segunda-feira, 18 de abril de 2022

Reencontro (e o tempo que passa numa velocidade que não consigo acompanhar)

A campainha toca, Guile pula de meu colo, Libertad fica alerta. É Luís - primeira visita que recebo em casa em 2022. Abro a porta, nos cumprimentamos, ele ainda de máscara. Ao tirá-la reconheço o Luís de sempre, em suas pequenas variações capilares. É ele quem me avisa do tempo: “Caramba, depois de mais de dois anos!” É isso: não foram duas semanas, e sim mais de dois anos sem nos vermos. Não é o Luis de sempre. É o Luís de 2022 - como eu também, sou o daniel de 2022.

Libertad corre para o corredor, assustada com o “estranho” - e não adiantou Luís tentar chamá-la. Guile, como é de seu feitio, vai se esfregar em suas pernas, todo “eu sou fofo, aproveite e me afofe”, cobrar seu tributo para que a visita sinta-se em casa. 

Não são duas semanas. Não são apenas as últimas novidades a contar e falar da vida, como sempre fazemos - durante a pandemia seguimos nos falando pela internet, mas um encontro real é sempre de outra qualidade, ainda mais com um grande amigo. Dois anos. Dele, sei que agora já é arquiteto e urbanista formado e devidamente desempregado - apesar do currículo. E muito iremos discutir sobre o ponto onde ele está e por onde poderia ir - eu, inveterado palpiteiro dos amigos. 

De mim... o que sei? Primeiro, que preciso perceber que muito tempo se passou desde que ele foi embora da última vez, avisando que voltaria no mês seguinte, quando as aulas da FAU começariam e ele passaria a dormir uma vez por semana em casa, como vinha fazendo há dois anos. Quantas coisas a contar em detalhes que só as mãos conseguem expressar. Libertad fica a espreitá-lo. O concurso entrado a fórceps, a transferência de um trabalho que eu gostava para um que não me faz sentido - e me faz sentir quase um parasita. Fim do relacionamento, início e fim de outro. O início de uma nova faculdade. A partida de César. Os planos mirabolantes de sempre - com os convites sem noção para ele se juntar a eles. A mudança para Pato Branco e a volta para São Paulo. A perda da minha mãe - mas antes disso, toda uma vida vivida em sete meses ali com ela e meu irmão, sabendo do fim e tentando viver como se a vida fosse seguir (e ela de algum modo segue, cá estou eu a escrever mais uma crônica). Ele sabe disso tudo, mas discutimos como se fossem novidades de ontem, da semana passada. 

Noto minha vida nesses dois anos foi de um bem-me-quer-mal-me-quer de inícios e fins. Início, fim, início. Fim, início, fim. Fim, início, fim. Início, fim, início. Fim. Início. Fim. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de viver. E depois, nesse bem-me-quer-mal-me-quer da vida, cujas pétalas arrancadas nada tem a responder ou sugerir um caminho, vem o que? O início ou o fim?

Libertad se aproxima, ainda receosa, fica um tempo a observá-lo - e nós a ela, até que retomamos a conversa. Lembrei que certa feita Natália havia comentado que a gata andava com umas brincadeiras mais sofisticadas; alguns dias depois, ao entrar em casa, e vê-lo entretido brincando de esconde-esconde com Libertad, entendi de onde ela vinha se aprimorando - enquanto Luis ficava sem graça de ser pego em plena infância aos trinta anos. Libertad interrompe nossa conversa com miado alto direcionado a Luís: parece que lembrou, finalmente, de quem se trata, e agora pergunta se ele se lembra dela. Recebe um agrado de confirmação e a partir de então gruda nele.

Vamos entretecendo memórias, planos e angústias, entre discussões de músicas e política, eu preparando arepas (algo que aprendi a fazer em Pato Branco e que minha mãe apelidou de "xis-polenta"), e o mate circulando na roda curta de duas pessoas. Início-fim-início-fim. Recordamos da Copa de 2014 e o festival de pessoas vestidas fora da "normalidade", da padronização que a cordialidade brasileira exige: não foi mês passado, não? Início-fim-início.

Lembro da minha idéia de “sentir-se em casa”, que vai além do lugar, está nos afetos que fazem com que eu me sinta à vontade. Estou em casa duas vezes esta noite. Fosse antes, a conversa se estenderia madrugada adentro, mas eu preciso acordar cedo, para bater cartão - e ele já pela manhã pega o ônibus de volta. Fim-início-fim.

Nos despedimos ainda com muito assunto pendente. Fecho a porta. Libertad mia novamente, talvez indignada que Luis sequer brincou com ela. Fim. Eu vou me preparar para dormir. Me olho no espelho, reparo nos cabelos brancos, meus primeiros, que começaram a despontar há poucos meses. Início. Me vejo envelhecido como nunca antes me vira. Estou há dez anos em São Paulo, mas parece que faz, no máximo, dois. Fim-início. Quantos anos terão transcorrido no calendário no que senti como sendo a passagem de dois ou três meses? Inicio.


18 de abril de 2022

domingo, 3 de abril de 2022

Eu, Daniel Furlan do Tinder

Desde 2012 sou usuário contumaz de aplicativos de relacionamento, quando ainda eram sites - uso interrompido por um breve período entre final de 2012 e meados de 2013. Entrei no primeiro deles por influência de uma amiga, que tinha arranjado um namorado (hoje marido) a 400 km de distância. De início eu tinha vergonha em admitir, até ter que assumir que minha timidez e minha cara de paisagem sempre dificultaram qualquer aproximação do nada, fosse com o fim que fosse, salvo para pedir informações de endereço - seja eu com relação à pessoa, seja a outra pessoa com relação a mim (lembrei disso hoje, ao ir no teatro com uma amiga, e ela ter conversado com cinco pessoas aleatórias. Eu, mesmo quando estou sozinho, não vou além do boa noite pra quem me atende).

Voltando aos aplicativos. O único interregno que tive foi por conta de uma namorada arranjada em um deles. Nos demais namoros, mantive as contas abertas, mesmo que muitas vezes não as utilizasse. Não, não se tratava de cafajestagem, nem achar que o relacionamento seria breve: é que eram relacionamentos não monogâmicos. Sobre isso, preciso confessar: em vinte anos de tentativas, de seis relacionamentos “não mono”, apenas dois foram efetivos - , sendo um deles o mais longo que já tive. A explicação que certa feita essa ex deu para não estourar de ciúmes como as imediatamente anteriores (e a seguinte) é que ela tinha reconhecido que a impressão de eu estar dando em cima de todo mundo o tempo todo era fruto do meu jeito de tiozão do pavê precoce, e que, ademais, ela já tinha sentido na pele que quando eu estou de fato interessado na pessoa eu ajo como se não tivesse interesse (isso ajuda a explicar muita coisa do meu fracasso específico com mulheres, para além da cara de paisagem e da timidez). 

Nesses tempos de conta em aplicativo com namorada, como não pretendia impressionar ninguém, tratei de fazer uma descrição jocosa e avisar do meu relacionamento. Era muito comum que as garotas com quem dava o "match" começassem a conversa perguntando se eu não seria o Daniel Furlan, humorista da TV Quase e do Choque de Cultura. Eu imaginava que era por conta da minha descrição - que foi o que de mais engraçado escrevi desde o Trezenhum. Humor sem graça (que, sem falsa modéstia, ainda acho muito bom! Até desacredito que era eu quem escrevia. Por sinal, ainda tenho alguns exemplares para venda) -, e se tratava apenas de uma forma de dizer que além de homônimo e de idade próxima, eu parecia engraçado, se utilizando de uma referência hipster na classe média descolada. 

Findo o último namoro, retomo com mais afinco os aplicativos e resolvo fazer uma apresentação mais séria. Nada mais de "Pensa num cara bonito, inteligente, companheiro, trabalhador, bem de vida, empático e simpático, bom de cama, alto, corpo em forma, bem humorado, alto-astral, compreensivo, excelente cozinheiro, com ótimo gosto musical, que sabe escolher vinho. Pensou? Agora mantenha o otimismo e o pensamento positivo aí, que eu aqui também vou estar torcendo pra que um cara assim seja o próximo perfil a aparecer!": agora eu digo a que venho, o que busco e o que não sou (para não ter cobranças depois de propaganda enganosa). 

Mas eis que dos poucos "matches" - ainda mais se comparado ao tempo em que eu namorava -, muitos seguem começando a conversa com a pergunta se eu não seria o Daniel Furlan. Dessa vez não entendo o porquê. Até uma delas revelar sua frustração quando respondi que não, eu não sou o Daniel Furlan (nem o famoso, nem o não famoso, por sinal, filho do meu professor da faculdade): contou que me achou parecido com o humorista, e deveras acreditou que eu fosse ele, pela aparência.

Fiquei também eu frustrado com a conversa com a guria: antes eu achava que estava até sendo engraçado e reconhecido por isso, mas o quê!, estavam apenas me confundindo (de novo) com alguém famoso. E com o Daniel Furlan, ainda por cima! Nem para ser com o Tom Cruise ou Brad Pitt (pelo tamanho da napa, que fosse). Talvez eu devesse tentar retomar o humor.


03 de abril de 2022