sexta-feira, 30 de agosto de 2002

Brincadeira de criança ou realidade futura?

Pela manhã eu havia acompanhado alguns amigos que foram tirar fotos do Mercadão de Ribeirão Preto. Infelizmente, eles ficaram muito restritos aos produtos, e não ao seu conjunto local-produtos-pessoas. Perderam também a oportunidade de contrastar aquele shopping com o das elites, o qual estão habituados a freqüentar.

Constraste que não está em 'shopping dos pobres' e 'shopping dos ricos', mas no fato de um ser democrático, enquanto o outro é segregacionista. No primeiro, entra quem quer, como quiser, desde que mantenha um mínimo de civilidade; no segundo, dependendo da sua aparência, você pode ser 'convidado a se retirar', e o mínimo de civilidade não é mais suficiente, substituído por um sem número de regras de comportamento – excessivas e artificiais – tipicamente pequeno-burguesas.

Contraste entre um ambiente não muito bem iluminado, colorido, cuja temperatura varia conforme a estação, conforme o dia, e que cheira a fruta, a queijo, a fumo em rolo; e o ambiente bem ilunimado por lâmpadas frias, de vitrines de cores fortes, agressivas, temperatura sempre agradável, e cheiro de desinfetante lavanda e fumaça de cigarro.

Constraste entre o real e o falso, entre o espontâneo e o controlado, entre o mundo de verdade e a ilha da fantasia da classe média (como diz Clóvis Rossi), entre a vida e o simulacro dela.

Mas não era esse o assunto sobre o qual eu queria discorrer. Lembrei das fotos no Mercadão quando, à tarde, na rodoviária, vi uma cena que lamentei estar sem máquina: dois funcionários de uma empresa de ônibus, cujo uniforme lembra o da guarda-municipal, davam atenção à um piazinho. O garoto – que devia ter oito anos, talvez –, vestia apenas uma calça vermelha, rasgada e tão suja quanto ele, brincava com um revolvinho de espoleta. Ao fundo, um ônibus com as cores do Brasil.

O garoto, numa alegria ingênua, brincava com aquela 'pessoa importante' que lhe dava um pouco de atenção. Falava, gesticulava, dava tiro, tomava tiro, corria, parava, pulava. Lembrei da época em que era eu corria, pulava, dava e levava tiro, sujo de rolar na grama e na terra, durante as perseguições aos bandidos imaginários. Porém, notei que havia uma grande distância entre a minha brincadeira e a dele, quando ele apontou a arminha ao funcionário que não lhe dava muita bola e gritou 'Passa o relógio!'. Ele não brincava como eu brincara, numa fantasia que morreria com o término da brincadeira. A brincadeira dele era também um treino para a vida adulta. Era a fantasia daquilo que ele, talvez, queira ser quando crescer, assim como quando um punha a camisa de meu pai e sentava na escrivaninha.

O funcionário olhou para ele com uma cara de pouco caso. O piazinho mantinha um olhar firme, o braço esticado, a arma apontada. Ao fundo, as cores do Brasil. Aquele parecia o retrato do Brasil. Permaneceram assim certo tempo – tempo suficiente para ter pego a máquina e tirado a foto, caso tivesse uma –, até que o funcionário jogou fora a bituca e o piá, correndo, foi apanhá-la, quase queimando os dedos para dar umas tragadas. Pouco depois os três se afastaram. O menino, saltitante e sorridente, com seu revólver de espoleta.

Eu quis crer que ele apenas brincava, que o 'passa o relógio!' não passasse de brincadeira, que daqui dez anos ele estivesse no meu lugar, na U$P ou Unicamp, que suas únicas palavras de ordem fossem contra as injustiças que ele superar, contra o Sistema, em manifestações. Mas tem horas que eu me vejo velho demais para crer em melhoras.


Campinas, 30 de agosto de 2002


quinta-feira, 8 de agosto de 2002

Mangá humano (ou eua made in China)

Tem dias em que abrir os olhos para a manhã que nasce, simulando um renascimento que nunca ocorre, me desgasta. O mundo me amedronta, as pessoas me deprimem, a sociedade me enoja, a vida me cansa. Desculpem a fraqueza e, principalmente, a sinceridade do escriba. A sinceridade é uma desvio de conduta de presença considerável em nossa sociedade, que eu, a duras penas, tento corrigir. Quanto a fraqueza, não sei se é algo inato ou aprendido, e tampouco me interessa saber de quem é a culpa, se de Deus, minha ou dos meus pais; interessa que desde que me conheço por gente tenho essa nuvem pairando sobre minha cabeça, às vezes maior, às vezes menor, mas sempre grande o suficiente para inibir qualquer ação realmente útil de minha parte.

Chega de reclamar da vida, porque, dizem, vida é só uma. Dado que discordo, por ser um, um número catastrófico demais. Pelas minhas contas, o que chamamos de vida, cerca de 10% da população deve ter; os outros 90% têm apenas o que os biólogos chamam de vida.

Porém, esta crônica não tem por objetivo tais discussões existenciais, e sim fazer um comentário de um fato quotidiano, de uma notícia de jornal.

Nos séculos XV, XVI, enquanto muçulmanos impunham sua cultura através de "chantagem financeira", os europeus, os educados e civilizados europeus, impunham-na na base da pólvora. Os tempos mudaram, os métodos violentos e explícitos de impor uma cultura e um padrão de homem ficaram em segundo plano, superados pelas teses científicas e pelo uso da educação (ou seria da ignorância?) para inculcar essas teses e demais preconceitos na população.

Além de humanitários, esses novos métodos eram também muito mais eficientes. Tanto que, no início do século XX, no Brasil fadado ao fracasso por ser um país de negros e mestiços, os negros tinham vergonha de serem negros, e os índios de serem índios. A história mudou um pouco no final desse século: o número de pessoas desses grupos que tinham vergonha de sê-los diminui, os negros porque seguiram o conselho dos mais velhos e embranqueceram, os índios porque seguiram para o cemitério.

Para completar a imposição humanitária, no mesmo século XX ganhou força a propaganda, ainda mais eficiente que a educação, quando aliada à tv e ao cinema.

Se até o século XX impunha-se religião, vestes, língua, a partir dele passou a ser imposto também a forma de agir, de pensar e a forma do corpo.

Mas o mundo não estará completo enquanto não formos todos iguais (será que nos aproximamos da imagem de Deus?). Não basta a forma de olhar ser padrão, o olho também deve ser. Não falo em ter olhos azuis, falo da moda da cirurgia plástica, que chegou à China com um pequeno adendo, além do tradicional silicone: a operação para arredondar os olhos (negamos nosso corpo, nossa raça, nosso rosto, porque não negamos logo nossas vidas?).

Felizmente, ao contrário do que alguns idiotas afirmam, a história não chegou ao fim. Ela segue seu curso, como fez até hoje, e logo há de haver uma curva brusca nesse curso. Não fosse assim, no futuro as pessoas estariam agindo, olhando, se vestindo, falando, sorrindo, comendo, pensando, todas exatamente da mesma maneira. Poderíamos, enfim, afirmar, tão categóricos quanto Fukuyama afirmou o fim da história, dessa vez, porém com alguma (para não dizer total) propriedade, a vida é só uma.


Campinas, 08 de agosto de 2002

sexta-feira, 2 de agosto de 2002

A tv e o Mito da Caverna

Apesar do surgimento e difusão da internet, esta ainda está longe de exercer a mesma influência que a televisão e o cinema; pode ter mudado (ou estar mudando) alguns padrões de comportamento, mas não parece (a mim, pelo menos) apta a desbancar a "dupla dinâmica" num futuro próximo.

Apesar de ter papel decisivo, fundamental, desde a redemocratização, é na atual eleição, após o estouro da bolha pontocom e sua acomodação no devido lugar, que a televisão exerce sua maior influência – poder quase hegemônico. Isto talvez devido ao aumento, a cada eleição, de eleitores cuidados (e criados) pela babá electrônica; quem sabe daqui dez, quinze ano, quando a geração educada em wwws e arrobas for votante, a internet roube uma parcela do poder da tv.

Mas não é apenas nas eleições que se percebe as conseqüências da babá electrônica. A passividade dos jovens de hoje não destoa muito da de quem está escarrapachado no sofá, assistindo tv, que num ápice de atividade e vontade própria, estende o braço, pega o controle remoto, e troca de canal. A internet, por sua vez, traz um pouco mais de atividade, dado que sem decidir aonde se quer ir, não se vai a página alguma. Em compensação, a internet consegue ser ainda mais solitária e egoísta que a tv, mesmo havendo os bate-papos e afins. Resta saber se os programas "interativos" da tv, como big-brothers da vida e perguntas do futebol, são uma forma de tentar coagir internautas à tv ou a alegação de que a tv, em breve, quedará em segundo plano.

A "dupla dinâmica" tem mudado também nosso olhar. Perdemos o interesse e a capacidade de ver detalhes, minúcias: estamos habituados à rápida seqüência de imagens, que não nos dão tempo para observar nada além do necessário para a trama. Ao mesmo tempo que perdemos a visão para os detalhes, nos acostumamos à poluição visual. Simples e poluído, esse parece ser o padrão visual, estético atual; observável em capas de revista, logomarcas (ainda mais se comparadas às antigas), e mesmo na decoração de ambientes.

Apesar de ter sido evidenciados os aspectos negativos, claro que a tv tem aspectos positivos, tal como exigir da pessoa capacidade para concatenar imagens rápidas e distintas, compreendendo o todo (bem evidente nas estórias "contadas" nos vídeo-clipes), entre outros. Porém, o lado negativo parece prevalecer.

Contardo Calligaris, em seu artigo na Folha de São Paulo de 05 de julho de 2001, "Gorila entre nós", comenta que pessoas deprimidas tendem a enxergar detalhes que à maioria passam despercebidos. Talvez a depressão, mal deste início de século, seja porque a pessoa, acostumada à fantasia da tv, ao se deparar com algum detalhe incômodo do mundo, se veja sem ação e sem saída. Disso, passaria a enxergar outros pontos indesejáveis, que o deprimem mais, e assim num círculo vicioso, que cessaria quando este passasse a agir, quem sabe num trabalho voluntário, quem sabe matando colegas e professores, ou (mais comum), deixasse de enxergar o que o incomoda, com ajuda de um profissional, ou usando drogas.

De qualquer modo, influencie ou não, seja co-responsável ou não pela depressão, a tv revive o Mito da Caverna, de Platão: preferimos ver o pôr-do-sol pela telinha, a olhar para fora e contemplá-lo em toda sua amplidão.



Campinas, 02 de agosto de 2002