terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A esquerda não sabe mais o que é trabalho de base

2019 passou. O governo Bolsonaro, como era de se esperar, foi um desastre, um ataque diuturno ao trabalhador, aos mais desfavorecidos, à educação, aos serviços públicos, e o que se viu foram algumas poucas manifestações - muito aquém do que as medidas antipovo exigiam. Parte da dita elite progressista, em seus apartamentos em bairros centrais, em suas salas com ar condicionado, voltou a acusar o povo brasileiro de passivo - Mino Carta, na sua prepotência europeia, me parece o tipo ideal dessa esquerda que quer que o povo se revolte enquanto ela se ocupa de afazeres mais nobres.
Anos atrás também eu fui adepto dessa tese da passividade, até ter um pouco mais de noção de mundo, e notar que a recusa também é uma estratégia de revolta - assim como a alegria -, ainda mais num país onde a nação é feita a partir do território, não do povo, o que torna a carne negra ainda mais barata no mercado - e não adianta os "morenos" e os "mulatos" reproduzirem o pantone racial das elites, pois na hora da geral, a polícia militar sabe identificar quem é branco, quem é suspeito; na hora do emprego, o recrutador sabe ver quem é "mais bem apresentável" para a vaga.
Porém, se não tivemos manifestações nas ruas na medida que necessitávamos, não quer dizer necessariamente que nada foi feito. 2019 passou e aquele movimento iniciado com as eleições de 2018, em especial no segundo turno, com professores universitários organizando mutirões para discutir voto nas periferias pobres, com o pessoal classe média indo com um banquinho e uma placa conversar nas ruas sobre política, tudo isso se mostrou apenas uma ação fugaz em um momento de desespero, não gerou qualquer enraizamento.
É aqui que o ponto fica preocupante: vindo de anos de desarticulação de trabalho de base, é até lógico que manifestações em 2019 não tenham tido a força necessária: insistir nessa desarticulação, esperando pela "grande noite", apenas torna nosso desejo de mudanças profundas na sociedade um vago sonho idealista, desancorado da realidade - por mais que se baseie em pesquisas e dados e números sobre a situação do "brasileiro médio".
Em compensação, a direita, em especial seu braço mais reacionário - esse que tem dado suporte ao neofascismo de Bolsonaro, Doria Jr, Huck, etc -, esse assumiu a vanguarda no trabalho de base de modo inconteste.
Algumas das coisas que a classe média descobriu ano passado é que política não se encerra no voto, e que fazer política cansa: é preciso deixar de fazer o que se estava fazendo e ir para a rua, trocar o cinema ou a conversa com os amigos no bar por diálogos muitas vezes tensos com gente estranha - ou mesmo com conhecidos. Difícil fazer isso todo dia. Sem articulação, difícil fazer isso qualquer dia.
E essa conversa que se poderia ter tido com alguém até então cercado pelo monólogo repetido pelo pastor e pelo Bonner, poderia amanhã se multiplicar em mais uma pessoa, e mais outra e mais outra. Não como a certeza de algo, mas como uma dúvida desse mundo acabado e solucionado dado pela religião, pelo mercado, pela mídia. A ausência dessas conversas é a negação desse efeito multiplicador da dúvida.
A direita, em especial via igrejas evangélicas - com a retaguarda da sempre onipresente mídia -, faz esse trabalho de base com perfeição. Organiza não mutirões esporádicos em momentos de desespero (seu), mas mutirões permanentes para conversar com aqueles em momentos de desespero - na porta do presídio, no sopão na rua, no universitário perdido e acuado por veteranos agressivos; a conversa com dois hoje será reproduzida para mais seis amanhã, e assim por diante. Não é preciso que cada um vá para a rua todo dia, é preciso que a mensagem chegue todo dia na rua e circule - e quanto mais natural e organicamente circular, melhor.
Tudo isso me veio à mente por conta de um cartum do cartunista Batata Sem Umbigo. Diz o cartum: "Ela trabalha muito: madruga na porta das fábricas para conversar com os trabalhadores". Ora, ir todo dia para a porta de fábrica, por mera convicção, é algo muito difícil, ainda mais quando se tem a vida para levar, as contas para pagar, a casa para cuidar. Fiquei pensando: às cinco, seis da manhã, no caminho para as empresas, há vários vendedores ambulantes de café da manhã. É uma cena de São Paulo que sempre me atraiu - esse café na rua, que parece improvisado e ao mesmo tempo parece ter algum laço a mais que a mera circulação de dinheiro. Em volta da mesa dobrável com uma toalha simples se juntam, por algum momento, algumas pessoas. Certamente, além de falar de comida ou do tempo, devem conversar sobre algum assunto outro - um tema importante posto pela mídia ou um problema pessoal que assola. O vendedor de café está ali, ouvindo, respondendo, propondo soluções - outros clientes devem também palpitar eventualmente. Qual o repertório desse vendedor, dessa vendedora? A partir de que discurso ela apresenta suas propostas de soluções ao trabalhador anônimo que todo dia compra seu bolo? Será de algum pensador de esquerda? De algum conhecido mais "esclarecido" da classe média? Quando consigo captar algo dessas conversas, o que mais escuto é a voz do pastor - do pastor mais reacionário -, a delimitar o problema, apontar as causas e sinalizar as soluções.
Nós nos perdemos em nossas bolhas de internet, em nossas bolhas metálicas que circulam pela cidade, em nossos fones de ouvidos para ninguém nos incomodar no metrô, em nossos bairros relativamente assépticos, em nossos programas entre iguais (cuja discordância maior será Ciro Lula ou Boulos e não se prender preto em poste foi legítimo ou não); deixamos de conversar com as pessoas na rua, e passamos a ignorar quem nos serve o café. Enquanto isso, o trabalho de base segue sendo feito.

21 de janeiro de 2020

Batata Sem Umbigo no Instagram: https://www.instagram.com/batatasemumbigo/

sábado, 18 de janeiro de 2020

Democracia em vertigem, país em pedaços [Diálogos com o cinema]

Democracia em Vertigem, de Petra Costa, é um filme-bolha: quem é antipetista, não importa o matiz, não vai chegar perto de assistir ao filme; quem é do campo democrático, petista ou não, bem possível que se anime em vê-lo e não vai ter absolutamente nenhuma novidade, nenhum acréscimo ao que já sabe; já quem é daquela zona cinzenta dos “apolíticos”, dos analfabetos políticos que não aderiram por comodismo ao fascismo, poucos vão encontrar ali algo que mobilize a assisti-lo... salvo a indicação do Oscar para melhor documentário - a reação do governo federal e do PSDB à indicação são um reforço a esse público para assisti-lo, visto que “se incomodou, é porque algo tem”.
Petra Costa, se souber aproveitar da indicação e do apoio (involuntário) dos golpistas, se habilita como figura de proa do cinema engajado nacional - mesmo que não leve a estatueta. Tem tudo para assumir o papel de “Michael Moore do Brasil”, ou seja, uma cineasta engajada à esquerda, afinada com um partido, com um ponto de vista bem marcado, e que faz filmes para atingir também um público que pode se sensibilizar com o que é apresentado - além, claro, das pessoas da bolha.
E tal como Michael Moore, Democracia em Vertigem, apesar de engajado, de ter lado, é um filme superficial, fraco, pouco político: fica antes numa chave emotiva-moralista e apresenta todo o teatro político como algo distante e em boa medida alheio ao povo: as manifestações de rua entram mais como se fossem torcidas de futebol - que em algum passado poderia ter sido o documentário a representar o Brasil -, salvo, talvez, quando fala de 2013. Até para a história que se propõe contar o filme é superficial: a falta de ênfase na trajetória de Eduardo Cunha e Sérgio Moro, por exemplo, não permite que amarre a contento esses dois personagens na história do golpe - deixar passar, no depoimento de Lula, quando Moro tenta a pegadinha de “achamos estas escrituras sem assinatura no seu apartamento”, me pareceu infeliz.
Lula, por seu turno, sai engrandecido do filme - como do golpe, como de toda a história. Os trechos de seus discursos ressalta um orador dos maiores da história; os momentos falando para a cinegrafista, sua defesa da democracia, reiteram o papel de grande líder mundial, ainda mais neste momento de ascensão da extrema direita em todo o globo e da relativização da democracia e do Estado de Direito.
Democracia em Vertigem tem também uma falha no nome - ou seria uma esperança? O que vemos ali - e fora dali também - é uma democracia em pedaços, destroçada, sem chances de voltar ao que era - e sem que consigamos encaminhar uma ação para que democracia queremos construir. Ponto positivo, que o filme antes apresenta os diversos caminhos que acabaram por nos conduzir à encruzilhada na qual estamos, deixando ao espectador juntar da forma que mais lhe faz sentido, e sem apresentar solução, apenas anunciando o problema.
Trata-se de um réquiem do pacto democrático que se extinguiu em 2015. Graças ao Oscar, o filme sai da bolha, deixa de beirar o irrelevante e, mesmo com todos seus defeitos, se torna um saudável sopro de crítica para os nacionais - para os tempos atuais, precários, necessário. Para consumo externo, um filme que desnuda de maneira simples o ponto aonde estamos e indica que o que aconteceu na maior economia e maior democracia da América Latina não é um evento normal, e há algo além, que merece atenção. Não por acaso incomodou Bolsonaro e os tucanos: vão ganhar o mundo como vilões, incapazes de uma justificativa plausível. Ao ganhar visibilidade, pode ajudar a abrir estradas para o país que buscaremos construir quando todo esse pesado for expurgado.

18 de janeiro de 2020