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sábado, 5 de junho de 2021

03 de junho: o dia em que tivemos que admitir que não há mais democracia no Brasil

Desde quando a ditadura militar caiu, em 1985, o Brasil nunca viveu uma democracia plena - visto que o acesso a direitos básicos apregoados pela constituição nunca foi efetivado para maioria da população, e falo de direitos muito elementares, como o direito à vida nas abordagens dos militares que fazem policiamento e o princípio de presunção de inocência (nem vamos entrar no direito ao trabalho, moradia digna, etc). Tivemos arremedos de abertura democrática, em especial nos três primeiros governos petistas. Sim, tivemos eleições também! Como eleições tivemos em 1978 (numa emulação do sistema dos EUA, Figueiredo venceu com 61% dos votos, índice que o bolsonarismo esperava alcançar em 2018), e como em todo o período ditatorial tivemos congresso funcionando, com oposição e situação - a cordialidade brasileira no seu jogo de aparências sem efetividades. Desde 2010, entretanto, está escrito nas estrelas da bandeira: o brasileiro vota errado. Uma vez, tolera-se, duas, não: 2015 veio o golpe - ainda acho que Dilma não abriu totalmente o jogo do que aconteceu entre a eleição e o início do segundo mandato, talvez na esperança de garantir brechas por onde alguma democracia possa ser construída. 2018 já não tivemos mais o risco do brasileiro votar errado: mídia, judiciário e forças militares estiveram presentes e atuantes para garantir um pleito justo aos interesses das elites mais sedutoras a egos mesquinhos. 

Com a concentração da mídia no Brasil, é ingenuidade achar que alguma vez houve eleição limpa durante a Nova República: o que tivemos foi uma força popular grande o suficiente e bem canalizada, e algum conhecimento das artimanhas espetaculares (com os ocorridos em 1982 e 1989), para não deixar o golpe acontecer. Entretanto, essas mesmas forças, inebriadas pelo poder, iludidas por um republicanismo de almanaque que serve apenas para discussões beletristas acadêmicas e pauta moral para oportunistas, desatentas ao que eram as novas tecnologias de informação recém surgidas, e com uma leitura equivocada das elites brasileiras, ficaram deitadas em berço esplêndido, sem alterar efetivamente a correlação de forças. Resultado: em 2018 a Nova República coroou a velha ESG, depois que esta fez um breve estágio no governo ultraliberal-neofascista Temer: Bolsonaro venceu uma eleição na qual ele estava impedido de perder. Como será a de 2022 - salvo raras combinações de circunstâncias. 

Se ainda acreditávamos em alguma possibilidade de que os entendidos nas forças armadas estivessem errados, o 3 de junho não permite mais ilusões: não há mais instituições de Estado. Alarmados pelo monstro que ajudaram a criar, o judiciário ainda pode voltar atrás e reagir: STE pode cassar a chapa, o STF pode afastar o presidente, pode decretar tudo o que quiser, em vão: o judiciário não possui sequer um cabo e um soldado para levar o recado ao presidente. 

Bolsonaro não tem o apoio da maioria da população, e isso é mero detalhe (como em 64 os militares tampouco tinham): tem a maioria dos donos da grana, a maioria dos seus serviçais (médicos, advogados, jornalistas, economistas e outros “doutores” assalariados que se acham ricos), a maioria da mídia, que faz uma oposição tão aguerrida quanto a seleção brasileira em certo jogo contra a Alemanha no estádio Mineirão; se não tem a maioria, tem parte considerável do judiciário e do Ministério Público, e mais importante: tem a grande maioria das armas: forças armadas, polícias e forças paramilitares (conhecidas no Rio de Janeiro como milícias, no resto do mundo como máfias). 

As forças progressistas e populares precisam assumir a situação tal qual ela é: nossa democracia, que era de baixíssima intensidade, é, desde 2014, uma democracia de fachada. Ou, sem firulas: não é democracia. Precisamos parar de esperar que instituições teoricamente de Estado, mas que sempre foram guarida para uma casta de mandarins entreguistas, tenham pela primeira vez na sua história qualquer apreço pelo Estado, pelo país ou pela sua população: carro blindado não é empecilho para essa casta, a universidade de Lisboa ou de Cornell estão ao alcance de seus filhos, e Miami fica só a oito horas de São Paulo. Não vai haver nenhum movimento por parte da maioria que compõe essas instituições e não faz sentido tentar restaurar uma democracia que sempre foi uma quimera: é necessário um novo pacto social.

Contudo, o que vemos é uma permanente discussão sobre 2022 - o que é válido e necessário, diga-se de passagem -, como se a eleição de Lula (ou Ciro, dentre os que ainda acham que ele é viável) fosse capaz de resolver, por si só, qualquer coisa. Sem mobilização, sem construção de base, pouco adianta vencer eleições majoritárias: minora aspectos mais medonhos e gritantes, mas a essência da nossa democracia tutelada segue a mesma. Contudo, a situação é ainda pior: sem mobilização popular, não vai ter vitória de Lula ou de qualquer nome progressista em 2022 - o contexto político mundial não sinaliza apoio a uma ditadura explícita, então é de se crer que teremos eleições fajutas, como as de 2018.

Com isto não quero dizer que estamos derrotados, pelo contrário: o futuro em aberto está. Só que precisamos abandonar o pensamento mágico de um salvador da civilização e passar a atuar desde já (e não só nas nossas bolhas virtuais): a constituinte de 1988 e a desconstituinte de 2016 em diante são mostras do quanto a mobilização popular faz diferença mesmo nos acordos das elites que alijam a maioria do povo. Vira voto em segundo turno é ação de desespero - até agora sem demonstrar resultados efetivos: precisamos virar percepções de mundo, mentalidades, formas de se engajar na política.


05 de junho de 2021


domingo, 5 de abril de 2020

Entre orações, afagos e intervenções: as movimentações das forças políticas.

Ainda que a pandemia de coronavírus force a ações urgentes dos governantes de turno, necessárias para o aqui e o agora, atropelando convicções e conveniências partidárias, os políticos não deixam de agir também visando ganhos futuros - por mais nebuloso que seja o pós-pandemia.

O coronavírus trouxe uma oportunidade impressionante para quem está no poder, ainda mais nestas plagas: é capaz de fazer até o mais medíocre parecer bem preparado: se a crise financeira de 2008 se espalhou pelo mundo de maneira muito rápida, dado o estado da arte das comunicações e do dinheiro virtual, a pandemia ainda respeita minimamente os tempos da natureza - por mais que potencializado pelo estado da arte dos meios de transporte -, e até chegar na América Latina precisou de um tempo relativamente longo, em que dava para se preparar o mínimo, e uma vez aqui, tendo já experiências de sucesso e fracasso na China e na Europa, não era preciso inventar muita coisa - como foi em 2008 -, apenas acompanhar e adaptar o que deu certo. Mendetta, tido hoje como grande homem, na verdade é alguém que fez, se muito, o básico. Na Argentina, Alberto Fernández tampouco tem inventado qualquer coisa de excepcional, mas por seguir o recomendado, tem tudo para se tornar uma grande força política dos próximos anos, basta não cometer nenhum grande erro no pós-pandemia.

Nestes Tristes Trópicos, fala-se muito do governo federal - com boas razões -, mas convém ressaltar que os governadores tampouco se prepararam a contento, preferindo confiar que o coronavírus não se espalharia da forma como o fez. Quando veio, aí, sim, salvo patéticas exceções, não hesitaram em agir conforme os protocolos internacionais mais indicados. Há um movimento que deve ser observado depois, de como o pacto federativo será posto após isto passar, visto a organização de governadores e outros atores políticos e estatais à revelia do poder executivo nacional - desde sempre hipertrofiado, mas atualmente subutilizado.

Bolsonaro, como vários analistas já levantaram, parece arriscar (alto) em duas alternativas: a primeira, na senda do terraplanismo olavista e dos empreendedores de sucesso (e dos crimes fiscais e outros, bem ao gosto das sugestões do mito), ao insistir no discurso de manter a economia funcionando, é de que a quarentena imposta pelos governadores dará resultado, a pandemia não será tão grave como pode ser, e ele teria o discurso de que tinha razão ao querer que as pessoas não parassem. A segunda, em conluio com Guedes, parte de forças de segurança e do crime organizado, das igrejas evangélicas reacionárias e das protomilícias fascistas, é a de levar o país ao caos e permitir um estado de sítio, uma ditadura - que permitiria fazer "um trabalho que a ditadura militar não fez, matando uns 30 mil". Há quem diga que ele ainda não foi apeado do poder justo por receio de levante dessa massa fascista que o apoia. Contudo, mantê-lo como chefe de Estado, mesmo sem o poder utilizar a caneta presidencial, não o imobiliza como agente performativo: suas palavras tem poder de mobilização, inclusive por conta do cargo que está investido. Esse arranjo garante que pessoas sérias tenham um controle um pouco melhor da pandemia, mas não resolve o problema político - para 2022, por exemplo.

A chamada de jejum e oração do governo, para este domingo, dia 05, bastante ridicularizado pela porção mais ilustrada da população, não é um ato inócuo, pelo contrário: em momento de desespero, em um país onde as pessoas precisam crer em forças invisíveis - que o diga não apenas o crescimento evangélico que segue pastores charlatões, mas os terraplanismos quânticos, astrológicos, constelacionais familiares, wikkas, yogers e outros que animam parte das pessoas comuns afinadas com a esquerda progressista -, ele passa a imagem de alguém humilde perante os desígnios insondáveis de deus, reforça o elo com líderes religiosos reacionários, e dá a estes uma oportunidade de maior controle sobre o rebanho: quando a fome bater à porta com mais vigor, quando a doença se abater sobre as periferias, mesmo que haja leito para todos, estará ao lado o líder religioso para lembrar que trata-se de um recado de deus - e tal líder, claro, fará o trabalho de decifrá-lo aos desesperados incautos.

O outro fato marcante da semana foi o afago de Doria Jr a Lula. O gesto é um passo além do político neofascista tucano para repaginar sua imagem política e se gabaritar ainda mais como nome de consenso (e de combate) para 2022 - se houver eleições em 2022.

Como comentei em outro texto, da peleja entre Bolsonaro e governadores, Doria Jr soube se cacifar como o grande nome do confronto: tem feito o básico, sabido divulgar isso (com ajuda da grande mídia, claro) e ainda peitou sem medo o presidente [bit.ly/cG200327]. A bandeira branca acenada para Lula o mostra como alguém que saberia superar divergências no momento de urgência, disposto a conversar e compor com todos. Para o futuro, está pronto o discurso caso PT ou a esquerda se recuse a um pacto nos termos que ele impuser: a esquerda é intolerante. Com isto não quero dizer que o gesto não seja importante, até para baixar um pouco a polarização insuflada por ele e seus colegas de extrema direita - políticos e também jornalistas, inclusive os que posam de moderados e isentos -, como reabilitar o debate político em termos racionais como legítimo.

Para além da eleição de 2022, o outro motivo para o gesto do governador paulista talvez esteja na possibilidade de não haver eleição - e então ser necessário compor uma frente democrática. A intervenção no governo feita pelos militares, com o deslocamento de Bolsonaro para "Rainha louca da Inglaterra", aliado a um arrepio legalista do judiciário, podem animar parcelas das elites a apoiar um golpe latino americano clássico, isto é, um golpe militar, o que interromperia seus anseios políticos. Certamente, se esse cenário não avançar e voltarmos ao que era antes - um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo -, o político não levantará a voz para defender o PT da cassação de seu registro, por exemplo.

Por seu turno, Ciro Gomes parece um dançarino de valsa: dois pra lá, dois pra cá. Quando parece que pode se reabilitar como voz do campo progressista, como no episódio da retroescavadeira antifascista protagonizado pelo seu irmão, que lhe dava até um álibi para o retiro em Paris no segundo turno de 2018, volta a deixar o ressentimento pessoal se sobrepôr a qualquer interesse maior: seu comentário sobre Lula na entrevista à revista Carta Capital mostra que ele pode ser alguém bem preparado, mas sua mediocridade pessoal se sobrepõe ao homem público. Já Lula tem se mantido discreto, o problema é a Luladependência do PT e das esquerdas, que não ocupam o palco livre - para agradecimento de Doria Jr.



05 de abril de 2020

sábado, 27 de abril de 2019

Uma ópera que dialoga com o Brasil de 2019 [Diálogos com a ópera]

A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro. 
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca  parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.

27 de abril de 2019

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Eleições 2018: primeiras impressões pós resultados

Não há muito o que discutir quando se pensa quem foi o grande perdedor neste sete de outubro: o Brasil, nossa democracia capenga, nosso estado de direito pela metade, nossa Constituição violada. Como já alertavam Vladimir Safatle, Luis Nassif e outros, o pacto social que sustentava nossa aparente cordialidade foi esgarçadoa e cada vez mais dá lugar à brutalidade pura e crua - o Brasil tornado um grande Capão Redondo (que ao menos surjam mais Racionais MCs) -, e o pacto institucional firmado pelas elites no fim da ditadura chegou ao fim. Os resultados apontam um reassentamento das frações de elites - sem que sejam todas contempladas. Os vídeos (criminosos, segundo a lei eleitoral) de eleitores usando armas para digitar seu voto no candidato fascista é só uma mostra do efeito de seu discurso: tornar legítimo e socialmente valorizado a expressão da força brutal mais covarde. Institucionalmente, vai ser extremamente difícil governar com a dispersão de forças - vale para Haddad e Bolsonaro -, onde a maior bancada possui pouco mais de 10% dos assentos. Não é ironia, mas é significativo que a maior bancada seja a do PT, seguida da fascista - ainda que haja fascistas dispersos em outros partidos, como DEM, PSC, PSDB, PTB, Podemos, PP... O que assusta na composição legislativa vindoura é que, a despeito do que até os mais pessimistas alertavam - Alceu Castilho, do De Olho nos Ruralistas, foi um dos que mais chamou a atenção para isso -, o próximo congresso não é apenas mais conservador que o atual: o conservadorismo deu espaço para o fascismo aberto. Para aumentar o desalento, nomes de peso como Requião, Suplicy, Lindeberg, Dilma Rousseff foram rejeitados por políticos menores. E eiseste o ponto mais marcante de sete de outubro: a democracia está em risco (Bolsonaro, não duvide, não hesitará em um "autogolpe" quando se virver engessado pelo congresso) e ainda que ela se salve, não há mais possibilidade de jogo político com as regras atuais - uma ampla reforma política é imprescindível. Olhando para o micro, os dois partidos que lideraram o golpe de 2016 e as reformas antipopulares de Temer foram os derrotados nas urnas. MDB e PSDB, de segunda e terceira forças em 2014 (total de 120 deputados, quase 1/4 do congresso), ficaram em quarto e nono, respectivamente, com 63 deputados juntos. O definhamento do PSDB, a princípio, não tem o que ser comemorado, já que no seu lugar entrou o fascista PSL - por mais que os tucanos desde 2010 flertamflertem com o fascismo. Alckmin teve um desempenho sofrível, em parte por conta da migração do voto útil ao fascista já no primeiro turno, em parte pelo que o PSDB se tornou. Assim, os menos de 5% foram vergonhosos. Regionalmente, o partido foi para o segundo turno em cinco estados (SP, MG, RS, RO, RR), três dos quais de grande importância, porém sem ser franco favorito em nenhum dos cinco. É sua chance de sobrevivência enquanto partido, e possibilidade de voltar a ser uma força nacional, talvez. O ponto, porém, é por onde o PSDB correrá a partir de agora, se tentará voltar ao campo democrático, como sinalizou Tarso Jereissati, ou abraçará de vez o fascismo de cashmere de Doria Jr (vejo agora que FHC aponta esta segunda opção). Quem tende a perder também é a Rede Globo e a igreja católica. Paulo Ghiraldelli Jr. comentava que um dos pilares da campanha de Bolsonaro eram as igrejas evangélicas. O apoio explícito do bispo Edir Macedo, pondo a serviço do candidato a Rede Record (outro crime eleitoral), certamente virá com cobrança depois - ao custo da igreja católica e da Rede Globo, que perderá a vez de porta voz oficial do governo. É a movimentação dessas três forças: PSDB com sua intelectualidade (ou que se pretende) neoliberal e seus contatos na elite pretensamente esclarecida, a igreja católica entre a cruz e a espada - ajudar a vencer o "comunismo" e perder a primazia das almas, ou aceitar o PT e seguir na disputa aberta com evangélicos -, e a Rede Globo, que perdeu seu quintal para o bispo e agora pode perder o país todo para o rival. Menção rápida à outra perdedora do pleito, Marina Silva, que demonstrou que a política baseada no ressentimento não vai longe - Marta Suplicy foi mais esperta e saiu de campo antes de passar vergonha como sua ex-correligionária. Boulos, (apesar de ter sido o candidato do PSOL com menos votos na presidencial),; Ciro Gomes, Cabo Daciolo (recebendo votos de protesto), e João Amoêdo, não podem ser considerados perdedores. Ciro encarnou um trabalhismo esclarecido, o pós-petismo, música para os ouvidos para porção da classe média progressista. Precisaria ganhar base social, talvez apoio petista no futuro. Boulos trouxe os movimentos sociais para a ribalta, ajudou, ainda que discretamente, a minorar a resistência ao MTST e outros movimentos de luta, ao menos deu voz a eles em horário nobre, fora da crônica policial. Espero que siga como cabeça nas eleições futuras, com a ênfase do partido nas legislativas - em que conseguiu superar a cláusula de barreira. Amoêdo prometeu ser o neoliberal intelectual e de sucesso, mas foi apenas outra versão do neofascismo tupiniquim - como Álvaro Dias e, em menor medida, Geraldo Alckmin -, ainda assim teve mais da metade dos votos do tucano - o que pode indicar por outros meios o esgotamento do PSDB. Se souber moderar o discurso raivoso e adotar bandeiras menos conservadoras, a depender da movimentação do PSDB, pode substitui-lo no campo que se diz de direita-liberal (que nunca foi liberal). Agora é ver como serão os acordos para o segundo turno, e se o Brasil vai tentar se equilibrar numa crise ou pula direto no precipício. 08 de outubro de 2018

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Eleições 2018: Guerrilha psíquica para tentar vencer no primeiro turno

Faço minha análise da subida de Bolsonaro nas pesquisas ao estilo do Nassif, ver se consigo ser menos prolixo.
Peça 1: Pesquisa não é eleição
Pesquisa é pesquisa, eleição é eleição, e vale lembrar que os institutos de pesquisa no Brasil são pródigos em erros grosseiros - Aécio que o diga, mas vale lembrar que o Ibope errou por uns 10 milhões os votos de Aloysio Nunes para o senado, e nem citava Young, que acabou em quarto, apenas exemplos de 2014. Pesquisas podem ser manipuladas e ajudam a dar ânimo ou tirar o ânimo de apoiadores de certo candidato.
Peça 2: Adesão ao fascista
Diante do retumbante fracasso tucano, a mídia, seus antipetismo visceral, aderiu à candidatura fascista, que tem em seu projeto a submissão nacional bem ao gosto da rede Globo. O mantra de "as instituições estão funcionando" talvez guarde a ilusão de que será possível controlar Bolsonaro uma vez no poder, sem atentar que sua retirada não implica em um governo mais previsível. [bit.ly/2DTgaZ8]
Peça 3: Golpe branco
A rede Globo (e toda a mídia) é especialista em tentar golpes brancos contra nossa incipiente e precária democracia. Em sete eleições presidenciais, fez uso do que há de mais abjeto para tentar emplacar seu candidato em seis, apenas em 1994 com o Plano Real posto em ação no tempo eleitoral perfeito, não precisou usar de tal expediente. Não tem porque não fazer uso novamente em 2018. Contudo, vale lembrar que suas tentativas de influenciar na eleição tiveram resultado efetivo apenas em 89 e 98 (levar 2006 para segundo turno e perder não conta). Curiosamente, o golpe branco deste ano retoma parte da retórica de 1989, com o antipetismo ganhando apoio por medo do "comunismo" (!?) - além dos motes principais dessa corrente, o falso moralismo contra a corrupção e o ódio a pobre e periférico que "não sabe seu lugar".
Peça 4: Facada da sorte
A facada em Bolsonaro, logo no início da campanha, provavelmente foi o que permitiu a ele se manter onde esteve e se garantir com a segunda vaga para o segundo turno (a primeira vaga, pouco importa se em primeiro ou segundo lugar, desde sempre foi do PT, partido em torno do qual orbita a disputa nacional desde 1989). Sem precisar se expôr, tanto em entrevistas quanto em debates, ganhou blindagem natural de tudo o que diria e tiraria seus votos (seu vice e seu economista deram mostras do que seria Bolsonaro em forma), além de não poder ficar com a pecha de covarde por ter fugido dos debates, como já anunciara. Sem poder ser atacado diretamente, pode reforçar seu discurso de antissistema com os ataques recebidos de todos os demais candidatos [bit.ly/2IA1cWI]. Que erraram na estratégia ao polarizar PT e Bolsonaro, garantindo que ele é o antipetista real, sem essa conversinha de terceira via, de centro.
Peça 5: Segundo turno é outra eleição
Ainda mais quando não há um candidato disparado na frente, 49% dos votos válidos, o segundo turno abre novas possibilidades - em 2006, vale lembrar, Alckmin perdeu três milhões de votos, com relação ao primeiro. Bolsonaro recuperado, se verá forçado a ir aos debates, até para não ficar com a fama de covarde. Exposto, seu discurso moralista e antissistema se desfaz, e é possível que muitos antipetistas menos radicais acabem por optar votar nulo. Por isso as sondagens de segundo turno pouco valem, antes do segundo turno começar para valer. Para Haddad e o PT, uma das questões é tomar as rédeas do discurso do comunismo, explicar o que é e que o partido nunca foi comunista.
Peça 6: A única chance de vitória de Bolsonaro é no primeiro turno
O fascista já dava por perdida a eleição, tanto que cantava golpe, falava em não admitir a derrota. A união da mídia, com apoio explícito de Edir Macedo, é a grande (se não única) chance de vencer o PT: com vitória em primeiro turno, sem exposição do candidato. Dias atrás havia lido a hashtag no Twitter, hoje ouvi conversas no metrô, e fui atrás de alguns vídeos da direita hidrófoba convocando para uma mobilização em busca da vitória em primeiro turno contra o "perigo comunista". Uma amiga me mostrou post de uma transexual, que dizia que queria ir de Marina, mas se via obrigada a votar logo no fascista, para não dar chance ao PT ("bicha burra nasce morta", diziam os gays nos anos 1980, quando sair do armário era sério risco de vida, mais que hoje).
Peça 7: Antecipar voto útil e forçar desistência dos eleitores do outro campo
Para vitória de Bolsonaro, foi montado uma estratégia de guerrilha psíquica, pela internet e pela mídia convencional. Primeiro, antecipou o voto útil contra o PT,  com o discurso de possibilidade de vitória em primeiro turno. Contribuiu a estratégia equivocada do PSDB (seguida por Ciro e Marina) de pintar o PT como antítese de esquerda do Bolsonaro - logo, Bolsonaro como o antipetista da gema [bit.ly/cG181001]. Com isso, enterra-se de vez as candidaturas antipetitas que não decolaram, e sequer vão saber qual sua real dimensão - Alckmin, Marina, Álvaro Dias. Ciro, ao sinalizar o abandono do pós-petismo (que dividia com Meirelles e Boulos) pelo antipetismo arrisca mergulhar na mesma vala. Ainda assim, apenas a migração de voto não parece ser suficiente, é preciso desestimular o voto que não de bolsonaristas. Eis o segundo momento da estratégia: forçar um aumento dos votos brancos, nulos e abstenções: o factoide político de Moro desta semana seria uma tentativa extra de deslegitimar o sistema como um todo, favorecendo não apenas voto no candidato antissistema mas, principalmente, descrédito e abstenção dos que votaram em candidatos do sistema. Em alguma medida foi a estratégia de 2016, e vale lembrar que vitória em São Paulo de Dória Jr, em primeiro turno, teve quase 10% menos votos que Haddad em 2012, mesmo com base maior de eleitores.
Peça 8: Como ler as recentes pesquisas
As pesquisas que sinalizam crescimento de Bolsonaro e estagnação de Haddad podem ser manipuladas ou não. Pode, de fato, que a estratégia de forçar eleitores antipetistas a antecipar o voto útil já seja palpável; como é possível que os institutos tenham forçado a situação desejada, para criar o factoide e forçar uma profecia auto-realizável. Tão importante quanto é como a mídia adentrou no discurso de "possível vitória em primeiro turno", "empate no segundo turno", "líderes de rejeição", contribuindo para desestimular os votos nos demais candidatos: o discurso subliminar é de que "se não for agora, Bolsonaro ganha no segundo turno". Então, melhor nem perder tempo. Sem falar no discurso de que Bolsonaro ou Haddad são a mesma coisa, então tanto faz quanto tanto fez.
Peça 9: A reação do campo democrático e antifascista
Como disse, em seis oportunidades de golpe branco (sete, se contarmos o caso Procunsult de 1982), a Globo teve sucesso apenas em dois, e nos primórdios da nossa democracia, sendo que o de 1998 por omitir informação (da eminente quebra do país) que por forçar um factoide. A estratégia não é garantia de vitória, mas não se deve descuidar, e é preciso reação das forças democráticas, populares e antifascistas. Ainda espero uma postura à altura do momento por parte de Ciro. Como assinalou Luis Costa Pinto em seu Fakebook, esperamos que Ciro não siga os passos de Marina e destrua toda sua história de vida pública por ressentimento. A ver como se comportará no último debate. Porém, o principal para evitar a vitória fascista é a mobilização das pessoas comuns, mobilização de base, das mulheres que foram às ruas, e de todos aqueles que se dão conta do que significa a vitória de Bolsonaro. Partir para a conversa, na internet e no boca a boca, com parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, tentando convencê-los a votar em algum candidato que não o do PSL. Algo na linha "não se precipite, marque qual sua real opção no primeiro turno, para dar força a esse projeto político para negociar no novo governo, e no segundo turno, ouça com atenção as propostas do Bolsonaro, para ver se ele é mesmo uma opção viável". Para o voto de protesto, cabe campanha para Cabo Daciolo. A questão é: manter a mobilização, partir para o corpo a corpo, em busca de votos para quem quer que seja, que não Bolsonaro. O segundo turno é outra eleição, e Haddad é favorito, até pela precariedade do fascista.

03 de outubro de 2018

terça-feira, 17 de julho de 2018

Lula, o candidato antissistema [Eleições 2018]

Tenho dito em conversas que o capitalismo liberal (mesmo que sob a alcunha de neo) parece ter uma única solução na manga para as crises que ele próprio engendra: o fascismo. Falo isso sem acreditar em qualquer previsibilidade ou lei histórica, de que o futuro seria predizível, ou que a história acontece primeiro como tragédia e se repete como farsa: cem anos depois da experiência fascista, a resposta ao desalento neoliberal e à crise de 2008 segue pela mesma senda, Europa, EUA, nestes Tristes Trópicos e alhures. Precisa ser assim? Não, mas é a solução mais fácil ao capitalismo. Outra pergunta: quem são os personagens políticos (individuais, coletivos e coletivos "encarnados" em uma figura) capazes de fazer frente a esse zeitgeist do capitalismo de exceção ancorado no Estado totalitário? O que seria fazer frente a esse capitalismo de exceção e seus ferrenhos defensores? Mais liberalismo, como defendem os que ainda acham que a ascensão da extrema direita é apenas um lapso?
Em 2015, durante as prévias para a eleição presidencial do império decadente, enquanto no partido Republicado Bush era tido por moderado e varrido de cara por pré-candidatos de verve mais radical, e o azarão Trump já despontava como futuro candidato, com fortes chances de vitória, li análises que apontavam que o partido Democrata precisava escolher entre uma trabalhosa possível vitória da candidata do establishment e uma vitória quase certa de Bernie Sanders. Optou por Clinton, e Trump pôs fim a quase três décadas de revezamento entre duas famílias nos principais cargos do país. Seu discurso era antipolítico e antissistema, o extremo oposto de Clinton, imersa no fazer político estadunidense (que não deixa de ser antipolítico, a depender de como se encare o termo) e abertamente comprometida com o sistema. Sanders, por seu turno, pode ser visto como um meio termo: assumia o comprometimento político, ao mesmo tempo que era antissistema - inclusive ao propôr um aprofundamento político, com seus comitês que permaneceram ativos mesmo depois da campanha. Há algo muito de errado no mundo, e os resultados das eleições ao redor do globo sinalizam isso. Que saída escolher?
O Brasil não tem prévias ao estilo estadunidense: aqui o debate público entre pré-candidatos é substituído por balões de ensaio lançados na mídia e postos à prova em pesquisas de opinião. O que tem se visto em tais pesquisas, desde que ficou claro, para parte da população que de boa fé seguiu o pato golpista, de que Lula é um perseguido político por parte do sistema, são posições consolidadas. Lula disparado, Bolsonaro firme, Marina, Ciro e eventual outsider da vez com razoável percentual, Alckmin e demais candidatos do establishment passando vergonha.
Falei acima do zeitgeist, o espírito do tempo atual, e creio que ele ajuda a explicar tais posições. Ainda que não caiba simplesmente transferir a situação dos EUA para o Brasil, guardada as distâncias, há pontos em comum no contexto de ambas as eleições, e o discurso dos candidatos mais bem posicionados aqui acaba, sem querer, mimetizando muito do espírito de Trump e Sanders - Alckmin poderia ser visto como a versão tupiniquim de Clinton. Se lá se discutia a decadência do império, aqui se discute o que fazer diante da terra arrasada após o golpe, a perda da qualidade de vida ganha nos anos dourados do PT no Planalto. Lá, Wall Street vista como vilã, comprando políticos para favorecer sempre os mesmos; aqui, ainda que o vilão não seja dito por interdição da mídia - que tenta imputar aos políticos e à esquerda -, parece ficar cada dia mais forte a sensação de instituições sequestradas por uma elite financeira e burocrática que tem como interesse apenas a si própria - políticos são a face mais visível do descrédito, mas o judiciário corre para fazer companhia, como apontou Marcos Lisboa em sua coluna desta semana na Carta Capital. Se parte da população ainda crê em juízes e procuradores - a ponto de se falar em bancada da Lava Jato - parte também ainda crê em políticos. A disputa é pelos corações, almas e votos dos que perderam a crença - mas terão que comparecer às eleições, por força da lei.

Bolsonaro, apesar de político profissional e bem inserido no sistema, se apresenta como o candidato anti: antipolítico e antissistema. Se de fato nada tem fora do sistema dominante, peitar o que foi definido pela direita xucra como politicamente correto, sem medo da justiça, bancando o macho valentão basta para cativar muitos dos que estão "cansados de tudo o que está aí" - e vemos não apenas a falha de politização da população quando o PT esteve no poder federal, como um completo fracasso educacional, incapaz de formar pessoas que enxerguem o óbvio. Sua movimentação política é claramente inspirada em Trump - e para esse tipo de argumentação não me parece que o esquerdismo esclarecido e bem intencionado de um Duvivier tenha qualquer apelo, é convencer as paredes do quarto para dormir tranquilo. Seus eleitores não se pautam em argumentos racionais: o voto em Bolsonaro é um voto feito com as entranhas - com o fígado, com o cu do machão que coça diante de outro homem -, são contra não sabem o que, mas são contra, e não querem pensar - Bolsomito, que também não pensa, fala por mim. Três são os desafios do homem que se afirma detentor do maior pau do certame: manter a pose e reforçar a ideia de alguém que não foge à luta, ao mesmo tempo que não se expõe, não fala, não tem tempo de propaganda para falas cuidadosamente calculadas. Pretendia fugir dos debates e sabatinadas, mas teve que recuar, ao menos diz que irá aos debates, justo porque isso arranha seu principal "capital político", o de valentão; resta saber se a imprensa vai aceitar as regras que ele impuser, ou vai colocar limites à verborragia de ódio do capitão-terrorista - se ele puder falar o que quiser, pode até se sair bem nos debates, se for bem enquadrado, acaba no segundo debate. Ademais terá que aguentar ataque contínuo de todos os adversário, à esquerda, por razões óbvias, e à direita, por estar na mesma raia que PSDB e afins.
Alckmin, como disse, pode ser visto como a Clinton: alguém completamente inserido e aceito pelo sistema - político, econômico, judiciário. A exemplo do que houve em 2002, esta eleição dá sinais de que discurso de mudança, ruptura - e ordem - terá apelo. Um candidato "do bem" não apresenta as credenciais que os eleitores querem - eu não me surpreenderia se numa pesquisa qualitativa Alckmin fosse muito bem avaliado: suas qualidades não são as demandadas pelo momento. Possivelmente vai abusar no discurso da ordem e do apoio irrestrito da mídia. Curiosamente, soa quase um azarão para esta eleição.
Ciro e Marina tentam equilibrar seu discurso entre palatável ao sistema e antissistema ao mesmo tempo - Marina também tenta se pôr como antipolítica. Podem, sem querer, achar um ponto que os catapulte para o segundo turno - algum ponto do fígado dos eleitores desiludidos com Bolsonaro. Marina, correndo como outsider de centro-direita, deve ter menos apelo que Ciro - que corre como semi-outsider de centro-esquerda - entre eventuais desertores de Bolsonaro. Como dito de maneira um tanto infeliz por Ciro, Marina carece da pose de valentão que o momento pede - além de outros preconceitos que tiram votos seus entre os que ela flerta, o fato de ser mulher, negra, do norte. Ciro, é sabido, tem como grande adversário sua própria língua - mas o tom de coronel do sertão que muitas vezes adquire pode ser encarado como valor positivo neste momento. Conforme Luis Nassif, Ciro seria, caso Lula seja deveras alijado da disputa, o nome mais à esquerda capaz de governar.
A presença de Boulos e Manuela tende a elevar o nível dos debates e dar um mínimo alento de política ao pleito, são candidatos antissistema porém políticos - a questão é como desfazer em quarenta dias os anos de doutrinação ideológica (para usar termo que a direita tanto adora) da mídia satanizando movimentos sociais e de minorias. Suas candidaturas devem servir antes para pôr suas bandeiras em evidência, sem chances de vitória - salvo se forem ungidos por Lula -, por mais que sejam bem articulados e devam crescer. Inclusive, penso que uma vitória deles, por mais que sejam bem preparados e qualificados, seria uma vitória de Pirro: dada as correlações de forças atuais e das expectativas que engendrariam, não durariam um ano no Planalto.
E Lula, enfim, a peça em torno do qual se move todo o tabuleiro político, eleitoral, midiático, judiciário, golpista - ele pode ser visto como agnus dei de direitos sociais e um projeto de nação independente. Costuma-se dizer que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. As elites brasileiras, ao que tudo indica, tem se envenenado bastante - e não apenas de agrotóxicos que ela bebe no almoço. Não há como negar o caráter político de Lula - mesmo que durante seu governo tenha sido usado, conforme acusam muitos, para despolitizar a população. Seu tom conciliador - esse que despolitizou a população durante seu governo - tampouco pode ser encarado como antissistema. Ou poderia. Quando se tem uma percepção geral - da esquerda à direita, dos alienados aos ilustrados - de falência das instituições, do sistema, e uma busca de alguém que rompa "com tudo o que está aí", se possível mantendo as partes boas, positivas, pode-se preparar um discurso de "eu sou contra", como Bolsonaro, ou pode ser apresentado em atos, sem necessidades de palavras, como esse pária do sistema - é o que tem sido feito com Lula. Lula é o cara contra tudo o que está aí,  não porque ele afirme sê-lo, mas porque as instituições o dizem, diariamente, em atos. Com uma vantagem: se "sabe", por conta de seus oito anos à frente da nação (quando o Brasil ainda era algo como uma nação e não mera pátria de chuteiras e enxadas high-tech), que ele também traz ganhos. Daí ver muitas pessoas na internet (sem formação específica nem capacidade de compreensão da realidade, mesmo de si própria) defendendo uma chapa Lula-Bolsonaro [http://bit.ly/2uFJxXe]. A implacável perseguição ao líder petista, aliado à narrativa da mídia e aos resultados do golpe perpetrado por mídia, judiciário, endinheirados e políticos têm feito Lula falar dia sim, outro também, mesmo preso, incomunicável: Lula se torna cada dia mais a afirmação da política contra o sistema de privilégios - o que era para ser veneno ao petista se torna remédio, cura até as lembranças das debilidades do seu governo. (Parênteses: se os partidos de direita definham por errarem na dose do antipetismo, a esquerda e forças progressistas precisam estar atentos para ganhar a batalha narrativa, e conseguir enquadrar a mídia, esse quarto poder sem freios ou contrapesos). Para minha surpresa, parece que foi acertado seu se entregar à polícia, apesar do julgamento injusto - e isso não apenas num plano de "a história me absolverá", mas de eleições 2018 -, assim como é forçar sua candidatura até o judiciário assumir mais uma vez seu lado, o golpe, e o ônus à sua imagem. Se deixarem o homem concorrer, sua vitória não apenas parece líquida e certa, como tende a ser acachapante - o que lhe daria mais poder de pressão para reformas profundas (finalmente!) assim que assumisse o poder, desarticulando as forças golpistas. Força que seria ainda maior caso tivesse sido dado a devida atenção às eleições legislativas - esquecidas pela esquerda, como sempre.
A questão agora é quem seria seu vice/plano B, para caso sua candidatura seja registrada e depois cassada. Há três nomes principais sendo alentados: Fernando Haddad, Jacques Wagner e Celso Amorim. Quão inserido no sistema deve aparentar seu vice? Ainda cabe esse tipo de avaliação, ou esse vice seria apenas o cavalo de Tróia do projeto lulopetista de volta ao poder e desarticulação do golpe? Haddad me parece o nome mais "Clinton" e Amorim o mais "Sanders", por dar a impressão de estar não apenas fora dos conchavos do poder, mas acima deles - uma espécie de Eduardo Suplicy sem filhos chatos e ex-mulher traidora. De qualquer modo, independente de quem seja o vice-alçado a cabeça de chapa, será acusado de "petismo" e de ser de "esquerda" - nossa mídia já mostrou incapacidade de reflexão, para notar que essa tática não funciona para além dos 30% que não votarão no PT ou na esquerda de forma alguma -, com fortes chances de vencer. 
É por essa sinuca de bico que, creio, Bolsonaro não será cassado: acreditava nessa possibilidade - até o chamava de "boi de piranha" - por ser um candidato que não agrada ao sistema, com pendências na justiça, e a cassação de sua candidatura permitiria não apenas tirar do jogo alguém que está na frente do Alckmin como tentar passar a imagem de judiciário isento, imparcial: cassou um candidato da esquerda como cassou um da direita. Questão que muitos brasileiros não compreendem o que é esquerda e direita, e vão ver apenas como mais um arbítrio contra alguém que é contra o sistema - e esses votos não devem ir para o PSDB, MDB ou partidos desse espectro.
Para encerrar esta análise de momento, duas observações gerais: da consumação do golpe até abril eu tinha seríssimas dúvidas sobre a realização das eleições. A derrota quase certa dos golpistas e o (des)arranjo institucional me faziam crer no seu adiamento - com qualquer desculpa esfarrapada por conta da intervenção militar no Rio de Janeiro -, ou na mudança do regime para semi-presidencialismo ou qualquer gambiarra mal feita. Creio ser graças a Donald Trump que nossas eleições devem ocorrer - a se conferir se sem grandes fraudes, se de repente Alckmin não dispara sem motivo nas pesquisas de opinião de institutos enviesados e acaba por vencer até mesmo o Lula: ao recusar a entrada do Brasil na OCDE, por falta de respaldo democrático, deixou claro que tipo de relação o Brasil teria caso insistisse na senda golpista (orquestrada pelos democratas ligados a Clinton e ao establishment estadunidense?), e acabou com qualquer clima para uma nova etapa no golpe, ao menos tão descarada.
Estamos aqui, desde sempre, discutindo eleições executivas, tratando as legislativas como perfumaria. O golpe parece não ter nos ensinado da importância de deputados e senadores - que seja das suas funções negativas. É urgente começar campanha de rua, de internet, de Fakebook, boca a boca, whatsapp a whatsapp, para candidatos progressistas ao congresso nacional, senado federal e assembleias estaduais. Se for eleito um congresso como o atual, e se o próximo presidente for do campo progressista, dificilmente conseguirá fazer muita coisa - que seja desfazer as absurdidades golpistas. Vai depender de ser um líder carismático com forte apoio popular, alguém com prática em negociações espúrias para compactuar com as raposas legislativas, ou vai ser derrubado em pouco tempo - na falta de crime de responsabilidade vale até acusação de não ter dado a descarga, é só pro-forma mesmo. Penso que a campanha para legislativo não deva ser uma semana, dois dias antes das eleições postar uma foto e declarar voto, mas desde o início, todos os dias, anunciar candidatos ao qual cabe conhecer melhor e votar.
Por fim, ainda me soa absurdo estar escrevendo isso como se estivéssemos numa democracia minimamente séria. Mas é preciso forçar: ou uma reforma que permita uma democracia de fato, ou mídia, judiciário, donos da grana, políticos, militares assumem de vez o golpe e o escancaram para o mundo.

17 de julho de 2018

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Retrato de momento para 2018 (se houver eleições)

Capas da Veja, da Isto É, da Isto É Dinheiro, entrevista na TV Bandeirantes: a direita do atraso dá mostras de agir coordenadamente com vistas a 2018, tanto no plano partidário quanto midiático - ainda chamado de jornalístico, quando na verdade é mera agencia de publicidade oficiosa de interesses razoavelmente bem definidos e pouco falados.
Em tese é um tanto cedo tentar traçar um cenário para 2018, ainda mais quando nem se sabe haverá eleições e em que condições elas acontecerão - se terão relevância maior ou menor para o país -, contudo, mesmo assim, parece importante mapear estratégias - da esquerda e da direita.
Começo pelo campo mais bem organizado, a direita.
Há mostras de medo da possibilidade de Lula vir a concorrer, sem ser impedido pela justiça. Certamente esse medo vem não pela questão da justeza da justiça, que isso ninguém mais tem dúvidas, mas por possível cálculo político desta, e notar que barrar Lula seria jogar o país em um estado de confronto social que exigira a presença do exército - o que implicaria em pôr o judiciário em segundo plano, fazendo com que a casta perdesse muito do poder político que hoje possui. A questão que permeia o judiciário, ao que tudo indica, é se é melhor um presidente do qual não gosta mas está acuado e tentando reagir, ou um "presidente" mais afim aos seus propósitos que, pelo argumento das baionetas, vai enquadrar o judiciário.
Enquanto o judiciário não se decide, resta tentar desqualificar Lula - mais um pouco. Isto É ataca mais genericamente, anuncia que "começa a cedo a campanha da mentira" (certamente quem lê essa revista não vai notar que a campanha da mentira está a galope desde 2014, pelo menos), pondo no seu site Lula, Ciro, Bolsonaro e Marina (ela ainda está viva?). Bola levantada para, na mesma semana, Veja ("A política que assusta") e de Isto É Dinheiro ("Eles assustam o mercado") chutarem. Ambas tentam criar uma polarização não mais entre PT e PSDB, como de 1994 até 2014, mas entre Bolsonaro e Lula, com um sendo o antípoda exato do outro - dois extremistas, um de direita, outro de esquerda. Vamos assim descobrindo que a função atribuída pelos donos do poder a Bolsonaro é a de boi de piranha - função cumprida por Russomano nas últimas duas eleições de São Paulo. A questão é se vão conseguir pôr o monstro de volta na caixa, uma vez Bolsonaro não é um apresentador televisivo com discurso genérico, e as ideias que defende começam a ecoar na sociedade e nos grandes partidos - Doria Júnior que o diga.
Bolsonaro tenta se gabaritar como político sério, o que é muito difícil de conseguir. É político de discurso de extrema-direita belicista, sem qualquer proposta legislativa ou sucesso de vida para mostrar e sem qualquer estofo para discutir questões nacionais. Ganha destaque em certos estratos sociais mais altos, por se pintar como anti-político, por "dizer o que pensa" (como se pensasse), porém, já disse alhures, sua verve belicista não me parece encaixar no ethos da maioria tupiniquim, seu patriotismo se encerra na caça ao inimigo interno, e sua tentativa de formar uma equipe econômica o leva para se tornar uma espécie de Doria Júnior Troglodita e fracassado, um PSDB Jr. Talvez a grande validade da sua candidatura seja cacifar-se para barganhas futuras.
Por falar no João Trabalhador que usa o cargo de prefeito (prefake) para se promover, este claramente recua da estratégia adotada desde a eleição do ano passado. Portas fechadas no DEM e sem ânimo para arriscar no Novo, se adequa ao novo figurino PSDB-Mídia. Ademais, deve ter sido avisado pelo seu pessoal de marketing que sua administração (que ele chama de gestão) catastrófica à frente de São Paulo vai desqualificando-o para qualquer novo vôo político, e que na disputa pelo coração anti-petista como o mais bronco, machão e valentão da boca para fora, o almofadinha que joga flores no chão não é páreo para o ex-militar que faz flexão de pescoço [https://youtu.be/4RSs-6XeIrI]. Para anunciar sua nova fantasia, duas horas de publicidade travestida de entrevista na TV Bandeirantes, onde ele reafirma o mito de PSDB de centro, põe a si como alguém cordato e de centro, e se vangloria de sua humildade em aceitar ser vice de Alckmin.
Nessa briga de raposas, a velha raposa Alckmin parece estar mostrando ao seu pupilo que a coisa é menos simplória do que o "self-made man com dinheiro do papai e do erário público" e seus marqueteiros imaginavam. O bom moço da Opus Dei e da pena de morte extra-judicial autorizada para seus subordinados ("quem não reagiu está vivo"), começa a tentar se situar mais à esquerda do seu partido, como a provar seu centro, de equidade diante dos extremos (Lula e Bolsonaro), e participou recentemente de evento de corrente de esquerda do PSDB (?). Não dá para acreditar que seja algo além de estratégia de marketing, porém o gesto não deixa de ser importante para o momento atual de florescência neofascista. Se esse caminho de moderação fortalece Bolsonaro por um lado, por outro o isola ainda mais e ajuda a romper com a radicalização plantada pela mídia até agora. Em afinidade com essa mídia, a construção do bom moço firme de centro pode garanti-lo como nome da direita, sem espaço para aventureiros (pretendo escrever mais sobre esse movimento de Alckmin em outra análise).
Outro que ameaça despontar, parece estar apenas aguardando o melhor momento, é Luciano Huck, pelo DEM. Esse melhor momento deve ser o mais próximo possível das eleições: quanto menos se expuser enquanto candidato, menos chance de ser "desconstruído". Ventila seu nome vez ou outra, mas não sai em campanha. Ao mesmo tempo que é sua inspiração, Doria Júnior pode ser o seu calcanhar de Aquiles: se se forçar uma similitude entre os dois apresentadores, os resultados do João Trabalhador à frente da prefeitura podem desmerecer o novo não-político na disputa. Por seu lado, diferentemente do discurso de gestor, self-made man de sucesso, tecnocrata, Huck pode vir com discurso mais família: o bom pai de família, carinhoso e atencioso (sic) com a mulher e os filhos, ao mesmo tempo alguém que conhece os problemas do povo mais simples, nos seus anos e anos de quadros com assistencialismo hipócrita em seus programas, ou seja, alguém que sabe ser carinhoso e compreensivo, que gosta de ajudar a todos, e, quando preciso, sabe ser duro e firme para evitar que o filho se perca em seu caminho.
Marina Silva perdeu completamente o tempo político. Queimou pontes com eleitorado progressista ao apoiar Aécio "Um que a gente mata antes da delação" Neves em 2014 e ao se ausentar das grandes questões ambientais desde então. Na verdade, ao se ausentar de praticamente toda questão desde então - e quando apareceu foi discretamente, para ficar em cima do muro, queimando também as pontes com a direita. Agradava a um eleitorado reacionário que gostava de posar de prafrentex porque compartilhava denúncias de desmatamento na floresta amazônica (ao mesmo tempo que aplaudia e apoiava o agronegócio), porém é pouco para uma candidata à presidência. Talvez ainda imagine que possa ser alçada à condição de grande líder do centro, na falta de nome melhor, mas há muitos nomes para a vaga, e uma mulher negra do norte nunca será a opção preferencial das elites brasileiras.
Não me parece que Henrique Meirelles, Rodrigo Maia ou algum nome do PMDB sejam atores relevantes na ribalta - o são, sem dúvida, nos bastidores, e não será surpreendente se embarcarem em um candidatura de direita e, diante de uma vitória evidente de Lula, trocarem de lado no meio do processo eleitoral.
No espectro da direita, da reação, a estratégia está mais ou menos traçada, até para o caso mais terrificante (Lula poder disputar a eleição; na ausência desse, imaginam que vencerão fácil, pelas urnas ou pelos coturnos), no campo progressista e/ou de esquerda, os cenários e estratégias estão ainda sendo rascunhados, aparentemente com desorganização e velhas falhas, com o narcisismo das pequenas diferenças aflorando com vigor.
Lula, Ciro, Manuela D'Ávila (PCdoB), e Psol (por ora com Boulos) são os nomes ventilados neste campo. As discussões internas ao espectro já começaram: traição, favorecimento das direitas, necessidade de candidatura única - conversa muito similar à eleição de São Paulo, quando Erundina decidiu disputar a prefeitura. Vale lembrar que nesse caso, não fosse Erundina e seria bem provável que a vitória de Doria Júnior no primeiro turno seria ainda mais acachapante. Falta à esquerda entender que primeiro turno é momento de todos apresentarem suas ideias. O grande ponto é evitar o que Erundina fez ao menos em um debate de 2016: bater na própria esquerda. Candidatos próprios, com propostas independentes, mas o compromisso de cerrar fileiras contra a direita e os golpistas, denunciando os retrocessos sociais aprovados por Temer, PMDB, PSDB e demais, evitando ao máximo críticas dentro do espectro - por mais que sejam críticas pertinentes e em grande medida necessárias -, deveria ser esse o compromisso dos candidatos deste campo.
Muitos dizem que essa fragmentação das esquerdas, em especial com a possibilidade de candidatura própria do PCdoB como decadência do PT, perda de seu poderio. Não é o que demonstram pesquisas. Apesar de todo o ataque, Lula segue com um terço do eleitorado, e o PT ainda é o partido mais admirado. É de acreditar, contudo, que muitas pessoas fiquem em silêncio diante de toda essa campanha de massacre midiático, mas votem no partido que trouxe grande melhoria na sua qualidade de vida - um voto racional. À pecha de corrupto, haveria a alegação de que todos são, mas o PT faz; ou mesmo o descrédito de todas essas denúncias - uma mentira repetida um milhão de vezes se torna uma verdade, dizia Goebbels, mas é preciso saber mentir com propriedade, ou o efeito pode ser o oposto. Ainda sobre a tal decadência, vale lembrar que o PT nunca foi unanimidade - nem mesmo no próprio partido, havia correntes contrárias aos rumos do partido -, e apesar de talvez ter perdido a hegemonia no campo da esquerda, o PT segue como principal força.
PT como principal força, e Lula como principal candidato. Além do risco da condenação em segunda instância, o judiciário já deu mostras de querer podá-lo por outros caminhos se for necessário - como a acusação no TSE de campanha antecipada, por conta da sua caravana. Se não o condenarem, a campanha mal feita para torná-lo a encarnação do mal irá levá-lo à presidência - salvo algum outro golpe muito baixo, o que não deve ser descartado. O PT diz não trabalhar com plano b, porém é evidente que Haddad figura como alternativa natural - e, contrariamente a Dilma, um quadro politicamente capacitado. Faz caravana com Lula e dá entrevistas - se não for para presidente, é nome forte para o governo de São Paulo, sem nenhum grande nome até agora, visto que Doria Júnior seria um dos nomes, mas resta saber se vai conseguir reverter a deterioração de sua imagem.
Ciro Gomes (PDT) costuma ser posto no campo progressista. Tenho várias reticências quanto a isso, mas diante do quadro atual do Brasil, sim, ele é do campo progressista. Ciro é um candidato que perdeu seu momento. Se conseguir deslanchar, não precisará de nenhuma nova frase infeliz: as que possui já são suficientes para fazer com que naufrague, como em 2002, quando sua frase infeliz sobre o papel de sua esposa nas eleições custou-lhe não apenas a liderança nas pesquisas como a participação no segundo turno. Para 2018, já soltou a frase infeliz sobre o momento testosterona e Marina - convenientemente descontextualizada e manipulada à esquerda e à direita -, e novas devem vir, se deixarem ele falar. Teve sua segunda chance em 2006: se se anunciasse como um voto crítico à esquerda ao governo Lula, poderia ter se gabaritado para 2010. Manteve-se leal ao líder, e agora tenta se descolar de um modo até raivoso. Pelo momento atual, novembro de 2017, não entra em 2018 para vencer. Na verdade, fora do PT ainda não apareceu nome algum cuja vitória na eleição (se houver) seja factível.
A exemplo de todas as outras eleições, o Psol deve lançar candidatura própria. Desde sua criação é  bastante claro a quem quiser ver com alguma imparcialidade que o Psol é uma dissidência intelectual-acadêmica do PT, um PT sem base social. Promete começar a mudar essa escrita - finalmente - em 2018, ao aventar o nome de Guilherme Boulos, do MTST, como candidato. Com remotas chances por enquanto, sua presença seria um grande ganho para o debate, dado seu histórico de militância e sua sólida formação intelectual, ao trazer um líder de um movimento popular em plena efervescência para o centro do debate eleitoral.
O PCdoB, surpreendendo a muitos, pretende lançar a deputada gaúcha Manuela D'Ávila. Outro nome que deve enriquecer o debate - desde que saiba quem atacar, e não tente disputar eleitorado na base de desqualificação de quem está mais próximo. Gilberto Marigoni, do Psol, louvou a pré-candidatura, chamou de "desprendimento grandioso" a troca de uma eleição certa para a câmara dos deputados por uma candidatura com remotíssimas chances - diz o professor acadêmico que essa troca é importante para discutir projetos de país. Ouso discordar de Maringoni. Por mais que a política brasileira seja altamente personalista, é de se questionar se precisamos aceitar esse padrão. Convém lembrar que a eleição de Collor ao senado, em 2006, pode ser creditada na conta do Psol e de Heloísa Helena, mesmo que indiretamente; e se se trata de discutir projetos de país, é de se imaginar que o PCdoB possua um projeto para além de quem seja o candidato. 
Esse desdém para com o legislativo (e, consequentemente, com as eleições para deputado e senador) mostra o quanto a esquerda ainda patina em estratégia para 2018 (caso haja eleições). Vencer a majoritária e acabar refém de um novo Eduardo Cunha e de uma câmara reacionária como a atual será uma vitória de Pirro - a história recente do país deveria ter nos ensinado, porém ignoramos. Enquanto a direita trabalha também candidatos para o legislativo, com MBL, ou o tal do "Fundo Cívico" de Huck, Diniz e Guanaes, a esquerda abdica de nomes capazes de trazer votos - e coerentes com as bandeiras progressistas: alguém do naipe de um André Sanchez (que recentemente propôs a cobrança de mensalidade no ensino público), é um desserviço que se presta ao país (neste caso, o PT, mas Psol, PCdoB, PDT não deixam nada a desejar nesse quesito) -, em nome de campanhas propositivas e com poucas chances de vitória. Diante de todos os retrocessos sociais vividos desde o golpe, a esquerda não pode se dar ao luxo beletrista de promover o debate em detrimento de vitórias efetivas - até porque o debate pode ser conduzida por outra pessoa, sendo o próprio Maringoni um exemplo de ilustre desconhecido que disputou eleição majoritária.
Como disse, trata-se de um panorama do que se projeta a partir de um momento bem específico: novembro de 2017, e uma nova estratégia da direita e da mídia para o PSDB. Até a eleição, cabe antes garantir que ela acontecerá, e acontecerá sem um golpe judiciário - ou seja, que fique apenas suscetível a um golpe midiático branco, a exemplo de 1989, 1998, e do que se tentou em 2002, 2006, 2010, 2014. E além de pensar em disputa institucional, é preciso encontrar modos de ampliar a mobilização popular, na tentativa de evitar maiores retrocessos e engajar as pessoas nas eleições, ou mesmo na sua defesa. Se parte da esquerda permanecer deitada em berço esplêndido esperando a eleição chegar, quando se der conta, mesmo que ganhar a presidência, não vai ter muito mais a fazer que administrar o caos e os cacos de um resto de país.

09 de novembro de 2017

quarta-feira, 29 de março de 2017

A barbárie Doriana contra a cultura de SP

Dia 27 de março estive no início do protesto da classe artística paulistana, em frente o Teatro Municipal de São Paulo. Protestavam contra o corte absurdo de verbas da cultura (apesar dos R$ 6 bilhões em caixa deixados pelo Haddad), da interrupção dos programas se introdução e estímulo artístico a crianças e jovens, o PIÁ e o Vocacional, e ao atropelo da lei ao alterar o edital de fomento à dança, um verdadeiro descalabro (para usar o termo que a mídia publicitária adora) com a cultura paulistana em meros três meses, perpetrado pelo grileiro de terras gourmet, lobbysta e garoto propaganda full-time, João Doria Júnior, e seu secretário de cultura, o dono de cinema que vive às custas do Estado (o Cine Caixa Belas Artes, R$ 40 reais pra entrar), André Sturm.
Um primeiro ponto que chama a atenção nesse imbróglio é a forma como o tucano se apoderou da máquina pública: motivado pelo golpe de 2016, que implementou uma ditadura no Brasil que queremos crer provisória; por uma imprensa que atua como agência de propaganda, e por uma concepção de que vencedor de eleição ganha carta branca para fazer o que bem entender, à revelia da população, Doria Jr age como se fosse o dono da prefeitura, e não seu ocupante, e sendo boss, espera de todos - funcionários e população - a aceitação passiva e submissa de suas ordens. O gestor que não é político mas vive da política tem sofrido em descobrir que política não se faz só nos conchavos partidários, e sim no dia a dia.
No protesto, o que me saltou aos olhos foi o discurso proferido pelas grades e policiais que cercaram o Teatro Municipal, para proteger o patrimônio artístico dos artistas.
Há primeiro um discurso de provocação: os sete mil artistas presentes no ato não são "artistas de verdade", que mereçam acesso ao mais tradicional teatro da cidade. Em mais de uma situação Doria Jr deixou claro que arte, para ele, não pode trazer qualquer contestação a sua figura ou dos seus companheiros: isso seria propaganda política, petismo, isto é, crime - a mesma lógica seguida por Sérgio Moro para definir o que é jornalista, o que é notícia, o que panfleto partidário petista, portanto, criminoso. Uma cidade que barra o teatro aos seus próprios artistas é uma cidade que abdicou da arte em favor da propaganda (e não é de se surpreender se em breve não abrirá suas bibliotecas para a queima de livros de autores degenerados/petistas/esquerdistas).
O segundo discurso é para o público exterior, aquele que nunca freqüenta o Municipal ou qualquer teatro, porque não se acha inteligente o suficiente (disfarçado sob o argumento de que teatro é chato), ou porque não tem dinheiro, ou por se sentir inibido de frequentar um lugar onde só há negros e periféricos como serviçais. Nesse discurso, Doria Jr tenta reforçar seu mantra de ódio e violência, ao insistir na retórica do medo do "caos": os artistas, esses esquerdistas que mamam na teta do Estado em troca de ações gratuitas na periferia, são perigosos, são violentos, são "fascistas" (como disse o próprio Sturm, indignado de não ser obedecido bovinamente, como fazem seus funcionários temerosos de perder o emprego), e estão dispostos a destruir o patrimônio público se o prefeito e a polícia não intervierem.
Doria acha que por ter a grande imprensa publicitária fechada com ele, pode tratorar autoritariamente as leis e a sociedade civil. Não percebe que o fôlego da pós-verdade que o elegeu lentamente se esvai - como comprovaram as manifestações de 26 de março dos seus partidários, que juntaram, em São Paulo, menos gente que o samba de Santa Cecília ou do Bixiga. Ao mexer com a classe artística e classe média, o grileiro de terras gourmet queima pontes do seu partido com setores importantes da sociedade, e ingenuamente crê ser capaz de domesticar ou aniquilar a arte - pois ele sabe do seu perigo, como comentei em minha última crônica.
A falta de tato do prefeito conseguiu a proeza de unir uma classe afeita a disputas mil em torno de picuinhas mínimas (motivadas, não raro, por egos máximos). A questão é se a classe artística conseguirá manter a mobilização e angariar apoio da população, e se, a partir disso, é capaz de ir além de uma postura reativa e conseguir se impôr e impôr avanços na forma como a arte e a cultura são tratados pelo Estado e pela "opinião pública" (leia-se Grande Imprensa publicitária). Vivemos tempos sombrios, mas a mobilização dos artistas de São Paulo dá alguma esperança de não apenas reverter a marcha em curso do nazi-fascista tupiniquim (o "finanfascismo" do século XXI) no curto prazo, como trazer avanços democráticos no médio prazo.

29 de março de 2017
PS: ainda não entendo o porquê de não haver um movimento de boicote ao estabelecimento do senhor Sturrm, ou ao menos panfletagem intensiva na porta do seu cinema. Esses gestores que não são políticos (ainda que lucrem muito com a política) costumam se condoer de qualquer causa quando lhes cutucam o bolso.


terça-feira, 21 de junho de 2016

O Calibre - Paralamas do Sucesso [Vídeo]

Leio na internet notícias da nossa civilização que muito avançará se um dia chegar à fineza de um Hamurabi [http://nao.usem.xyz/883c]. Penso em escrever algo sobre. Me questiono: para quê? Quem aplaude execução não vai ler um texto meu e, caso leia, não conseguirá compreendê-lo (espero que não consiga, ou a situação é mais grave ainda). Admito: em parte eles têm razão, não houve excesso ou abuso da polícia militar, uma vez que nestes Tristes Trópicos, cada vez mais, a lei é letra morta diante da palavra do chefe, e o Slobodan Milošević bandeirante (que emplacou seu Karadžić no governo golpista de Temer, por sinal) já anunciou que a polícia do estado, transformada em milícia partidária, está autorizada a execuções sumárias de todo suspeito que reagir (por reação, entenda qualquer coisa, de levantar os braços a sacar um celular. Em geral quem reage é preto pobre e periférico, mas acontece de às vezes ser publicitário branco, mas tudo bem, são efeitos colaterais da ordem e do progresso).
Enfim, ao invés de escrever clichês, preferi fazer um vídeo clichê em "homenagem" à nossa polícia militar, que tantos assassinatos comete em nosso nome.



sexta-feira, 15 de abril de 2016

O que o Brasil tem ganho com o golpe em curso [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Independente de quem vença a votação de domingo sobre o golpe em curso, pode-se dizer que de alguma forma quem ganha é o Brasil. Uma vitória de Pirro, mas necessária para boa parte da população. Nosso Estado Democrático de Direito não é nem nunca foi de direito, sequer democrático; a cordialidade brasileira não resiste à primeira contraposição, nossa burguesia defensora dos ideais liberais não se sustenta sem Estado e os movimentos sociais voltam a se dar conta de que ou se mexem, ou perdem as migalhas que conquistaram com a Constituição de 1988. Dar-se conta disso pode ser de suma importância para os próximos anos. A questão é: parte da população, os ocupantes dos andares de cima, detentores de títulos pelas melhores universidades e cargos nos meandros do Estado, com alguma possibilidade de voz, estão dispostos a assumir nosso (meu, seu, deles, nosso) fracasso? Tenho minhas dúvidas, principalmente em caso de derrota do golpe - e não falo dos 10% de fascistas e 10% de ingênuos manipuláveis, falo dos que têm se posicionado em defesa da democracia.
Há uma série de falsas idéias que se utilizam e mostram o quão não estão enxergando a situação do país - e mesmo o quanto desconhecem princípios democráticos. Uma das mais correntes é que o impeachment desrespeitaria o voto de 54 milhões de brasileiros. Nada mais falso: o impeachment é um desrespeito ao voto de 105 milhões de brasileiros! Afinal, a democracia não é para quem vence, é para todos. Ok, podemos descontar uns 20% de eleitores do Aécio, declaradamente golpistas e saudosos do pau-de-arara (para os outros, claro), ainda assim, são 84 milhões de eleitores! Falar que o desrespeito é apenas aos eleitores de Dilma é da mesma pobreza que dizer que "a culpa não é minha, eu votei no Aécio": a culpa é de todos - inclusive dos que se abstêm de votar, num gesto inócuo de não legitimar nosso sistema falido, como este escriba, que se orgulha de nunca ter comparecido à farsa da democracia brasileira -, a responsabilidade pelos políticos eleitos é de absolutamente todos, e se é legítimo se opôr ao executivo de turno em matérias que sentem seriam lesivas aos seus interesses - tanto particulares quanto interesses de uma sociedade melhor para todos -, simplesmente impossibilitar o executivo democraticamente eleito de governar é uma temeridade (com o perdão do trocadilho) para com o país - como temos visto na atual crise econômica, em quem paga o pato, claro, são os mais pobres, que agora são chamados também a pagar o foie-gras dos patrões.
Outro equívoco é o #NãoVaiTerGolpe. O golpe está em curso faz mais de um mês, capenga por conta da sagacidade-ainda-que-tardia de Lula, ao voltar ao executivo para articular o governo de sua sucessora e se pôr à disposição de uma justiça minimamente imparcial e justa (excluído Gilmar Mendes) e não de um justiceiro de província. Na avenida Paulista, o robô dos Changerman transmutado em pato de borracha plagiado é a versão pós-moderna do Cavalo de Tróia, com as portas da cidade abertas pelo vice-presidente (o mesmo que negociou lei retroativa em favor de FHC em troca de sua eleição para a presidência da Câmara, um homem probo, que age pelos interesses do país). No pato de Tróia do Skaf, o golpe ao nosso precário estado social - em parte já encabeçado por Dilma. O que estamos tentando evitar é o golpe de se consumar: #EstáTendoGolpe #NãoVaiVingar, seria o mais preciso em se falar.
Para não me alongar, trato apenas de mais uma falácia dos democratas legalistas (grupo que tem meu total apoio, apesar destas críticas, deixo claro): dizer que defendem a democracia é demonstração de miopia grave. O que estamos defendendo é possibilidade de democracia - política e social. Eleições formais a cada quatro anos não implicam em uma democracia, querem dizer apenas que há uma farsa a cada quatro anos. No caso brasileiro, como temos visto, não conseguindo se valer de golpes brancos nas últimas quatro eleições, como em 1989, 1994 e 1998, nosso sistema político-econômico simplesmente atropela a Constituição, as urnas e a vontade popular (que, posto em aporia, preferiu votar em Dilma). Que democracia é essa em que o vencedor é dado de antemão, sob o risco de não ter a eleição validada, ou melhor, de não ter o governo eleito autorizado a governar? Convém recordar que em 2002, para poder assumir e governar, Lula já havia capitulado a esse mesmo setor que em 2014 rejeitou a capitulação humilhante de Dilma.
Exemplifico meus questionamentos sem sair do ninho tucano, São Paulo: que democracia é essa que só um lado tem direito a protestar? Que moralidade e eficiência é essa de um governador que rouba mas não faz e não tem problema alguma nisso? Que Estado de Direito é esse em que a Polícia Militar é transformada em milícia do governador, atacando movimentos sociais, invadindo sedes de sindicatos e torcidas organizadas que se mobilizam contra o golpe, que prende pré-adolescentes que reivindicam direitos constitucionais como educação, que bate e planta provas contra jovens que reivindicam o direito à cidade, que protege um pato de borracha e é linha de frente de manifestantes pró-golpe, como se viu na PUC-SP? Pior: que Estado de Direito é esse em que o governador do Estado legitima execuções sumárias extra-judiciais por parte de seus subordinados (isso depois de ter nos anais do Estado uma chacina covarde de 111 pessoas indefesas em uma tarde)? Diante de Alckmin e Alexandre de Moraes, delegado Fleury seria um reles amador. Como diz muitas letras de rap: quer intervenção militar? Vai morar na favela.

Respondo: esse é o Estado Democrático de Direito que vale para a maioria da população: seu voto é uma farsa, suas reivindicações são baderna, suas organizações são criminosas e terroristas, suas vidas, totalmente descartáveis. O que o golpe em curso mostra a nós, classe média branca e titulada, é que vivemos na Terra do Nunca: ainda que não ignorantes, não nos demos conta da real profundidade do Brasil da maioria da população, da precariedade de nosso Estado, de nossa sociedade, de nossa sociabilidade. Também nos sinaliza para aonde devemos rumar: sem uma reforma urgente dos meios de comunicação, seguida de reforma política e de aprofundamento da democracia, o que teremos serão eleições formais a cada quatro anos para decidir quem vai fingir que governa o país. Enquanto isso, os donos do pato riem e lucram.

15 de março de 2016.

O Batman (e não o Robin Hood) junto ao Skaf é simbólico.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Breve pausa para novo ataque golpista [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

O refluxo golpista desta semana, antes de comemoração inspira atenção. Não que seja uma retirada planejada - parece antes que foram realmente surpreendidos e tiveram que recuar momentaneamente -, mas certamente algo planejam, pois a aposta que fizeram foi alta demais e é difícil - se não impossível - voltar atrás.
Insisto na minha tese de que a entrada de Lula no governo, ainda que passado o momento ideal, foi um contra-golpe genial num golpe que já era considerado como certo por tucanos e marinhos [http://j.mp/cG160316]. Noto pela cobertura da imprensa internacional: até a entrada de Lula no governo, a narrativa estrangeira seguia muito próxima da linha da Grande Imprensa brasileira, tratando a crise brasileira como uma conjunção de crise econômica com crise política causada por um escândalo de corrupção. Desde a semana passada a imprensa internacional vem se descolando da narrativa golpista e buscado entender melhor o que se passa. Ainda falam da crise financeira e da Petrobrás - elas existem, a despeito de qual seja a causa -, porém não tardam a notar que há um quarto poder extra-legal e extra-constitucional no Brasil, que derrotado na vitória tida como certa em 2014, decidiu fazer valer sua vontade, democraticamente apresentada ao país em horário nobre. A desfaçatez é grande demais, a ponto de muitas vezes virar piada: na linha sucessória de uma presidenta chamada de corrupta apesar de não ter nenhuma acusação contra si, notórios corruptos; na oposição, o partido que criou as práticas perpetuadas pelo PT e seus satélites extremistas e limpos como a água do rio Tietê depois de vinte anos e mais de um bilhão de dólares em despoluição. Em tom de sarcasmo ou de denúncia, ficou difícil justificar o golpe ao mundo "civilizado", ou mesmo aos nossos vizinhos argentinos. No plano interno, o PMDB segue discutindo o novo governo, como forma de abastecer o noticiário de fofocas, e tucanos já até prepararam uma festa de inauguração do Novo Governo em Portugal, num pretenso congresso de direito. As ameaças de Temer e Cunha já não causam o mesmo frisson de quinze dias atrás - Lula articula com os principais caciques da sigla, e o silêncio destes tem sido suficiente para não permitir sorrisos largos de Bonner e congêneres na cobertura da crise política. Dilma, por seu turno, saiu finalmente para o combate, e denuncia dia sim, outro também, o golpe em curso, tentando acuar os golpistas. Entretanto, o principal trunfo no plano interno do contra-golpe foi a força demonstrada nas manifestações contra o golpe e pela democracia organizada pelo PT, dia 18: ali ficou claro aos golpistas que haveria enfrentamento sério, e por mais que eles queiram dizer que mobilizaram mais pessoas no domingo, sentiram no moral o desmoronar da crença global de que eram praticamente unânimes.
O alerta de que vêm mais golpe baixo por me despertou uma mensagem no Fakebook de Eduardo Kawamura, que desconheço quem é e o que faz:
"Spoiler: O novo governo já está planejado. Ele até será defendido em Portugal no final de março (aliás, com o nosso dinheiro). Há quem tenha ficado feliz com os editoriais dos grandes jornais afirmando o caráter 'perigoso' da atuação do Moro para o estado democrático de direito. É apenas a terraplanagem do golpe. O governo Dilma cai, a Lava Jato será duramente questionada pela imprensa, a Lava Jato acaba... Ninguém contava, porém, que alguém iria divulgar a lista da Odebrecht que inclui TODO o 'Novo governo'. A imprensa terá muito trabalho para fazer a lista desaparecer da memória dos brasileiros (ou não)."
Realmente faz muito sentido: as manifestações de domingo, dia 13, seriam a comprovação da vontade popular de fim do ciclo petista - e praticamente do PT - e a volta dos homens direitos e probos e da meritocracia (ganha mais quem pode mais). O juiz/justiceiro/jagunço Moro já havia alcançado seu objetivo e era hora de fingir distanciamento e denunciar exageros pouco antes do golpe, para quando consumado, dar um fim a qualquer perigo a quem não fosse petista, e atestar que não era de ocasião a crítica à Lava Jato. As ruas dia 18 contradisseram os donos da voz, Odebrecht denunciou mais do que a Lava Jato queria saber (ainda não se sabe se as doações são legais ou ilegais, vale ressaltar), o vazamento seletivo vazou errado, Janot deu uma prensa em seus subordinados e Teori Zavascki decidiu pôr um freio ao coronel Gilmar Mendes (eu ainda me pergunto o que falta para tirar esse criminoso do STF e julgá-lo como ele merece) e seu pupilo paranaense. O pior para os golpistas não é isso: como disse, a aposta na queda de Dilma foi alta, e está difícil dar o passo atrás: a manutenção da ordem democrática pode significar não o fim do PT, mas o fim do PSDB (com possível crescimento de uma extrema-direita puro sangue, como o PSC); o corte de vez de verba federal para a imprensa que tentou derrubar Dilma (a tentativa da presidenta, ao assumir, de fazer as pazes com essa imprensa através de publicidade oficial merecia ser destacado ao fim desse imbróglio todo), além do acirramento de cobranças pela cassação da concessão pública da rede Globo.
PSDB, coronel Mendes, Rede Globo e demais patrocinadores do golpe têm muito a perder com a manutenção da democracia e não vão, portanto, se entregar tão fácil. Não consigo imaginar os próximos passos, gostaria de estar errado, mas penso que logo vem mais chumbo grosso contra o PT, a esquerda e a democracia.


25 de março de 2016.


segunda-feira, 21 de março de 2016

Esperando o primeiro cadáver [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Eu bem gostaria de dizer que os próceres do golpe encenam uma peça de teatro do absurdo, mas seu irrealismo ganha realidade no moderno aparato espetacular: a realidade material é secundária diante de interpretações fantasiosas, esquizofrênicas, paranóicas que a Grande Imprensa - rede Globo à frente - oferece para o consumo acrítico de parte da população. Praticando com esmero os ensinamentos de Goebbels, a mentira repetida um milhão de vezes ao dia se tornar verdade a uma parcela significativa da população, que se perdeu da realidade em teorias universitárias e jornalismo-novela; seu consumo, contudo, não é passivo: tem gerado reações extremistas em pessoas que vêem um futuro de herói nacional ao agirem com mais realismo que o rei.
O PSDB assumiu a dianteira do golpe, mesmo depois de serem escorraçados do ato que promoveram - acreditam, com base em si próprios, que o que aconteceu com Carlos Lacerda não acontecerá com eles, e tanto o judiciário quanto o povo (que não os elegeu) os carregarão nos braços, no dia da redenção golpista, no dia da rendição da democracia.
Em almoço José Serra e Gilmar Mendes parecem ter decidido os próximos passos do golpe - indiferentes ao que se passa nas ruas das cidades do país. Não encenam teatro do absurdo: brincam de jogo de estratégia em tempo real, algo como Warcraft, sem se importar que as forças que mobilizam são pessoas de carne e osso e não exércitos impalpáveis. Com a justiça preocupada em dar verniz legal ao golpe e não em agir como poder o mais próximo da neutralidade, logo menos deve aparecer o primeiro cadáver do discurso de ódio da rede Globo e seus asseclas - e nada garante que será o único. Não que seja novidade: o discurso de ódio contra minoria há tempo produz vítimas, só não era tão democrático como agora, a englobar qualquer pessoa que use vermelho, mesmo que seja camisa da Coca-Cola.
A decisão de Gilmar Mendes de devolver o processo para o justiceiro de província, Sérgio Moro, deixa o Brasil na beira de um conflito civil. As manifestações de sexta-feira, dia 18, na avenida Paulista e em diversas cidades brasileiras foram uma mostra de que haverá resistência popular ao golpe. Os neofascistas da "morolidade global" até então se sentiam legitimados em apedrejar qualquer Maria em nome de Jesus, quem sabe agora passem a apedrejar eventuais viventes que decidam imitar o filho de deus - agora que sabem que são a maioria, como o eram desde as eleições, a despeito do discurso da Grande Mídia e dos golpistas - e pedir um mínimo de bom senso. Acontece que nenhum é Jesus e é provável reações da turma da democracia.
Mas a situação pode piorar para além de brigas de rua entre proto-gangues neofascistas e anti-fascistas: Geraldo Alckmin deixou explicitado que usará a Polícia Militar de São Paulo como milícia pró-golpe a serviço do projeto de poder do PSDB-Globo-judiciário: já havia sido constrangedor o tratamento diferenciado dado aos seguidores do Pato da Fiesp, que bloqueiam por 40 horas a avenida Paulista sem serem incomodados (em compensação, se é adolescente reivindicando educação, dez minutos de interrupção de via pública é motivo para espancamento geral da gurizada, sob aplausos da mesma classe-média que apóia o golpe); a forma como a polícia militar interveio na PUC-SP nesta segunda, em que apenas observava o protesto dos alunos quando era pró-golpe, e mudou drasticamente de atitude quando esses foram calados pelos pró-democracia, com direito a balas de borracha, bombas de efeito moral e tratamento de choque para proteger neofascistas, mostra que Alckmin não tem qualquer compromisso com a ordem pública ou com a segurança dos cidadãos (o que não é novidade para um governador que estimula assassinatos extra-judiciais por parte de seus comandados), pelo contrário: são as ações de sua polícia que na grande maioria das vezes instigam a desordem e a violência - palavras de ódio e incitação à violência, tudo bem, reivindicar direitos ou exigir respeito à democracia, aí vira baderna, tudo homologado por Datenas, Bonners e afins.
Já desde ano passado comento que o exército está com muita vontade de entrar no palco e resolver a situação. Entretanto, contrariamente ao que pedem golpistas e porta-vozes da Grande Imprensa, as forças armadas não vão derrubar presidente nenhum: se entrarem em ação será para reprimir golpistas: mais de um ano da casa pegando fogo, com pedidos de intervenção militar, com acusações mil de comunismo ao PT e as forças armadas caladas, nenhum pio sequer dos seus generais de pijama. Foi só semana passada que um oficial se manifestou, para dizer que o exército respeita a constituição, ou seja, se subordina à comandante suprema das forças armadas do Brasil, isto é, Dilma Rousseff (amigo meu disse que o exército chegou a entrar em cena ano passado, para liberar pontos principaia de estradas do país durante o locaute dos caminhoneiros). A vontade das forças armadas entrarem em cena é simples: cobrar a fatura com o respeito à ordem democrática e constitucional agora com o enterramento definitivo de todo questionamento sobre a ditadura civil-militar de 1964-85. Na atual situação, se preciso for, penso ser um preço amargo, mas válido.
A prisão de Lula pode ser o estopim para revoltas populares e sua repressão pela milícia oficial (que atende pelo nome de polícia militar) paulista e pelas milícias paralelas. Do lado da reação, além dos defensores da democracia é possível que detone uma bomba de revolta e ressentimento contra o sistema repressor do Estado (principalmente em São Paulo), e esses não irão para as ruas protestar com gritos. Gilmar Mendes, Serra, os irmãos Marinho, Sérgio Moro e outros, protegidos em suas mansões, apostam que o governo não resistirá a um derramamento de sangue. A responsabilidade (ou irresponsabilidade) dos golpistas é preocupante para nós, pessoas comuns, sem direito a foro especial e guarda-costas pagos pelos cidadãos.

21 de março de 2016.

Eles fingem que estão jogando War