterior, Felipe me propôs essa atividade - que muito me interessa -, e que ele não me acompanharia, por conta de ter tido uma hérnia inflamada não fazia muito - eis a idade chegando ao meu amigo conhecido há 21 anos. Me deu as características da trilha, dentre elas, que era nível 2 e não iria até o Pico de Loro, e terminava num "charco", espécie de piscinas naturais no pedregoso rio Pance. Duplamente decepcionado, aceitei porque era o que tinha. Imaginava quase um passeio para a terceira idade, sem dificuldade.

Dia seguinte, oito da manhã, junto a um grupo de 25 pessoas de uma academia de Cali, cinco aleatórios e mais o guia, nos metemos pelo "sendero de nivel dos". Não que alguém mais velho não dê conta de subi-lo, mas certamente precisa de um bom condicionamento físico para fazê-lo - duas pessoas, provavelmente mais jovem que eu, desistiram na metade. E muitas das que alcançaram o topo da caminhada precisaram parar no caminho para tomar fôlego, a ponto de eu ser o nono a chegar, mesmo sendo, aparentemente, um dos mais velhos - me senti o Zanardi na época de ouro da Indy, fazendo corrida de recuperação. Ainda que suado e com a respiração alterada, terminei os dois quilômetros e cinco mil passos inteirão, disposto a subir mais dois quilômetros tranquilamente (havia mais para subir, mas não era parte da rota).


Foi na descida que comecei a sentir: as coxas começaram a tremer, o joelho a doer. Comecei a descida como último da fila, e terminei como último (até porque não dá para acelerar, por conta do risco de queda e fazer um "strike" em quem vem na frente), xingando que quem puxava não fez uma mísera pausa. 

Meus joelhos doendo cada vez mais e eu pensando que era hora de aceitar a realidade: a idade chegava e o corpo avisava inclemente: não sou mais um jovem, e talvez seja mais conveniente buscar um grupo de jogos de tabuleiro e dominó ao invés me aventurar em escaladas nível dois (e lembrava que em 2019 minha mãe, com quase 70, havia aguentado tranquilamente uma trilha nível 3 em Florianópolis). Descida segue e as dores aumentam, não só de intensidade quanto começo a sentir meu quadril. 

Tento pensar em outra coisa, que não minha decadência física, me esforço pra lembrar a conjugação de alguns verbos em espanhol que tenho dificuldade, mas ao invés disso meu cérebro decide retomar as conjugações do latim, que fiz com Felipe. Ego sum, il, el est, sumus, sunt. Como é mesmo a segunda pessoa? Dizem que quando estamos diante da morte, passa um filme em nossa mente. Será que a minha resolveu fazer uma prova de latim? Se eu reprovar, não vai ser possível continuar o filme, logo não vai ser dar para eu morrer (ainda que minha experiência de morte, no ônibus indo visitar meus pais, tenha sido tão somente o vazio - mas no fim, descobri logo que eu não estava morto [https://bit.ly/cG150214]). Reconheço que isso me tranquilizou, ainda que minha fraqueza física fosse uma notícia triste - não estou na hora da morte, mas ela se aproxima a galope. Quem sabe se eu, como meus colegas de grupo, começasse academia, algo mais sistemático e com acompanhamento profissional? Hora de assumir que sou, no máximo, um jovem senhor, já sentindo o peso dos anos - e da gravidade.

Mas eis que terminamos a descida e ao chegar, estão todos, jovens e não tão jovens, desesperados por um lugar para se sentar, se queixando "de temblor en las piernas" e, em especial, de dor "en las rodillas".

Moral da história: o dito brasileiro "pra baixo todo santo ajuda" é uma mentira cretina de quem nunca precisou descer um morro mais alto! E eu sigo me achando um esbelto xovem de quarenta anos, insistindo em ignorar a idade.

26 de fevereiro de 2023

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Panama City Airport

Depois de quase dez anos, me ponho a fazer uma viagem internacional de passeio (minha última viagem internacional foi a serviço, a marcante ida ao interior da Venezuela colapsada, em 2019). Sempre que embarco em um avião lembro dos professores universitários do Rio de Janeiro destilando todo seu ódio ao PT e à democracia [http://bit.ly/3lpum2I], ao criticar um passageiro de chinelos no aeroporto, e lamentando o fim do "glamour" em viajar de avião. Alguém se crendo glamuroso no saguão de um aeroporto mostra o quanto busca distinção dos seus iguais a todo custo, já que não tem condições de pagar um vôo particular, sequer primeira classe com área de espera vip. Parênteses para contar do pouco de glamour de viajar de avião que conheci: sem ter a mesma sorte de uma ex, que diante do overbooking da classe turística, voltou da Espanha para o Brasil em segunda classe, minha primeira viagem internacional, como era menor de idade, fui tratado como uma tocha olímpica, que precisava ficar passando de mão em mão entre os funcionários, sempre com o comentário "que grande esse menor!" (e na época eu ainda nem tinha crescido tudo). Em dado momento, me deixaram esperando o vôo junto com os bacanas, na área vip da empresa, com bebidas várias, castanha de caju, telefone (tudo grátis) e entrada prioritária, mesmo eu indo de terceira classe. Fecha parênteses. Na minha viagem atual, meu glamour de voar esteve em ter a fileira toda para mim e poder dormir como se estivesse num banco de rodoviária.



O vôo até Cali faz escala na Cidade do Panamá, devidamente globalizada no seu código IATA: PTY, de Panamá City (dá quase a sigla do aeroporto de meus últimos vôos: PTO). E o Panama City Airport mostra que é um não-lugar autêntico, que não estar no Ocidente (EUA, Austrália ou algum país da Europa Ociental) é um mero detalhe, e que qualquer "sujeito universal", colonizador ou colonizado, se sentiria em casa nele: estão lá marcas globais, em grande medida as mesmas que vi em GRU (Guarulhos) e que veria em LGA (La Guardia) ou CDG (Charles de Gaulle); mudam apenas algumas marcas locais - ainda que o design seja basicamente o mesmo -, e na loja de souvenirs, peças tidas por locais, devidamente pasteurizadas ao gosto do turismo de check list globalizado.

Mas senti mesmo esse ar da gloriosa civilização europeia nas minhas costas, ao sair do avião. Vinham atrás de mim dois homens negros. Dentro do avião conversaram um pouco entre si, em francês. Na porta da saída da rampa que liga o avião ao saguão, há um funcionário do aeroporto. Vamos passando todos em lenta peregrinação por ele, que parece não ter função alguma ali - talvez de abrir e fechar a porta? Até que passo eu, e os dois homens atrás de mim, não. "Passaportes, por favor", pede o funcionário, num tom de intimidação. Os não-lugares, assim como o Ocidente, são para os sujeitos universais, os cidadãos de primeira classe do mundo, esses que estarão na última linha atingida por guerras e crises: negros, latinos, asiáticos marrons, chineses, transexuais, esses precisam dar mostras meritocráticas de que merecem respirar o glamouroso ar destinado aos brancos.


24 de fevereiro de 2023


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Efeito borboleta de um e-mail corporativo enviado equivocadamente [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

A história começa de um modo simples e despretensioso: um funcionário mandou e-mail em que perguntava se havia vaga em outro setor. Tudo certo, não fosse um erro: ao invés de mandar para a pessoa responsável, o e-mail foi para todos os funcionários. Isso também não é novidade: ao menos uma vez por mês recebemos um e-mail que era para alguém bem específico - infelizmente, até hoje nunca chegou algo picante, digno de embalar o horário do café. Também não é novidade vários colegas responderem reclamando do equívoco, que isso está enchendo a caixa de e-mails deles (como se tivessem 10mb de espaço), pedindo pra sair da lista (o que só é possível mediante pedir as contas), criticando quem não sabe usar e-mail.

Desconheço o colega que queria transferência de setor, mas a novidade foram as respostas que surgiram e os seus desdobramentos. Primeira novidade: o setor respondeu de pronto, mas para todo mundo também, solicitando o currículo. A seguir, vieram os clássicos de estarem enchendo a caixa de e-mails (e são esses os que mais enchem as caixas de e-mail), de  querer sair da lista de todos os funcionários e xingamentos a quem não sabe usar e-mail em pleno 2023.

No meio do caminho, nova novidade: alguém foi mais específico, e naquele tom de educadamente puto, respondeu “Por gentileza, encaminhar o e-mail somente ao interessado”. Pessoal gostou e resolveu repetir a frase, enchendo ainda mais a caixa dele e de seus colegas que se incomodam com mensagens do tipo. Virou praticamente uma hashtag nos e-mails institucionais - inclusive foi nessa hora que o nobre colega Macedo me avisou dessa treta interna. Talvez o colega que queria transferência tenha feito isso - eu, ao menos, não recebi seu currículo -, mas a discussão ganhou corpo e outros colegas aproveitaram o ensejo para mandar o currículo de conhecidos - e eu acho que fizeram para provocar os que só reclamam. Mais que isso: alguém puto com os emputecidos que enchem a caixa de e-mails alheios reclamando que estão enchendo suas caixas de e-mail mandou um e-mail para todos criticando quem critica quem comete esse tipo de equívoco e gerando nova contenda, em outra discussão por e-mail, que enche a caixa de e-mail de todos.

Voltando à discussão inicial. O funcionário do setor de compras, pelo visto uma pessoa bastante estressada e desgradável, que já tinha mandado dois e-mails reclamando que estavam enchendo a caixa de e-mails dele, apareceu mais uma vez, agora dizendo que aquele era um e-mail corporativo e não pessoal, e se fosse por esse caminho, logo estariam anunciando venda de veículos - o que nunca tinha acontecido até então, apesar de todo mês ter e-mail desse tipo, com respostas reclamando e blábláblá, como eu já disse acima. 

Contudo, a ideia do colega do setor de compras parece que encontrou eco. Se não chegou ao ponto de anunciar carros, o povo começou a anunciar de brigadeiro gurmê a casa na praia para o carnaval. Virou praticamente uma feira do rolo virtual interna, para desespero dos mal humorados, que seguiram se queixando, agora em meio a ofertas de produtos variados. 

De minha parte, minha queixa até agora é não ter aparecido nada que me apetecesse, mas avisei o nobre colega Goreti, que revende óleos essenciais e produtos de babosa.


16 de fevereiro de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Meu primeiro carnaval (na Avenida Faria Lima)

Digamos que carnaval nunca foi algo que me atraiu. Gosto do feriado, não reclamo, como muitos: foliões lá, eu cá, e está tudo bem. Em 2013, quando os bloquinhos ainda podiam ser tratados no diminutivo, Misson muito insistiu para que eu fosse com ela - e eu cogitei aceitar o convite, desde que fôssemos fantasiados de palhaços depressivos. Ficou para o ano seguinte, mas Misson partiu antes, e a ideia de pular carnaval acabou por aí.

Mas eis que dez anos depois, num sábado fresco e chuvoso, estou eu pronto para estrear na segunda festa mais popular do Brasil, meu primeiro carnaval de rua em São Paulo - ainda no pré-carnaval. O que mudou assim tão repentinamente? Fácil: o trabalho exige que eu vá. Dá para imaginar minha animação, ainda mais diante do que acompanhei dos bastidores e vivenciei na “organização”.

Vestido com o “abadá” da prefeitura (que alguns amigos acreditaram se tratar de fato de fantasia), desço na estação Eucaliptos e vou caminhando até a avenida Faria Lima. O caminho pelo bairro de Moema me é indigesto: assumo que regiões endinheiradas e segregadas me soam anti-cidade. Frequentei o bairro algumas vezes, acompanhando minha ex-namorada e sua família em restaurantes (pago pelo pai dela, claro, pois não tenho condições), e assumo que isso é algo que não sinto falta: diante da miséria que nos circunda (por mais que não seja visível em Moema, que é um bunker a lá Nós, do Zamiatin, assim como Perdizes e Pinheiros), gastar valores absurdos para comer me soa ofensivo - sim, aproveitei a oportunidade e comi em restaurantes caros, mas nunca tive orgulho disso, não. Assim como nesse sábado de pré-carnaval vivencio a experiência de caminhar entre foliões (mesmo que poucos) da avenida onde circulam os mais executivos mais endinheirados e descolados do Brasil. 

Parafraseando Belchior: cabelo à chuva, gente branca reunida. Me senti num Sesc: foliões brancos em sua enorme maioria, poucos negros, e todos com um estilo de vestir muito óbvio, um descolado caro; as pessoas todas muito bem comportadas, nem mesmo um grupo mais POC - que fosse POC de carnaval! Tanto que a festa correu sem nenhuma ocorrência. 

No trio elétrico, os blocos cantavam em meio a loas à prefeitura e aos patrocinadores, repetindo o slogan da cerveja ruim do trio de golpistas da 3G. Faço uma correção: negros havia: nos vendedores de cerveja, nos garis, nos seguranças, nos policiais - nos serviçais em geral, como no Sesc.

Eu poderia alegar que, por estar a trabalho, não entrei no clima da festa, mas estaria mentindo: não entrei porque há algo que está para além do meu campo de possibilidades existenciais (serei eu moderno, demasiadamente moderno, a ponto de não conseguir experienciar vivências mais comunitárias, carnaval, religião, transes, grupos homogeneizados?). Admiro quem tem efetivamente essa capacidade de festa comunitária (suspeito que a maioria apenas vive um kitsch de comunidade e transcendência), e ainda o faz com senso crítico.

Eu sigo observando à distância, mesmo próximo, percorrendo essas experiências como um estrangeiro que há muito não é turista, e está ciente e conformado da sua condição estrangeira.


11 de fevereiro de 2023


PS: No domingo trabalhei na Henrique Schaumann, em Pinheiro, basicamente a mesma coisa: ainda que com um pouco mais de negros, a maioria dos poucos que apareceram era branca.