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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Esperando pelo ônibus ideal

Em meu texto “Comunistas’, atestado de pureza e os empecilhos para uma união pela democracia” [www.bit.ly/cG200528], comentava das cobranças e exigências absurdas que parte das esquerdas faz para aceitar entrar em uma frente ampla pela democracia - ou antifascista, que seria um pouco menos ampla. Dois exemplos desde então reforçam minha análise.
Mais visível, a fala recente de Lula, de ir com calma antes de aderir a projetos de defesa de democracia, não sem antes conhecer a fundo os interesses dos organizadores - nesse ponto, parece sensato à primeira vista, mas só à primeira vista. Fosse só isso, já seria complicado. Porém o ex-presidente também trata de olhar para o passado de quem assina, e a adesão de golpistas ao manifesto Juntos, por exemplo, é motivo para ressalvas. Neste ponto, o líder do PT parece começar a aderir à política dos pequenos narcisismos e do ressentimento - essa que afundou FHC num homem público desprezível e drena Ciro Gomes para destino semelhante -, e tem sua visão do contexto e da própria força obnubilados. Isso se mostra claro (com o perdão do trocadilho), quando Lula diz que leitura atenta, passando lupa nos filigranas é importante “para a gente não pegar o primeiro ônibus que está passando. É preciso que a gente analise todos esses manifestos e que conversemos com os organizadores para saber o que eles querem.” Postura corretíssima em maio, quem sabe até em junho de 2019. Para 2020, o ônibus que está passando não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro. Se é o primeiro que Lula vê, que se esperte, pois pode ser o último - ou o próximo a passar pode fazer desse uma maravilha, comparativamente. Pior: se não embarcar nesse ônibus, antes do próximo é capaz de no sentido contrário vir uma jamanta desgovernada, subir na calçada e atropelar todo mundo que está candidamente esperando no ponto o ônibus mais adequado.
Em boa medida por conta do PT e as esquerdas se centrarem muito fortemente na justa bandeira do Lula Livre, parece que esqueceram que precisavam também estar atentos para as demais pautas, reconstruindo o movimento de base, apoiados em propostas futuras a partir do presente (e não lembranças dos bons tempos), e costurando apoios amplos da sociedade. A “lulodependência” de boa parte da esquerda - e que não me parece ser culpa do próprio, que dá mostras de que queria ir para o segundo plano desde que acabaram as eleições de 2012 - impediu que se construísse uma frente antifascista, necessária desde longa data, desde que se atacava pessoas por usarem roupa vermelha, ou ao menos desde 2019, afinal, desde o dia 1º o fascismo está sentado no poder e se afirmando orgulhosamente - não era necessário esperar o caos para articular mais intensamente uma resistência. Se as esquerdas tivessem conseguido agir nesse sentido, essa frente antifascista poderia hoje estar na cabeça desse movimento mais amplo e mais urgente de defesa da democracia formal representativa liberal burguesa. 
Faço questão de ressaltar que tipo de democracia estamos defendendo - democracia que atende aos interesses do capital e ainda assim de estabelecida de maneira frágil, insuficiente, extremamente precária -, para que não esqueçamos que a defesa da democracia não está pondo em causa nenhuma proposta positiva de mudança, tão somente uma defesa negativa, uma reação a mudanças para muito pior que se desenham no horizonte. Que as coisas continuem como estavam até pouco tempo atrás para que seja possível, aí, sim, discutir mudanças profundas na sociedade.
O manifesto Juntos é de uma generalidade constrangedora, de estilo contemporizador - que Lula soube instrumentalizar no seu governo para implementar pequenas melhorias na qualidade de vida dos mais necessitados - capaz de agradar até mesmo fascistas, feito para fácil adesão de quem for que se encaixe em seus jargões amplos (inclusive evita o termo “direitos humanos” - talvez para não ser chamado de esquerdista?), sem nomear abertamente o presidente da república e seu séquito, ou seja, sem marcar claramente posição - em suma, é precário, mas ainda assim, é o que há. Será que não poderíamos ter um manifesto em defesa da democracia muito melhor, destemido, combativo, ainda que sem incluir pautas mais específicas, como saúde, educação e segurança públicas de qualidade? Aspiração plausível, mas não para hoje: ao invés de se preocupar com isso, boa parte das esquerdas estava em disputa por cobranças de autocríticas alheiras, esperando um líder messiânico que se provou ser só humano, com todas as limitações inerentes ao humano, por mais que seja de inteligência e perspicácia acima da média; e chorando as derrotas junto com seus pares nas suas confortáveis casas de classe média ou bares descolados.
O segundo exemplo de como as esquerdas estão perdendo absurdamente a “guerra de narrativas” em todas (ou quase todas) as suas frentes foi a profusão de bandeiras antifascistas que emergiram nas redes sociais, e as críticas (em parte pertinentes) ao seu uso por parte de quem não sabe o que é antifascismo, sua história ligada às esquerdas, ou comunga nos ideais da direita, quando não nos ideais fascistas - a fábrica de memes que domina o país não deixou de colocar “Witzel Antifascista”, “Doria Antifascista” e até “Partido Novo Mais ou Menos Antifascista” (porque pra tudo há um limite). Como disse, reconheço parcialmente a pertinência da crítica a esse uso indiscriminado da bandeira antifa, no caso em que se trata da instrumentalização oportunista por parte da direita de uma luta historicamente das esquerdas. Parte da crítica, contudo, é bastante impertinente e mostra a petulância de certas esquerdas e sua exigência de atestado de pureza e pleno conhecimento da história da esquerda mundial para quem deseja se juntar às suas lutas: se as pessoas estão usando a bandeira antifascista, eis a melhor hora para chamar essas pessoas para conversar, explicar o que essa bandeira significa, o que ser de esquerda significa, o que é o comunismo - em linhas muito gerais, para não acabar em briga de irmãos entre as diversas seitas, que passam a achar tudo o mais irrelevante diante da imperiosa necessidade de atacar o detalhe dissonante daquele que está ao seu lado. Porém, ao invés de chamar para conversar e acrescentar, prefere chamar os neófitos de burros ignorantes - um primor da inteligência estratégica que as esquerdas destes Tristes Trópicos parecem imbatíveis.
Há um além: a adesão de parte da direita que não tem problema em se aliar com os fascistas ao grito antifascista da moda mostra que haveria uma possibilidade de retomar parte da narrativa por parte das esquerdas, apresentando-se como um campo de luta pela defesa dos direitos humanos (esse que o manifesto do Juntos não fala), dos trabalhadores, dos excluídos das benesses do sistema, das culturas diversas e plurais, um campo acolhedor. 
Mas a combinação de “acolhedor” com “esquerda” parece, pelo que se lê em vários revolucionários de classe média da internet (aí incluído muitos professores universitários), mera construção teórica ou fato passado (pretendo me deter mais nessa questão em outro texto). O ressentimento é o modo predominante de fazer política também de parte das esquerdas. Um erro estratégico sem tamanho: a direita, em especial a extrema-direita, leva ampla vantagem na mobilização do ressentimento e na captura dos tocados por esse afeto. Por sorte, há uma esquerda menos vinculada à universidade e à classe média que sabe o que é mobilização, trabalho de base, empatia, acolhida - falta-lhe o que Bourdieu chamou de capital social e cultural para ter mais visibilidade, além, é óbvio, capital econômico. É nela que podemos vislumbrar esperança que não seja projeção narcísica de desejos pequenos burgueses de protagonismo inconteste.

03 de junho de 2020

quinta-feira, 28 de maio de 2020

"Comunistas", atestados de pureza e empecilhos para uma união pela democracia


Bolsonaro deu hoje, 28 de maio, mais um piti de machão (crê ele ser de machão) e avisou que "acabou, porra!". Não fui atrás das reações a seu ato, mas desconfio que haja vários proeminentes políticos, jornalistas, intelectuais e formadores de opinião dizendo que "agora Bolsonaro passou dos limites", com uma certeza e amnésia indefectíveis, tal qual quando falaram a mesma frase dois, três, cinco, dez dias atrás; ignorando que Bolsonaro ultrapassou os limites em 1999, ao defender publicamente na tevê o assassinado do presidente da República. Depois disso não havia mais limites, era apenas conivência com um deputado do baixíssimo clero, e depois com um aliado de ocasião das elites nacionais e internacionais, que acabou por se tornar presidente. Esse papo de limite me lembra as aulas de física do segundo grau (que eu ia bem mal, por sinal), a Lei de Hooke, F=k.x, sendo que para Bolsonaro o k, que marca a constante elástica, tende ao infinito, e só será mesmo rompido quando for tarde demais para seus críticos dizerem que ele "ultrapassou os limites", pois ele terá realizado aquilo que é seu desejo: "a Constituição sou eu".
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Se há dificuldade das esquerdas em chegar a um entendimento de defesa da democracia mais rasteira - essa que permite que se discutam os problemas sociais e se apresente propostas de soluções alternativas -, que dizer da necessidade de se unir a forças da direita democrática para barrar alternativas fascistas que se desenham em modelitos menos toscos que os atuais ocupantes do Planalto - esses que dizem que vidas importam mas seguem fomentando chacinas de pretos pobres periféricos, como se o problema do vírus fosse prejudicar os números de sua polícia.
Porém, mesmo uma união menos ampla, entre esquerdas e/ou forças progressistas, tem parecido difícil de acontecer, justo porque o modo de pensar não difere muito do pensamento neofascista dos bolsonariamos - sinal dos tempos, talvez -, apenas diferindo cosmeticamente. 
Se soa anedótico que todo mundo que rompa - ou apenas que não se alinhe imediata e acriticamente - com Bolsonaro se torne "comunista", as esquerdas são apenas um pouco (não muito) mais disfarçadas nesse quesito, ao cobrarem atestado de pureza para quem quiser estar ao seu lado na luta contra o fascismo e por um mundo mais justo. Pior: ao menos o bolsonarianismo repele aqueles que se afastaram, parte das esquerdas tem a proeza de repelir aqueles que se aproximam: a enxurrada de críticas a admitir Felipe Neto ao seu lado, por ele ter apoiado o golpe, mesmo ele fazendo publicamente autocrítica e atacando pontos caros do pensamento conservador, como a meritocracia, talvez aponte para um saber inconsciente da sua impotência para pôr em ação tudo o que gostaria - por conta tanto da vida real, da política real, do mundo real, quanto da fraqueza do trabalho de base e tibieza das lideranças -, que prefere se fechar num gueto, na garantia de não precisar ser cobrada por seus erros depois.
Parece-me que falta a nós uma leitura básica e não cristã, não moralista de Maquiavel: a ética política não é a ética das relações pessoais, antes das relações de poder; assim como as relações políticas são feitas com vistas ao futuro, mas com base no presente, afinidades presentes num contexto presente - o tal "wishfull thinking", as "profecias autorrealizáveis", não funcionam nem mesmo nos mercados de dinheiro fictício, como provou Soros, em 2002, com seu "ou Serra ou o Caos". Cobrar atestado de pureza de quem quiser lutar ao lado ou temer se unir a alguém que será adversário no futuro é o caminho para irrelevância - se não for para a derrota. 
Em 1983-1984 estavam no mesmo palanque políticos conservadores de famílias tradicionais, lideranças da esquerda pré-64, intelectuais de vários matizes e capacidades, um líder sindicalista em ascensão, políticos egressos da Arena: caminhos diversos que convergiram nas Diretas Já, e logo divergiram no caminhar da balbuciante democracia brasileira. Uma frente ampla feita apenas de poucos que concordam em tudo não será ampla, nem será efetiva - e o momento que vivemos nos pede efetividade antes de tudo, como condição para poder seguir trabalhando com as utopias que nos mobilizam.

28 de maio de 2020

PS: falo das esquerdas por ser o campo no qual me incluo, mas não quero com isso responsabilizar exclusivamente as esquerdas pela dificuldade em formar essa união pela democracia ou contra o fascismo. É notório que (boa) parte da direita, aproveitando de sua superioridade na correlação de forças atual, tenta vincular a defesa da democracia com reformas estatais anti-povo, às quais as esquerdas se opõem radicalmente. Vale notar a diferença para Macron, por exemplo, que suspendeu as propostas polêmicas desse tipo em favor de centrar na questão do combate à pandemia, conseguindo assim uma efetiva união nacional.

PS2: como de costume, não sei escolher título.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A crise da democracia liberal-burguesa [Zeitgeist 2033]

Repentinamente o mídia internacional se interessou pela democracia na República Democrática do Congo, no centro da África - assim como se preocupou com a democracia venezuelana na América do Sul (por sorte, o Brasil passou ileso das atenções internacionais, apesar de suas eleições suspeitas desde o início). Se a Venezuela possui petróleo, o Congo tem enormes jazidas minerais, em especial de cobre o cobalto, essenciais para smartphones e carros elétricos. Em comum nas admoestações do "Ocidente", o discurso de preocupação com direitos humanos, pobreza e democracia - não sei se é relevante, porém é comum também o fato de que os vencedores dos pleitos congolês e venezuelano não agradarem ao capital internacional (por mais que a Venezuela faça negócios com os EUA, não entrega suas reservas a preço de banana de xepa, como certo país tropical). No caso do país africano, não deixa de ser significativo que o candidato declarado vencedor por observadores internacionais - Martin Fayulu - seja ex-executivo de uma petroleira, a Exxon Mobil (parênteses: vale também ressaltar que a tentativa de pintá-lo como um líder abnegado, alguém que se guia apenas por interesses comuns, nunca individuais, raro em qualquer parte do mundo [https://on.ft.com/2FNPo40], é de um farsesco ridículo, mas que tem marcado a mídia nestes tempos de ascensão neofascista, vide o "Mito" que ocupa o Palácio do Planalto, ou mesmo antes dele, a ridícula "necessidade" de Willian Corrêa provar que Michel Temer "é gente como a gente, o senhor existe realmente" [http://bit.ly/2HowEdL], na grotesca tentativa de criar uma mitologia para o golpista, reedição pós-moderna de "Carlos Magno e a Távola Redonda").
Contextualizando rapidamente para quem não tem tido tempo para acompanhar o que acontece além-mar, sufocado por Ibamas, carros, laranjas, milhões em nota de cinco, azuis e rosas, índios mortos, Lula preso, Moro solto e análises de Marx sobre a primeira guerra mundial: Congo era antigamente o Zaire, controlado por Mobutu, deposto por Laurente-Désiré Kabila, em 1997. Em 2001, Laurente-Désiré é morto e assume seu filho, Joseph Kabila, no poder desde então. Em 2016, acuado, Kabila convoca eleições, que são adiadas constantemente. O pleito se realiza, finalmente, em dezembro de 2018. O candidato do governo, Sharaday fica em terceiro; o oposicionista Fayulu, nos resultados oficiais, em segundo, e o oposicionista Félix Tshisekedi, filho do histórico líder oposicionista Etienne Tshisekedi, falecido em 2017, é declarado o vencedor. Observadores da igreja católica e vazamento de dados de urnas apontam vitória de de Fayulu com cerca de 60% dos votos. Tshisekedi, logo após o resultado, se encontra com Kabila, e isso é lido como um acordo entre o atual mandatário e o oposicionista conhecido do status quo do país, mais confiável para garantir uma transição "tranquila" - nem que se use de fraude nas urnas -, a entregar o poder a um outsider aventureiro. É de se acreditar que deveras houve fraude.
Vários questionamentos surgem a partir desse imbróglio, ressalto dois. O primeiro e mais óbvio: por que dois pesos duas medidas? Ainda que fraude no Congo seja grosseira - alteração dos votos -, a fraude na eleição brasileira, não é por ser mais sofisticada que deixa de ser fraude: o principal candidato ao governo é condenado e preso por "crimes" - sem se especificar qual, quando, como, por que: "atos de ofício indeterminado" ou "por causa de umas paradas aí, tá ligado?", para usar uma linguagem mais jovem. Com base em uma lei que não valeu para 1400 outros candidatos, é impedido de concorrer [http://bit.ly/2U9KWjQ]. Vence o candidato neofascista, e o articulador do impedimento de Lula, que tentou interferir na disputa também durante o pleito, assume cargo no novo governo como recompensa pelo bom serviço - causas e efeitos todos muito bem determinados. Outro questionamento nessa linha: por que toda essa atenção ao Congo e nenhuma ao Gabão, país rico em petróleo, onde houve uma tentativa de golpe de estado há duas semanas - será por que o presidente gabonês, Ali Bongo, é moço de recados da França na África enquanto sua família é a dona do petróleo do país (e da cadeira presidencial desde 1967)?

O segundo ponto é um pouco mais estrutural: das promessas do sistema liberal-burguês e sua impossibilidade de entregá-las. Na verdade, ele sequer é capaz (ou tem interesse) de oferecer o mínimo: informações suficientes para uma decisão racional por parte dos cidadãos - isso se é possível uma decisão racional ao molde do que defende a teoria liberal, o que temos visto cada vez mais são escolhas passionais e irrefletidas, mesmo por parte de gente tida por intelectualizada.
E o que promete o sistema democrático liberal-burguês? Basicamente liberdade política para os cidadãos se expressarem e escolherem seus representantes, os quais, durante a corrida eleitoral, apresentam suas propostas do que irão mudar ou manter no funcionamento da máquina pública e na sua relação com a sociedade civil.
Vale questionar o quão limitada é essa "liberdade política": o que pode ser dito, quem tem direito a se candidatar, quem tem o direito de votar, quais as regras do processo eleitoral? Se o discurso de liberdade marca a democracia liberal desde o início, desde seu início também corre em paralelo uma série de restrições - na verdade, desde a democracia grega, quando todos os cidadãos podiam participar dos negócios da pólis, mas apenas a minoria de seus habitantes eram considerados cidadãos. As restrições, contudo, não servem para salvar a democracia liberal - de fato, elas são seu coveiro -, e sim para salvar o modo de produção, que precisa manter a fachada de liberdade (que não se sustenta na realidade, ou alguém acha que a vendinha da esquina pode disputar livremente com o Walmart?). As restrições ao poder de ação do estado que acompanham a ampliação da participação democrática (ou sua possibilidade, ao menos), tem como intuito relegar a política à irrelevância (pontuado por Debord, em 1967, e por Chico de Oliveira, no século XXI), e permitir aos agentes econômicos atuarem pensando apenas na sua maximização de utilidade no mercado - sim, esse ideal de irrelevância política (o fim da história) é acompanhando de pressões contraditórias, desde a necessidade do Estado como balcão de negócios da burguesia até a do Estado limitador da voracidade do capital contra o trabalho.

Para disputar um cargo político, além das regras explícitas que delimitam quem tem esse direito, há a necessidade de capital - econômico e social - para ter realmente chance de vitória: a mera liberdade formal é apenas um faz-de-conta sem efeitos práticos (que o digam os que votaram 54 em 2018). A internet é uma mudança não esperada nessa relação, talvez por alterar os termos do capital social, e também por movimentar de modo bastante nebuloso vultosas somas de capital econômico. Não é um efeito menor, como atestam as eleições de Trump e Bolsonaro, e o Brexit. Entretanto, como seu uso tem sido antes favorável ao sistema, promovendo "revoluções conservadoras", o ímpeto de controlá-la não se faz tão urgente - me questiono agora o quanto a internet 5G vai além de aspectos econômicos, e daí o caso Huawei.
Assim como a ampliação a quem tem direito a disputar um cargo eletivo, a ampliação do direito de voto ocorreu por conta das lutas populares, ao pressionarem as elites, os detentores do poder, a seguirem os próprios ideais que apregoavam. Cada pequeno avanço na ampliação da cidadania é acompanhado de rearranjos do Estado e das regras eleitorais, de modo a tentar garantir que nenhuma grande mudança acontecerá - como a forma de composição de governo (como na Itália pós-guerra) ou mudanças na divisão dos distritos eleitorais (como nos EUA atualmente). Se acaso vence um operário, por exemplo, uma série de salvaguardas - do "vice caução" a uma carta ao "povo" com o dinheiro da nação - são tomadas para ter certeza de que não haverá solavanco.
Porém, não apenas a democracia é limitada por suas regras e sua dinâmica de funcionamento, o próprio Estado, no seu desenho, na sua continuidade no tempo, nas suas relações internas e internacionais, nas relações de forças que o permeiam, é bastante engessado, com poucas aberturas para inovações e rupturas, mesmo que expressas em voto popular - ao menos em tempos normais, em tempos de crise, a coisa muda de figura. Não cabe aqui classificar se tais limitações são boas ou ruins - "do bem" ou "do mal" -, há aspectos positivos e negativos, como tudo. A questão é que o discurso liberal oculta essa face do Estado e da política, e segue não apenas permitindo promessas, como ele próprio reitera tal parlatório que de modo algum tem como entregar - o "tem que mudar tudo o que está aí, tá ok?", ou mesmo a construção de um muro que resolveria todos os principais problemas de um país. Manter viva a esperança de mudanças drásticas e rápidas é uma forma de forçar as pessoas a seguirem acreditando que o imobilismo amanhã vai se tornar movimento - e redenção!
Fayulu, pelo que pude acompanhar, é um outsider do establishment político com ótimas ligações com grupos internacionais. Não que Tshisekedi dê pinta de ser nacionalista, socialista, a favor das causas populares e da independência de fato do país - também ele desembarcou há pouco no Congo, mas pelos laços familiares, soa um político mais bem relacionado com o status quo local, apto a fazer essa ponte com o exterior sem excluir dos novos arranjos os que sempre lucraram com o colonialismo e seu pretenso fim. Não parece haver dúvidas quanto à fraude, porém cabe a pergunta: o país resistiria à vitória de Fayulu sem entrar em uma nova guerra civil? (ou, para usar exemplo brasileiro: o país resistiria a uma vitória de Lula sem um novo golpe militar?).
Não se trata aqui de defender ou justificar a fraude! Estou propondo dar um passo atrás e questionar por quê se chegou a esse ponto: a democracia, no mundo atual, é capaz de realizar seus ideais? Eleições livres, partidos democráticos, liberdades ampas à população, autodeterminação aos povos? Definitivamente, não. Pela democracia liberal não nos é possível alcançar o que ela própria promete de mais básico, que é respeito às suas regras.
Portanto, antes de falar em mudanças, precisamos deixar muito claro qual a situação em que vivemos, encará-la sem ilusões: democracias de fachada, tuteladas, mutiladas, com regras que só valem se o resultado for a que interessa aos donos do poder. É a partir de uma análise desapaixonada da realidade que se pode discutir e articular a construção de novas bases de luta e reivindicações, sem cair na armadilha de esperar que os entes do Estado de Direito sejam garantia dos direitos, ao mesmo tempo em que não se pode negar que a luta institucional, explorando tais contradições e cobrando suas resoluções (afinal, enquanto ideais abstratos, não há muito que se reclamar do que propõe o liberalismo), é parte imprescindível da construção de um mundo melhor.
A falta desse tipo de educação/ilustração política, deixa em aberto o caminho para o desalento com a política, uma porta fácil para apelos a ressentimentos vários - para dar um pouco mais corpo e identidade a esse ressentimento inaugural com a democracia -, culminando na adesão a políticos "antipolíticos" "sinceros": são eles que denunciam o engodo desse ideal inalcançável. Entretanto, ao invés de proporem mudanças, melhorias, apenas convidam a uma adequação radical ao que está dado, de modo a enquadrar a todos - políticos, elites, movimentos sociais - na mesma trilha de conformismo e desesperança - e garantia de lucros aos de sempre.

21 de janeiro de 2019

domingo, 18 de novembro de 2018

Metacrítica do fazer artístico e democrático [Diálogos com a dança]

Acontece até dia 13 de dezembro, na Funarte São Paulo, nos Campos Elíseos, o Dança se move ocupa!, intervenção dos artistas da dança de São Paulo. Fui nas aberturas de processo do último sábado - Ato Infinito e Dança para Camille
Não há como não desvincular a abertura de processo de Ato Infinito, da iN SAiO Cia de Arte, do contexto em que foi apresentado - uma ocupação da Funarte, sem aporte financeiro, após a eleição do Messias do apocalipse - e da fala trazida antes de adentrarmos a sala - em que se assinalou o golpe, a ascensão do neofascismo, o ataque à arte e à cultura, seguido do pedido de desligar celulares e de circular pelo palco. Ato Infinito acabou ganhando ares de crítica metalinguística do fazer artístico (e democrático), um convite à leitura das exigências (mais que das possibilidades) da arte, talvez esquecidas, ou melhor, subestimadas, nos últimos anos.
A arte formada pela proximidade, pelo contato, pela tensão. A arte enquanto equilíbrio tenso e instável - porque movimento e porque inserido num mundo para além da arte, em constante mutação -, de conflitos e quedas e retornos e retomadas. Os cinco bailarinos o tempo todo em tensão, em contato, em improvisação, sem rumo certo, perdendo o foco - ou sendo perdido pelo foco, que algumas vezes não acompanha o trajeto dos cinco, quando não tenta se adiantar e se equivoca -, exigem do público permanente atenção. Parte desse público preferiu se sentar na plateia, evitar a fadiga de oscilar pelo palco, sob o risco de ser acertado pelos artistas suados. A música, em tensão permanente também, sem se desenvolver e sem se resolver, é o gozo da repetição do sintoma - poderia, deveria ir além, mas fica nesse ponto de tensão em que se foge de enfrentar sua resolução.
Pus a me perguntar o quanto não nos acomodamos - artistas, intelectuais, movimentos sociais, campo progressista - numa pretensa pax democrática-liberal, quase ao sabor de Fukuyama; quanto não acreditamos na perenidade desse momento quando deveríamos saber era uma situação institucional transitória, isso num Estado que nunca se mostrou confiável que não ao 1%. O quanto esquecemos, por deslumbre, comodismo, preguiça, que democracia - tal qual a arte - é uma construção permanente, um "ato infinito", de atenção, tensão e criação. O quanto não fugimos do contato desgastante com o outro, com o diferente, seguros e satisfeitos em nossas bolhas de mais do mesmo. Me chamou a atenção que os cinco bailarinos tinham tênis novos, solas intactas: soou como a coroação dessa crítica à arte que não sai de si, que não vai para as periferias, que se recusa a ouvir o que não for elogios - e digo isso assumindo que Claudia Palma é das que, ao meu ver, mais se aventuram e com maior sucesso nessa tarefa de tirar a arte desse casulo para eruditos iniciados, sem com isso se rebaixar a fórmulas simplórias e massificadas, não apenas pondo o público no palco como levando seus espetáculos para a rua, estações de trem, viadutos, praças, centro e periferias, sem qualquer solenidade, mas com impacto, como já pude conferir [bit.ly/cG141218].
A segunda apresentação da noite, Dança para Camille, da Cia Fragmento de Dança, serviu de reforço à minha leitura da metacrítica de Ato Infinito. Um espetáculo bonito, poético, onírico, um sonho de um mundo harmônico, duas pessoas com a mesma roupa, no mesmo passo (literalmente). Sem tensão e sem conflito, a abertura ao outro que não passa de um duplo, um espelho de si - um sonho pequeno burguês de solidão a dois, deixando do lado de fora tudo o que é dissonante. É a saída que considerável parte da arte buscou nestes últimos tempos, mesmo que o texto fosse crítico, não deixou de ser uma arte de fuga - fuga da busca do diálogo com quem não é habitual das artes, de atrair novos públicos para uma arte que não é a massificada, mas nem por isso precisa(ria) ficar restrita aos iniciados. E se no início deste século esse tipo de sonho de evasão soava inofensivo, hoje, dormir pode significar ser atropelado, queimado vivo - por ora, apenas metaforicamente, por ora. Pior, se se substituir a poesia pela brutalidade, o mesmo anseio de Dança para Camille embala os discursos dos fanáticos do "mito": a arte precisa estar mais vigilante do que nunca, precisa ser mais combativa que foi nos últimos tempos - e isso não significa adesão a nenhum didatismo ou realismo socialista.
Contudo, como atestam as recentes perseguições às artes pelas patrulhas moralista-fundamentalista, além da unidão (tensa) dos artistas comprometidos com a democracia, os direitos humanos e um fazer artístico que não seja publicidade da brutalidade fascista (neo ou old, tanto faz), a arte precisa ir além da crítica, precisa também propôr, convidar ao sonhar, a um outro mundo, sugerir, induzir a novos fazeres sociais, novas sociabilidades. A abertura conjunta de Ato InfinitoDança para Camille mostram essas duas pernas do fazer artístico, e convidam pensar formas que atuem sincronicamente.

18 de novembro de 2018.