sábado, 22 de março de 2003

Os números da guerra

Dizia Lispector: “A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números da longa duração”. Imagino o que ela não diria hoje, em que o número de mortos é tratado como conseqüência menor, efeito colateral, quase irrelevante, um preço a pagar pela guerra.

Preço. O número da guerra que tem importância hoje é o seu preço. Quanto vai custar? Quanto país X ou país Y vai lucrar com ela? Não sei o que me choca mais, abrir o caderno Mundo ou o caderno Dinheiro.

A guerra do Bush precisa ser rápida não porque assim é menor o número de vítimas, mas porque assim há menos sobressaltos nos mercados. Algumas pessoas dão entrevista preocupadas com a guerra: ela pode trazer prejuízos ao país se durar muito, pode provocar instabilidade, inflação.

E eu que pensava que o problema da guerra eram suas vítimas, eram seus mortos e mutilados, as pessoas sem lar, as famílias sem seus entes, o horror, a bestialidade que é toda guerra. Mas abro os jornais e descubro que a guerra pode ser boa ou ruim para a popularidade do presidente X, que pode diminuir o preço do barril do petróleo, que cada míssil custa um milhão de dólares. E uma vida? Quanto custa uma vida? Pelo jeito nada. Vidas temos em excesso no mercado.

A que ponto chegamos! Temos mísseis teleguiados e pessoas morrendo de fome. Temos presidentes bem vestidos, passeando com o cachorro e pessoas deixando pra trás o que levaram uma vida para construir, na esperança de manter pelo menos a vida. Temos soldados brincando em piscinas de plásticos e crianças esfarrapadas vendendo cigarros a eles. Temos pessoas assistindo os bombardeios pela tv e comemorando a cada nova explosão e hospitais sem equipamentos cuidando dos feridos dessa pirotecnia macabra. Temos soldados lendo a bíblia para depois matar centenas de pessoas. Temos pessoas lendo o Alcorão e depois caminhando rumo à morte certa, na esperança de matar alguém. Temos um mundo de injustiça onde a vida não vale nada.

Nessas horas, não há como não dar razão ao anarquista estadunidense Henry Thoureau: quanto mais eu conheço os homens, mais eu admiro os animais.

Campinas, 22 de março de 2003

sexta-feira, 21 de março de 2003

Abaixo a liberdade de imprensa!

Não li a reportagem, apenas vi a capa e li uma nota que saiu na Folha de São Paulo. Diz a revista Veja (Readers Digest Veja) que Bin Laden esteve no Brasil, em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira, para ser mais específico.

Com todo o respeito, mas prefiro acreditar em duendes, acreditar que a Xuxa contribui para a formação de valores que respeitam a dignidade humana, que ela em momento algum de sua carreira estimulou a erotização infantil ou o consumismo, que a guerra do Bush é um bem para a humanidade, que FHC foi um bom presidente, e que todo natal Ariel Sharon se veste de papai-noel e sai distribuindo balas às crianças palestinas, enquanto estas entoam canções natalinas, do que acreditar na Veja.

Quem leu o livro O Castelo de Âmbar, do Mino Carta, ex-redator-chefe da Veja na década de 70 (hoje na Carta Capital), sabe que os Civita, detentores da editora Abril conhecem tão bem o Brasil que não devem nem saber se Brasil se escreve com Z ou com S. E conhecendo tão bem o nosso país, claro que eles põe os interesses da nação sempre em primeiro lugar. Que o diga as análises políticas presentes na revista, as reportagens imparciais sobre o MST (“rebeldes sem causa”) e a cobertura pós 11 de setembro.

Como o governo estadunidense deve pagar mais do que o brasileiro, a revista Veja não tem dúvidas em assumir as posições do Império. E o Império vem há muito dizendo que a região da tríplice fronteira é ninho de terrorista. Já foi provado e comprovado que é lorota, mas os EUA insistem que ali é ninho de terrorista, assim como o Iraque é uma ameaça iminente aos EUA. Sou procedente da região, e é certo que Foz do Iguaçu não é uma flor que se cheire: convivem ali diversas máfias, o tráfico de drogas, armas, cargas, carros roubados rola a solta. Mas daí para ninho de terroristas a distância é enorme. Não para Veja, que não hesita em forjar reportagens, sempre visando dar razão a quem paga mais, no caso, os EUA. Talvez numa próxima edição mostre que as Farc já dominam 50% da Amazônia brasileira, envenenando a água, matando hipopótamos-do-chifre-amarelo apenas para treinar pontaria e incendiando madeiras de lei, e que somente com uma ação militar norte americana é que o perigo será afastado.

Como dizia o meu professor de história do cursinho, também formado em ciências sociais, Fernando Gelfuso: para evitar contaminação, não use a Veja nem pra substituir o papel higiênico. Ou como diria Mafalda: Abaixo a liberdade de imprensa! Às vezes é preciso.


Campinas, 21 de março de 2003

quarta-feira, 19 de março de 2003

Vinheta de guerra

Não tenho muito conhecimento sobre guerras, mas acredito que esta seja a primeira com propaganda na tv. Parece até estréia de novela: data e hora de estréia, personagens, o mocinho e o bandido. Imagino que na Fox News a guerra tenha até vinheta. Como será a chamada? "Operação liberdade para o Iraque. Estréia amanhã, às 11am, aqui na Fox News". Será que vai ter transmissão "pay-per-view" também, estilo a Fórmula 1? Câmera 1: Bico do Bombardeiro; câmera 2: torre do porta-aviões; câmera 3: mãe de todas as bombas.

Por falar em mãe de todas as bombas, além do seu aspecto video-game e de grande show, o ante-guerra tem também nos proporcionado momentos cômicos da diplomacia mundial, como a acusação de que a França, por sua intransigência, é a culpada pela guerra; e momentos poéticos, como é o caso da mãe de todas as bombas. Imagino bondosas e cristãs criancinhas norte-americanas fazendo lindos versinhos: "Quando a mãe de todas as bombas/ sobre o solo iraquiano caiu/ a explosão a liberdade pariu/ não restando de Saddam sequer sombras". Bem, acho que meus versinhos estão um pouco avançados demais para o nível intelectual estadunidense, mas creio que consegui transmitir a mensagem. Imagino também que no natal, a exemplo do que fizeram na Bósnia-Herzegovina (se não me engano), as criancinhas estadunidenses vão dar seus brinquedos velhos e fazer lindos cartões de natal para as pobres e rotas crianças iraquianas; se bobear, ainda mandam pacotes de Baconzitos, ou uns salaminho de porco...

Outra bela cena cômica foi o ultimato dado por Bush, O Bonzinho, para que Saddam saísse do Iraque. Quer dizer que se Saddam sair ele vai levar junto todos os mísseis que ele tem guardado embaixo do colchão e o mundo passará a viver em paz? Ou será que o futuro presidente do Iraque vai ser tão bonzinho que vai poder ter as armas? Matar curdos tudo bem, proibir empresas americanas de explorar o petróleo americano, aí é um atentado contra a liberdade e a democracia.

E enquanto o mundo se prepara para mais uma carnificina, Bush, O Pacifista, poodle-Blair, O Convincente e Aznar, O Lambe-botas sorriem tranqüilos e faceiros, afinal, eles já devem ter carregado suas despensas com muito McTripa e Coca-Cola, e estão apenas esperando o início da transmissão para se esticarem em suas poltronas e assistirem a vitória da civilização sobre a barbárie.

E já que falei em tranqüilidade, enquanto iraquianos fogem e soldados "estadunidenses" (melhor seria dizer enquanto os cucarachas cooptados pelos EUA) se despedem de suas famílias, Bush, O consciência tranqüila, passeia com seu cachorro, que tem até nome: Spot, numa guerra em que haverá milhares de mortos anônimos. Mas essas mortes são justificáveis, trata-se de efeito colateral, dirão os representantes da Casa-Branca, que há muito tem manchas vermelhas em suas paredes (depois falam do comunismo). Mas ai de quem atirar uma pedra em Spot!

Me tranqüiliza saber que o mundo está em tão boas mãos!


Campinas, 19 de março de 2003

domingo, 16 de março de 2003

O saco estourou

Foram 70 dias de relativa trégua. De vez em quando surgia um editorial reclamando (e ao mesmo tempo comemorando) alguma medida do governo Lula, um colunista, numa semana, comenta uma incoerência do governo comparado à campanha, na outra, outro fala da falta de projeto do governo, mas eram críticas brandas, afinal, governo novo, mal havia entrado no governo, não se podia criticar muito, e o governo, até certo ponto, estava correto em não tomar atitudes bruscas. Mas o tempo foi passando, e o que no início parecia ser comedimento, mostrou ser medo, e a impressão de que as medidas tomadas do governo seriam uma mudança bem pensada, buscando evitar solavancos que trouxessem danos desnecessários ao pais, mostrou-se ser um continuísmo do receituário neoliberal utilizado no governo FHC, e pior, o projeto anunciado pelo candidato Lula servia apenas para as eleições.

Tudo vinha morno. A ala moderada conseguindo calar a oposição dos “radicais” do PT, PFL e PSDB quietinhos, prometendo fazer uma oposição construtiva quando chegasse o momento – mas no fundo tão sem projeto como o PT – e enquanto isso, calados. Aí chegou a vez da aula magma da FFLCH-U$P, proferida pelo sociólogo petista Francisco de Oliveira. O torpedo fez pouco barulho, mas foi uma das primeiras vozes dos intelectuais do PT a atingir o governo. Veio depois a crítica dos aliados: Leonel Brizola e do PPS. Enquanto isso os jornalistas iam fazendo as suas críticas, sem pegar muito pesado, mas desgastando lentamente a imagem do novo governo (é estranho depois de 70 dias ainda falar novo governo). Esta semana saíram mais dois torpedos, só que desta vez houve estragos. Primeiro foi o intelectual petista Fábio Konder Comparto, em entrevista à revista Caros Amigos, torpedear o ministro Antônio Malan Palocci e abrir nossos olhos: que autoridade tem um médico para dizer se se está tomando o caminho certo ou errado na economia? Pergunta muito pertinente, que ainda não achei resposta minimamente convincente. Depois foi a vez de uma pesquisa de opinião que mostrou que a popularidade do presidente começa a despencar. A imprensa passou ter mais munição para trabalhar, e o presidente, aturdido, chamou-a de apressada.

Eis a versão petista dos neobobos de FHC. Um avanço, sem dúvida, que mostra que não há o mesmo descaso com as críticas, tal como ocorria no governo anterior. Mas mostrou ao mesmo tempo que o PT não tem projeto para governar (o que também é uma evolução, comparado com o projeto neoliberal tucano): os apressados esperaram 70 dias e o governo não soube propor uma mudança, não soube sequer dizer aonde quer chegar – exclui-se aqui as vagas promessas eleitorais, muitas repetidas após Lula assumir o governo.

Os jornalistas perceberam que Lula não compreendeu porque tanta pressa deles, e resolveram dar uma ajudinha ao presidente. Dos seis colunistas do primeiro caderno da Folha de São Paulo de hoje, quatro explicavam o porquê dessa pressa toda. Mas o torpedo (com a guerra marcada para amanhã é difícil evitar imagens bélicas) mais pesado veio da entrevista do filósofo Roberto Mangabeira Unger, padrinho intelectual de Ciro Gomes, e que defendeu a renúncia da candidatura deste para dar a vitória do Lula ainda no primeiro turno.

Foi uma síntese do que disseram os quatro colunistas do jornal: falta a Lula um plano de governo, com metas definidas e o caminho para alcançá-la; o que o governo está fazendo – reflexo do medo – é seguir o receituário do FMI para a economia e dar migalhas aos mais pobres; as reformas propostas para a previdência e para a tributação também seguem a linha FHC-Malan, preocupadas antes em equilibrar contas do que em criar condições de desenvolvimento sustentável para o país. Para finalizar a entrevista do filósofo apresentou uma série de projetos para estimular o crescimento do país, o aumento dos salários e de empregos. Tudo o que o PT, durante a campanha, disse que tinha.

Confesso que não sou muito entusiasta do filósofo, mas ele me parece atualmente ser uma das poucas vozes do Brasil a possuir um plano alternativo ao receituário do FMI, e que se engajada em difundi-las e pô-las em prática – tanto que apadrinhou o candidato Ciro Gomes. Talvez seja pura propaganda dele, coisa que os demais intelectuais que têm propostas para o país não gostam de fazer. Que seja propaganda, ao menos tem mais conteúdo do que as do Duda Mendonça.


Campinas, 16 de março de 2003

quinta-feira, 13 de março de 2003

A transparência de FHC

Que bom que nos últimos oito anos tivemos um grande estadista a frente a presidência do Brasil! Um verdadeiro republicano, que respeita a constituição do país – quando esta foi adaptada para ele, é claro – , que enterrou boa parte do atraso herdado dos governos Vargas e militares – a Embratel, a Vale do Rio Doce, por exemplo –, e que, antes que injustamente o acusem de entreguista, vale ressaltar que FHC seguiu, mais do que a constituição, nosso hino nacional, que diz "deitado em berço esplêndido", logo, se se está deitado, não se pode trabalhando, ou até pode, como provam muitas meninas e meninos das cidades turísticas no nordeste e de toda e qualquer cidade brasileira.

O Estado não deve produzir aço, não deve ser gerente de empresa, deve unicamente criar mecanismos de fiscalização e regulação das empresas privadas que prestam serviços públicos. Era mais ou menos isso que o Boçal gostava de repetir com sua boca de sovaco – como dizia José Simão – nos seus belos e frívolos discursos televisivos. As empresas estatais, argumentava ele e papagaiavam os neoliberalóides perfeitos-idiotas da televisão, como a Miriam Leitão, eram símbolo de ineficiência, de serviços mal prestados, de cabide de empregos, de falta de transparência, de desperdício de dinheiro público, e todas outras coisas que sabíamos de antemão que seriam ditas sempre que aparecia um economista na tv.

Feita a ‘privataria’ (como diz Elio Gaspari), criada as agências reguladoras, tudo deveria andar bem, rumo ao berço esplêndido, ou melhor, o berço esplêndido rumo a nós, que estamos deitados. Mas não parece ser isso o que ocorreu.

Tivemos um grande exemplo do poder de planejamento do Estado – uma das poucas coisas que lhe restou – com a bela novela do apagão. Aumentos abusivos de tarifas foram outra vantagem da privataria (só como exemplo, o pulso telefônico foi reajustado em 100% um ano antes da privatização, e em módicos 25% um ano depois). E saiu uma pesquisa do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec, com a avaliação das ditas agência reguladoras. Lula já havia reclamado delas, da autonomia que elas possuem, e vê-se que não é sem razão. A nota média das agências ou órgão reguladores, de zero a dez foi 4,2, ou seja, ruim. Banco Central, Secretaria de Defesa Agropecuária e Agência Nacional de Saúde Suplementar (que cuida dos planos de saúde) conseguiram o conceito muito ruim. Falta de transparência, punição dos consumidores com aumentos abusivos, falta de fiscalização, desrespeito ao código do consumidor são algumas das características desses órgãos.

É bom saber que temos nossa economia está nas mãos de um Banco que não tem transparência alguma, que apenas 50% do que nos chega ao prato é fiscalizado (na comida que segue pros gringos, a fiscalização é mais efetiva), e que além do Estado se abster de algo básico que é a saúde da população, ainda cria uma agência reguladora que joga no time dos planos de saúde.

E graças a isso e muito mais que nós só temos a agradecer ao auto-proclamado maior estadista do Brasil (e quiçá do mundo). Obrigado FCH!

Campinas, 13 de março de 2003

terça-feira, 11 de março de 2003

Na educação, oxigênio

Finalmente, depois da mais pura treva, da mais assustadora ignorância, o Ministério da Educação tem a frente um ser pensante, que pode ser classificado sem ressalvas como humano. Não que Cristóvão Buarque seja perfeito, muito pelo contrário, mas ele já mostrou que é humilde a ponto de voltar atrás quanto a algumas posições defendidas. Algo diametralmente oposto ao seu antecessor, neoliberalóide de quinta categoria, egocentrista, autoritário, orgulhoso, ambicioso inescrupuloso e anti-ético (ufa!), e que teria sido melhor que ministério permanecesse vazio enquanto ele era ministro.
As boas novas escutei pelo rádio: Cristóvão Buarque pretende aumentar o ensino médio de três par quatro anos. Acho que somente isso não é solução para o despreparo com que os estudantes têm entrado na universidade, mas já é um começo. Outra proposta dele é oferecer bolsa de estudos a alunos carentes (bolsas de estudos, não financiamento, tal como ocorre hoje), em troca de trabalho comunitário, em especial os de alfabetização. Domenico de Masi, sociólogo italiano, em entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, sugeria exatamente isso para acabar com o analfabetismo no Brasil: a utilização dessa mão de obra ociosa e potencialmente questionadora que são os universitários.
Pode ser que desse ponto surja uma idéia ainda melhor, por que não? Só da questão ser posta em debate (e o que é mais importante: as idéias daí surgidas serem pensadas e pesadas pelo governo) já é uma enorme evolução, comparado aos anos despóticos de FHC e sua corja.
Se na economia Antônio Malan Palocci nos decepciona e nos enoja, nas demais áreas o governo começa a mostrar a mudança prometida.

Campinas, 11 de março de 2003

sexta-feira, 7 de março de 2003

Deixar uma marca

O mundo anda uma coisa tão sem graça hoje em dia que é preciso ser criativo para conseguir se divertir. Pior, hoje todo mundo é famoso, todo mundo vive seus quinze minutos de fama, seja no programa do Ratinho, seja no Big Brother, a vida só passa a valer a pena depois que nos tornamos famosos, nem que seja por um curto tempo, nem que nosso rosto não apareça.

Deve ter sido mais ou menos esse o raciocínio dos sete estudantes do Distrito Federal que incendiaram um quarto de uma pousada em Nova Viçosa (Bahia). Dos sete estudantes, três cursam direito (Fernando Henrique Rocha, Fabiano Henrique dos Santos e Allan Guilherme de Brito Mota), um veterinária (Rafael Seiça), um relações internacionais (Rodrigo Fernando dos Santos) e dois o ensino médio (menores de 15 e 17 anos).

Infelizmente os sete amigos tiveram muito azar. Haviam construído uma bomba caseira para “deixar uma marca na cidade” que deveria explodir somente depois que eles já estivessem longe de Nova Viçosa, mas um atraso de dez minutos na partida do ônibus fez com que a bomba explodisse ainda quando se encontravam no hotel. Outro azar foi que o incêndio foi controlado a tempo, não se alastrando aos demais quartos da pousada, onde estavam hospedados 280 pessoas. Shit happens, como dizem na metrópole.

Eu sei que falar em valores hoje em dia é caminhar por um campo minado: são grandes as chances de cair ou num niilismo desesperançado ou num conservadorismo tosco, no melhor estilo TFP (Tradição, Família e Propriedade), mas vale questionar quais valores norteiam nossas vidas hoje em dia.

Os jovens, ao que tudo indica – eram estudantes universitários, estavam numa excursão de carnaval –, não eram de classe baixa, não devem ter crescido nos morros e tido “bandidos” como heróis e paradigmas de vida.

Eu já costumo ficar estarrecido de pensar que no mundo de hoje é preciso detonar bombas para ser ouvido, para reivindicar um mínimo de dignidade, agora, explodir bombas para deixar uma marca? Deixar marca? Caio novamente no dito ‘vazio’ que está a vida hoje em dia: estamos tão sem objetivos, esse “dinamismo” do mundo moderno nos dá a impressão de que tudo o que faremos irá se desmanchar, virar pó e cair no esquecimento, tão logo viremos as costas. Então busca-se deixar marcas, marcas que ninguém saberá que fomos nós, mas que nos tornarão famosos, por um instante nos tornaremos como os vilões de um filme de suspense, antes de voltarmos à nossa modorrenta rotina. E como pichar é lugar-comum, e como quase não há mais locais para pichar (pelo menos nas grandes cidades), deixemos nossa marca de outro jeito: explodindo bombas em pousadas, queimando mendigos que dormem sob viadutos, depredando telefones públicos, casas vazias, e o que mais que se imaginar. Tudo para vermos o resultado de nosso “trabalho” e nos sentirmos orgulhosos com isso.

Há, sem dúvida alguma, uma grande distorção de valores nos dias atuais. É preciso urgentemente restituir o verdadeiro valor à vida, às pessoas. Mas como faze-lo sem cair no conservadorismo liberalóide – estilo TFP ou Bush – sem ser etnocêntrico, respeitando a pluralidade de opiniões, é algo que ainda precisa ser pensado e discutido. Que estamos esperando para começar?


Pato Branco, 07 de março de 2003.

terça-feira, 4 de março de 2003

Reprimir, liberar ou legalizar?

O senador do PDT do Amazonas Jéfferson Peres vai propor ao presidente do senado, José Sarney, uma medida polêmica e radical para acabar com o tráfico de drogas: a sua legalização. Teoricamente essa é a única maneira capaz de extinguir o tráfico de drogas. Quase certeza que essa idéia, caso ganhe algum espaço na mídia, será, no mínimo, satanizada, assim como o senador. Apesar disso, como ferrenho defensor da legalização das drogas, vejo com certo otimismo que tal questão seja posta em debate.

Sei que muitos devem parar de ler minha crônica por aqui, tomados por um medo dogmático incumbido por uma lavagem cerebral (muito bem) feita pelo governo estadunidense e a imprensa no final dos anos 80 (Noam Chomsky, O que o Tio Sam realmente quer, pág. 107). As drogas fazem mal, é o único argumento que muitos têm para defender a sua criminalização. Mas faz mal a quem? O que faz mais mal, o uso, o abuso ou o tráfico de drogas? Sabemos que cigarro e álcool são tão perniciosas quanto muitas drogas ilegais, mas ainda assim são utilizadas, e muitos pouco condenadas. Argumentarei um pouco àqueles que, por mais que tenham sua posição definida, não são dogmáticos quanto a ela.

A primeira questão que se põe é entre legalização e descriminalização. Sou a favor da legalização, ou seja, que as drogas sejam legais, com cobrança de impostos sobre a venda, tal como ocorre com cigarro e bebidas. A descriminalização me parece uma atitude muito hipócrita, que beneficia apenas as classes média e alta, consumidoras de droga que tem o dinheiro necessário para consumi-las. A classe pobre, que para poder usar droga se vê obrigado a trabalhar para o tráfico em nada seria beneficiada. Sem contar que o tráfico continuaria existindo, e com ela suas vítimas, a maioria pobres, com alguns poucos respingos para os mais abastados, que quando ocorrem motivam passeatas e camisetas pedindo paz.

Segundo, defendo a legalização das drogas, mas caso houvesse um projeto para legaliza-las em 2005 eu seria contra. Drogas fazem mal, isso é inegável. Legaliza-las sem antes uma campanha de conscientização é loucura, e não basta uma campanha com a Ana Paula Arósio e duas ou três falas na novela das nove, isso não muda em nada a mentalidade vigente. Imagino que seria necessário dez anos de propaganda intensa, manhã tarde noite, rádio tevê revista, escola clube boate, antes de haver a legalização. Sem essa conscientização agressiva, ocorreria como a experiência (holandesa, se não me engano) dos anos 70, de criar um local liberado para uso de drogas, que em certa medida estimulou seu uso.

Já que falei de uso em local restrito, essa é outra idéia que defendo: uso de drogas legal, mas não em qualquer parte; acho que deve haver locais próprios e leis severas para quem fumar um baseado em praça pública, por exemplo, e penas ainda mais severas para crimes cometidos sob o efeito de drogas.

Enfim, a discussão é boa, o tema ser proposto por um senador é ótimo, mas as coisas devem mesmo é ficar do jeito que estão. Afinal, crime organizado, traficantes, igrejas e a classe-média são contra qualquer frouxidão nas leis. Os primeiros porque isso tiraria sua fonte de lucros. Os segundos porque ainda crêem que o Estado sirva de exemplo ao povo, e que se ele diz que é proibido, devemos imaginar que é porque ele nos quer bem e drogas fazem mal, legalizar seria como dizer drogas faz bem.

Enquanto isso, tranque seus filhos em casa e tranque suas portas: a droga está em cada esquina, a violência está em todo lugar.


Pato Branco, 04 de março de 2003

domingo, 2 de março de 2003

O método ou o erro

A caminho da rodoviária, eu escutava a conversa entre duas amigas. Uma era terceiro-anista de medicina, enquanto a outra, caloura da biologia. Dizia a caloura de um experimento que tinha que fazer: calcular quantas gotas havia em 1ml. Enquanto seus colegas se utilizavam de tudo quanto é instrumento para calcular, fazendo contas e contas, tal como o método exige, ela utilizou da pipeta para marcar o um mililitro pedido e com um conta-gotas contou quantas gotas possuía. Sua amiga veterana reprovou: era preciso utilizar o método, e não o jeito mais fácil.

Bem que eu tive vontade de me intrometer na conversa (o que eu não seria o primeiro nem o segundo a fazer), mas como é da minha índole, fiquei quieto. Mas nada como ver a velha e boa visão limitada em ação. A idéia da caloura, apesar de simples, é engenhosa, precisou de raciocínio, coisa que seus colegas não tiveram. E se é possível chegar aos raciocínios apenas com as próprias pernas, para que apelar para o método? Ainda mais quando se está aprendendo. Pois o raciocínio é preciso desenvolver, enquanto para seguir o método basta abrir um livro e seguir as instruções.

Uma pena que a universidade (toda a sociedade, na verdade) ainda valorize tanto o método, em detrimento do raciocínio. E que os alunos por ela formados não tenham coragem suficiente para inovar e contesta-la. Que os poucos resistentes suportem bem a pressão para utilizar o método e continuem fazendo uso dos métodos “simples” que com o raciocínio conseguiram chegar.


Pato Branco, 02 de março de 2003