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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Um cavalo de Troia no Le Monde Diplomatique - Comentário sobre o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança"

Os fascismos do século XX, assim como suas versões repaginadas neste início de século XXI, não são apenas formas de gestão do estado e da economia, não atuam apenas na macropolítica, como penetram profundamente no tecido social, nas relações micropolíticas, influenciando a sociabilidade como um todo - quantas histórias não conhecemos de famílias que se afastaram desde a emergência dos fenômenos de extrema-direita no Brasil, como o lava-jatismo e o bolsonarismo?

Tem sido comum estudiosos e analistas inserirem as técnicas neofascistas de comunicação e manipulação no seio da guerra híbrida[1]. Uma dessas estratégias consiste em forçar os limites do aceitável no debate público, de pouco em pouco, por aproximações sucessivas, de modo que parece desproporcional recorrer à justiça, e quando se nota, absurdos passam a ser ditos ostensivamente nas mídias e nas casas legislativas - desde da defesa da desigualdade de gênero e de raça, à defesa da tortura ou da criação de um partido nazista -, e nesse ponto, como tudo até então era tolerado, ações (tardias) no sentido de refrear esse avanço contra pactos civilizatórios elementares são apontados como pretensa censura à liberdade de expressão.

Assim como os fascismos do século XX souberam se utilizar das ferramentas de comunicação então emergentes, o rádio e o cinema, os neofascismos deste século XXI também souberam instrumentalizar com eficiência as novas tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais - Debord dizia que o “fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado”[2]. Esta afinidade entre novas tecnologias de comunicação e extrema-direita não me parece ser por acaso: o desenvolvimento da ciência - e as novas tecnologias dela derivada - não é neutro. A ciência faz parte de um “sistema-mundo” capitalista, está inserido dentro de uma lógica, de um momento histórico específico, e ainda que haja espaço para dissidências e questionamentos, o vetor principal é o de reforço da lógica do capital, do status quo.

Na esteira do ativista português João Bernardo[3], advogo a tese de que o fascismo não é um desvio que se aproveita de fragilidades do liberalismo em momentos de crise, e sim o contrário: quando o disfarce liberal mostra seus limites em conter a rebelião das massas e garantir as taxas de lucro, o capitalismo se vê forçado a se apresentar em sua essência, retomando suas raízes ocidentais de submissão, colonização e dilapidação do mundo e de povos tidos por inferiores; o sistema europeu de produção de hierarquias e produção de desigualdades, mundializado desde o século XV, ao menos; ou seja, a necropolítica identificada com o fascismo é iminente à expansão europeia/Ocidental e ao desenvolvimento capitalismo. Por conta disso - da essência destrutiva do capitalismo e da afinidade entre o capitalismo e o desenvolvimento da técnica sob sua égide -, as formas fascistas e neofascistas de socialização, de debate, de enfrentamento agonizante (e não agonístico) na ágora, vão sendo disseminados de um modo que soa natural - por aproximações sucessivas, como disse - até que, sem que se perceba, estamos reproduzindo essas formas de sociabilidade e de visão do mundo - como o punitivismo, por exemplo -, e o debate vai sendo rebaixado a dicotomias simplórias e soluções mágicas, que temos dificuldade para complexificar e reverter. Não por acaso, “costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror”[4]. Isso nos exige atenção e autocrítica permanentes, de modo a garantir que não acabemos, na ânsia de tentar estabelecer algum debate e desmascarar ações mais evidentes do fascismo, por reproduzir os pressupostos daquilo que combatemos - uma coisa é buscar instrumentalizar as técnicas de comunicação já desenvolvidas pela extrema-direita, outra é utilizar suas técnicas de manipulação.

Digo isso porque foi com assombro que li na edição de abril do Le Monde Diplomatique Brasil o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", da jornalista Ariane Denoyel.

Pelo livro que a autora do artigo escreveu - Geração Zumbi, investigação sobre o escândalo dos antidepressivos -, percebe-se que é alguém que tem familiaridade com o tema da produção de doenças para venda de remédios. Contudo, uma coisa é uma “epidemia” de depressão, cujo diagnóstico é bastante impreciso e manipulável[5], outra um caso em que o diagnóstico da doença depende de um teste preciso - uma amostra coletada reagir positivamente ao COVID-19 -, e que matou milhões de pessoas em todo o mundo, em um curto espaço de tempo (ainda que o número exato possa ser questionado, como a autora faz).

O artigo em questão me pareceu muito estranho na sua estrutura e recursos retóricos, por se utilizar de muitos elementos de fake news. Isso já seria problemático, mas o fato de ir de encontro com muito do que a extrema-direita mundial propagou desde 2020, me fez parecer um cavalo de Tróia que conseguiram pôr dentro da revista.

É evidente que ao texto subjaz um viés de confirmação da sua tese. Tese que tem como um de seus pressupostos o de que as grandes corporações não possuem restrições éticas na sua busca pelo lucro. Pressuposto compartilhado por muitos leitores do Diplô (este escriba incluído), e que se lerem o artigo sem a devida atenção podem ser “capturados” pelo raciocínio lacunar mas de fácil entendimento, induzidos a concordar com premissas falhas (por aproximações sucessivas?), até se chegar a uma conclusão que até agora não possui lastro na realidade empírica, ao menos não na forma radical como foi posto pela autora: de que as vacinas foram aprovadas apenas para lucro rápido das empresas farmacêuticas, que se utilizaram com sucesso de todo tipo de fraude e suborno dos órgãos de controle estatais e mundiais para impor seus interesses, à custa da segurança da população e calando todo e qualquer questionamento sobre sua eficácia e mesmo sobre sua necessidade.

É basicamente a mesma tese das teorias das conspirações dos antivax da extrema-direita, mudando apenas o beneficiado da fraude - sai a dominação chinesa, entra a das grandes corporações. Inclusive propõe a mesma saída: se vacina quem quer, ignorando que saúde pública deve ser feita de modo público e não como compras num site de e-commerce com a liberdade absoluta sobre si do homo-oeconomicus; que vacinação só tem efetividade se feita coletivamente, dentro de uma política ampla, para além de (pretensas) escolhas individuais.

A forma como é construído o texto, cheio de nomes de indivíduos solitários lutando contra a OMS, a FDA, a NIH, a ANSM, as grandes corporações capitalistas e sei lá quem mais, é outro ponto que reforça a suspeita de estratégia de manipulação. As citações de artigos científicos sem apresentar uma contestação a eles feitos dão um verniz de sério, mas não sustentam nenhuma delas: todas essas contestações teriam sido validadas pelas revistas e ninguém, nem um mísero cientista foi capaz de as contestar, pôr em dúvida, refutar?! Assim sendo, por que esses gênios não ganharam o Nobel, então? Ah, talvez porque foram “contra o Sistema”, em que ONU, OMS, governos, mídia, todo mundo está na mesma conspiração para vender vacinas e ficar rico destruindo a saúde da população[6]... A própria jornalista não se deu ao trabalho de plantar um “cientista”, que fosse, fazendo o outro lado das acusações - isso não seria o básico do jornalismo, mesmo de opinião, ao tratar de um caso dessa gravidade?

É muito estranho que o artigo levante suspeitas sobre o cuidado em divulgar casos adversos da vacina, ignorando com uma solenidade gritante todo o contexto da época, das campanhas massivas em nível mundial dos antivacinas e anticiência. Se o Brasil foi um caso modelo desse tipo de desinformação, com respaldo presidencial, a França da autora, onde protestos contra a vacina reuniram mais de 200 mil pessoas[7], não estava imune a esse tipo de ação de guerra híbrida. Este trecho aqui, por exemplo, parece ter saído direto de uma live do Bolsonaro: "O órgão também descarta sistematicamente efeitos que não aparecem na literatura científica, mas nós não temos distanciamento suficiente dessas vacinas para excluir qualquer causalidade"[8]. Basicamente um "‘Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz’. Não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem"[9] de alguém que sabe manejar o vocabulário com algum refinamento - só faltou defender a cloroquina, porque o discurso negando a ciência está ali presente, apresentando o método científico como regras forjadas para descartar aquilo que não é do interesse dos poderosos, por mais que as evidências fossem visíveis no “mundo real”.

Que haja contestações às vacinas contra a Covid e à forma como foram desenvolvidas dentro do meio científico, não duvido - afinal, estamos falando de ciência, não de religião. Contudo, esse tipo de debate é muito mais complexo e profundo do que foi apresentado pela autora - constrangedoramente rasa em todo artigo, como sói a todo texto de manipulação.

Por fim, o artigo termina falando da "autocensura dos jornalistas"[10] sobre os efeitos adversos das vacinas. Esse é o recurso básico elementar de qualquer fake news. Sim, artigos sérios também podem apontar esse ponto (e há vários no Diplô, que não coloco em suspeita), mas toda a construção da Ariane Denoyel é arquetípica de fake news, neste ponto ela apenas alterou a ordem do chamariz, tirando do início e colocando no final, para coroar toda a linha de raciocínio que construiu anteriormente - um exercício retórico bem reconhecível.

Não sou da área, logo, pode ser que a autora tenha razão em sua tese; entretanto, a estrutura do texto o desqualifica para um debate sério, dada toda sua construção falha, como assinalei acima. O pior, contudo, é esse reforço à forma neofascista de se relacionar com notícias (e com a ciência) e como, muitas vezes, acabamos por ser capturados por ela.

Estejamos atentos e vigilantes, sempre!


25 de maio de 2023


[1] LEIRNER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas e Política em uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2]DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[3]BERNARDO, João. Labirintos do fascismo (cinco volumes). São Paulo: Hedra, 2022.

[4]GORTE-DALMORO, D. “O Fascismo se enfia pelas frestas”. Jornal GGN, 03 de junho de 2017. https://bit.ly/3OeItUo

[5]Com isto não nego a existência da depressão ou outras doenças psiquiátricas, mas o quanto são tratados como casos clínicos necessário de intervenção farmacológica casos que definitivamente não o são, e poderiam ser resolvidos de modo mais efetivo e menos custoso de outras formas, com outras técnicas.

[6]Confesso que senti falta do Foro de São Paulo no artigo.

[7]“215.000 franceses protestam contra a vacinação obrigatória e o certificado covid-19 pela quinta semana seguida”. El País, 14 de agosto de 2021. https://bit.ly/434myUk

[8]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", grifo meu.

[9]“Bolsonaro se embaralha ao defender uso da hidroxicloroquina contra covid-19”. Poder 360, 16 de julho de 2020. https://bit.ly/3WdLp5F

[10]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança


PS: Texto escrito para a pedido da revista (após um e-mail mais sucinto), mas que não foi publicado.