segunda-feira, 27 de junho de 2022

Liberdade com estudantes


A Fiorino 1995 para no sinal da rua dos Estudantes com a avenida Liberdade. O carro é vermelho, com a pintura desbotada e cheia de manchas; as janelas estão abertas. Dentro, dois homens “brancos” (no nosso pantone de cores, ganham essa classificação, ainda que Bacurau tenha nos ensinado o que é ser branco; de qualquer modo, se estiverem bem vestidos, não tomarão geral da PM). Um pedinte enrolado em cobertores de doação se aproxima pelo lado do passageiro, estende a mão, fala algo. O motorista responde em tom animado, com certo ar de galhofa - eu identifico algo suspeito nessa atitude e paro para acompanhar a cena. Não escuto o que falam, apenas vejo as expressões. O pedinte sorri, se curva num agradecimento constrangido, se aproxima um pouco mais do carro, mantendo uma distância que poderia soar respeitosa, para não sujar o veículo. É quando o motorista tira de trás do banco uma barra de madeira de cerca de meio metro, muda a fisionomia, fala agora em tom agressivo, enquanto aponta o bastão para a pessoa fora do carro. Esta recua dois passos, o motorista ameaça abrir a porta - outro pequeno recuo do pedinte. O sinal abre, a Fiorino parte, o motorista ri enquanto faz a curva para entrar na avenida, o mendigo se encaminha para a calçada, como se não tivesse acontecido nada fora do ordinário, eu sigo meu trajeto para casa - sem conseguir fingir que foi uma cena banal e inofensiva. Em um país em que só no último mês Genivaldo foi morto em um câmara de gás improvisada num carro da polícia rodoviária federal, em que uma criança estuprada foi tirada do convívio familiar por uma juíza e uma promotora - e então pressionada para não fazer valer seu direito ao aborto -; em que Bruno e Dom foram mortos pelos novos “guardiões da floresta”, o crime organizado; em que pretos pobres e periféricos seguem morrendo a conta gotas, à espera da próxima chacina perpetrada pelo estado, por ação - Vila Cruzeiro ou Jacarezinho ou Castelinho ou Carandiru - ou omissão - covid no atual, meningite no governo militar anterior -, uma ameaça com uma barra de madeira feita por diversão num semáforo qualquer de São Paulo não deveria me causar mais que leve indignação - e sei que foi um pedaço de pau porque o motorista não tinha condições financeira de comprar uma arma para compensar a frustração com a própria vida, para disfarçar a absoluta impotência e irrelevância na qual ele se reconheceria, se fosse sincero consigo próprio. Mas o sentimento vem forte: o estarrecimento, a repugnância, a tristeza, a revolta. Penso nos meus colegas de classe social, que falam em mudar de país - se já não o fizeram. Alguns, poucos, foram para Colômbia, Argentina, México, Polônia. A maioria foi para países centrais, países colonizadores, países que hoje gozam da pretensa civilidade graças a tudo o que nos espoliaram e seguem explorando. Foram viver como cidadãos de segunda classe, servindo nossos algozes. Alguns já me estimularam a seguir o mesmo caminho - eu resisto. Ao menos por agora. Tenho pra mim que não enxergar as violências do dia a dia no Brasil não vai fazer com que elas sumam: a distância vai apenas garantir minha total impotência para mudar, o mínimo que seja, dessa realidade - e isso não deixaria de ser um álibi para minha consciência pequeno burguesa culpada. Quem sabe uma hora eu acabe envelhecendo e desistindo - se acaso o fascismo e o fanatismo cristão tomarem conta e o ar se torne irrespirável, eu ainda sou de uma classe que tem o privilégio de fugir. Até lá, insisto em achar que preciso de algum modo contribuir para transformar essa calamidade social em que vivemos, insisto em achar que há, sim, alternativas, desde que construídas coletivamente - e sempre pela esquerda.

27 de junho de 2022