sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022

sábado, 7 de maio de 2022

Zé Celso e o nosso continuar esperando Godot em pleno 2022 [Diálogos com o teatro]

* Atenção: este texto possui spoiler da peça!


Beckett, através de seu teatro - e toda sua literatura - do absurdo, leva ao paroxismo cenas que, no fundo, são o nosso mais banal quotidiano, mas que normalizamos - até como forma de suportar o sem sentido de ações em um mundo (socialmente construído) que reiteradamente nos nega a possibilidade de criar sentido à nossa existência. "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", diz Estragon, talvez numa frase já caduca para o século XXI, primeiro porque a gente não precisa ter a impressão de que existimos, precisamos passar essa impressão; e segundo porque estamos num tempo em que crianças são instadas a obedecer até mesmo em seus momentos de lazer, entretidas e devidamente caladas por parafernálias eletrônicas ou animadores de festas, que negam qualquer tempo vazio por onde a criatividade e a autonomia possam florescer - porque uma pessoa diante do vazio é uma pessoa que questiona e incomoda, uma pessoa que inventa e pode fugir do controle. 

A não ser que seja a pessoa o próprio vazio: desprovido de qualquer relação com o tempo que não seja de tédio, como Estragon, a viver num eterno presente, em que sequer as marcas no corpo - a ferida da perna, do chute de Lucky (ou Felizardo, como na versão do Oficina), a necrosar - conseguem imprimir uma memória, e cujas lembranças são apenas as referências mais óbvias para estar no mundo - um mundo muito estreito, ainda por cima -, como sua amizade com Vladimir. Sim, talvez um avanço para o tipo ideal de sujeito que temos hoje: cidadãos de não-lugares, que não estabelecem mais que relações fugazes, rasas - líquidas - com tudo o que o rodeia (locais, coisas e pessoas), e se movimentam em meio a sinalizações publicitárias.

A montagem de Esperando Godot feita pelo Teatro Oficina, é de uma feliz sutileza ao atualizar a condição do sujeito de hoje à obra de 1952, sem deixar se seguir muito rente ao texto.

Há uma dinamicidade e vivacidade em Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond) que eu ainda não vira em nenhuma das montagens a que assisti - nem noto no texto. Um frescor de novidade e aventura naquele mais do mesmo sem sentido e sem graça que os dois personagens vivenciam. A insistência de Estragão de partirem aparece mais como inquietação e falta de memória, e não de tédio - ainda que, sim, aquela situação é tediosa o suficiente para não querer estar. 

E quem mais deveria estar entediado, cansado de esperar - porque tem noção da espera -, Vladimir, é quem mais se mostra animado a preencher esse vazio de não acontecimentos, como se fosse o mais corriqueiro da vida e não coubesse qualquer negatividade - "good vibes only", como dizem muitas pessoas hoje em dia, desesperadas em negar o mundo e sua própria condição.

Uma das sutilezas da montagem, presente pelo seu não aparecimento, é a ausência de toda pulsão sexual que habitualmente marca as peças do Oficina. A insinuação de cunho mais sexual - no nabo ou cenoura que Vladimir entrega para Estragon comer - soa brincadeira de quinta série (ou do presidente e seus adeptos), os beijos entre os dois tem um quê de demonstração de um afeto desesperado e dessexualizado. É como se Zé Celso nos avisasse: não há tesão possível sob a égide do fascismo, seja ele o fascismo aberto do bolsonarismo, seja o fascismo velado do liberalismo (Viagra, plásticas e Only Fans estão aí para servir de muletas a nossa incapacidade de ter prazer diante da obrigatoriedade de aparecer sempre prontos a gozar).

Outra mudança sutil está na cena em que Felizardo (Roderick Himeros) fala. Ao invés da verborragia ininterrupta e desvitalizada à qual eu estava acostumado em outras montagens, Felizardo atua em sua fala de modo "profissional", sem maneirismos, sem faltas ou excessos nessa atuação - apenas alguns enroscos maquinais. Este ponto, assumo, me incomodou: está por normal demais para a reação dos dois protagonistas de quererem calá-lo a qualquer custo - normal no texto (nada próximo das absurdidades que ouvimos de bolsonaristas, Cantanhede, Sardenberg, Pedro Doria, Vera Magalhães, Oyama e outros jornalistas e "formadores de opinião"), normal na encenação (ou no trejeito espetacular que assimilamos como sendo a normalidade, mas é de uma artificialidade atroz). A fala ininterrupta e desvitalizada, ou uma declamação cheia de kitsch, de maneirismo de classe média forjada nas novelas da Globo me pareceriam mais apropriadas.

Os pontos onde Zé Celso descolou do texto estão no final de cada ato. Primeiro com o menino/mensageiros (Tony Reis) que vai avisar que Godot não irá naquele dia, mas sim no próximo. Ao invés de uma criança insegura e amedrontada, um aprendiz de malandro da velha guarda, com vocabulário devidamente atualizado, que parece recém saído de um terreiro. Karol, a amiga que me acompanhou - e que desconhecia a obra - se disse impressionada com o diálogo entre ele e Vladimir no fim do primeiro ato; eu apenas segurava o riso com o choque que esse personagem me trouxe - e lembrava de outra amiga, professora do ensino básico, comentando dos seus alunos mini-mano de sete anos

A escolha desse menino fica evidenciada ao fim do segundo ato. Quando ele reaparece, e Vladimir segue o diálogo posto por Beckett, de conformismo com a vinda só no dia seguinte. O menino rompe o texto, de início sem ser ouvido por Vladimir. Godot se transmutou em outra entidade - Godot está morto. Não virá - como nunca veio e nunca viria. Não é mais necessário esperá-lo. Vladimir e Estragon estão livres para partir e construir seus caminhos, suas vidas, tentar ser ao invés de apenas dar a impressão. 

Com esse final, Zé Celso nos instiga a agir, a sair da letargia, a parar de esperar. Ele repete isso, em sua fala, após o fim da peça: não esperemos por um Messias, não fiquemos parados esperando a eleição de Lula. Como ateu, faço uma leitura um pouco mais pessimista do final proposto pelo diretor: seguimos esperando. Se não é mais Godot, esperamos alguém que nos anuncie que não precisamos mais esperar. Seguimos passivos, dependentes do animador de festa, do menino recém saído do terreiro, do diretor de teatro, de alguém com alguma "autoridade" que nos diga: vão! Saiam! E saímos todos do teatro. Podemos mesmo sair da espera pela chegada de quem virá consertar tudo quase como em um passe de mágica, mas teremos saído da posição de quem não sabe agir com autonomia, política e eticamente, conseguiremos construir nosso próprio caminho, um caminho que, por vivermos em sociedade, é ao mesmo tempo individual e compartilhado, coletivo?


07 de maio de 2022


A peça está em cartaz no Teatro Oficina Uzona, no Bixiga, até 19 de junho (https://bileto.sympla.com.br/event/72759/d/135340).