segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Decoração de Natal

Minha mãe contava que quando era criança se montava o pinheirinho de Natal na véspera, apenas. Lembro dela contar isso quando a geração seguinte, eu e meu irmão, sarneávamos desde o início de dezembro para montarmos o pinheiro. Geralmente ela cedia, e lá pela primeira semana estava montada a tal da árvore. Teve uma vez que eu quis fazer um presépio com meus bonecos dos comandos em ação e do He-man, mas meus pais me proibiram, para grande frustração minha. Enfim, tudo isso é coisa do século passado. Hoje o mundo já é outro, o Natal é outro, apesar do nome e o papai Noel serem os mesmos.

Reparei que em 2009 nem deu tempo dos cemitérios fecharem os portões no dia de finados e já fomos bombardeados pelos novos arautos do cristianismo. As boas novas vieram travestidas de produtos indispensáveis em ofertas imperdíveis que permitiriam que eu antecipasse meu Natal, ao mesmo tempo que postergaria minha dívida até o próximo Natal – o que eu não sei exatamente quanto tempo daria. Dormi no ponto e não quis antecipar meu Natal. E como a data de antanho hoje passa apenas como mais um feriado (no meio das férias, o que o torna um dos meus desfavoritos), tampouco soube aproveitar as super-ofertas.

Além dos novos arautos, outra coisa que há tempos me assusta. Mesmo tendo uma formação religiosa das mais precárias, até onde me constava, Natal era a festa do Sol transformada em festa pelo nascimento de Jesus, o qual teria nascido numa manjedoura – um nascimento simples, singelo, ou seja. Seguindo a trilha dos neo-arautos do Natal, a decoração em Pato Branco, por exemplo, foi um belo esbanjar de cacarecos: soldadinhos de chumbo de três metros de altura, árvores de Natal, papais Noel, enfeites feitos de garrafa pet, sinos, guirlandas, bancos com personagem da Alice, uma casa em forma de chaleira. No meio disso tudo, um Cristo numa manjedoura, anônimo, praticamente esquecido pelos visitantes da super-poluída praça onde ele se encontrava. Encontrá-lo era quase como brincar de “onde está Wally”.

Mas há uma justificativa: a crise econômica. Com a crise, mais os natais fora de época do comércio, não houve fundos para a tradicional competição da casa mais iluminada. Por isso estatizou-se o esbanjamento (coisa que Campinas tinha feito em 2008 e não sei se manteve em 2009). Mas tudo bem, se o Estado brasileiro já não é mais laico, ao menos ele deve seguir democrático, e logo logo teremos feriado (com direito a enfeites, claro) do Ramadã, do Pessach, ano novo chinês, e por aí vai. E o bom é que eles não devem cair no meio das férias escolares!


Pato Branco, 28 de dezembro de 2009


Errata: Contrariamente ao que tinha dito na crônica "A política partidária é uma coisa muito simples", Serra não é economista em sentido estrito, uma vez que não possui graduação em economia. Curiosamente, aparentemente, ele não possui graduação alguma, apenas pós-graduações. Agradeço à Marina, estudante de economia que promete não disputar o lugar de Deus depois de formada, pela informação.

www.estadao.com.br/noticias/nacional,serra-rebate-mercadante-e-diz-que-curriculo-e-legitimo,420871,0.htm

www.paulohenriqueamorim.com.br/?p=6196


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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Sobre a Casuística

A arte definha. O que nos resta hoje ou são velhas referências já estéreis – Caetano, Zé Celso, Cony –, ou são produtos insossos da indústria cultural – de qualidade sofrível, ou mero requento de modas passadas –, ou alguns pequenos grupos e movimentos que conseguem certa visibilidade marginal na grande imprensa, mas que se fecham nesse círculo de marginais-não-tão-marginais. Até mesmo os poetas de 18 anos, outrora infindáveis (quem não arriscou versos na adolescência?), parecem estar diminuindo, perdendo o vigor. O que resta, então, são simples consumidores de arte, acríticos ou saudosistas.

Esse é um discurso recorrente nos círculos ilustrados, e uma impressão que acaba marcando muita gente, inclusive poetas de 18 anos (ou mais) e escritores de domingo. Porém, qual não foi minha surpresa, ao agitar junto com alguns amigos uma revista eletrônica de artes antiartes heterodoxias, e mesmo fazendo-o de maneira muito tímida, conseguirmos uma primeira edição de 100 páginas!


A edição 14 Casuística (a primeira) foi uma mostra de que há muita gente produzindo, tentando criar sua arte, mas que falta espaço para divulgação dessa produção independente, reféns que estamos da imprensa, da indústria cultural. A internet é um ótimo meio, mas quantas milhões de página na rede não existem para conseguir achar as desses artistas? E mesmo que as ache, quantas páginas não são atualizadas continuamente. Quem tem tempo de percorrer diariamente um sem fim de blogs para acompanhar tais novos artistas?


O estilo revista da Casuística ajuda ao fazer certa seleção. Também garante uma estabilidade aos textos e mais tempo aos seus leitores, uma vez que é possível levar vários dias para lê-la, ou retornar a ela para reler um texto sem se perder em novas atualizações. Isso nos faz lembrar da necessidade de se refletir sobre o que se leu, capacidade que temos perdido na nossa ânsia de estarmos sempre atualizados.

Casuística 14, por ser ainda uma primeira tentativa, não conseguiu funcionar em eixos, conforme pretendia, e acabou por ser mais uma coletânea de textos. Há, de qualquer forma, certa coerência, certo diálogo entre vários desses textos. Mais importante: tem gerado diálogos entre muitos criadores que dela participaram, ou que dela ficaram sabendo só depois de pronta: novos coletivos, novos experimentos, novas idéias para intervenções e ocupações urbanas já despontam nesse breve período desde sua chamada, em início de outubro.

Aos que se interessaram em dar uma olhada, fica o aviso: Casuística não se pretende ser arauto de nenhuma vanguarda; há ali tentativas, experimentos – às vezes válidos mais para os escritores do que para os leitores. Não é também nenhum caça-talentos: há bons escritores, bons textos, boas artistas plásticas, bons polemistas, mas, por ora, pouca coisa além do que pessoas medianas conseguem produzir. Parece pouco? Convenhamos que grandes escritores e artistas não surgem aos borbotões, e mesmo os que despontam, não aparecem já prontos e acabados. E arrisco dizer que a maioria que está ali não tem a preocupação de ser um novo Machado de Assis, mas que escreve antes para se divertir.

Ser lúdico, contudo, não impede de ser sério, de buscar certa qualidade. Porém, além da qualidade, há a preocupação em experimentar, em tentar inventar, sem se preocupar aonde isso vai levar. Como diz no texto de apresentação, Casuística é encruzilhada: uma série de possibilidades em aberto, apenas esperando para serem criadas.

A revista está pode ser acessada pelo endereço www.casuistica.tk


Campinas, 18 de dezembro - Pato Branco, 21 de dezembro de 2009.

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sábado, 12 de dezembro de 2009

A política partidária é uma coisa muito simples

Houve um tempo em que para entender a política partidária era preciso perder um bom tempo estudando e se informando. Havia os partidos de direita e os de esquerda e os de centro. Havia partidos nacionalistas, internacionalistas e entreguistas. Isso para não falar na miríade babilônica de agremiações esquerdistas: maoístas, leninistas, trotskistas, etc, todos falando a mesma coisa para os leigos mas afirmando que as correntes adversárias eram, no fundo, direitistas travestidos de revolucionários.

Porém, nestes tempos de partidos que os cientistas políticos chamam de “catch all party”, tudo ficou muito simples. Tomemos como exemplo as eleições internas do diretório paulista do PMDB, partido da base de sustentação de Lula, cogitado para ocupar o vice em eventual chapa de Dilma em 2010, cargo que ocupou em 2002, na chapa de Serra, do PSDB, depois de ter integrado a base do governo FHC.

Leio no jornal que o PT apóia a candidatura de Francisco Rossi para a presidência do partido no estado. Rossi, vale lembrar, foi expulso do PDT em 1998 por declarar voto em Paulo Maluf e não em Mário Covas, do PSDB, no segundo turno das eleições para governador daquele ano. Nestas eleições internas do PMDB, o candidato apoiado pelo PT enfrentará o atual presidente do diretório paulista, Orestes Quércia, conhecido de outros carnavais por caçar bois pelos pastos paulistas, e que em 2002 recebeu um atestado de probidade do então candidato da esperança Luís Inácio Lula da Silva, do PT. Hoje Quércia – que tem apoio de Michel Temer, seu adversário no partido, ex linha de frente de FHC, hoje linha de frente lulista, cogitado para vice de Dilma – é serrista, ou seja, apóia aliança do PMDB na eleição para presidente de 2010 com o tucano José Serra, vencido por Lula em 2002. Serra é economista mas foi ministro da saúde nos governos FHC (reconheço que um economista na saúde é muito melhor do que um médico na economia). Nacional-desenvolvimentista, era contrário às políticas neoliberais do ex-presidente, as quais tinham o entusiasmado aval do então PFL, hoje DEM, cujo então presidente – Jorge Bornhausen – chegou a afirmar que o apagão de 2001 foi conseqüência da não privatização da Petrobrás – por breve período denominada Petrobrax. Isso, contudo, não impediu Serra de dar alento ao DEM, partido que definha a cada eleição, ao colocar como prefeito da principal cidade do país Gilberto Kassab. Kassab, todos sabem, foi secretário de Pitta, cria de Maluf. O mesmo Maluf que hoje é da base de sustentação de Lula e que em 1998 tinha sua foto estampada junto à do candidato à reeleição pelo PSDB, FHC. Voltado à disputa atual do PMDB, Quércia admite que Rossi pode, sim, ser candidato ao governo do estado, desde que o partido apoie Requião na sua campanha à presidência. Requião, tido por alguns como o Chavez brasileiro, é do PMDB lulista, e se lançou pré-candidato à presidência em 2010, contrariando os planos de Lula.

Simples, não? Nada de esquerda, direita, programa, propostas, hoje a política se resume a "é meu amigo" ou “estou de mal”, igual criança. Pena que eles mexam com coisas muito sérias.


Campinas, 12 de dezembro de 2009

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sábado, 28 de novembro de 2009

Lei antifumo?

Bater no mais fraco é sempre mais fácil que peitar o mais forte. Isso vale não só para briga de criança como também para a política.
Conversava dia desses com meu irmão – estudante de direito e estagiário do Ministério Público – sobre a lei antifumo do Serra (que agora possui uma versão paranaense). Ele comentou que há uma série de ações diretas de inconstitucionalidade contra alei, uma vez que é da alçada federal tratar do assunto. Ou eja, pode ser que a lei caia não só por ser estúpida – como a qualifiquei em crônica passada -, como por ser ilegal.
Me pondo de lado dessa discussão jurídica, da qual nada entendo, questiono qual a eficácia desse tipo de lei na diminuição no número de fumantes (ativos, os passivos é evidente). Quem há muito fuma, não será por ter que ir a um local descoberto que deixará de sentir necessidade de e prazer em fumar. Já os jovens, sempre ávidos por rebeldias bem comportadas, o estigma do cigarro pode ter efeito contrário. Vejam como sou rebelde e não ligo para os olhares reprovadores, pode pensar o jovem de dezesseis anos, isolado num canto enquanto fuma seu cigarro, vestido com uma camiseta da Marlboro, para chocar um pouco mais.
Vivemos em um mundo dominado pela imagem e pela publicidade. Importa o que parece, não o que é. O cigarro não seria alheio a essa dinâmica. Lembro no ensino médio duas amigas fumantes falavam de uma terceira: ela fuma Derby! Coisa de pobre, me explicaram quando perguntei qual o problema.
Mas para Serra, Requião e outros, os responsáveis pelo tabagismo são os bares, a PUC-SP, não os fabricantes de cigarro com seus maços coloridos, sedutores, ou pacotes de seda que lembram embagalens de chicletes. Não seria mais eficiente (mais efeitivo e menos custoso) banir em absoluto a propaganda de cigarro? Não só cartazes ou peças publicitárias, como a própria diferenciação de embalagens: Derby, Marlboro ou Lucky Strike, todas com a mesma caixa marrom-diarréia, por exemplo, a marca em branco, escrita com a mesma fonte e tamanho.
Essa medida, porém, seria bater nos poderosos, em gente com ótimos argumento$ para defender seus interesses. É mais interessante comprar brigas com bares e botecos do que com fabricantes de cigarro e empresas de publicidade. O fato da lei cidade limpa do Kassab não ter sido seguida país afora como a lei antifumo do Serra talvez não seja mero acaso.

Campinas, 28 de novembro de 2009

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domingo, 22 de novembro de 2009

Um domingo adolescente

Ao acordar me olho no espelho, noto que três espinhas amanheceram em minha testa. Quando passar a adolescência, passam junto as espinhas, me diziam há mais de uma década. Também diziam que tão logo eu parasse de crescer para cima, eu começaria a crescer para os lados. E cá estou, com exatamente o mesmo peso de quando tinha quinze anos, apesar de ter uns dez centímetros a mais. Além disso, lembro também que diziam que assim que passasse no vestibular era hora de queimar as apostilas do segundo grau ou do cursinho, porque nunca mais eu precisaria olhar para elas. Como na história da espinha e do peso, acreditei mais nessa. Mas por precaução resolvi guardar meu material pré-vestibular – vai que…

E foi que mal eu pisei (literalmente) na USP para cursar psicologia, e me bateu a certeza: quero fazer filosofia. No fim do ano, mesmo tendo entrado na universidade – e não era qualquer uma! –, lá estava eu prestando vestibular de novo. Não que a psicologia tenha sido um erro (Paulo, Vannucci, Paula, Tati, Disnei, Mara, Roger, Júnior, Carlos, Amarillo, Bruno, Leonardo, Luís, Vinícius não me deixam mentir), mas a filosofia foi realmente um acerto: me encontrei com ela de maneira fantástica.

Por via das dúvidas, guardei o material pré-vestibular.

E eis que hoje, dia em que me deparo com três espinhas na testa, eu que peso o mesmo de quando era vestibulando, me vejo ansioso para não perder o ônibus e chegar atrasado ao local da prova. Quando eu passei, em 2001, a Fuvest era em dois dias. Agora é só um. E quando eu passei não tinha trabalhos da pós apertando e não estava há oito anos sem ralar em física ou química. Foi curioso me ver outra vez preenchendo alvéolos depois de ter calculado um logarítmico (ou fingido ter calculado).

Depois do vestibular, voltando para casa, me deparo com um amigo que morou comigo no primeiro ano de faculdade em Campinas, o João Paulo. Está terminando a residência e veio fazer a prova de especialização. Há dois anos não nos víamos. Continua com a mesma risada, a mesma cara, desconfio que com o mesmo peso. Terá mesmo se passado oito anos desde que entramos na Unicamp? Reparo que ele não tem espinhas na testa. Quem sabe se eu diminuir o exagero em chocolate?


Campinas, 22 de novembro de 2009

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domingo, 15 de novembro de 2009

A lei antifumo na berlinda

A lei antifumo do governador José Serra, do PSDB, que está virando moda em todo o território nacional, está em aporia: ou o governo prova que a lei é séria e deve ser cumprida para não ter que arcar com as penalidades, ou o governo mostra que a lei não passou de um evento midiático.

Se a lei é para valer, trata-se de uma lei estúpida, que traz mais malefícios do que benefícios. Diz ela que na primeira infração, o estabelecimento é multado em R$ 792, na segunda, R$ 1585, terceira reincidência é penalizado com 48 horas de interdição. Se insistir em desrespeitar a lei, o local é fechado por 30 dias. Muito justa e igualitária, ela não faz distinção alguma: vale para O Bar da Esquina como vale para o Shopping Cidade Jardim. Se O Bar da Esquina fechar por causa da lei – o que é possível já na primeira infração –, não há grandes dilemas (fora para o dono): seus assíduos freqüentadores migram para O Bar da Outra Esquina, e a vida segue normalmente. Agora, e se o Shopping Cidade Jardim for pego pela quarta vez pelos caça-bitucas, será interditado, como manda a lei?

Peguemos um caso mais concreto. Em uma das principais universidades do país, a PUC-SP, foram encontradas pela segunda vez bitucas onde não deveria haver. Na próxima vez que isso acontecer, começam as interdições. Se a lei for cumprida, quem ganha com isso? Nem o governador Serra, que seria execrado por um excesso de rigor absurdo.

Pode ser que eu erre, mas acredito que se a PUC for pega uma terceira ou quarta vez infringindo a lei, não vou chegar lá e dar com a cara na porta, onde um aviso anuncia que as aulas serão retomadas no Natal, quando for cumprida a penalidade. Não acontecendo isso, entrando eu normalmente para as aulas, como sempre acontece, vai ficar evidente que a lei antifumo é uma lei midiática, sem efeitos práticos de longo prazo, como foi o novo código de trânsito, há quase dez anos, ou a mal chamada lei seca. Ou, pior, veremos que se trata de uma lei que se aplica somente aos pequenos, como tantas outras leis justas que temos no país.


Campinas, 15 de novembro de 2009

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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Brasil menino

Eu já devia estar mais esperto: peça de teatro que não é só para entreter, não convém se fiar na primeira impressão, essa que sobe (ou desce, não sei) logo quando ela termina. Não que a primeira impressão não tenha sua validade, que não possa muitas vezes ser a formadora da opinião definitiva, mas sempre cabe matutar depois, repensar o texto e a interpretação e ver se não havia algo escondido.

Foi esse o caso da peça Brasil Menino, da Cia. Berro D’Água, de Campinas. Como a própria apresentação diz, a peça se propõe a uma reflexão bem humorada sobre a relação entre a brasilidade, a cultura popular e a cultura de massa e o apelo do exterior.

Os dois atores, Brisa Vieira e Guga Cacilhas, revezam uma série de papéis: idosos e crianças, passando por personagens adultos. E conseguem trazer bem a questão complexa da cultura popular e da cultura de massa popularesca, sem cair em simplismos. As crianças não são as porta-vozes da novidade, pelo contrário, suas brincadeiras ainda têm muito das brincadeiras simples de antigamente; assim como os antigos – como diz meu avô – não são os arautos do conservadorismo. No meio termo – que não fica tão no meio -, o adulto, a quem cabe ser o responsável por puxar o afoxé no carnaval. Esse mesmo adulto que tem seu rádio ligado quase o tempo todo em músicas bregas, de letra e musicalidade sofríveis.

Por um tempo parece que a cultura popular e a indústria cultural conseguem conviver bem. Isso até surgir uma francesa oferecendo ao personagem adulto (eu não lembro dos nomes, para variar) que a acompanhe à França. Diante de tal perspectiva, não há afoxé que resista. A avó ainda insiste para que ele desista de ir “pra outras Alemanhas” e puxe o afoxé, como era o combinado. Contudo, ao ser estendido o convite a ela também, abdica do afoxé pelo sucesso no exterior. O detalhe é que a cultura “popular” que eles vão apresentar na França é inspirada na que toca no rádio do adulto, nada a ver com o relegado afoxé.

Tentei pensar também a relação do texto com o título, algumas idéias pipocaram, mas nada que eu conseguisse amarrar a conteto. Uma certa inocência da cultura popular ou dos seus produtres, ao menos? De qualquer forma, essa foi minha leitura, passada a primeira impressão, de que a peça era meio bobinha (bobinho sou eu). Como peça que não serve para entreter tem várias leituras, acredito que haja outras bem mais interessantes. Para isso depende de assistir ao espetáculo e tirar suas próprias conclusões.

Ps: Página da peça: www.brasilmenino.blogspot.com


Campinas, 30 de outubro de 2009


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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Pequenos poderes

É sábado. O ônibus que faz a linha 3.31, do terminal Barão Geraldo até a rodoviária de Campinas, deve sair às 19h17min. Um minuto antes, motorista e cobrador sobem no carro. Quando o relógio vira a hora exata o veículo já está ligado, as portas permanecem um tempo mais abertas. Dois ônibus vindos dos bairros chegam no terminal. Passageiros descem e vão correndo em direção ao 3.31. Assim que o primeiro se aproxima, o motorista fecha as portas e começa a sair. O homem ainda bate na porta. Mas há uma regra no terminal (creio que depois que um homem acabou sendo atropelado ali), de que uma vez fora do ponto, ninguém embarca. Como o sistema de transporte público de Campinas segue o modelo brasileiro, ou seja, é feito para se servir do público e não para servir o público, esses passageiros passariam agradáveis 40 minutos até o próximo 3.31.

Cena corriqueira, poderia ser sintoma de um sistema que busca certa precisão – nos horários, ao menos. Não é o caso. Um motorista recém demitido, o Francisco, do 3.25, esperava às vezes até dez minutos pelos carros vindos do centro, pois sabia do desagradável que é esperar quase uma hora até o próximo horário.

Outra cena, conversa que escuto enquanto desço a escada rolante no terminal Tietê, em São Paulo. Dois rapazes de classe média estão atrás de mim. Um deles fala, com ar de superioridade, que acha besteira esse negócio de deixar a esquerda livre para quem estiver com pressa. “Fico na esquerda, mesmo. E se o cara estiver com pressa, aponto [a escada normal] e digo: vai por ali”. Conta que uma vez fazendo isso foi empurrado por alguém, e que só não deu uma tranqueira porque “ficou com dó”.

Dou dois exemplos de desconhecidos, mas não seria difícil encontrar casos semelhantes que pratico sem me dar conta. Com a principal diferença que não me orgulho nada de tal tipo de ação.

Ao me deparar com tais situações tenho vontade de questionar o que tal pessoa tem na cabeça, o que ela ganha com esses pequenos sadismos que não acrescentam absolutamente nada à sua vida. Logo me dou conta da mediocridade que não deve ser essa vida, da pusilanimidade que não norteia sua existência. Junta-se a isso os reflexos de uma sociedade em que o poder pessoal é capaz de passar por cima da sociedade – vide os coronéis dos rincões atrasados do país, como Sarney e cia, ou mesmo os coronéis up to date do sul-sudeste avançado, como vários caciques do PT e do PSDB –, tais pessoas mimetizam em escala micro esses desmandos, como forma de se sentirem eles também importantes. Como se fazer alguém perder o ônibus equivalesse a roubar milhões de reais. Para as perspectivas de vida de tais pessoas talvez quase equivalha. Felizmente Brasília tem vagas limitadas.


Campinas, 16 de outubro de 2009.


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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Para além da técnica

Saiu na Folha de domingo uma reportagem que promete esquentar um pouco mais as discussões entre aqueles que acham que a solução da educação está em aumentar o salário e pronto, como, por exemplo, a Apeoesp, e aqueles para quem a precariedade da educação nacional se resolve com metas quantitativas e métodos eficientes de controle e punição, como para o Paulo Renato e o PSDB e o movimento Todos pela Educação. Enquanto esses dois grupos disputam para ver quem tem mais razão e menos bom senso, eu vou falar de enfermagem.
Mais especificamente, falarei dos técnicos em enfermagem, ou melhor, técnicas – já que homens na profissão são raros, principalmente por conta do preconceito. Linha de frente no hospital no contato com os pacientes, a enfermeira, óbvio, precisa ter o conhecimento técnico da profissão na ponta dos dedos. Achar veia aplicar injeção limpar o paciente fazer inalação trocar roupa de cama ministrar remédio pôr sonda. Se não souber fazer isso não pode ser enfermeira (ao menos assim esperam os pacientes). Ocorre porém que se esse conhecimento é necessário, somente ele não é suficiente para ser uma boa enfermeira – por mais que tenha primor na técnica. Uma enfermeira precisa também saber aplicar injeção de ânimo, fazer ventilar do quarto o clima pesado de hospital, ministrar doses corretas de atenção. Umas fazem isso de maneira mais tagarela, outras mais silenciosas, porém precisam ir sempre além dos procedimentos. Em outras palavras, enfermagem exige uma técnica, mas é também uma arte: depende muito do lado humano da pessoa, de estabelecer uma relação de confiança entre ambos, de sentir qual é a do paciente e trabalhar de maneira sutil e intensiva para sua recuperação, para que o paciente saia dali o quanto antes.
Falo de técnico de enfermagem, porém um raciocínio semelhante pode ser aplicado a qualquer profissional de saúde. Como também a qualquer profissão que trata diretamente com pessoas. Políticos, administradores, burocratas e tecnocratas lidam com planilhas, números, gráficos.

Pato Branco, 08 de outubro de 2009.

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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Álcool e direção: responsabilidade social?

Ao fim das corridas, comemora-se com champanhe. Nas pistas e nos carros desfilam marcas de vermute e uísque. Na transmissão da tv Globo, o anúncio de uma marca de cerveja. O circo da Fórmula 1 é custoso e é preciso bancá-lo. Pagando bem, que mal tem, se pergunta hoje em dia. Non olet, dizia há muito tempo Vespasiano. Enquanto isso, as estatísticas de acidentes de trânsito também non olet, ao menos enquanto não for alguém próximo o atingido por um motorista bêbado querendo mostrar que poderia ter sido mais rápido do que o Barrichello.

É de conhecimento geral que quanto mais rápido, pior a pancada. Como é de conhecimento geral que os reflexos ficam prejudicados sob os efeitos do álcool. Felizmente quase todo motorista é tão bom que mesmo a 200 km/h não há risco algum de acidente – quem bate são aqueles barbeiros da F-1. Assim como quase todo motorista, por um efeito rebote ainda não explicado – sequer diagnosticado – pela ciência, dirige melhor levemente alcoolizado. O resultado dessas felicidades é que o excesso de velocidade e o efeito do álcool são as duas principais causas de acidentes automobilísticos no país.

A F-1 é um esporte, corre em locais específicos, sob regras específicas que devem ser respeitadas pelos participantes, ficando claro que se trata de algo diferente de ruas e estradas, onde as regras são também diferentes – daí porque um F-1 chega a 300 km/h e um carro não deveria passar dos 100 km/h. Mas de qualquer forma são carros em alta velocidade correndo em meio a propagandas de bebidas. Alguma coisa errada há. E o duro é que estamos tão acostumados que sequer nos damos conta desse absurdo que é pinga patrocinar esporte a motor – até porque o vilão da vez é o cigarro.

Pior é ver jornalista rodado, professor acadêmico – sem entrar no mérito das universidades em que leciona -, dizer que marca de uísque pôr nome de bebum em capacete de piloto é programa de responsabilidade social. Está no blog do Erich Beting. Ele compara essa ação à da equipe Honda, que havia vendido espaços em seus carros para foto de torcedores, destinando o dinheiro arrecadado a uma causa social. Se a indústria de bebidas quisesse ter um programa de responsabilidade social verdadeiro, bastaria parar de fazer propaganda. Temos aí o exemplo da maconha. Não há qualquer propaganda – salvo quando a polícia resolve prender banda de rap, acusando-a de apologia, mas isso faz tempo que não acontece mais – e o consumo segue crescendo. E olha que fumar maconha dá problemas com a justiça, enquanto tomar um pileque só dá ressaca no dia seguinte.

Beting termina seu texto dizendo que tal ação “é uma boa forma de mostrar como o esporte pode ser aliado a questões de responsabilidade social”. Da minha parte, parece ser antes uma boa forma de mostrar que os jornalistas necessitam de um pouco de crítica antes de reproduzir os comunicados de imprensa que recebem das empresas.


Pato Branco, 02 de outubro de 2009.

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terça-feira, 29 de setembro de 2009

O perigo de viver

Viver é perigoso, dizia Guimarães Rosa. E quem sou eu para duvidar da sabedoria do senhor João. Confesso, contudo, que nunca consegui entender bem os perigos do viver. Talvez porque ainda não tenha me sentido apto para mergulhar em Grande Sertão: Veredas (por mais que o livro já me tenha sido fortemente receitado pelo Hugo), aliado a minha pouca idade, parca experiência, limitada vivência. A vida para mim ainda é muito complicada para conseguir apreendê-la em toda a simplicidade apresentada por Guimarães Rosa.

Tem horas que pergunto se esse perigo não estaria no desconhecer a linha que nos sustenta em vida. Entre a frágil teia de aranha, que num sopro se rompe, e a corrente que prende firme, às vezes mais do que se deseja, em que ponto se sustenta nossa vida? De qualquer forma, imagino que esse perigo é o de menos: mesmo sustentado por um tênue fio, ele nos permite dançar a vida com a alegria e leveza necessárias. Talvez seja maior o nosso medo de voar e nos perdermos do solo em meio a essa dança.

Quem sabe o perigo maior esteja nos fios que vamos tecendo com os outros – próximos e distantes -, como os fios de sol que os galos do poema de João Cabral de Melo Neto se lançam a cada aurora para tecer a manhã. Apanhamos o sentimento de alguém, lançamos nossos a outra pessoa, sem saber por quem passará nesse interlúdio e como chegará – se chegará – ao destino desejado. E de fio apanhado aqui, arremessado acolá, vamos tecendo uma teia de sentimentos em nossa volta, que nos garante mais segurança em nossa vida, mas muitas vezes nos atrapalha nosso ballet pelo mundo. Uma hora nos vemos como a cidade de Ercília, descrita por Ítalo Calvino. Porém não podemos simplesmente levantar nossa casa, deixando ali a teia de nossas relações – que é, no fundo, a teia de nossa vida, do nosso ser.

Contudo, mesmo acostumados aos movimentos limitados por esse emaranhado, um dia algo nos faz despertar aos fios que não nos sustentam, apenas nos amarram. E descobrimos, como os galos a cada manhã, que não é preciso abandonar a Ercília: basta tecer um toldo livre de armação – livre de mágoas de culpas de responsáveis -, tomando cuidado, ao apanhar e lançar os raios que tecemos com os outros, de buscar apenas os sentimentos que nos permitam apreciar a vida em sua poesia.

Talvez o perigo do viver esteja em deixar a vida se esvair em um claustrofóbico novelo por medo do fio que a sustenta romper com a leveza do nosso bailado.

Pato Branco, 29 de setembro de 2009


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sábado, 26 de setembro de 2009

Relatos de viagem

Há quem diga que uma imagem vale mais do que mil palavras. Em alguns casos, quem sabe, até pode ser. Mas eu, amante das palavras, penso antes que uma palavra é capaz de evocar mil imagens.
Comparava os relatos de viagem de duas amigas que há pouco estiveram na Europa. Ambas formadas, ambas gostam de fotografar, ambas escrevem bem – ainda que uma delas, não só pelo título de jornalista como pelas vivências extra-acadêmicas, possua um estilo mais solto. Os relatos da primeira foram feitos principalmente por meio de fotografias: a vemos nas cidades que visitou, em barzinhos, em festas, em restaurantes, no teatro; as fotos geralmente seguidas por alguma breve legenda para não ficarem totalmente aéreas aos amigos que resolviam dar uma passada pelo blog ver quais as últimas. Já a segunda, a formada em jornalismo, a Helô, fez seus relatos inteiramente em texto, ainda que não tenha poupado sua máquina durante a viagem. A diferença entre ambos é enorme. Com as fotos vemos, ah, legal, algumas cenas, paisagens. Mas que na internet achamos mais bem tiradas – em dia de sol, em visão panorâmica –, e que com o Photoshop podemos nos pôr nesses lugares. Já com o texto, passeamos junto com a Helô, sua mochila de doze quilos e a minha encomenda de mil e novecentas páginas, na direção errada para o albergue na madrugada parisiense.
Infelizmente relatos como os da Helô estão por baixo hoje em dia. Não somente porque demandam mais tempo de quem escreve, como de quem os lê. E penso que o principal motivo seja a superdependência do olhar que atualmente vivemos. Tudo precisa ser visto, ainda que pouca coisa seja realmente olhada, observada. E a nossa experiência – cada dia mais parca, rasa – se confunde com esse olhar. Não nos damos conta de que a experiência de estar em Paris ou Londres ou São Paulo, mesmo, vai além do que se vê, exige muito mais da visão: nosso estado de espírito, o estado do tempo, as expectativas carregadas e as sensações despertadas. Quem sabe mil imagens dêem conta de parte disso – como um texto –, mas precisarão ser trabalhadas e ir além de algumas fotografias.
Termino esta crônica com um pedido aos amigos que vão passar um tempo além-mar para mandarem seus relatos em garrafas virtuais. Ainda mais quando são observadores sarcásticos e escritores espirituosos – até por ser uma forma de diminuir a saudade. Seja em Granada ou alhures. Sim, Hugo, é para você: uma boa viagem, mande notícias, relatos, e até fotos, de vez em quando!

Pato Branco, 26 de setembro de 2009

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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A sensação de insegurança

Este domingo uma amiga, a Aline, me chamou para uma festinha bicho-grilo na república de uns amigos dela que fica a trinta metros da minha casa. De bicho-grilo nada tenho. O mais próximo que chego é meu ethos de habitante de cidade pequena: gosto do silêncio, de ouvir os sons da natureza, de assistir a pores-do-sol. Talvez outro ponto comum seja minha preferência por música andina. De qualquer forma, aceitei o convite de bom grado e passei momentos agradáveis escutando o pessoal tocar. Mas não é da festa que quero falar.
A república fica numa casa de quartos grandes e janelas pequenas, sala e cozinha espremidas e um enorme quintal cheio de árvores. Antes desse pessoal havia ali a república de uma outra amiga. A diferença na atmosfera da casa é impressionante - e não falo aqui da decoração.
O portão sempre trancado; à noite, cadeado extra. No meio do terreno holofotes para certificar que não havia ninguém à espreita. Na casa, a chave garantia a segurança. Isso na época em que minha amiga morava lá.
Agora, durante o dia, ao menos, o portão fica destrancado. Os holofotes não estõa mais lá. Um puxado que acumulava entulho foi reformado e virou o quarto de um dos moradores - quarto sem portas nem janelas e com um fogão à lenha. Os carros desocuparam a grande garagem, que virou a sala, local de ensaio e de convívio.
Antes a casa transpirava medo na sua busca por segurança; hoje passa tranquilidade, grande receptividade (é comum bichos-grilos em andança pararem um tempo ali). Ainda que Barão Geraldo seja um bairro bastante visado por assaltantes, a sensação de segurança é maior agora do que antes.
Ao voltar da festa, destrancar-trancar os dois portões que separam minha casa da rua, senti inveja deles. Juntou uma saudade da minha infância, o portão de casa escancarado (ainda hoje é assim) e o maior risco ser o de perder o relógio ou um tênis vermelho por tê-los esquecidos a madrugada toda no pátio da frente.

Campinas, 14 de setembro de 2009

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Carta para a Folha: Polícia

"A foto na página C6 da Folha de 9/9, em que se vê um policial apontando uma pistola contra professores que manifestavam em frente à Assembleia Legislativa do Rio, não mostra uma 'confusão', como diz a legenda, mas um absurdo que permeia a mentalidade da polícia brasileira (e não só): fosse o Brasil um país realmente preocupado com a democracia de fato e esse tipo de 'confusão', arma letal apontada contra pessoas que fazem uso dos seus direitos constitucionalmente garantidos, ganharia a primeira página do jornal e causaria de imediato a demissão do policial e a queda dos seus superiores. Além de nova manifestação. E se é assim com professores, em manifestação no centro da cidade do Rio, noticiada pela imprensa, não é difícil imaginar como não é em Heliópolis. Mas para a imprensa, como para o Estado --enfim, para a nossa elite--, a violência é sempre culpa do crime organizado, o povo é sempre ignorante e facilmente manipulável, a democracia é sempre um valor a ser defendido a tiros de revólver contra quem quiser fazer uso dela."

Campinas, 11 de setembro de 2009

terça-feira, 1 de setembro de 2009

A quinta sinfonia, de Mahler

Não entendo patavinas de música, assim mesmo me arrisco a escrever sobre (se eu fosse só falar do que entendo, nunca falaria nada). Escrevo, então, como alguém que gosta e não como alguém que entende, correndo seríssimos riscos de não sair de rasteiros clichês senso-comum.
Se não for a minha favorita, a quinta sinfonia, de Gustav Mahler, é uma das, e admito que assistir à sua execução ao vivo pela Sinfônica de Campinas, dia 31 de agosto, sob a regência de Lígia Amadio, foi uma emoção.
Composta pouco depois do compositor ter problemas de saúde que quase o levaram à morte, a sinfonia traz o peso, a gravidade desse encontro que inexoravelmente faremos logo no tema com que abre o primeiro movimento: passa a impressão de uma chamada dos Hades. É uma abertura do nível da quinta sinfonia de Beethoven, ainda que não do mesmo poder de concisão.
A gravidade desse tema de Mahler, ao contrário do que se pode imaginar, não parece vir do encontro com a morte, mas do permanente conflito que, quando em vida, travamos contra ela - seja para sobrevivermos, seja para vivermos. Tanto que a sinfonia não adquire as cores pessimistas do réquiem de Mozart, por exemplo, nem a suave redenção do réquiem de Fauré. Afinal, apesar desse marcante tema inicial, de o primeiro movimento ser uma marcha fúnebre, de reiteradamente se ouvir o chamado do Hades nas duas primeiras partes, a música está tratando de vida, em todos os seus aspectos - inclusive do seu fim.
Daí que ela, apesar da gravidade que a perpassa do início ao fim, oscila momentos de luminosidade e momentos sombrios, de tristeza e de alegria, de calma de agitação de tormento. O quarto movimento, já na terceira parte da sinfonia, um adagietto, flutua doce como os melhores sonhos - os quais nem sempre são realizados. Já no quinto, o metal no início cria a expectativa de novo chamado do Hades, mas ele não vem, e o que temos é um movimento alegre e festivo, como a coroar essa existência que começa com o aviso de que o Hades nos espera. Ao término da sinfonia, é seu tema inicial que nos marca, é a trombeta chamando do Hades que cantarolamos na saída do teatro. Tal ressoar não nos traz o temor da morte, apenas nos lembra que essa travessia é parte da vida.

PS: A Sinfônica de Campinas apresentará a quinta sinfonia de Mahler dia 18 de outubro, na Sala São Paulo, às 11h.

PS2: Vi que tem para baixar a referida sinfonia em www.karadar.it

Campinas, 01 de setembro de 2009

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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Mil utilidades. Para quê mesmo?

Houve um tempo em que para cada atividade havia um equipamento específico. Para escrever um texto, papel e caneta ou máquina de escrever; para ouvir música, usava-se um rádio; para ver tevê era necessário um televisor, o qual, se acoplado a um video-game permitia jogar jogos eletrônicos, ou se a um video-cassete, permitia assistir a filmes. Se se quisesse filmar seus próprios, fazia-se mister um trambolho chamado filmadora (vinha numa mala preta). Uma máquina fotográfica - desde que não as profissionais - era muito mais prática, mas só permitia tirar fotos. As únicas coisas que se tinham mil utilidades eram o canivete suíço e uma marca de palha de aço.
Coisas do século passado. Hoje critica-se um leitor de livros eletrônicos por só permitir ler livros. Quanto desperdício: um aparelho para apenas uma função nestes tempos de tudo faz tudo!
De minha parte, começo a notar que vou ficando para trás nesta época multi-uso. Ligo o computador para escrever uma crônica. Antes de desfilar meus dedos pelo teclado, ligo programa de ouvir música. Dou uma checada rápida no e-meio: vai que aquele e-meio inesperado que vai mudar minha vida e que há tanto tempo espero chegou justo nesses quinze minutos desde a última vez que acessei a internet. Nada. Às vezes penso que é por conta de eu ainda preferir escrever cartas. Aproveito também para ver notícias do meu time, por mais que não seja grande entusiasta de futebol. No embalo, lembro de jogar qualquer jogo - rapidinho, uma partida só. Depois dessa partida começarei a fazer algo que presta. Mas descubro que há novas músicas do Radiohead. Vou em busca. Vejo as horas, um compromisso me impede que eu comece a escrever - mas não de pôr um disco do Sigur Rós para baixar. Menos mal que não tenho orkut nem uso msn, ou era capaz de perder esse compromisso também.
Desligo o pc e decido: mais tarde, quando retornar à casa, se eu lembrar sobre o que eu iria escrever, escrevo no papel e uso o computador só para passar a limpo. É... "na minha época" se concentrar era algo bem mais simples.

Campinas, 26 de agosto de 2009


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quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Bons fraseadores (Borges Saramago Mia Couto)

Voltava de São Paulo de carona e a motorista, uma guria formada em música, que trabalha com dança e tem um bom repertório de literatura, comentava da sua decepção com o filme Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles. Segundo ela, mesmo nas cenas mais fortes, o filme não conseguia causar o mesmo impacto que o livro. Foi por imaginar que eu também acharia isso que não me empolguei em assisti-lo. Ademais, ela continuou, o Saramago possui toda uma poética na escrita, possui frases lapidares, coisas que o filme não conseguiu transmitir.
Isso me fez lembrar dele e de um outro autor que considero os maiores fraseadores que conheço (o que não quer dizer muito), e a forma como parecem soltar essas frases em meio às suas narrativas. Imagino esses autores em barulhentos almoços de domingo, todo mundo falando ao mesmo tempo com todo mundo. De repente Borges dá uma breve e baixa pigarreada. A mesa não chega a fazer silêncio, mas as conversas amainam e os ouvidos atentam ao que o escritor tem a dizer. Ele então solta uma das suas frases magistrais, para deleite de todos - mesmo os que não concordam com ela - e a conversa volta a se avolumar, mais rica e animada. Diferentemente vejo Saramago nessa situação. Em meio a toda balbúrdia, o português leva o guardanapo à boca e meio sem graça, como se se tratasse de um arroto, vem uma frase maravilhosa, que muitos correm o risco de não notar, tamanha a discrição.
A conversa com a Paula (a motorista) me fez lembrar de outro bom fraseador, que há tempos pretendia reler - e que o faço agora, empolgado pela carona -, o moçambicano Mia Couto e seu livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Não sei como ele se portaria num almoço de domingo, mas para não ficar feio tanto falar de frases e não citar nenhuma, duas dele: "Os lugares não se encontram, constroem-se" e "O velho Mariano falou, argumentando tudo por extenso. Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento".


Campinas, 19 de agosto de 2009

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sábado, 15 de agosto de 2009

Uma doutoranda em saúde pública

Confesso que encaro o preconceito como ofensa pessoal, por mais que eu não seja mulher, gay, índio, negro, judeu, nordestino ou outra minoria. Também reconheço que não sou imune a preconceitos, mas tento quotidianamente me sanar desse mau hábito. E sei relativizar o preconceito, dependendo de quem é meu interlocutor: em geral pessoas mais velhas e mais simples, por exemplo, costumam ter preconceito contra índio. Não que eu aceite, apenas não encaro como inaceitável, e não raro, dependendo da relação que tenho com a pessoa, tento contra-argumentar.

Duro é quando me deparo com um preconceituoso armado de justificativas científicas, exibindo suas credenciais acadêmicas.

Conversava eu com uma guria do penúltimo ano do doutorado em saúde pública na FCM da Unicamp. Trabalhava desde os 15 anos e dizia que sentia necessidade de se sentir útil. Claro, exigia dos outros o mesmo senso de utilidade. Eu, nessas horas, gosto da frase do Rubem Alves: útil é martelo, serrote, computador, eu sou um ser humano, tenho valor por mim mesmo. Ela torceu o nariz para o filosofeco (o depreciativo é por minha conta) despreocupado com sua utilidade.

Conversa vai, conversa vem, dentre as diversas barbaridades proferidas, defendia a esterilização das mulheres pobres. “Essas meninas de 15 anos engravidam de traficante para ter moral no morro. Esterilizadas, não se procriam e se encerra uma série de males”. Questiono se não era melhor acabar com o tráfico. “Como”. Legalização. “Não adianta”. E que tal investimento forte em educação, melhores condições de vida e de futuro? “Não funciona. O sistema é assim e melhorar a renda das pessoas leva tempo o bastante para que não surta efeito”. Pensei em sugerir câmaras de gás, ou que o cano de escape dos ônibus fossem voltados para dentro dos veículos, que tal?, mas ela se despediu antes, disse que eu era muito chato. Confesso que por isso não me senti ofendido.

Campinas, 15 de agosto de 2009


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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O direito ao descanso é só para quem trabalha

Nos últimos três anos, a agenda que uso tem no seu calendário o domingo como último dia da semana, e não primeiro, conforme aprendi no século passado. Além do incômodo pelas confusões que esse calendário me propicia, nutro uma especial implicância com o domingo – dia na nossa tradição dedicado ao descanso – vir só no fim da semana: dá a impressão de que o dia de descanso e desfrute livre do próprio tempo só é merecido depois de ter passado resto da semana sob o carinhoso açoite do trabalho. Nada mais natural em uma sociedade que cada vez mais trata direitos básicos como recompensas.

Sociedade na qual um dos direitos constitucionalmente garantido é o do trabalho, sem o qual, conforme muitos, não se deveria ter direito ao repouso – no domingo ou qualquer outro dia. Afinal, quem não trabalha é vagabundo. Pior são aqueles que recusam os R$ 450 por 40h semanais, maus elementos por natureza.

Por sinal, debate-se no congresso a redução da jornada de trabalho. Entre discussões se se trata de um avanço ou um retrocesso neste mundo globalizado, esquece-se que no século XIX 8h diárias já garantiam o lucro do patrão. De lá para cá, houve algum desenvolvimento tecnológico que permitiria diminuir a labuta a 8h semanais, se tanto, dando emprego para todos.

Não é da lógica do sistema, já me explicaram. Como se eu não soubesse que é sinônimo do sistema funcionando ordenadamente 80% da população mendigar, sem qualquer dignidade, um emprego simiesco qualquer ou um pedaço de pão.

Há quem veja em programas como bolsa-família um estímulo à vagabundagem. Não vejo problema nisso: até penso que pessoas que conseguem se sentir bem consigo mesmas sem precisarem provar para ninguém que prestam para algo são mais leves e felizes, menos ressentidas. Duro é convencer aquelas que desde cedo foram doutrinadas que só o trabalho dignifica, de que ler um livro, pintar um quadro ou jogar uma pelada, ao invés de trabalhar, não é pecado e deveria ser um direito mais elementar do que o do trabalho.

Por essas e outras que sou contra o bolsa-família e a favor da renda básica de cidadania.


Campinas, 07 de agosto de 2009

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sexta-feira, 31 de julho de 2009

CQC e a lei da internet

Concordo com a opinião de muitos amigos, de que o programa CQC, apresentado por Marcelo Tas na tevê Bandeirantes, é um bom humorístico e que, apesar de bastante oscilante, pode ser considerado inteligente para os padrões televisivos em voga nos últimos 60 anos. E justamente por ser inteligente, merece maior atenção.

No programa de 27 de julho o CQC fez mais uma reportagem sobre pedofilia na rede. Como iscas, um rapaz bombadinho de 21 anos e uma moça de 24 – com um belo corpo de 24! – dizendo terem 15. Em um dos casos, a moça ligou para o “pedófilo” e marcou um encontro.

Dois amigos formados em direito me apontaram uma série de problemas nesse “furo”. Primeiro, anterior ao direito: pedofilia seria o fetiche por crianças. Mas as iscas não pareciam nem um pouco com crianças impúberes e ingênuas. Certo, pela idade dita eram menores. Ocorre, porém, que sendo consentida, a relação com alguém com mais de 15 anos não é necessariamente crime. Ademais, foi a garota quem ligou ao homem, sem que ele prometesse qualquer tipo de recompensa, nem mesmo um balão.

A curiosa coincidência: é a segunda matéria do CQC sobre o assunto. Justo quando tramita no legislativo o projeto de lei do senador tucano Eduardo Azeredo, o qual, sob a justificativa de combate à pedofilia, pretende acabar com a chamada “neutralidade da rede”, deixando a porta aberta para o controle do Estado e das empresas sobre o que é acessado e trocado entre os usuários. Há mais de dez anos, Luther Blissett já cantava que pedofilia era o pretexto favorito para caça às bruxas na internet. Não sei se o Marcelo Tas conhece a obra de Blissett – pela fama deste no cybermundo, penso que sim –, de qualquer forma, ele sabe o que está fazendo – inclusive naquilo que oculta.

O CQC talvez seja um programa mais vivo do que imaginam seus espectadores.


Campinas, 31 de julho de 2009

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

O dia do amigo

Descobri, graças à publicidade de cerveja, que dia 20 de julho é dia do amigo. Visitei a página da Skol, e diz lá que a data foi criada em 1969. Talvez fosse coisa do momento, criar datas e datas comemorativas, na falta de uma vida que valesse a pena por ela mesma. Não que hoje o mundo esteja muito melhor, as pessoas mais felizes, mas agora as homenagens tem servido mais para justificar a atividade parlamentar do que para maquiar nossas tristezas.

Em 1966, por exemplo, Stanislaw Ponte-Preta se divertia com a instituição do dia do pobre e do dia da avó. Antes, a moda eram as datas históricas. Hoje, no quesito novas datas, me parece, têm tido visibilidade as políticas, institucionalizadas, como o dia da consciência negra; ou em vias de, como o dia do orgulho gay; ou não, como o abril vermelho.

De qualquer forma, é sintomático a publicidade sair à caça de uma data comemorativa, se deparar com esse tal de dia do amigo, e a forma que tenta se apropriar dela. Primeiro, por ser puxado por uma campanha publicitária: o que antes era da esfera política ou da sociedade civil, hoje é do mercado. O dia do amigo, se existe há 40 anos, foi só quando se vislumbrou possibilidades de lucro nele que mereceu “comemorações”. Segundo, porque esse tipo de comemoração é anacrônica: hoje datas comemorativas ou são tradicionais (tem-se tentado importar algumas tradições, por sinal), ou marcam um dia de protesto, de reivindicação de direitos, de reclamar aquilo que não se tem (talvez o dia do amigo devesse se enquadrar nesse tipo de data). Por fim, é providencial que se comemore apenas o amigo, e não a amizade. Antes de tudo, por centrar no indivíduo e não na relação entre as pessoas; mas também por permitir que a data seja comemorada, pela agitadora oficial, com uma disputa entre diversos grupos de amigos por um prêmio qualquer. Ou seja: com meus amigos eu comemoro, com os outros é guerra. Quase como briga de torcidas, mas patrocinado por cerveja. Ops! Quase como briga de torcidas, até mesmo no estímulo e no patrocínio da cerveja.

PS: Eu tinha pensado em falar da estupidez das propagandas. Por enquanto resolvi não chover no molhado. Penso que o texto “Roubada não desce redondo”, do bailarino Alysson Amancio, dá conta do recado.


Pato Branco, 24 de julho de 2009

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sede de sangue

Há dificuldade por parte de muitos em aceitar minha posição: não acredito em nada do caso Nardoni, salvo que uma menina caiu do prédio. Não é nem para polemizar. Inclusive, quando alguém vem tentar me convencer da versão sacramentada pela mídia, dando os mais ínfimos detalhes do suposto assassinato que ninguém viu, trato de cortar logo a conversa: para mim, a verdade do caso está perdida, como perdidos estão a original da taça Jules Rimet ou o tigre-dente-de-sabre.

Se por certo tempo o caso Nardoni motivou homéricas e intermináveis discussões sobre todas as convergências possíveis em opiniões exatamente iguais, hoje muitos vão precisar espremer o cérebro para tentar lembrar do que se trata: a memória é curta sob o espetáculo, dura o tempo que dura o assunto na tevê.

Nardoni, portanto, já é passado, pode ser esquecida. Mas a sede de sangue, essa segue latente. Não falo da sede de pais ensandecidos assassinos de seres angelicais, mas dos espectadores ansiosos por uma fogueira, para terem a aparência de vida na sua moribunda e deprimente existência. E a temporada de caça a novos monstros está aberta.

No Rio de Janeiro houve um ensaio por estes dias. O roteiro não podia ser mais original: uma criança cai do prédio. Por sorte, ou melhor, por menos azar, houve como comprovar que não foram os pais quem a defenestraram. Não serão condenados à fogueira como o casal do ano passado. Mas o linchamento moral começou assim mesmo, com a prisão deles e sua exposição ao grande público, nesse momento de grande dor para qualquer pai ou mãe. A acusação: abandono de incapaz. Como se fosse obrigação dos pais estarem 24 horas por dia, sete dias por semana amarrados aos filhos; como se houvesse lei proibindo qualquer fatalidade, criminalizando os atingidos pelos infortúnios do destino.

E parece que essa será mesmo a tônica até que surja o próximo caso a saciar a sede de sangue da imprensa e dessas pessoas carentes de circo e de assunto para o almoço de domingo.

Os pais que se cuidem.


Campinas, 17 de julho de 2009

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sexta-feira, 10 de julho de 2009

A burocratização da esfera política

Descobri esta semana que sou professor universitário. Fiquei curioso em saber se de universidade pública ou particular: isso, porém, não estava explicitado. Explico. Achei um texto meu, escrito pouco antes do início da greve deste ano, publicado em um blogue de alguém que desconheço. O dono do blogue resolveu esquecer de pôr o título, “Mediocridade e conservadorismo na universidade brasileira”, deixando apenas o subtítulo “O movimento estudantil”. Compreensível, visto o teor conservador de direita/reacionário do seu autor (que, ao que tudo indica, não entendeu o que eu quis dizer). Pelo menos citou o autor (por ser copyleft, deveria ter citado também que tirara da página do CMI).

O divertido foi que, vendo que o texto era escrito por alguém de dentro da universidade e com alguma experiência nesse ambiente, resolveu me taxar de professor universitário. Logo eu, que para Unicamp ainda sou aluninho de graduação. E não adiantou eu avisá-lo dos “equívocos”: meu texto segue sem o título, e eu sigo com mais títulos do que tenho – aqueles pressupostos aos professores universitários.

O ponto que chama a atenção nessa história é a necessidade de aval burocrático para que o que eu disse seja digno de consideração. Oito anos de graduação, participação no sindicalismo estudantil, em projetos de educação popular e outros não me autorizam a dizer nada, se eu não apresentar antes as credenciais. Que tais exigências burocráticas existam no âmbito do Estado é até justificável, visto que se trata de selecionar uma burocracia bem capacitada e adepta do burocratismo para garantir sua perpetuação. Preocupante é quando tal burocratização atinge toda a esfera política. Para ter direito à voz é preciso antes mostrar os papéis timbrados que dizem que você tem tal direito. Carteira de identidade não vale. Só com isso, quem ousa ter voz não passa de um defensor da ignorância. E a própria direita, sempre tão crítica da burocracia estatal, é a primeira a legitimar e estimular o papel do Estado na divisão social de saberes.

Os “especialistas” que toda reportagem na tv mostra que o digam.

Campinas, 10 de julho de 2009
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sexta-feira, 3 de julho de 2009

A força faz a união

Do governo federal, redução (ainda que temporária) de impostos e uma linha de crédito de R$ 4 bi. Do estadual, mais uma linha de crédito de R$ 4 bi, e R$ 1,3 bi para a ampliação da marginal Tietê. Agora é a vez do governo municipal dar sua contribuição, com a proibição de circulação de ônibus fretados em parte da cidade de São Paulo. Se os três níveis de poder conseguissem agir tão sincronizadamente para a melhoria da educação, da saúde pública, da segurança, para o combate à corrupção, à miséria e estaríamos sem dúvida em um país muito melhor. Mas é o transporte individual que consegue unir forças dessa forma.
A democracia brasileira em breve poderá ir para além do “um homem, um voto”, instituirá o “um homem, um carro”. É quando todos terão a alforria do transporte público, livres para irem onde bem entenderem com seus potentes carros. A 5 km/h, se tanto, mais vagarosos que os resistentes pedestres que insistem em ter pernas e a ocupar calçadas com elas, impedindo a sua transformação em ruas, o que auxiliaria no fluxo de veículos.
A medida de proibir os fretados, diz o secretário de transporte, Alexandre Moraes, tirará de circulação 1300 ônibus, afetando 110 mil pessoas. Dessas, estima, 48 mil irão para o transporte público (com aumento de até 46% nos seus custos com transporte). Suponhamos que essa santa ingenuidade seja verdadeira, resta a dúvida: e as outras 62 mil pessoas? Adotarão bicicletas, skate, patinete? Ou porão 25 mil carros a mais nas ruas (e olha que estou dobrando a taxa de ocupação nesses carros)?
Para além do questionamento dos investimentos e da celeridade nas melhorias do transporte público, ainda mais na caótica São Paulo, outras questões devem ser levantadas: o papel do carro no imaginário nacional: ter carro é ter sucesso, pedestre é pobre e perdedor; e a centralidade da indústria automobilística na geração de empregos.
Enquanto não começarmos a mudar isso, seguiremos comprando carro para cada vez mais disputar corrida com pedestres. E ainda com o risco de perder.

Campinas, 03 de julho de 2009
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

Comentário sobre o artigo "O espetáculo da 'mídia', para a 'mídia' – e pelos contestadores", de Eugênio Bucci.

Caro Bucci,

Gostei muito de seu texto, mas temi, com seu entusiasmo inicial por Debord, que não fizesse certas ressalvas. O fez, felizmente, no final do texto. Penso, porém, que foi um pouco exagerada, visto que não foi feita uma distinção que julgo importante no autor. Uma coisa é a organização por ele proposta para a realização da revolução, algo, como você disse, numa linha bastante leninista. Outra coisa é o projeto revolucionário para um pós-revolução, o que fazer da vida quotidiana quando o capitalismo ruir e os sujeitos serem, finalmente, autônomos – a realização do projeto Iluminista, em suma. Falo em projeto, mas não tenho ainda claro em que medida Debord o desenvolve ou o apresenta n'A sociedade do espetáculo; se como esboço, como uma direção, ou se seria possível, numa leitura mais apurada, ver esse projeto já desenvolvido. Mas que há uma proposta para uma vida “comunista”, em alguma medida posta em prática pelos situs, ainda que sob regime capitalista, isso me parece bastante evidente. Cito o final do capítulo VI, Tese 163: “O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida história generalizada, é o projeto de um enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. E o programa de uma realização total, imersa no tempo, do comunismo que suprime 'tudo o que existe de independente dos indivíduos'”. Outro situacionista, Raoul Vaneigem, traz mais forte a idéia do reforço da subjetividade numa futura sociedade comunista. Traz também, por outro lado, mais forte a idéia de que o paredão é parte do processo revolucionário. Ou seja, são dois aspectos da teoria revolucionária de Debord e dos situacionistas, para além do diagnóstico, que não podem ser tidos como uma coisa só e descartados: uma parte dessa teoria é muito valiosa, para se pensar o quotidiano nosso, que seja.

Sou da Unicamp e da PUC-SP e não da USP, então não sei quantos e quais são os grupelhos auto-proclamados revolucionários que se embasam em Debord. Conheço um deles, que tem seus tentáculos na Unicamp, o Movimento Negação da Negação. Como disse certa feita um amigo meu: “um bando de publicitários leninistas”. Irônico, mas com alguma verdade: pegam dos situacionistas a estética e a parte de organização revolucionária. Consomem a imagem do revolucionário. Abandonam o diagnóstico e, no fim, confirmam o que Debord já alertava na Tese 203: “Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sócio-lógico-política [sic] para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular”.

Sei que você, quando se refere à espetacularização da greve 2009, não se refere somente a esses grupelhos, mas a todo o movimento, que está totalmente submerso na linguagem do espetáculo, o que significa que se limitou na sua crítica e, conseqüentemente, nas suas ações/intervenções. Como você disse, a greve se tornou uma imagem. Porém um aspecto que você toca por alto mais no fim do texto e que talvez seja parte das mais importantes desse processo de adequação passiva à linguagem espetacular: o espetáculo não é somente a imagem, ele é a representação do vivido. Os grevistas estavam ali representando um papel para o espetáculo, para poderem ser consumidos como imagens e ter sua existência autenticada pelo espetáculo. Daqui faço uma mistura de Debord com Jacques Rancière, e seu livro O desentendimento. Na leitura que faço dessa obra (li sem me deter muito, por isso não sei em que me medida me mantenho fiel ao pensamento do autor no que vou dizer), política merece essa denominação quando consegue desestabilizar a ordem política reinante, o status quo. É quando os excluídos – indivíduos, grupos, propostas, minorias – arrombam a porta e adentram. Política é quando o debate se amplia na obrigatoriedade de inclusão do Outro. A não-política, ou uma política apenas institucional, de fachada, seria quando todos os movimentos dentro da chamada arena política são previsíveis, ou ao menos não vão além de um campo delimitado (Foucault comenta algo próximo quando fala do conceito de Parrhesía). É o que aconteceu com tais grevistas: cumpriram um papel bastante delimitado, fizeram o que era esperado deles, seja nas ações, seja, principalmente, nas reivindicações. “Fim da Univesp”, “aumento de 16%”, “educação de qualidade”. As reivindicações são algumas justas, outras me parecem conservadoras. Não que se deva esperar que a universidade, uma instituição oficial dentro do aparelho do Estado, seja revolucionária. Mas me parece que no Brasil, seguindo a distribuição dos papéis entre as elites, a universidade não chega sequer a ser progressista: não inova na sua relação com a sociedade, não consegue estabelecer internamente um ambiente minimamente inovador (com o perdão da repetição do termo), não há na academia diálogo (que em grego só existe na voz média-reflexiva, não na ativa), o que há são debates: cada um põe sua opinião e no fim saem todos como entraram; não se questiona os funcionários ficarem reduzidos a meia dúzia de funções simiescas, as 40 horas de trabalho semanais (se no fim do século XIX 40 horas já garantiam o lucro do patrão, com a evolução tecnológica desde então é evidente que há tempo excesso no serviço), a tortuosidade da burocracia. Pior, não há questionamento sério à hierarquia da universidade. Questiona-se a forma de escolha do reitor, mas não a forma como poder é estruturado dentro da Academia, numa ordem muito forte, rígida: isso é aceito assustadoramente como algo natural.

Seguindo ainda por essa linha, não por acaso se fala em “atores políticos”, e não em “personagens políticos”: estão todos encenando aquilo que foi determinado para seus papéis: os conservadores de esquerda com greves esvaziadas, em que piquetes se tornam elemento vital e não apenas umas das ferramentas; os conservadores de direita e reacionários com flash-mobs, factóides, pedidos de ordem, da PM no campus. E, no fundo, não se soube de discussões por parte desses grupos de questões mais seminais. Como a que o professor Safatle colocou em artigo na Folha de São Paulo: quando se discute se deveria ou não chamar a PM, sinal de que há tempos a capacidade de diálogo na universidade já estava minada. E é um sintoma do papel que a universidade se arrola: um lugar técnico, de conversa, conchavos entre iguais e não de diálogo entre diferentes, o qual pode resultar em um embate de idéias, de teorias (mesmo as das exatas): pois o choque aberto com o diferente implica na possibilidade de irrupção de algo novo, esse algo novo pode gerar uma ação política – essa política defendida por Rancière –, a qual não se faz a menor idéia de onde terminará, justo por sair do script.


Um abraço.

Campinas, 02 de julho de 2009

Texto original:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=543JDB002

sexta-feira, 26 de junho de 2009

17 breves considerações sobre a greve 2009 na Unicamp (e nas estaduais paulistas)

1.
Sobre a greve dos funcionários, estopim das mobilizações 2009: começar praticamente de cara com uma greve para lutar por migalhas e esmolas é demonstração de incompetência: uma paralisação no dia da matrícula e outras demonstrações de organização e mobilização no correr do semestre e dificilmente seria necessário o apelo a um recurso extremo como greve por tão pouco.
O problema é estar organizado e mobilizado.

2.
Não resta dúvidas que a greve 2009 foi tocada por profissionais. O que se esquece de se perguntar é a serviço de quem estão esses líderes grevistas.

3.
Talvez eu esteja me tornando desatualizado também em política, nestes tempos de flash mobs, petições online e congêneres. Porém sempre tive que uma greve fosse fruto de mobilizações e não as mobilizações fruto da greve.

4.
A greve dos estudantes é o que há de mais patético e imaturo. O principal motivo para a greve 2009 é que não houve greve em 2008. A etérea pauta de reivindicações foi necessária porque, por mais que se queira, greve ainda não consegue se justificar por si só, como o carnaval ou as bienais de arte contemporânea. Apesar que a greve dos alunos já é quase uma "Bienal do vazio B".

5.
Elegeram a Univesp para tema da greve, como se ela tivesse sido criada e posta em funcionamento com um ato performativo, assinado em 29 de fevereiro de 2009. A Univesp é um projeto que está sendo elaborado e sobre o qual se trabalha já há um bom tempo. No IFCH ele é sabido desde 2005, pelo menos. Poderia ter havido mobilização desde então. Isso implicaria, contudo, em uma desculpa a menos para uma futura greve, ou ela tardaria mais para começar, porque precisariam buscar outro motivo (até porque já não temos mais a Alca e o FMI para gritar contra).

6.
Até agora não vi nada que condene a Univesp a ponto do projeto necessitar ser abortado. Há falhas problemas erros, mas passíveis de serem sanados. Como a Unicamp tem falhas erros problemas que pode(ria)m ser resolvidos, sem necessidade de fechar a universidade.
Brigar por correções no Univesp seria bem mais simples e realista do que contra o projeto todo, mas isso implicaria um mínimo de responsabilidade pelos seus atos por parte do sindicalismo estudantil (e dos professores).
As críticas mais contundentes à Univesp acabam por desabonar todo o sistema universitário brasileiro.

7.
O principal motivador dos alunos contra a Univesp é o medo. Primeiro o medo do novo (o sindicalismo estudantil é conservador, não esqueçamos). Segundo é o medo de que a formação de um aluno baseada em teleaulas com possibilidade se serem ministradas bons professores seja melhor do que sua formação baseada em aulas presenciais com pesquisadores sem didática, que odeiam dar aulas e só o fazem porque são obrigados.
Quais fins atende um uma formação baseada nessa relação professor-aluno? E que fins deveria ter uma universidade de pesquisa e uma universidade de ensino?
Querem educação de verdade mas nunca pararam para pensar em educação. Ou no que for.

8.
As reiteradas alusões a maio de 68 por parte dos militantes do sindicalismo estudantil mostram mais do que um saudosismo retrógrado e anacrônico, demonstram ignorância: as condições da França em 68, com um sistema de produção de produtos entrando em crise e um estado de bem-estar social engasgando, são sensivelmente diferentes das condições do Brasil em 2009, com uma crise aberta do sistema de produção de lixo, um proto-estado de bem-estar social mutilado e a ideologia neoliberal (temporariamente!) em descrédito geral. Depois, as irrupções de maio de 68 não surgiram de repente, por geração espontânea. Foram um longo processo de mobilização e gestação, do qual participaram pessoas minimamente inteligentes. Estrasburgo 66 talvez seja o mais famoso evento pré-68. Certamente não foi o primeiro. Mas serve para ilustrar que maio de 68 não foi organizado a partir de 21 de abril do mesmo ano.

9.
A greve de 2009 é conseqüência da greve de 2007.
Há dois anos dizia-se que se todo o poder não estivesse dentro da universidade, isso seria o fim da autonomia universitária. Esqueceram de ver como esse poder pode ser exercido aqui dentro. E os grevistas de 2007 venceram. E aí está a defendida autonomia universitária: a reitora da USP chama a polícia para "negociar" com os grevistas.
A reitora agradece aos militantes do sindicalismo estudantil e demais grevistas por 2007.

10.
Pior foi ver os militantes do sindicalismo estudantil da Unicamp comemorando a ação da polícia. Porque depois da ação finalmente havia um "bom motivo para entrar em greve", como disseram reiteradamente na assembléia.
O sindicalismo estudantil e o gado que o segue agradecem à reitora por 2009.

11.
Para não ficar tão na cara que uma mão lava a outra nessa greve de aparências, agora pedem a saída da reitora, como solução para os desmandos que o reitor tem o poder de cometer. No máximo questionam a eleição para reitor, nunca a hierarquização e a estrutura de poder que rege a universidade - de dentro e de fora.

12.
A ingerência externa na universidade é hoje o que sustenta a universidade, e é aplaudida e buscada, mesmo pelos conservadores esquerda. Se criticam a presença de empresas ou qualquer coisa voltada para o mercado, aceitam bovinamente, religiosamente tudo o que vem das agências de fomento à pesquisa. Que são, pouco importa as diferenças, instâncias externas à universidade e regidas sabe-se lá por que interesses. Ou melhor, é sabido por quais interesses, mas basta pôr um pouco de dinheiro na mão de alunos e professores que eles aceitam esse suborno sem peso na consciência e calam qualquer crítica - sua ou alheia.
O máximo da crítica é que o conceito do programa de pós caiu a quatro.

13.
E em meio a acaloras e bastante estéreis discussões sobre se a reitora da USP deveria ter chamado a polícia ou não, coube a um professor declaradamente de fora do meio sindical, Vladimir Safatle, lembrar-nos que havia uma questão um pouco mais fundamental do que a do "chama-não-chama": quais as raízes do problema que levaram ao ponto de se discutir PM ou não PM?
A resposta é simples, ainda que não simplória: é impossível dialogar (quanto mais negociar) com uma porta.
Sem querer ser saudosista, ainda mais de um tempo que sequer vivi, mas Figueiredo ao menos era um pouco mais sincero, talvez até um pouco menos bronco. E por não ser do meio acadêmico ele até conhecia o cheiro de povo!

14.
Pior do que a greve, só as manifestações anti-greve. Um bando de imbecis ultra-reacionários que tentam produzir factóides, porque sabem que não tem razão: o sindicalismo estudantil pode ter pouca legitimidade, mas tem mais do que esses precários alunos. Se tivessem realmente interesse em acabar a greve, utilizariam seu poder de flash-mobilização, se organizariam para ir à assembléia e fazer vencer a proposta do fim da greve (porque a maioria dos estudantes, isso é perceptível, é contra a greve, por diversos motivos).
Vencer o sindicalismo estudantil com suas próprias armas o poria em aporia: ou acata a decisão da maioria, ou dá razão às críticas de que é autoritário e acaba de vez com sua parca legitimidade.

15.
A depender do sindicalismo estudantil, sabemos o que acontecerá depois da greve. Poremos um Chico na vitrola e cantaremos todos juntos "Mas para meu desencanto/ O que era doce acabou/ Tudo tomou seu lugar/ Depois que a banda passou/ E cada qual no seu canto/ Em cada canto uma dor/ Depois da banda passar", preocupados em reposição de aulas ruins, em tirar boas notas, em agradar aos professores e em preencher corretamente os formulários da Fapesp.

16.
Porém, a depender de certo sentimento difuso entre muitos estudantes, pode ser que voltando à normalidade, retorne-se à busca por novas formas de ação e organização, que experimentem e polemizem, que passem ao largo do sindicalismo e que tomem o espaço deste. Ótimo exemplo desse tipo de experimentação foi o Departamento de Estética Marcel Duchamp. Sem dúvida há espaço para mais.

17.
Em tempo: não sou contrário ao recurso da greve. Me oponho à sua banalização, à sua transformação em pastiche de mobilização, usado para encobrir os objetivos de desmobilização que regem as ações do sindicalismo estudantil, representantes de uma pretensa verdade política que só eles conhecem e não conseguem expôr ou explicar ao grande público.
No fundo, sua defesa da democracia e autonomia na universidade se resume à máxima do Millôr: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim."


Campinas, 22-26 de junho de 2009


ps: http://comportamentogeral.blogspot.com/2009/05/mediocridade-e-conservadorismo-na.html

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O consumo da infância

Dia desses comprava algo em uma cantina da universidade, e a televisão ligada no jornal do meio dia da Rede Globo berrava a reportagem. Falava sobre o primeiro beijo, o qual hoje costuma ser dado aos cinco, sete anos de idade, dizia a repórter. Não me detive para assistir à reportagem. O tom até então era apologético dessa precocidade dos pequenos em “demonstrar o afeto” caçando o sexo oposto.

Diante desses absurdos (o assunto da matéria e o tom da reportagem), na hora me lembrei do autor situacionista Raoul Vaneigem, que na década de 1960 já escrevia em seu livro A arte de viver para as novas gerações que “a própria infância é lentamente colonizada pela sociedade de consumo. Os menores de dez anos já são uma categoria como os teenagers na grande família dos consumidores: consumindo a infância ao invés de vivê-la, a criança envelhece em tempo recorde” (p. 228). A reportagem trazia isso bastante evidente: havia ali crianças, mas não infância. Mini-adultos-adolescentes que aos dez anos terão sua primeira ruga; aos doze, cabelos brancos e aos quinze já terão experimentado (consumido) tudo o que dizem que há no mundo para experimentar (consumir), sem nenhuma vivência de fato. E que aos trinta continuarão se portando igual aos dez, mas com o próprio dinheiro.

Lembrei também de um amigo da infância. Deu seu primeiro beijo bem depois dos cinco anos, mas desde cedo aprendeu a ser um adulto responsável, cumpridor das suas tarefas. Sempre teve todos os seus horários para o dia bem estipulados pelos pais: tal a tal hora, estudar; tal a tal, brincar; depois, aula; na volta, brincar; aos doze anos, tomar Prozac; tal a tal hora, treinar caligrafia; a seguir, estudar flauta; depois, tomar banho e jantar; a tal hora, ler a Bíblia e rezar, e por aí adentrou a idade adulta, sempre eficiente (apesar de não conseguir estipular minimamente uma rotina pra si). A última vez que o encontrei estava com a vida bem encaminhada e feliz… como só o Prozac é capaz de deixar.



Campinas, 25 de junho de 2009
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terça-feira, 9 de junho de 2009

Alfabetizados que não sabem ler

Almoçar no Bandejão da Unicamp sozinho, escutando conversas alheias, de vez em quando é bom para saber a quantas anda a futura elite do país.

Conforme Dimenstein, apenas 5% dos alunos que concluem o ensino médio na rede estadual de SP dominam a escrita e a leitura. Claro, trata-se alguém que se deve ter sempre com muita cautela. Não somente por sua defesa ingênua do self-made man, como por seu anti-estatismo difuso e por sua visão precária do que é educação (agregador de “capital humano”). Cito esse dado não por duvidar dele, mas porque creio que fôssemos para a escola privada com os mesmos critérios, e os resultados não seriam muito diferentes. Mesmo na França, Foucambert apontava, em 1986, que 15% dos franceses alfabetizados viam os escritos como pictogramas – analfabetos, enfim. Na outra ponta, apenas 30% eram leitores. Porém penso que não devemos encarar leitura somente a de textos literários (ainda que isso ajude muito): já dei aula para senhoras analfabetas e que tinham uma leitura do quotidiano muito arguta.

Enfim. Dias atrás estava eu próximo a um grupo de pós-graduandos, não sei de qual área. Pelas tantas falaram de um congresso que aconteceria no Rio. Do Rio, assunto imediato, o avião da Air France. Todos por dentro das últimas notícias. “Será que alguns sobreviventes não conseguiram ir até Fernando de Noronha”, perguntava uma. “Como”, questionava o esperto do grupo. “É, acho que não. Explodiu no ar, caiu na água”, respondia o outro. Em resumo: dos quatro, três achavam que o avião havia caído nas proximidades de Fernando de Noronha. O quarto tentou argumentar contra, foi derrotado pela maioria.

A conversa prosseguiu, com relatos de corpos e pedaços do avião encontrados. Enquanto isso eu me questionava: se eles não têm capacidade de compreender um dado simples, o que esperar de quando o assunto for algo mais complexo, como política ou aborto? Admitirão, com seus títulos e certificados pendurados na parede, que devem calar e dar a vez a quem tem o que dizer, seja analfabeto ou torneiro mecânico?


Campinas, 09 de junho de 2009


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quinta-feira, 28 de maio de 2009

O inválido

No século XVII Descartes já tinha posto Deus como fiador das suas sensações do mundo. Para quem outrora fora o Todo-Poderoso criador e senhor de tudo e de todos – os seres humanos aqui incluídos – não deixou de ser um belo d'um rebaixamento. Um tempo depois, Nietzsche anunciou que Deus estava e morto, e não me surpreenderia se descobrissem que o bigodudo enviou uma missiva diretamente a Ele com Seu atestado de óbito. A maioria achou exagerado da parte do filósofo alemão e garante que Deus segue bem vivo. Se eximem, contudo, de soltar um boletim dizendo em que condições se encontra. Porém, os sinais de sua saúde e seu poder são desalentadores.

Leio no jornal que o jogador do Barcelona Eto'o comentou no fim do jogo em que seu time venceu o Manchester United que “Deus foi justo”. Não que essa frase na boca de um jogador de futebol seja lá muito original, mas só hoje é que me baixou a inspiração para escrever sobre.

“Deus foi justo”. Ou seja, Eto'o não só conhece os desígnios de Deus em matéria de distribuição de justiça (breve parênteses, nos últimos tempos a moda estava mais na alocação e não na distribuição, mas enfim), como sabe que Ele comete lá suas falhas, e que por isso deve-se ser sempre vigilante, avisando-O dos seus erros, equívocos, falhas, lapsos. Não sei se há muito o que fazer depois de derramado o leite divino, além de chorar, mas ao menos Deus vai ganhando experiência para numa próxima não incorrer no mesmo erro. Espera-se.

Aproveitando do estado de invalidez do Senhor, não faltam piadas as mais cruéis e os mais descarados exemplos de deboche. Pior é que isso parte ostensivamente dos que se dizem crentes, e não dos debochadores de plantão, como o escriba. Dia desses vi um aluno da Unicamp com uma camiseta em que dizia: “Jesus, refresca até pensamento”. O filho do pobre coitado não só é comparado a uma cerveja (talvez porque embriague e ajude a aumentar o número de acidentes fatais?) como subordinado a um slogan publicitário de segunda categoria.

E resta a dúvida: Deus, que não faz nada diante de toda essa avacalhação consigo e da sua família, do que estará sofrendo? Sem dúvida deve estar muito inválido, sofrendo de uma doença degenerativa, ou da locked-in syndrome, como o cara do livro que li há pouco, Jean-Dominique Bauby. Mexe o olho esquerdo, e olhe lá. Talvez muitos pastores e padres de plantão saibam disso, e por isso gastem sua saliva falando mais do Diabo do que de Deus: sabem quem agora é o dono do pedaço e não perdem tempo em puxar seu saco, pondo-o como novo todo-poderoso, ainda que o processo de mudança de dinastia não possa ser feito de maneira muito direta e brusca, para não assustar velhinhas cardíacas.

De qualquer forma, um fim melancólico para o Criador. Não morreu, mas a que foi reduzido? Até eu sinto por Ele. Talvez seja hora de começarmos uma discussão sobre a Eutanásia.


Campinas, 28 de maio de 2009

terça-feira, 26 de maio de 2009

Cidade e memória (II)

Minha última crônica acabou adentrando em um rumo inesperado e no fim acabei por não escrever o que de início gostaria.

Falei algo da cidadezinha que me pariu, hoje conhecida nacionalmente por conta jogadores de futebol internacionalmente famosos, políticos corruptos de projeção nacional (teve até um que foi ministro do Collor) e uma personagem idiota de um programa de tevê boçal. Uma coisa interessante que por enquanto ainda resta na cidade e que sempre comento são os nomes das ruas do centro. Salvo duas, todas têm nomes indígenas: Tupi, Tocantins, Guarani, Ibiporã, Aimoré, Goianazes, Itapuã, e por aí vai, numa curiosa subversão do princípio republicano de dar nomes de notáveis às ruas e do princípios higienista de limpar estes tristes trópicos de quaisquer resquícios de certos “animais nativos”.

Fiquei um tempo a imaginar como não se chamarão essas ruas no futuro. 2070, estou de passagem pela cidade e fico sabendo de um evento interessante. Paro para pedir informações a um jovem, que me atende, muito solícito:

- O senhor está na av. Jornalista Roberto Marinho. Passando a praça Presidente Palocci, vire à direita, na rua Imperador Alexandre Frota. Três quadras e vire novamente à direita, na rua Carla Peres. Quando você passar pelo Centro Cultural Hebe Camargo, o senhor vira à esquerda, é a av. Ronaldo Brahmeiro. Duas quadras e você vai ver a escola Xuxa Meneghel, na rua Justiceiro Gilmar Mendes. Na outra esquina, com a travessa Senador Sarney, é o Campus Sandy, da Universidade Gugu Liberato, onde acontecerá o evento que o senhor quer prestigiar, em homenagem aos 50 anos da morte do ex-ministro da educação e da cultura, Di Gênio.

No meio do trajeto, quem sabe eu não me depare com uma estátua à dançarina de funk desconhecida, morta em alguma operação de assepsia social realizada pelos sucessores do Caveirão.


São Paulo, 26 de maio de 2009

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Cidade e memória

Semana passada, aproveitando que ainda sou estudante, resolvi me dar uns dias de férias. Aproveitei para visitar meus pais, que vivem numa pequena e interiorana cidade no meio do nada no sertão do Paraná. Atenta ao que considera de mais moderno, a população se orgulha de seguir a máxima do liberalismo totalitário: tudo o que não pode ser reduzido a cifras deve ser reduzido a pó. Araucárias velhas ou casas antigas, por exemplo. Mesmo que seja a primeira escola da cidade e nela ainda resida uma das suas pioneiras, já com problemas de memória, por conta da idade avançada. Manda-se a velha para um buraco qualquer, destrói-se a casa, e no lugar levanta-se um moderno edifício de três andares em sua homenagem, com uma linda vista para outro moderno edifício de três andares. A pobre dona Frida só não foi ela também reduzida a pó porque isso tornaria muito evidente o seu assassinato, e atentaria contra os princípios cristãos em voga na cidade.

Faz quase um década que deixei Pato Branco, onde brinquei minhas primeiras 17 primaveras. Ainda que volte três ou quatro vezes por ano, ela me é cada vez mais estranha. Não é por menos. Entregue a dois ou três João Romão que a mudaram conforme seus interesses mais imediatos e mesquinhos, indiferentes ao fato de que uma cidade necessita de uma história pública para não se tornar uma espécie de grande hotel, um lugar de passagem qualquer, cambiável por qualquer outro lugar. Pior, ainda foram louvados pela população como civilizadores.

Releio o que acabo de escrever e me sinto meio o Trevisan em busca da sua Curitiba perdida. Apesar de todas as mudanças nos últimos tempos, parece haver coisas que insistem em não mudar.

São Paulo, 26 de maio de 2009


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segunda-feira, 18 de maio de 2009

Mediocridade e conservadorismo na universidade brasileira: o movimento estudantil

Soube que o autodenominado movimento estudantil se questionou por esses dias sobre seu rumo. Seguindo o que me parece ser a regra do pensamento acadêmico brasileiro no século XXI (desconheço outras épocas ou países), tal questionamento vem tarde, mal posto e passa longe do essencial. Não penso que essa precariedade logo de cara seja fruto necessariamente de má-fé: pode ser de má-formação. Ou medo, dada a importância que o militantismo não raro adquire na vida de alguns militantes. Para estes, questionar certos pressupostos poria todo seu entendimento do mundo, todo seu ser, toda sua identidade abaixo. Como um evangélico que se questionasse o que há de fé na sua ostentação narcísica do nome de Jesus.
Sem negar a questão do rumo, recuemos um pouco nos questionamentos, em busca de questões um pouco mais promissoras.
Cabe primeiro perguntar o que é o tal do movimento estudantil. Se resumiria este ao sindicalismo estudantil, feito aos moldes de CUT ou Força Sindical, tocado por militantes politiqueiros, pretensamente politizados, porque filiados à juventude de um partido ou a um movimento marxista dito revolucionário? Parece ser essa a compreensão mais aceita. Uma solução ótima para a maioria, aquela que está na universidade para estudar (e festar, pois ninguém é de ferro) e não para perder seu tempo com política e outras besteiras afins. Que quando muito vota na eleição do DCE, e com isso se crê politizada o suficiente para depois, já detentora de título acadêmico, exercer sua cidadania para a construção de um país melhor. Em geral, contudo, ela passa o tempo todo xingando "esse pessoal vagabundo do IFCH" e o DCE (e sempre esquece quem organiza as festas às quais vai e nas quais seu único trabalho é encher a cara e caçar alguém). Solução ótima também para o sindicalismo estudantil: ganha legitimidade perante a burocracia universitária com a eleição e pode culpar "os estudantes alienados" (entre os quais se incluem os não alinhados) pelo seu reiterado e retumbante fracasso: culpar os outros é sempre mais fácil e mais cômodo do que admitir os próprios erros.
Tentemos sair um pouco desse modo de pensar viciado, cômodo (pois já pensado), limitado e limitante. Encaremos, por um instante que seja, que o movimento estudantil seja composto por todos os alunos que deliberadamente se engajam em uma atividade que repercute politicamente (política aqui entendido num sentido amplo) de algum modo para além do círculo dos seus próximos, podendo se restringir ou não às grades da universidade. Com tal concepção poderíamos encarar como movimento estudantil, além do sindicalismo estudantil (e seu braço idiotizado, as atléticas acadêmicas), as empresas júnior, os projetos de educação popular, o trote da cidadania e outras atividades, como a Rádio Muda e publicações diversas dos estudantes. Não entram nessa classificação as diversas seitas religiosas que pipocam na universidade (teoricamente laica).
Com essa concepção ampla, o que temos também não é lá muito alentador. As empresas júnior dispensam maior análise. Seu caráter conservador e acrítico (na melhor das hipóteses) é essencial. Pode-se argumentar que ajudam na formação do futuro profissional. Cabe perguntar se o papel de uma universidade de primeira linha - e pública ainda por cima - é formar profissionais. Mas essa é uma questão que vai além das empresas júnior e recai sobre a própria universidade, sua inserção na sociedade, seu projeto pedagógico, seu processo de seleção de ingresso, etc.
Já os projetos de educação popular, ainda que não raro contem com a participação de integrantes do sindicalismo estudantil e dependam muitas vezes dos centros acadêmicos, justamente por não terem a legitimidade diante da burocracia universitária que estes têm, abrem uma grande possibilidade de elaboração de um pensamento crítico. Pois quer funcione dentro ou fora do campus, seu alcance extrapola a academia, forçando o estudante a lidar na prática com uma outra realidade, absolutamente alienígena à universidade ou aos sindicalismos. Claro, vale ressaltar que é apenas uma possibilidade essa elaboração do pensamento, e que, ao que tudo indica, a maioria dos que participam desse tipo de projeto desperdiçam. A Rádio Muda, guardada suas diferenças, compartilha(va) dessa possibilidade.
Resta, enfim, o Trote da Cidadania, prova cabal do fracasso do sindicalismo estudantil.
O Trote da Cidadania começa a se apresentar como o pólo mais forte na determinação do rumo do movimento estudantil. E isso é aterrorizante! Ficando num meio termo entre o reacionarismo das empresas júnior e o conservadorismo de esquerda do sindicalismo estudantil, a idéia de ação política e de cidadania que o Trote da Cidadania inculca (ou reforça) é de um voluntarismo filantropo acrítico e conservador. Não que o sindicalismo estudantil não seja conservador e acrítico, mas pelo menos ele não se orgulha tão explicitamente de sê-lo. Ao menos a concepção de cidadania que o sindicalismo estudantil defende tem a ver realmente com a figura do cidadão, e não com a do consumidor (pseudo) consciente.
Esse ponto positivo, porém, cai no vazio diante da retórica raivosa e anti (o que for) que o sindicalismo estudantil possui. Retórica que, combinada com a prática corrente dos militantes, serve para afastar elementos indesejados de assembléias ou espaços tidos por políticos. Por elementos indesejados entenda-se todos os alunos não alinhados às idéias "revolucionárias" que os grupos que disputam a máquina sindical acadêmica pregam. O Trote da Cidadania aproveita dessa precariedade na elaboração do discurso e de propostas e trata de angariar uma legião da boa vontade que ingressa todos os anos na universidade, alunos com pesos pequenos-burgueses de consciência, ávidos por ajudar o próximo, talvez numa tentativa ingênua de construir um outro mundo possível, talvez para estarem redimidos de antemão do que vierem fazer ou cobrar depois de formados. E como a moda hoje não é gritar contra o capitalismo, mas ser amigo da natureza e ajudar os mais necessitados - usando canecas, plantando árvores e distribuindo sacos de farinha -, o poder de penetração e convencimento do Trote da Cidadania humilha o do sindicalismo estudantil. Não só por isso. Vale lembrar que quem entrou na universidade nos últimos anos cresceu sob um Lulinha paz e amor e viu a arena política se restringir a brigas de egos, sem qualquer contraposição entre alternativas de governo e propostas de país. Ao sindicalismo estudantil, sem capacidade de se atualizar e preso à mentalidade de 1960 - e olhe lá! -, não restou melhor alternativa que se conformar (ainda mais) e pregar aos convertidos, em número cada vez mais escasso. Quando resolveu adotar uma postura mais boazinha, um discurso menos raivoso, uma estética mais bonitinha, slogans mais próximos do Trote da Cidadania, o resultado foi o fim da já precária mobilização. Está aí o exemplo do PSOL-DCE, hoje com uma influência na vida acadêmica igual à minha, talvez um pouco menor.
Idealizado por grandes empresas "responsáveis", o Trote da Cidadania tem por pressuposto o fim da política. Ele rebaixa o cidadão a mero consumidor ao criar um vínculo entre mercado e cidadania, em que movimentos contestatórios legítimos, como MST, MTST, quilombolas, entre tantos outros, são mal vistos por desestabilizarem a harmonia necessária para o progresso - requento positivista em voga com a cidadania de mercado. Na referida mobilização não há qualquer ameaça de uma reivindicação ou conflito com os detentores do poder - seja econômico, seja político. No máximo, temos a culpabilização do cidadão-consumidor via ameaça do apocalipse ecológico (não que ele não deva ser responsável por seus atos, políticos ou de consumo, mas somente o indivíduo deve ter responsabilidade?). Trata-se, em suma, de um movimento político que tem por objetivo esvaziar a política do seu conteúdo mais político: o conflito. Política sem conflito só é política no nome. No conteúdo é totalitarismo travestido de teatrinho democrático engana bobos. Em tempo: os arroubos hormono-revolucionários do sindicalismo estudantil não passam de teatrinho infantil, uma vez que cumprem um papel pré-definido e esperado, de forma que não há aí um real conflito. Na concepção que defendo, para haver conflito e, conseqüentemente, política, é preciso, antes de tudo, que se abandone o pensamento binário e que os personagens políticos se encarem como adversários e não como inimigos a serem aniquilados, como as lutas do bem contra o mal com que somos educados pelo cinema de massas ou cartilhas de esquerda.
E qual seria a alternativa para esse rumo que o movimento estudantil caminha a passos largos? Certamente não é o sindicalismo estudantil. Pelo contrário, este até agora tudo o que fez foi reforçar essa tendência, ao ocupar com seus vazios os espaços políticos e contestatórios, ao importar e reforçar a idéia de democracia representativa na universidade e ao aniquilar qualquer tentativa autônoma de organização dos estudantes. Afinal, sua legitimidade perante a burocracia acadêmica tem como contrapartida a manutenção dos estudantes como massa passiva e bem comportada.
O que não é muito difícil, visto que a passividade é a tônica no contexto social atual. Sua ocupação vazia do espaço político apenas completa a tarefa, ao dificultar a aglutinação de estudantes interessados em agir politicamente por meios "heterodoxos". Caso tais estudantes consigam se reunir, não é difícil um militante adentrar tal grupo e dinamitá-lo por dentro. Não que o faça necessariamente por querer, mas por ser incapaz de perceber que há outras formas de organização política, assim como é incapaz de ver que a necrofilia que carrega com seu militantismo paralisa e mata projetos alternativos. Também não é vaticinado que um militante mata, ou mesmo prejudica, todo projeto que adentra. Às vezes consegue, como é o caso que resultou no patético "Pula, gado, a catraca", de 2004. Outras vezes militantes tiveram uma contribuição muito positiva para desenvolvimento de uma ação política heterodoxa (novamente remetendo a uma experiência pessoal, cito o Cursinho Popular Machado de Assis). De qualquer forma, por estar imbuído de forte mentalidade conservadora, bem ajustada ao mecanismo de fazer política (leia-se politicagem), um militante costuma ser mais predisposto a aniquilar novas idéias e iniciativas.
Há esperança, mas não para nós. A frase de Kafka me é sempre convidativa diante um mundo cada vez mais árido e desalentador, em que a esperança é vendida como souvenir em boutiques de shopping centers, concorrendo com camisetas do Che, carros do ano e drogas de última geração. Mais convidativa ainda quando encarada em um ambiente de certezas absolutas, cronometradas e burocratizadas, como é a universidade. Em que tudo é programado e previsível, conforme o cronograma da Fapesp, a pesquisa de laboratório, as agitações vazias do sindicalismo estudantil, os debates estéreis entre pesquisadores que não sabem ouvir nem dialogar. Em que são formados técnicos detentores do rótulo de intelectuais, o que lhes dá autorização para falar sobre tudo com a mesma propriedade que falam sobre aquilo que se especializaram. Contudo, meu romantismo anacrônico insiste em achar que há brechas por onde é possível escapar dessa asfixia tecnocrática e se deparar com o inédito em nossas vidas. Em que possa acontecer a política e não esse simulacro que quotidianamente nos anestesia. Estarei sozinho? E onde encontrar tais brechas? Penso que, como diz Mia Couto, não seja o caso de encontrar, mas de construir. Falta-nos, talvez, a coragem de arriscar. Sobram os avisos de perigo para os caminhos desconhecidos. E esquecemos que tais avisos partem de quem nunca os percorreu e que, como nós, não sabe de ninguém que os tenha percorrido. Esquecemos, habituados que estamos com o pensar acadêmico, que a vida é mais dinâmica e mais viva que nossas pesquisas. E apáticos fingimos alegria com o papel que nos designaram à nossa revelia, que anunciamos como nossa escolha e que engolimos sem parar para pensar se é do nosso agrado nos limitarmos a tão pouco.

Campinas, 03-18 de maio de 2009