quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Tempo de campanha e a despolitização das eleições

O assunto é tratado apenas marginalmente nas análises das eleições, porém julgo ser de grande importância para compreender os resultados dos últimos três pleitos, com o crescimento da direita, em especial da extrema: o tempo de campanha eleitoral. Não falo da divisão do tempo da propaganda entre os partidos - ainda que isso também influencie -, e sim do tempo da campanha na rua e nas mídias.

Com 17 segundos, Boulos conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo e em duas semanas com dez minutos diários, conseguiu dobrar seus votos, angariando 94% dos votos dos candidatos cujo partidos podem ser postos à esquerda do espectro político (aí incluído, mesmo que a fórceps, os eleitores do Márcio França). Pode ser otimismo irrealista meu, mas julgo que esse resultado teria sido muito melhor se não fossem as reformas políticas operadas desde 2015.

A minirreforma eleitoral de 2015, a pretexto de diminuir os custos das campanhas - proibidas de financiamento empresarial -, reduziu de 90 para 45 dias o tempo da campanha política - e de 45 para 35 o tempo de propaganda no rádio e na tevê. Ademais, para a eleição de 2018, o tempo do horário eleitoral (erroneamente chamado de) gratuito nas concessões públicas de radiodifusão diminuiu de dois blocos diários de 30 minutos para dois de 10 minutos, além de inserções breves ao longo da programação. (Se eu fosse tentar encaixar na terminologia do autor que sou especialista, o francês Guy Debord, diria que tais alterações levaram à reedição da Lei Falcão dentro do modelo do “espetacular difuso”, com o detalhe de que já superamos a dicotomia “espetacular difuso” x “espetacular concentrado”, estaríamos em tempos de “espetacular integrado”, e as regras anteriores se encaixariam nesse recorte).

Faço aqui um exercício de pura especulação: não fosse essa limitação de tempo, os resultados das eleições que levaram Doria Jr à prefeitura, em 2016; Bolsonaro ao Planalto, em 2018, e Covas, à prefeitura de São Paulo, este ano, teriam sido diferentes. Talvez acabassem eleitos, contudo as disputas tenderiam a ser mais acirradas - e, por consequência, muito mais sujas.

A diminuição de tempo do horário eleitoral gratuito de uma hora para vinte minutos diários fez crescer a importância das inserções breves durante a programação, feitos de slogan publicitários imediatos, sem tempo para desenvolver uma ideia - seja proposta ou desconstrução do adversário -, mesmo que altamente ideologizada. É a adestração a la Pavlov: puro ato reflexo, nada de reflexão - algo muito afim aos tempos de internet, caixas de comentários, WhatsApp, fake news e afins. Saem as propostas vazias entram os slogans vazios. É também forçar a política a uma pretensa irrelevância: para não atrapalhar a novela, o futebol, o jornal direcionado, diminui-se a voz dada diretamente aos candidatos: que percam todos, mas que tirem a voz daqueles que podem contradizer William Bonner ou a corrente de WhatsApp (importante em tempos de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais).

O grande momento da despolitização extrema, entretanto, é a diminuição do período eleitoral. A redução de três meses para um mês e meio de campanha nas ruas dificulta o debate e a elaboração de propostas (mesmo que gerais), dificulta o trabalho de desfazer mentiras divulgadas pela internet, de fazer militância na rua, e facilita que candidatos sem qualquer conteúdo vençam. Russomano talvez seja um exemplo do quanto a campanha - e em especial os debates -, por mais precária que seja, é capaz de evidenciar políticos e diferenciá-los dos sabonetes travestidos de políticos: tivéssemos uma semana de campanha e nenhum debate, possível que tivesse sido eleito prefeito da capital; como não é esse o caso, o tempo o força a abrir a boca, e cada vez que faz isso perde apoiadores.

Volto à especulação levantada acima (que pode ser chamada de metafísica, já que impossível de ser posta à prova). Em 2016, Haddad disputava a reeleição. Depois de quatro anos com pouquíssima publicidade - não sei se por estratégia um tanto heterodoxa e arriscada ou se por ingenuidade política arrasadora, em acreditar que haveria, durante seu mandato, “engajamento orgânico”, como se diz na linguagem das redes sociais, enquanto sua gestão e seu partido era massacrados pela mídia -, o então prefeito passa a breve campanha a elencar suas realizações - conforme as pesquisas, sua rejeição cai de 52% para 41%, e sua intenção de votos parte dos 9% para os 16% das urnas, numa onda que começava a crescer, tal qual ocorrera em 2012. Tivesse mais tempo de campanha, Haddad poderia mostrar melhor o que havia feito e pouco publicizado, e talvez fosse para o segundo turno contra o tucano, o que poderia evidenciar o despreparo deste - se suficiente para desbancá-la, é outra história, mas Doria Jr acabaria comprometendo em parte sua imagem. Campanha curta, venceu o candidato do slogan vazio e das fake news (no caso, sobre si próprio, a tal do “João trabalhador”).

Em 2018 a eleição presidencial foi marcada pela facada em Bolsonaro (que muitos preferem chamar de “fakeada”). Até o evento, haviam ocorrido dois debates. Neles o desempenho de Bolsonaro foi pífio, ombro a ombro com Álvaro Dias e Henrique Meirelles, sendo “papado” até pelo Cabo Daciolo. A facada vem em momento mais que oportuno: permite que fuja dos demais debates sob a alegação de estar em recuperação, sem ficar com a pecha de covarde; pode então centrar a campanha nas redes sociais e redes de fake news, ambiente que domina. A se imaginar se tivéssemos um mês e meio a mais de campanha: ou Bolsonaro desidrataria a la Russomano nos debates, ou precisaria de uma facada muito cedo a ponto de poder ser posto em dúvida sua ausência nos últimos debates do turno. Se seria suficiente para que não fosse eleito, impossível até especular, mas é de se acreditar que a dinâmica da eleição seria muito diferente, ou com denúncias de fake news despontando antes, ou com investimentos ainda mais altos nesses meios (para desespero do Véio sonegador da Havan), ou com ataques mais diretos ao seu fascismo por parte, por exemplo, de Alckmin, se notasse que ele não estava garantido no segundo turno.

Do exemplo de 2020, basta lembrar que Covas é um candidato fraquíssimo, não possuía  nada da sua administração para mostrar e sem o antipetismo radical em seu ápice para animar as bases, como ocorrera com seu padrinho: mais tempo de exposição sem as verbas do passado para banhos diários de marketing o obrigaria a se expôr de modo comprometedor. Novamente: não sei se isso alteraria o resultado da eleição, certamente alteraria a dinâmica da disputa. E tão importante nessa desidratação do candidato da direita: as campanhas de Boulos e Tatto retomaram muito da política e da politização há tempos deixado de lado pelas esquerdas com chances de vitória, que preferiam aderir ao discurso centrista do que a ciência política chama de “catch all party” (partido cata-tudo, em tradução livre).

Em resumo, o que quero levantar é que se as esquerdas querem não apenas voltar a ter chances nas disputas eleitorais como, principalmente, ter chances de politizar o debate, vai ser preciso fazer uma contraminirreforma eleitoral, que reestabeleça um tempo razoável para a discussão de programas, propostas, problemas e ideias. Claro, só disputa eleitoral não garante a politização, contudo esses movimentos de redução das campanhas - assim como propostas de eleição geral integrada, cada quatro anos - beneficiam principalmente as candidaturas de direita (muito mais do que as candidaturas dos ocupantes dos cargos, como interpretam alguns analistas). E mais importante que isso: campanha eleitoral serve para aprofundar e exacerbar a discussão sobre política, sobre os rumos da cidade, do estado, do país*, o trabalho político efetivo deve ser feito o tempo todo, todos os anos - aqui, o pós-eleição de Boulos, chamando para discutir os próximos passos e como colaborar na construção de um movimento de massas, mostra que o líder do MTST compreendeu esse ponto e, mais importante, não se furtou da responsabilidade, como fez Haddad e o PT, em 2018. São boas sementes que começam a ser plantadas, ainda que tardiamente; nos cabe agora persistência para semeá-las e paciência para esperar o momento em que esse trabalho render seus frutos.


09 de dezembro de 2020.


* É curioso notar o temor das elites frente às eleições, mesmo numa democracia de baixíssima intensidade como a Brasileira - isso enquanto não derem um golpe ditatorial explícito.