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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O apagamento do humano no corpo humano

Lendo Os Anormais, do Michel Foucault, e fazendo associações aleatórias sem muito rigor, como é do meu feitio, a apresentação do autor da dialética e forças em conflitos que permeiam o corpo do prazer e do desejo a partir do século XVII fez com que relacionasse com o discurso de vários grupos feministas atuais sobre a “invisibilização” do corpo feminino - e que o mesmo vale para o masculino, acrescento eu.

Parece contraditório: o corpo feminino é ainda muito visado e utilizado, principalmente o corpo que se encaixa nos padrões de beleza da indústria cultural (que movimenta toda uma série de ramos industriais paralelos). Se no passado os difusores desses padrões se centravam na publicidade de agências e nas concessões públicas de televisão, hoje está espalhado pela internet e redes sociais, com suas milhares de influenciadoras digitais em potência ou em ato – numa triste democratização do trabalho de reificação do outro a partir de si, feito sem consciência. 

É mais que conhecida a crítica de que padrões de beleza irreais são mobilizadores de desejo e, ao mesmo tempo, de insatisfação, os quais são canalizados para o consumo (de homens e mulheres). Ao lidar com o corpo do desejo, o espetáculo busca instrumentalizar o inconsciente, o desconhecido de cada um para si próprio, para um fim racional-utilitário. 

Parte das críticas a essa instrumentalização, ao invés de visarem o consumismo subjacente a essa estetização (proto-fascista?) do corpo, acabam por mirar no próprio corpo – esteja no padrão ou não –, gerando cruzadas contra o corpo feminino (ou feminizado, no caso de homossexuais masculinos, travestis e mulheres trans), perceptível tanto em grupos conservadores e reacionários, quanto em grupos ligados a pautas identitárias: ambos tentando normatizar o desejo do outro a partir de seus ideais de usos verdadeiros e autorizados do corpo e da imagem.

Ao mesmo tempo que tem toda essa visibilidade, vários grupos feministas denunciam que o conhecimento mesmo do corpo pela mulher (e pelo homem também) passa ao largo. Nos últimos anos tenho notado a emergência de vários coletivos que se centram no empoderamento feminino a partir desse autoconhecimento mais elementar - cada um com sua abordagem, algumas mais críticas, outras esotéricas e bastante “ingênuas”. Conhecimento que é também a assunção do corpo como local de desejos e de prazeres legítimos – não só desejos do outro, tal qual geralmente posto à mulher na “divisão social do prazer”, e sim do próprio sujeito. 

Como mostram os contos do Marquês de Sade, na virada do século XVIII para o XIX, a ignorância é uma benção - para os dominadores. Vivendo em sociedade, em uma estrutura machista, se constituindo a partir das relações tecidas no dia a dia, se conhecer, conhecer seu corpo para além das funções médico-biológicas e espetaculares, reconhecer seus limites, seus desejos e seus prazeres, soam tarefas micropolíticas primordiais – até para que grandes mudanças estruturais na sociedade que venham a acontecer tenham raízes firmes para não sucumbirem ao primeiro sopro reacionário. De quantas mulheres não li o relato – ou mesmo os ouvi pessoalmente –, de que só foram ver sua vagina e tentar conhecê-la depois de provocadas por esses grupos de empoderamento a partir do próprio corpo, que só se autorizaram ter prazer e gozar durante as relações sexuais depois de mais velhas, do divórcio ou da maternidade – estas, numa dupla heresia a vários desses grupos que combatem o prazer: uma mãe que ainda busca o sexo.

Há, contudo, um ponto no discurso desses grupos que preciso discordar: não raro fazem um paralelo entre o desconhecimento do corpo da mulher por ela própria com o fato de que os homens seriam desde cedo estimulados no sentido contrário. Nada mais equivocado. Uma sociedade onde as pessoas conhecem seus corpos, experimentam-no de diversas formas e tem prazer com ele é uma sociedade com menos insatisfeitos, com menos gente disposta a destruir – seja a felicidade alheia, seja a si próprio, seja a natureza, via consumo desenfreado. Homens, por mais que tenham facilitados os acessos para posições de mando, graças à estrutura patriarcal da nossa sociedade, ainda assim estão na estrutura geral do capitalismo-espetacular como consumidores – não podem estar satisfeitos ou não consomem.  

Via de regra, o menino é estimulado a se masturbar e ensinado que todo o prazer emana de seu órgão genital – para si e para a mulher. Assim, no homem já (de)formado, seu prazer sexual se vincula estritamente ao pênis – sendo que boa parte dos homens sequer sabem lavá-lo direito, achando que o esmegma é capa protetora da glande. Outras zonas erógenas do corpo não são apenas desconhecidas, como temidas - um arrepio por um estímulo em outra região pode ser prova de fraqueza, que põe a masculinidade em risco. 

Esboço de foto-performance para o texto,
executado sem muita qualidade


Que a criança tenha tido a sorte de não ter uma educação machista – como este escriba –, ainda assim o corpo masculino, dentro do ideal fortemente posto e cobrado pela sociedade, deve ser um corpo rijo, duro, firme, forte, um corpo sob controle - seja o corpo trincado de academia, seja o corpo do homem desleixado com a aparência, que acha sua barriga flácida sexy enquanto critica mulher que tem celulite ou pelos. As implicações psicoemocionais para os homens são muitas e foge do meu escopo enumerá-las aqui - assim como suas consequências em cadeia para outras pessoas do seu entorno. Sigo centrado no corpo: os movimentos tidos por mais sensuais, mais femininos, o serpentear, o rebolar, não cabem ao corpo masculino: sinalizaria não apenas um homem homossexual (como se isso fosse qualquer demérito), como, pior, um emasculado – vale recordar que “seja homem” ainda hoje é um chamado à honra bravia, pretensamente superior, e muitas vezes aplicado às mulheres também. (Me vem agora um insight: se a capoeira não seria uma resistência negra também contra esse enrijecimento do corpo praticado pela cultura europeia-branca-cristã).

O masculino na nossa sociedade, já apontava Bourdieu em A dominação masculina, é uma espécie de varinha mágica que tem o dom de tornar o que toca automaticamente superior – o contrário acontece com o feminino: daí que qualquer gesto que faça alusão ao feminino ou à posição da mulher é rebaixador, é ridículo (vide várias comédias de Hollywood), é inferior e deveria ser evitado por pessoas razoáveis - afinal, estamos numa sociedade liberal-meritocrática, em que o que importa é ser vencedor, ser superior: toda inferioridade seria uma mácula (expediente instrumentalizado para adesão cega ao líder fascista). Trago um relato próprio quanto a isso: quando comecei a fazer dança contemporânea, com o curso de “Técnicas e Pesquisa de movimentos”, com a Key Sawao, mesmo tendo feito anos de yoga e tai chi, tive que entrar em outra qualidade de movimentos - e que não eram meras imitações do que o professor mandava. A dificuldade nesses movimentos não foi o de fazer, mas de aceitar que eu estava tendo iniciativa de fazê-los; incomodava não por ser uma postura que socialmente fosse encarada como inferior (como a do cachorro, no yoga, que eu fazia sem dramas), mas por apresentar a mim mesma prazeres com meu corpo em movimentos que não são “autorizados” a um homem - anos depois, com muita análise e crises, me daria conta de que desde criança não me identificava com o gênero masculino, nunca fui “homem”, apesar de todo esforço em me encaixar, e isso foi consequência de romper essa primeira armadura do corpo masculino, rijo e sob controle.

Nosso corpo - independente do sexo biológico e do gênero - guarda um manancial de potencialidades, abafadas pela tradição europeia decorrente da reinterpretação da filosofia grega, principalmente a platônica. Reprimir tais potencialidades já foi útil à Igreja católica - e vem sendo novamente útil às neopentecostais -, já foi útil ao sistema capitalista (por afinidades eletivas, como dizia Weber) para forjar o corpo produtivo, que parece agora descobrir que explorá-lo de modo controlado pode gerar uma nova fronteira de lucro - infelizmente, vários grupos identitários acabam reforçando esse movimento, ao traçar limites de como devem ser as pessoas da minoria ou da dissidência sexual que elas representam, como acusam Elizabeth Badinter e Judith Butler.

Que tenhamos coragem e organização para, numa afronta à sociedade e a quase dois milênios de história, podermos ser livres com nosso corpo - nos usos, movimentos, experimentos e prazeres que tiramos dele. E que a partir desse corpo, expandido para além da imagem que vemos no espelho e das relações hierarquizadas com que fomos educados, consigamos construir também outras qualidades de relações com pessoas e corpos que nos envolvem.

Movidas pela necessidade, mulheres e transexuais já começam a se embrenhar nessa direção; os homens (principalmente os heterossexuais), imaginando terem poder numa estrutura em que, no máximo, são os capatazes, ainda tardam para perceber sua real condição e atacam aquelas pessoas cuja coragem deixa evidente seu comodismo, sua covardia submissa.


10 de janeiro de 2022

domingo, 23 de dezembro de 2018

Popeye vai ser papai?

Sei lá por que cargas d'água me veio Popeye hoje à memória - o elo mais forte que encontrei foi rever um amigo cuja última vez o vira no chá de bebê de um amigo em comum. Popeye sequer era dos meus desenhos favoritos. Mas veio, e justo na hora do banho, quando parece que minha mente trabalha em ritmo alucinado fazendo conexões aleatórias e tendo insights fenomenais - muitos dos quais irão pelo ralo assim que eu desligar o chuveiro.
A escolha de uma marinheiro para personagem de desenho infantil não deixa de ser curioso: ainda que utilizado (como vi na Wikipedia) para propaganda de guerra durante os anos 1940, trata-se de um marinheiro civil e não militar, ou seja, a escória da sociedade: pessoas não-família (pela própria natureza do trabalho), pouco instruídas - brutas -, "pederastas" (como n'O Bom Crioulo), tatuadas - vale lembrar que até meio século atrás, além de marinheiros, apenas presidiários, mafiosos da Yakusa e povos primitivos se tatuavam. Ademais, vinha um marinheiro ensinar não apenas virilidade, mas da importância de se comer vegetais - apesar que seu espinafre soava mais um anabolizante de efeito imediato para bater nos fortões (winners?) da vida que uma salada (vi que há uma versão atual, com apito no lugar do pito e espinafre orgânico). A própria Olívia Palito, era o contrário do padrão de beleza da época (sua forma palito tornou hypster-up-to-date apenas no último quarto de século).
A lembrança que trouxe Popeye à baila, contudo, foi da música tema. Mais especificamente, da letra que, na minha infância, cantávamos a partir desse tema: "Olívia vai ter neném, Popeye vai ser papai, o Brutus vai ser titio, ô lê lê, e viva o marinheiro Popeye!" (pesquisando achei uma tenebrosa versão atribuída à Eliana que mais parece que alguém fez para queimar a imagem da apresentadora infantil, mas parece que é de verdade a versão). O que fiquei matutando no banho foi: por que diabos o viva tem que ser pro Popeye? Que ele fez demais para merecer as vivas e não a mãe, que está ali, com suas finas pernas, sustentando outro ser.
Ainda que no meu círculo de amigos os pais sejam ponta firme, dos que cuidam de verdade, trocam fralda, põe a criança para dormir, dão bronca, banho e brincam, me consta que sejam exceções à regra, predominando, entre os pais "presentes" (numa acepção bem lata), os "pais de selfie", que ficam só com a parte do brincar e mostrar pros amigos (e, não raro, xingar a mãe pro filho), isso quando não são pais-fantasmas. Ainda que esses meus amigos mereçam elogios, não me parece que mereçam vivas - tentar ser bom pai deveria ser obrigação, como tentar ser boa mãe, dentro das possibilidades e erros da paternidade e maternidade. O filho de Popeye e Olívia sequer nasceu para darmos vivas pelos bons préstimos do marinheiro de cara torta no cuidado e educação do filho. Seria, talvez, porque Popeye tinha disfunção erétil (efeitos colaterais do fumo), e mesmo sem Viagra conseguiu fecundar Olívia, é por isso o viva?
Ao fim e ao cabo, ao escrever esta crônica e saber que Popeye está politicamente correto, me questiono se além disso está prafrentex també: pacifista, defendendo causas ecológicas (como a pesca responsável), assumindo o poliamor (latente desde sempre nas suas histórias) e ajudando a cuidar do filho parido pela Olívia - independente do resultado do teste de DNA -, afinal, pai é quem cuida e ajuda a criar.

PS: ainda estou indignado em pensar que passei minha infância cantando "e viva o marinheiro Popeye" porque ele engravidou Olívia Palito...

23 de dezembro de 2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

O feminismo instrumentalizado para ilusionismo da dominação

Acompanho a celeuma feminista a partir do manifesto das artistas e intelectuais francesas (http://bit.ly/2r5mMgI). Em minha leitura, o texto possui dois momentos bem específicos: um de proposição de debate e outro de denúncia do movimento feminista hegemônico (que, creio, tem sua hegemonia pelo capital simbólico de suas defensoras, não por ser majoritário). 
O debate proposto não é novo. Na mesma França, há pelo menos quinze anos a feminista Elisabeth Badinter o faz, criticando o puritanismo do feminismo (dito) radical estadunidense - que desde a década de 1980 fecha fileiras com a ala conservadora do partido Republicano -, a limitação à liberdade de escolha da mulher (na desqualificação da opção pela profissão de prostituta, por exemplo), o essencialismo feminino e a acusação genérica contra o homem, a mulher posta na condição permanente de criança e vítima (quase um AA de gênero)... Questões velhas, mas nunca discutidas a sério. Nem serão agora - pois não é do interesse das estruturas de poder (machista) da sociedade nem do feminismo estridente que pretende se opor a ele. 
O feminismo hegemônico - que costumo identificar como academicista, branco, endinheirado, de inspiração estadunidense (com Dwokin e MacKinnon como mães fundadoras) - tem seus mandamentos inquestionáveis (divinos?) e, dentro da tradição acadêmica, se recusa a fazer uma auto-crítica. Pior, baliza sua ação política dentro campo da verdade científica (sabemos o que resulta quando verdade e política se encontram); se tornou uma espécie de religião laica - com muitos elementos de uma teologia rasteira, por sinal -, que preza pelo purismo (jamais fomos modernos?) e cala agressivamente dissonâncias. Tentei algumas vezes levantar essa problematização da Badinter com amigas e conhecidas feministas, as respostas foram sempre duas: sou homem, não tenho direito a opinar (assim como um muçulmano não tem direito a falar de Cristo, por mais que Cristo esteja na doutrina muçulmana, ainda que em outro papel), ou então, se lembro que só estou repetindo o que diz uma mulher feminista, argumentam que Badinter está superada e ultrapassada faz tempo - sem explicar quem teria dado esse veridicto de superação da pensadora. Poucas vezes consegui debater a sério sobre o assunto com uma mulher que se declare feminista - já consegui várias com mulheres que se dizem não feministas ou contra as feministas, apesar das posturas feministas (se se exclui a ala sectária).
O outro aspecto do texto, a provocação sobre a cantada, pode ser lido como uma denuncia do feminismo quanto à interdição do debate, a qualquer questionamento de suas posições e táticas. Seria o ponto para chamar a atenção para o debate propriamente dito, apresentado no início do texto, romper com a desqualificação a priori dos argumentos: construímos um breve silogismo e chegamos a esta conclusão, aparentemente lógica: onde estão as falhas das premissas? Mas a interdição é tamanha que o debate ficou completamente centrado se o homem teria o direito à cantada ou não - sem questionar, sequer, se não deveria a mulher ter direito também, se é que ela não faz; de qualquer forma, essa é uma questão menor no manifesto. 
Na minha linha do tempo do Fakebook, nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo, este de Temer, Moro, MBL, Bolsonaro, Trump e que tais, se mostrou nas mulheres que comentaram o manifesto ou sobre os homens que o divulgaram. É estreito o foco de leitura, fica no sentido mais restrito das palavras, nas frases mais polêmicas que ali estavam - que, concordo, são escrotas, esfregada no metrô não é agradável nem defensável, mas também não é estupro, nem próximo de, e não é preciso ter sido violentada para notar que há diferenças sensíveis. A possibilidade de ver ali um chamado para o diálogo (e não para a doutrinação), um grito contra o que muitas consideram um rumo equivocado do movimento, que cala as vozes e interdita os desejos das mulheres em nome (dizem) delas próprias, que muitas vezes não se mostra acolhedor para mulheres quando elas mais precisam, foi rejeitada com a violência de um desejo perigoso que não pode sequer ser pensado - o de autonomia plena e dissolução das estruturas de poder (e não sua troca de comando)? 
No El País, a resposta de Nuria Varela foi a legitimação do manifesto: põe as mulheres que o assinaram como marionetes dos homens, que seriam os únicos (e não os principais) ganhadores do machismo e do patriarcado - mulher só pensa se pensar como ela. Que o topo seja basicamente formado por homens, não discuto, mas que há homens na base da exploração, isso é algo que esse ramo feminista se nega a aceitar, porque seria quebrar o essencialismo que o baseia, e desmontar todo seu edifício teológico-político. 
Bourdieu mostra, por exemplo, como o machismo mata homens também. Num exemplo (infelizmente) banal: no Brasil, em 2017, 53% dos assassinatos (cerca de 32 mil pessoas) foram de homens entre 15 e 19 anos. Podemos atribuir isso à natureza eminentemente violenta do homem (em contraposição à natureza pacífica da mulher), ou podemos achar que é fruto de uma sociedade machista e patriarcal, que defende a honra do macho e afirmação da masculinidade baseada na violência como valor positivo. Badinter relata que até 10% das agressões domésticas na Alemanha são causadas por mulheres; uma amiga trans quando sofreu um ataque transfóbico que lhe custou um rim apanhou de homens e mulheres, democraticamente (já ouvi feminista dizer que trans é um homem de peruca querendo roubar o lugar da mulher); mulheres participam de violência sexual contra outras mulheres: são exemplos minoritários, porém, se a violência ainda é majoritariamente masculina, o é por educação, não por biologia, e não precisamos de duas gerações para nivelar todo mundo nessa lógica da força bruta. A questão: queremos uma sociedade mais violenta?
Erick Gandini, no filme Videocracy, mostra o ressentimento de homens expropriados das maiores benesses sociais, e que se vêem em condição de inferioridade em relação às mulheres na disputa pelas migalhas, sem questionar a estrutura que perpetua certos homens no topo: seria corporativismo de macho ou seria incapacidade de leitura minimamente crítica da realidade, de notar que ele quer migalhas e que nunca vai ter a chance de estar no topo, mesmo sendo homem? Não se trata de mulheres brigarem também pelos homens, mas de assumirem que é uma luta conjunta, sem subordinação, pois junto com patriarcado e machismo há uma estrutura social e econômica que afeta a todos (homens e mulheres) que não estão nas esferas de poder - homens e mulheres.
Uma vez uma amiga feminista disse, nunca lógica cristalina pela tautologia, que "mulher não pode ser machista, porque ela é mulher; mulher feminista é um contrassenso". Tive que discordar: pode ser machista, como pode ganhar com o machismo, e é por isso que o machismo e o patriarcado se sustentam, porque mulheres também o legitimam e ganham com ele. Uma professora feminista da Unicamp, numa assembléia da greve de 2004, afirmou que a exploração que ela sofria era a mesma de uma terceirizada da limpeza: a ontologia de mulher (cis) garantiria a equalização de todas as diferenças sociais - sua estabilidade no emprego e seu salário 20 vezes maior são detalhes menores: certamente essa ideia favorece quem está no topo pirâmide social, que pode escrever e discutir manifestos, cantadas e violências, sem se preocupar se vai fechar as contas do mês, do trajeto do ponto de ônibus até a casa, ou por quanto tempo terá uma família estruturada, até o marido ser morto pelo Estado ou com a conivência dele - questão reiteradamente trazidas por Djamila Ribeiro, formada antes na luta real que na academia, e que tem uma estratégia retórica muito inteligente para não ser rechaçada de antemão pelo feminismo hegemônico do "somos todas iguais".
Mais um exemplo pessoal, o caso de um casal feminista com quem tive o desprazer de conviver. Ela, branca, academicista, classe média-alta, feminista radical, militante ativa, de não perder uma reunião; ele, branco, classe alta, academicista, feministo que dizia amém pra tudo do feminismo e estava em todas as manifestações. Cansei de ser chamado de porco machista por questionar táticas de ação do feminismo hegemônico. Uma vez aconteceu do estuprador ser amigo deles... o que fazer numa situação dessas? Veja bem, não é bem assim, a palavra é forte, há uma série de atenuantes que não podem ser ignorados, ele é branco, mora no Morumbi, egresso da PUC e da USP, uma boa pessoa, sempre a favor da causa feminista também, não fez por mal, estava bêbado e, no final, convenhamos, não conseguiu consumar o ato (curiosamente, a tentativa foi na França). Resultado: tudo bem, acontece, passa uma borracha e segue a vida normal, ela militante feminista ativa, eles, feministos de confiança. Isso para dizer que aqueles que tentam desqualificar as francesas do manifesto dizendo que é fácil dizer aquilo sem pegar metrô e ser encoxada - ou que vão me desqualificar por ser homem - tem razão, mas vale também o argumento que é fácil manter o purismo até que você se vê frente a frente com a realidade, aí se é obrigado ou obrigada a largar mão do purismo teórico e assumir a complexidade da vida real, ou manter o purismo teórico, mesmo que ao preço de negação da realidade e mesmo dos princípios desses purismo.
Encerro com a historiadora portuguesa Raquel Varela, certeira no ponto sobre o debate acerca do assédio e da instrumentalização do feminismo, iniciado com o #metoo: 
"Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode - não pode jamais - ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real - a desigualdade de género - para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social." (texto completo em http://bit.ly/2EH0Uu2).


14 de janeiro de 2018

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Globeleza vestida em 2017 pode ser um Cavalo de Tróia

No meu Fakebook pulula a notícia de que em 2017 a Globeleza aparece vestida - e não em um sumário tapa-sexo. Quem compartilha a notícia a apresenta em tom positivo, como vitória feminista pela igualdade de gênero. Olhando o fato em si, descontextualizado, realmente, vitória. Entretanto, ao tentar entender o que poderia ter levado a essa mudança em 2017, há muito mais motivos para se preocupar que para comemorar.
Fosse 2010 e, definitivamente, poderíamos ver as vestes da Globeleza como avanço na desconstrução do estereótipo feminino de corpo-objeto para satisfação sexual alheia, em nome de um protagonismo político da mulher. Convém lembrar: na Alemanha, Merkel seguia firme e intocável; na Argentina e no Chile, Kirchner e Bachelet ocupavam o executivo federal e enfrentavam, dentro da moldura liberal-burguesa, os setores mais conservadores de seus países; no Brasil, elegia-se a primeira mulher para a presidência desta república bananeira (que então achava que podia ser minimamente independente), e na metrópole, o segundo cargo mais importante era ocupado por uma mulher (muitos atribuem a Clinton, por sinal, o caos no mundo árabe e os retrocessos na América Latina). Então a Globeleza seguia sem roupa, anunciando o que a imprensa diz ser a festa mais popular do Brasil (diz ela mais que as festas juninas), e oferecendo seu corpo para desfrute alheio, chamariz para as belezas naturais desta terra que os civilizados europeus tanto gostam de desfrutar e gozar, desde 1500.
Mas estamos em 2017. Na Europa até cresce o protagonismo político das mulheres na França, Inglaterra e mesmo na Alemanha, em que a extrema-direita é encampada por delicadas figuras maternais a proferir discurso de ódio contra o imigrante, o estrangeiro e o muçulmano. Na Argentina, Kirchner é perseguida por ter sido eleita presidenta (uma versão mirim do que fazem com Lula aqui); enquanto no Brasil e nos EUA são eleitos para a presidência dois homens misóginos - nos Estados Unidos eleito democraticamente, no Brasil, eleito por um conchavo entre donos do poder, da bufunfa e da mídia, já que o povo votara "errado" em 2014, na candidata que cidadãos e cidadãs de bem classificavam como "vaca", "vadia", e outros termos lisonjeiros. Não só isso: não temos em Pindorama apenas um governo de homens, trata-se declaradamente de um governo machista, em que o papel da mulher é o de bibêlo mudo para enfeite do ambiente. Marcela Temer, anuncia a Veja, é a nova tentativa de marketing do governo golpista, não por qualquer traço marcante de personalidade ou aguda inteligência, mas por ser "bela, recatada e do lar" (e eu acrescentaria: uma oportunista do machismo) - e impedida de falar. Ao mesmo tempo, cresce o número de evangélicos ocupando cargos eletivos com a bandeira do proselitismo religioso, generalizado na pauta dos bons costumes e da moral (claro, para esse grupo pastor estuprar não é algo que atente a moral). É neste contexto, em que a mulher perde espaço na política para pautas conservadoras e de submissão da mulher a papéis "tradicionais", que a Globeleza aparece vestida.
Ainda que se tenha vestido a Globeleza para atender aos segmentos religiosos, majoritariamente aos evangélicos, não se poderia considerar isso positivo? Até poderia - eu mesmo achei simpática a idéia de mostrar o carnaval em suas diversas manifestações, as quais incluem, muitas vezes, pesadas indumentárias (e essa abertura da Globo à diversidade regional pode ser sintoma de crise de seu poder de afirmação de uma pretensa unidade nacional). A questão é tudo o que isso implica de negativo em 2017, que não pode ser ignorado por quem ainda preza pelo razoável e pela sensatez. Faço uma analogia: diante do catastrófico governo Dilma, sua saída poderia ser considerada positiva - desde que abstraiamos que tal saída se deu via golpe de Estado e levou ao Planalto uma corja de corsários sabujos do Tio Sam, que conseguem fazer com que sintamos saudades de Dilma, Mercadante, Levy e cia. Daí que há pouco a comemorar entre aqueles que defendem os direitos da mulheres o que se passa em nossos televisores.
A Globeleza de roupa não merece comemoração e deve fazer com que aumentemos os questionamentos. A que mais cabe neste 2017: que papel queremos às mulheres em nossa sociedade? Escolher entre as opções "corpo para consumo" e "submissa para a obediência" me parece uma falsa escolha - na verdade, não há exatamente escolha, mas construções coletivas, que devem ser protagonizada pelas próprias mulheres, que podem, sim, querer para si uma dessas opções. E outra questão, que eu faria em 2010, e ainda vale este ano: não é hora de retomarmos a antropofagia modernista e, ao invés de tentarmos vestir o índio, despirmos o europeu? Antes de cobrirmos a Globeleza, não seria mais interessante tirar a roupa de todo mundo - homens, mulheres, trans, velhas, adultos, crianças, brancas, negros, índios, asiáticas, gordas, magros - , como se fosse natural que por baixo da roupa houvesse um corpo (e não um pecado), e que num calor de 35, 40 graus fosse natural haver quem se sentisse mais confortável em trajes sumários, sem que isso implicasse em qualquer atento à moral?
Espero estar errado, mas a Globeleza vestida em 2017 me soa a chegada no Brasil do século XXI daquela civilidade que fez a Alemanha grande na década de 1930.

10 de janeiro de 2017


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poética feminista para dramas humanos [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Vértigo (vertigem em espanhol) é claramente um espetáculo feminista, de um feminismo de pouco eco nestes Tristes Trópicos: o que põe a mulher, antes de representante de um gênero ontologicamente único, como representante da humanidade. A bailarina Camila Bilbao e a escritora Camila Urioste (ambas da Bolívia) trabalham o corpo dentro de um duplo registro: como local da política, portanto receptáculo de linhas de força e poder, predominantemente passivo; e como Político, isto é, constituinte de um sujeito ativo que intervém no mundo. Se no primeiro aspecto corpo masculino e feminino guardam grandes distâncias na forma como sofrem a dominação masculina, o segundo põe mulher e homem dentro de um mesmo registro, apesar das diferenças: o de sujeitos políticos, que refletem a sociedade em que vivem, mas são capazes de refletir, reflexionar sobre essa mesma sociedade, e intervir ativamente na sua transformação. Daí a capacidade dessa poética feminista tocar e comover uma pessoa, independente do seu gênero.
O espetáculo começa com Camila a analisar e lamentar as imperfeições da pele e do corpo diante de um espelho-câmera-Outro. Ainda que essa objetificação aguda do corpo recaia especialmente sobre as mulheres, também eu me pergunto: a que olhar tento me adequar? Que Outro invisível-mas-ostensivo faz com que eu me imponha determinados comportamentos? Que mecanismo é esse que nos reduz a imagem para permitir nossa existência dentro do espetáculo? A câmera de vídeo que flagra a insegurança de Camila não é olho de Deus, que está morto, não é o da autoridade do pai, que está capenga, é então o olho de quem que ela representa - para além do nosso, capturado por esse Outro? Que artifício é esse que nos faz reduzir também os demais a imagens, a fragmentá-los em pedaços como que independentes do todo, e a julgá-los e desprezá-los por terem o que nos falta e desejamos, exatamente da forma como fazem conosco e tanto reclamamos? 
Como corpos-objetos privilegiados para consumo, as mulheres são mais visadas por esse círculo perverso - que domina a sociedade do espetáculo de alto a baixo. Camila afirma explicitamente: "mi cuerpo es político". Dessa assunção decorre uma série de conseqüências, todas elas políticas: de ter um filho ou não a subir no tubo de pole dance, passando pelo usar rosa (cor de mulher) e observar seu corpo e o corpo das demais mulheres com um distanciamento cruel. É por ser um corpo político, iminentemente e radicalmente político, que Camila precisa também estar "siempre en guardia": não é em guarda temerosa do ataque do próximo homem, é em guarda do seu próximo ato: agirá ela com relação a outra mulher como a sociedade que a oprime? A questão de gênero não é posta mais em termos de vítima e carrasco, mas da dialética oprimido-opressor exposta por Paulo Freire.
Vértigo não é a recusa de um estado, é mais profundo: é o questionar radical de si, carregando junto com esse questionamento a sociedade toda - seus defensores e seus críticos. "El abismo abajo", que ela fala próximo ao fim do espetáculo, talvez seja tudo isso que levamos sem questionar, e que ela se põe corajosamente a encarar. Camila enumera as regras para uma "boa mulher": bonita, calada, sempre maquiada, sempre sexy, sempre submissa, sempre servil, sempre sorridente. Recusa o que não serve, incorpora o que acha válido para si - seu percurso dialético a autoriza a incorporar valores "positivos" da sociedade machista, sem que nisso haja contradição ou traição da causa. Recebe admoestações por ser sujeito autônomo, que vejo fácil na boca de algumas feministas-acadêmicas que conheci:  que é "demasiado sexy para ser feminista", que o tubo do pole dace é um símbolo fálico. Pois ela não vê assim: como sujeito é capaz de ressignificar elementos do quotidiano, sem se prender a determinações heterônomas, mostra que pode ser sexy E ser feminista; que o pole dance, fora dos inferninhos, é um instrumento de conhecer o próprio corpo de forma lúdica. Vértigo se autoriza a ser feminista e combativo ao mesmo tempo que é poético e delicado. Quem a repreende por não ter asas quando ela diz que vive uma "crisis de las alas" é porque não se dignou a enxergá-la, insiste em vê-la com os velhos olhos de um velho mundo - me dou um alento de que, sim, acho que vi asas em Camila. É por ter asas - ainda que em crise -, que Camila enxerga o abismo sob seus pés e ainda assim tem a coragem de dar "un paso fuera de mi". É quando o mundo muda: do "abismo abajo, infinito arriba" ela pode se deparar com a riqueza de sua humanidade: "el abismo abajo, el infinito adentro".

04 de agosto de 2016

ps: não coube no diálogo acima, mas destaco, a exemplo do espetáculo colombiano Elogio de guerra, que comentei em outro texto, o uso da palavra, do discurso, no espetáculo: um texto muito tocante e bem inserido na coreografia - coisa que não costumo ver em obras brasileiras.


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dançar um discurso acadêmico-político [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Em geral evito comentar um espetáculo de dança se não tenho nada positivo a acrescentar - não tenho conhecimento para ser crítico de dança, tento estabelecer diálogos, o mais construtivo possível. Para falar de Z.i.g.o.t.o. eu não conseguirei ser muito construtivo - ao menos positivo -, mas não deixa de ser diálogo - e talvez este retorno seja uma das respostas esperadas pela artista e sua provocação.
Tocado pela questão de gênero levantada por Prelúdio para danças caboclas, vou assistir ao segundo espetáculo da noite do Dança à Deriva, Z.i.g.o.t.o., que trata explicitamente da questão de gênero. Até aí, nenhum problema - comentei na minha crônica anterior da dimensão política que a dança contemporânea possui. O que mais me incomodou, entretanto, foi a forma como o espetáculo pareceu ser feito: soou antes uma tentativa de instrumentalização de um discurso pronto do que uma construção artística que trazia junto, no seu fazer, a questão política abordada. Um discurso pré-fabricado preenchido com um corpo (objeto?).
Uma mulher negra que não se enquadra no padrão de beleza (ainda que não se enquadre tampouco no padrão de feiura que a sociedade possui) me parece ser um manancial de experiências sobre as muitas formas de exclusão em nossa sociedade. Se Patrícia Pina Cruz trouxe isso para cena, não consegui perceber; o máximo que me pareceu foi uma mulher que, por conta de ser mulher, teve seu sucesso profissional limitado - dado o figurino (masculino) do início do espetáculo, que remetia a executiva de banco -, e se ressente com isso, a ponto de imitar o gestual masculino, numa tentativa de demonstrar que ela também é capaz de fazer o que um homem faz - no início achei que esse imitar fosse levar a uma crítica daquilo que Bourdieu chamou de "nobreza do masculino", mas me pareceu antes seu reforço (inconsciente).
A personagem apresentada em cena estava antes para uma construção ideal-típica da mulher-vítima, bem ao gosto do feminismo-acadêmico que hegemoniza o discurso de gênero no Brasil (de linha estadunidense, criticada com precisão pela feminista francesa Elisabeth Badinter), a uma construção feita a partir de vivências reais, sentidas no corpo - impressão coroada pela alusão infeliz do estupro coletivo no Rio de Janeiro, verdadeiro clichê do ativismo (de esquerda) de Facebook (comentei em outro texto que o que chocou tanto não foi o estupro, foi o número, e isso deveria ser um alerta para nossa perda de humanidade e reificação da dor do Outro [http://bit.ly/cG16528]).
A forma mais positiva que consigo ver Z.i.g.o.t.o., dentro da perspectiva de um homem não-machista, mas independente disso, um homem, é que é parte de um processo analítico ainda no começo, em que o sujeito começa a se dar conta de si, mas passa ao largo de uma crítica social, da condição que a faz se sentir diminuída, a ponto de soar mais um elogio ao masculino que uma crítica ao machismo.
A preocupação com o discurso político enlatado prejudicou a produção artística e acabou por fazer os dois ficarem muito aquém das suas potencialidades. Ou talvez não, talvez Cruz seja das feministas radicais que acha, como em foto de pichação que vi recentemente, que "feminismo que agrada homem não é revolucionário", e este meu texto seja um elogio para ela - desejo muito que não seja o caso.

03 de agosto de 2016

PS: por ser um texto bastante ranzinza, não iria publicá-lo, mas depois de assistir a Vertigo, no dia seguinte, achei que cabia, até para deixar marcado o contraponto entre dois discursos feministas.


quinta-feira, 18 de abril de 2013

Pressa e preconceitos (nova versão sobre a polêmica Thomas - paniquete)

Não é por causa da internet, vem de antes da pseudo-ágora virtual a necessidade comum de logo classificar para defender ou execrar. Com a internet, em que assuntos se tornam ultrapassados muito antes do soar da meia-noite e em que o senso-comum é tido como opinião, preconceitos e visões de mundo pré-determinadas se alastram como fogo em pólvora e ganham poder avassalador. Assisti ao episódio do programa Pânico em que ocorre a polêmica com o dramaturgo Gerald Thomas, crucificado em praça virtual por machismo. Fui um desses que o criticou [j.mp/cG14413g]. Não retiro tudo o que disse, mas me retifico.

Mantenho o que comentei sobre o texto em que se defende dos ataques: nele, Thomas, além de se mostrar inábil, proporcionou uma demonstração de machismo ilustrado, repetindo idéias precárias, como a de que mulher que se mostra é porque quer ser abusada ou de por serem amigos não há abuso. Menos mal que na sua precariedade argumentativa Thomas nos ofereceu essa demonstração de preconceitos que não são exclusividade dele. Fosse um pouco mais esperto, ele precisaria apenas narra a cena para explicar que as fotos dizem mais do que realmente houve.

Como já havia dito na outra crônica, Pânico já é violento. No episódio polêmico, colocaram a paniquete para estrear como repórter no programa, e ela faz bem feito a cena de repórter inexperiente e burra – pode ser que lhe falte o traquejo dos demais, porém são erros por demais grosseiros para alguém formado em jornalismo (segundo a Wikipedia) e que circula pela mídia há um bom tempo: não segura o microfone direito, deixa sobrar um silêncio chato, erra nomes, erra informações. É o lance do humor do programa, bem fraquinho, explorando ridículos e vexações.

Antes de chegar a Thomas, logo no início do quadro, a verdadeira cena de machismo por parte de um dos entrevistados: o presidente da Mangueira, Ivo Meirelles, tão logo encontra a paniquete, trata de abraçá-la e passar a mão – “ai, ai, esse presidente é danado”, diz a apresentadora em sua voz nasalada. Depois, nas entrevistas com “pessoas comuns”, nas ruas, o show de machismo para justificar a polêmica: homens defendendo o “metia a mão mesmo”: Thomas não teria feito nada diferente daquilo que os espectadores do programa fariam, logo, é legítimo (para constar, há opiniões contrárias também). Mesmo o doutor em psicologia posto pra falar sobre a polêmica dá a entender que o que o dramaturgo fez (dentro do contexto de que seria um abuso) foi compreensível, afinal, sabe como é, os instintos, e a ex-musa do Paraná Clube é gostosa mesmo...

À cena com Gerald Thomas, enfim. Os apresentadores do quadro se aproximam, Thomas reclama da presença: “já fizeram isso em São Paulo”, mas entra na brincadeira, finge bravo, querer esganar o apresentador. Dentro da ceninha, Thomas (autor, diretor e ator do Pânico) pede arrego, ajoelha, tenta abrir a braguilha do apresentador – “agora são vocês que estão em pânico?” –, depois tenta com a outra apresentadora, uma travesti. Já em pé, o apresentador pede ajuda ao dramaturgo, introduzindo a paniquete: “é a primeira vez dela aqui, como repórter”, ao que Thomas responde: “peraí, deixa eu ver o sexo real dela”. Está no contexto, estão falando em “primeira vez” e, como Thomas fala em entrevista no programa, tanto a travesti quanto a moça tem o sobrenome “balls” (o da paniquete é Bahls, mas a sonoridade é igual), dá mesmo para desconfiar que possa ser outra travesti – está atrasado quem acha que travesti é só aquela figura de traços grotescos facilmente identificável. Inclusive, o repórter do programa, ao notar certo exagero, tenta, mesmo que timidamente, deter o avanço do dramaturgo – diferentemente do que pré-julgou Nádia Lapa em seu texto, pelas fotos. A cena, portanto, em seu contexto, não me pareceu machista. Antes do assédio à paniquete, houve também com o homem e com a travesti, e não vi grita contra isso – dois pesos duas medidas?

Se reafirmo o texto de Thomas machista, e sua postura absolutamente conformista, diferentemente do que ele acha, preciso concordar com ele quando critica seus críticos: há uma forte dose de moralismo nisso. Moralismo e preconceito. Na ânsia de novos motivos para refazer uma crítica que é antes um papagaiar, atropela-se os fatos, o contexto, prega-se uma seriedade absurda – esse politicamente correto de ressentidos, que tem dificuldade em lidar com o que escapa dos delimitados e que se desconcerta quando se foge da seriedade por ele pregado. Ratifico que essa polêmica toda abre a possibilidade de uma discussão mais aprofundada sobre o machismo em suas filigranas, para além da violência explícita. Porém, também defendo deveríamos aproveitar a oportunidade para repensar esse policiamento apressado em defender seus pré-conceitos: no fim, esse tipo de atitude apenas dá razão para “pensadores” como Pondé, Jabor e outros desse quilate desacreditarem aqueles que se põem críticos do status quo.

São Paulo, 18 de abril de 2013.

domingo, 14 de abril de 2013

Não foi crítica, foi demonstração (sobre o episódio Gerald Thomas - paniquete)

Amiga minha havia comentado da cena de Gerald Thomas avançando sobre uma paniquete. Sem ver as imagens, achei que pudesse ser algum caso de exagero ou da imprensa ou das feministas acadêmicas de plantão – que sabem da “experiência da violência contra a mulher” mais por teoria do que por serem mulheres, e acham que uma passada de mão na bunda praticamente equivale a um estupro, como tive de ouvir mais de uma vez. Ao ver as fotos, achei o episódio bastante agressivo – e ouso dizer, feliz.

Com algum esforço, dá para entender o que Thomas gostaria de criticar – com a atitude e seu texto posterior. A forma como o fez, contudo, além de ser exatamente o que se esperava dele, serviu para escancarar um pensamento comum e bastante precário. Ando um tanto averso à internet, de modo que não li quase nada sobre o ocorrido, por isso pode ser que eu não saia do senso comum, que não vá além do que já foi dito sobre o assunto. O que li foram os dois textos publicados na página da Carta Capital [j.mp/ZuVbLf]: o do próprio Thomas e o de Nádia Lapa. O texto de Gerald é uma tentativa de explicar o que deveria ser motivo para uma profunda auto-reflexão. O de Nádia traz pontos interessantes, mas que perdem por falta de uma compreensão um pouco mais ampla do contexto e por uma visão bem simplista de relações humanas: parte-se do pressuposto da racionalidade do homo oeconomicus, a pessoa com seus desejos claros e transparentes, unidirecionalidade nas suas condutas, sempre expressas em contratos explícitos – mas não é isso que pretendo discutir, o texto de Lapa, antes a atitude de Thomas.

Thomas tenta justificar que estavam dentro da classe artística – tudo o que ele fez ali seria, se não aceito, tolerado, afinal, são colegas de classe e amigos –, e seu ato não seria mais que reverter o jogo de constrangimento que o programa Pânico impõe às suas vítimas, ao mesmo tempo que revelaria o papel de mulher-objeto protagonizado pela paniquete. Acontece que sua atitude foi uma baita publicidade para o programa – o que eles justamente buscam. Ele não inverteu o jogo, ele jogou o jogo da forma mais quadrada possível. Isso, penso eu, explica em parte o porquê ninguém fez nada, como alerta Lapa: o programa é muito violento, uma violência a mais, que diferença faz? Ademais, estavam às claras, sendo filmados: era de se imaginar que o dramaturgo não iria muito além do que foi – sem contar que até hoje não me consta que ele seja um estuprador (no sentido antigo do termo, já que agora qualquer desrespeito físico contra a mulher é estupro). O questionamento levantado por Lapa, de que “se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada" seria aceito com a mesma normalidade, tem uma óbvia resposta negativa por um óbvio motivo: a paniquete estava interpretando um certo papel-social, o de mulher-objeto em um apelativo programa de televisão – o que uma "atriz considerada recatada" não faria. Uma mulher é, antes de qualquer papel social, uma pessoa, e merece respeito só por isso (como Gerald Thomas também merece, ainda que uma violência não justifique a outra), porém não há essa pura abstração de mulher-em-si numa situação desprovida de qualquer contexto – neste caso, temos o de violência masculina como a da imprensa espetacular.

O fracasso da pretensa crítica à imprensa de Thomas vira precariedade de raciocínio quando ele tenta argumentar que seu ato seria de aversão à mulher-objeto: há formas e formas de mostrar essa condição. Dou aqui meu exemplo, num outro contexto, bem mais tranqüilo que um programa de tevê, e por isso mais sutil: o leitor mais atento, a leitora mais detalhista devem ter notado que citei algumas vezes a paniquete sem ter dito seu nome. A paniquete continuará sem nome nesta crônica, uma vez que salvo em situações imprescindíveis (como contrapôr extremos de riqueza e pobreza de São Paulo), evito falar o nome de objetos, produtos, em meus textos: que se chame Maria ou Josefa, o que importa para o programa é que seja gostosa. Agir como o machista típico costuma agir diante de uma mulher-objeto está se mostrando útil para abrir o debate (como o pastor Feliciano está sendo útil para a questão homoafetiva desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), porém está longe de ser uma crítica, ainda mais quando Thomas justifica a violência pelo fato da paniquete estar “(praticamente) [de] bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra". Já fui execrado por uma feminista por ter dito isto, mas uma mulher com vestido mini, decote master e "salto alto de 'fuck me'" está realmente pedindo... pra ser vista – ouso dizer que esteja querendo também ser assediada, ainda que não afirme tão peremptoriamente. E quando me deparo com uma mulher assim, eu reparo mesmo. Discretamente, porque sou alguém educado; sem falar grosserias, porque não acho que seja puta por causa da roupa, nem que chamá-la assim seja uma abordagem muito frutífera; sem passar a mão, porque não tenho esse direito; e caso esteja com algum amigo ou amiga que tenha o mesmo gosto que eu, chego a fazer algum comentário "machista", como "é gostosa, mas essa paniquete exagerou no silicone". A mulher pode estar só com calor, como contra-argumentou minha interlocutora, isso pouco me importa: não estou agredindo fisica ou verbalmente, não vou fazer avaliação de intenções do Outro para saber se ela queria ser olhada ou não. Assim como quando estou com calor e tiro a camisa, não vou poder ficar incomodado com pessoas se admirando com minha magreza – seja porque achem bonita ou feita.

Outra coisa que me chamou muito a atenção no texto de Thomas sobre o episódio foi a justificativa de que, por serem amigos – ele e o pessoal do Pânico –, sua atitude não teria problema. É a demonstração de uma noção de violência e de estupro (no sentido antigo, porque no atual, se eu fosse mulher, já teria sido estuprado quatro vezes, no mínimo) muito estreita (e, pior, muito comum): não é raro casos de violência sexual entre amigos e colegas de trabalho ou faculdade. Há um tempo teve repercussão o de uma estudante de direito, estagiária do escritório de advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que se matou tempos depois de ter sido estuprada por um colega do emprego [j.mp/11dZHlg]. Ouvi uma vez no bandejão da Unicamp amigos repreendendo (de leve) um colega, porque havia embebedado uma amiga para que "consentisse" fazer sexo anal. Inclusive uma frase me marcou nessa conversa: "com puta tudo bem, com amiga é sacanagem", numa mostra de que o estupro em si não seria um ato condenável, porque mulher-objeto é pra ser usada, independente do que ela quer ou aceita. Esse tipo de estupro, cometido por um conhecido, lembro ter lido há muito tempo uma reportagem, é o mais comum e o menos denunciado: vira um caso de "sacanagem", motivo pra rompimento de relação, uma vergonha para a mulher, que não dá ao ato a dimensão que ele realmente tem – caso de polícia.

Como disse, o episódio grotesco de Gerald Thomas e a paniquete abre a feliz oportunidade de tratar para além de círculos estreitos a questão da violência sexual contra a mulher, os preconceitos na sociedade, mesmo entre pessoas tidas por esclarecidas. Se isso será levado na base do “ativismo de reação”, se centrando nos casos e personagens; se resultará num debate mais consistente, como no caso da homoafetividade; se será seqüestrado pelo feminismo acadêmico e seus jargões para convertidas, ainda está em aberto. De minha parte, torço pelo segundo caminho, uma movimentação que aborde e ataque o problema sem discursos prontos e foco em inimigos e palavras de ódio: não é um caso isolado, não é uma questão de bem contra o mal, de achar inimigos: é uma questão social mais do que de gênero, uma questão de respeito, de dignidade, de relação com o Outro, de vida em sociedade.


São Paulo, 14 de abril de 2013.