sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O subtexto das medidas de segurança da posse de Bolsonaro

As notícias sobre as medidas para a segurança do futuro presidente da república, da compra de carros blindados ao "esquema inédito de segurança" na posse, incluído aí sua hesitação sobre desfilar em carro aberto, pode parecer, a leitores apressados ou ingênuos, fruto de sua falta de conexão com a realidade, visão excessiva acerca de si próprio (vulgo ego com elefantíase), gastos perdulários com o dinheiro público. Ocorre que todo esse esquema de segurança e seu anúncio pela grande mídia - sem um pingo de crítica, que seja saber quanto tudo isso vai a custar a mais aos brasileiros, visto que se trata de um governo que promete cortar tudo de todos (menos dos que tem dinheiro, dos membros do judiciário e dos militares e suas viúvas e órfãs eternas), fazer o "desmanche o Estado" (a imagem que me veio com a fala do vice presidente eleito é a de desmanche de carros roubados) - nada tem de inocente: trata-se da construção da narrativa de criminalização da esquerda e de opositores ao novo governo - na verdade, um elemento a mais nessa construção.
É o óbvio ululante, mas relembro que foi o próprio Bolsonaro - e ninguém mais - a proferir discursos de ódio e obscenidades como matar 30 mil, ser favorável à tortura, metralhar a petralhada. Vale recordar também que não foi o partido de Bolsonaro que teve dois de seus mais importantes quadros assassinados um ano antes da eleição. Também não foi do partido de Bolsonaro nenhuma vereadora ascendente a assassinada (o máximo que temos é integrantes da futura tropa de choque bolsonarista ameaçando servidora, se ela denunciasse a tentativa de estupro sofrida). Não foi Bolsonaro quem sofreu um ataque a tiros - ataque orquestrado por homens de bem e de bens - durante a pré-campanha de 2018. O que Bolsonaro sofreu foi uma suspeitíssima - mas muito bem vinda, no momento ideal para o então candidato - facada, que não o pôs em risco, mas permitiu que ele fugisse dos debates sem ficar com a devida fama de covardão. Porém, assim como a facada e seu autor não mereceram maiores investigações - a prisão do suspeito e a construção da narrativa como ex-filiado ao Psol bastaram -, os tiros na caravana de Lula, os motivos dos assassinatos de Mariele, Toninho ou Celso Daniel, tampouco merecem investigação - sequer merecem ser lembrados, pois a esquerda não pode ser vítima, apenas carrasca suspeita-portanto-culpada. Tiros na caravana? Foi alguém do próprio Lula quem atirou, para se fazer de vítima. Celso Daniel foi morto por ser corrupto, Mariele por ser casada com traficante. É importante à mídia e ao status quo construir uma narrativa perfeitamente coesa para dar a suas fantasias o máximo de aparência de realidade.
O esquema de segurança de Bolsonaro, para a posse e depois é um elemento a mais nessa grande fake news, nesse gigante fake world, construído por Globo, Folha, Record e quetais: no subtexto está sendo dito - dito, não, gritado - que o futuro presidente está em risco de um ataque iminente de algum esquerdista. Não apenas porque ele sofreu um (fake) atentado à faca, mas principalmente porque a esquerda é violenta naturalmente: vide a Rússia soviétiva, Cuba, Venezuela, Cesare Batisti, ou os atos menores, como obrigar crianças a aprender história; e esqueça a propria história, as milícias fascistas, as empresas de segurança especializadas em dissolução de greves na virada do século XIX para o XX nos EUA, os grupos de skinheads que atacam gays, pobres e esquerdistas; as empresas de segurança privada e os milicianos do Rio de Janeiro, a maioria dos atentados terroristas nos EUA, ou mesmo na Argentina: notícias desses grupos devem ser noticiados uma vez, se muito, para passar a impressão de imparcialidade da mídia, e esquecidos a seguir, soterrados pela repetição da violência e dos crimes da esquerda (que não é santa, antes que alguém queira me refutar com base nesse raciocínio precário, 0-1).
O esquema de segurança para a posse não serve para proteger ninguém, pelo contrário, serve para justificar num futuro breve um novo grau de arbitrariedades e violências (estatais, paraestatais-midiáticas e paraestatais-milicianas) contra as populações de sempre (pretos pobres periféricos) e todos aqueles que ousarem questionar o novo governo, como "nos bons tempos" da ditadura, digo, do movimento de 64, em que só apanhavam, eram torturados e assassinados "quem pedia". Fora isso, a harmonia social resplandecia, com cada um ocupando seu lugar sem discutir ou questionar.


28 de dezembro de 2018


domingo, 23 de dezembro de 2018

Popeye vai ser papai?

Sei lá por que cargas d'água me veio Popeye hoje à memória - o elo mais forte que encontrei foi rever um amigo cuja última vez o vira no chá de bebê de um amigo em comum. Popeye sequer era dos meus desenhos favoritos. Mas veio, e justo na hora do banho, quando parece que minha mente trabalha em ritmo alucinado fazendo conexões aleatórias e tendo insights fenomenais - muitos dos quais irão pelo ralo assim que eu desligar o chuveiro.
A escolha de uma marinheiro para personagem de desenho infantil não deixa de ser curioso: ainda que utilizado (como vi na Wikipedia) para propaganda de guerra durante os anos 1940, trata-se de um marinheiro civil e não militar, ou seja, a escória da sociedade: pessoas não-família (pela própria natureza do trabalho), pouco instruídas - brutas -, "pederastas" (como n'O Bom Crioulo), tatuadas - vale lembrar que até meio século atrás, além de marinheiros, apenas presidiários, mafiosos da Yakusa e povos primitivos se tatuavam. Ademais, vinha um marinheiro ensinar não apenas virilidade, mas da importância de se comer vegetais - apesar que seu espinafre soava mais um anabolizante de efeito imediato para bater nos fortões (winners?) da vida que uma salada (vi que há uma versão atual, com apito no lugar do pito e espinafre orgânico). A própria Olívia Palito, era o contrário do padrão de beleza da época (sua forma palito tornou hypster-up-to-date apenas no último quarto de século).
A lembrança que trouxe Popeye à baila, contudo, foi da música tema. Mais especificamente, da letra que, na minha infância, cantávamos a partir desse tema: "Olívia vai ter neném, Popeye vai ser papai, o Brutus vai ser titio, ô lê lê, e viva o marinheiro Popeye!" (pesquisando achei uma tenebrosa versão atribuída à Eliana que mais parece que alguém fez para queimar a imagem da apresentadora infantil, mas parece que é de verdade a versão). O que fiquei matutando no banho foi: por que diabos o viva tem que ser pro Popeye? Que ele fez demais para merecer as vivas e não a mãe, que está ali, com suas finas pernas, sustentando outro ser.
Ainda que no meu círculo de amigos os pais sejam ponta firme, dos que cuidam de verdade, trocam fralda, põe a criança para dormir, dão bronca, banho e brincam, me consta que sejam exceções à regra, predominando, entre os pais "presentes" (numa acepção bem lata), os "pais de selfie", que ficam só com a parte do brincar e mostrar pros amigos (e, não raro, xingar a mãe pro filho), isso quando não são pais-fantasmas. Ainda que esses meus amigos mereçam elogios, não me parece que mereçam vivas - tentar ser bom pai deveria ser obrigação, como tentar ser boa mãe, dentro das possibilidades e erros da paternidade e maternidade. O filho de Popeye e Olívia sequer nasceu para darmos vivas pelos bons préstimos do marinheiro de cara torta no cuidado e educação do filho. Seria, talvez, porque Popeye tinha disfunção erétil (efeitos colaterais do fumo), e mesmo sem Viagra conseguiu fecundar Olívia, é por isso o viva?
Ao fim e ao cabo, ao escrever esta crônica e saber que Popeye está politicamente correto, me questiono se além disso está prafrentex també: pacifista, defendendo causas ecológicas (como a pesca responsável), assumindo o poliamor (latente desde sempre nas suas histórias) e ajudando a cuidar do filho parido pela Olívia - independente do resultado do teste de DNA -, afinal, pai é quem cuida e ajuda a criar.

PS: ainda estou indignado em pensar que passei minha infância cantando "e viva o marinheiro Popeye" porque ele engravidou Olívia Palito...

23 de dezembro de 2018

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Pequenas lembranças em uma tarde quente

Acompanho Luis até a rodoviária da Barra Funda. Comento com ele que o calor de São Paulo destes dias me faz lembrar do título de um filme que vi quando fazia curso de espanhol, em 1995, 1996, por aí: "El aliento del Diablo". Não lembro de absolutamente nada do filme - salvo o título -, mas esse bafo seco que sopra em SP me parece digno de relatos bíblicos infernais ou dos meus piores dias em Campinas ou Ribeirão Preto. Estou vestido todo esporte, mas a roupa não é fresca para os mais de 30°C. A camisa de futebol não é dry fit ou qualquer tecido especial, é do Putaquepariuprafora!, time da faculdade, do campeonato de 2004. A calça é um pouco mais nova, dois ou três anos, do tai chi, tactel, boa para dias de chuva, pois seca rápido - quando saí de casa ameaçava chover -, para agora, me gruda nas pernas suadas. O óculos que uso não é esporte e também já tem uns anos de uso - oito, para ser mais preciso -, e grau que não me cabe mais, descobri semana passada (minha miopia regrediu 0,75 em cada olho); está todo troncho porque Libertad, minha gata, o derrubou e vários livros em cima e ela em cima de tudo. O tênis, esse sim, é novo! Tem uma semana, é mais bonito, mais confortável e - alegria do mão de vaca aqui - vinte reais mais barato que meu anterior, comprado dois anos antes (isso dá 17% de economia, não é pouca coisa!). Luis toma seu ônibus e eu vou pegar o metrô. Estou na escada rolante quando o trem chega e resolvo apressar o passo - desejo de entrar logo em um ambiente com ar condicionado e de chegar logo em casa. Ao sair da escada rolante me vem uma lembrança anterior ao meu óculos com grau a mais, à minha calça grudada na pele, à minha camisa do Puta, ao filme da aula de espanhol do professor Erivelton. Lembrança de quando estudava no Colégio das Irmãs (não era o nome oficial, mas cidade pequena autoriza essas simplificações), meus doze, treze anos, o corpo começando a crescer mais rápido do que a cabeça era capaz de atualizar a auto-percepção, e o chão visto de perto reiteradamente, o que me fazia morrer de vergonha. Pois saí da escada rolante e corri para pegar o trem. Meu tênis novo enroscou na minha calça e enquanto meu óculos e meu celular (celular flip, com vibracall, me sinto um up-to-date de 1999) deslizam pelo piso ouço "uuuufffffs" e "aaiiiis" de pessoas empáticas às dores do outro que se estatela no chão - o piso do metrô é gelado, como era o do Colégio das Irmãs. Recolho meu óculos, meu celular, confiro que minha carteira segue no bolso e retomo o trote para o trem, como se não tivesse acontecido nada, apesar das dores dizerem o contrário. Foi só quando ele fechou as portas que me lembrei de ver se minha chave de casa também estava no bolso - estava. Já no aconchego do meu lar - onde faz falta um ventilador - me certifico que um quarto de século se passou, e se o joelho direito ralado não se fez acompanhar de vergonha pela queda em público, tampouco veio sozinho: uma leve dor no ombro direito e uma baita dor nas costas ajudam a recordar minha pequena desventura nesta segunda feira de bafo infernal.

17 de dezembro de 2018

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Como perder a chance de debater - um exemplo

Acompanhei com alguma atenção as reações meméticas (a pobreza argumentativa com efeitos performativos na formação de opinião e visão de mundo) na minha bolha virtual ao assassinato do cachorro por segurança do Carrefour de Osasco. A depender dos memes que amigos veganos ou simpatizantes compartilhavam sobre o episódio e seus desdobramentos, não é difícil entender porque Bolsonaro e uma série de políticos de extrema-direita venceram os pleitos em 2018 - para além, claro, das manipulações via internet.
De um lado, pessoas comovidas com a violência do segurança contra o cachorro (que, sinceramente, me pareceu mobilizar mais do que quando seguranças do Habib's assassinaram um garoto em São Paulo). Do outro, veganos atacando essas pessoas, taxando de hipócritas, por ficarem condoídas enquanto comem animais mortos. Ao invés de acolher, repelir. Este tipo de reação não é privilégio de veganos, pelo contrário, me parece a tônica da esquerda e do campo progressista nos tempos atuais.
Ao reagir atacando quem mostrou abertura à questão do sofrimento animal, longe de atrair pessoas alheias ao debate sobre o direito dos animais, as afugenta ainda mais. Porém, perdida não foi só a oportunidade de atrair algumas pessoas para a discussão, mas de impor um debate mais amplo à sociedade sobre tratamento aos animais - de rua, domésticos, de laboratório, de abate. O problema de ampliar o debate é ter que responder a questões que aparentemente foram superadas, é ver levantado novamente imbróglios incômodos que haviam sido escamoteados, é ter que escutar o outro, o diferente, é ter uma postura democrática e de aceitação - dentro de certos limites - de posições antagônicas. Quantos de nós já não achou mais fácil negar a conversa apenas por ter ouvido do interlocutor alguma barbaridade, sem prestar atenção que ele apenas repetia um jargão que fazia mais sentido diante de toda a realidade paralela criada pelos meios de comunicação e seu círculo social? Ainda hoje, vejo analistas políticos atacando os 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro, sem serem capazes de perceber que a maioria desses votos foram dados de acordo com o artigo 171 e não com as propostas do então candidato talkey.
Para além de capacidade de ouvir o outro, falta também a boa parte das forças de esquerda e progressistas - aqui individualizadas nos veganos, mas longe destes serem únicos ou privilegiados, reitero - aceitar que política não possui uma verdade - ao menos não uma verdade positiva -, e, consequentemente, aceitar que talvez seja preferível posições mais gradativas do que insistir no tudo ou nada.
A direita já notou que não se pede adesão irrestrita e incondicional de início - manipula para ganhá-la com o tempo, na base do engodo. Começa aceitando a palavra de ordem inicial e depois, aos poucos, vai mudando até chegar, se preciso, no extremo oposto. O "contra o aumento das tarifas" vira "não é só por 20 centavos", que vira "contra a corrupção", que vira "contra os impostos", que vira "fora PT". A tentativa de captura da pauta negra vai na mesma linha, de início, reivindicam que negros e brancos precisam ser iguais para o logo adulterarem a luta por igualdade como realidade dada e defesa do "dia da consciência humana". Sim, é uma estratégia fadada ao fracasso no médio prazo, quando o sectarismo vai passar a excluir quem não aderir integralmente às novas palavras de ordem (de ódio) - mas até lá o estrago já foi feito, a presidenta derrubada, um fascista eleito, direitos e constituição trucidados.
Já que comecei falando de veganos para tratar de algo geral às esquerdas, encerro com uma breve crítica à corrente vegana que predomina em meu círculo social (sei que há várias porque já fui rechaçado do debate na Unicamp quando tentei usar Peter Singer). Não sou vegano, acho uma postura válida e admirável de inserção aberta do sujeito e seu entorno no campo ético-político (por isso incomoda tanto alguém não comer carne, é jogar na cara que todas as ações do sujeito são ações éticas, de responsabilidade), quase uma forma parrhesista de existir. Contudo, é uma postura, um movimento, cheio de contradições e limites de crítica - condição de todo movimento político humano (talvez os dos deuses ou santos não sejam). A principal delas, a meu ver, o desenraizamento da discussão sobre condições sociais dos humanos, antes de tudo - dos direitos humanos para as pessoas. Daí o veganismo, para além de uma postura ética, muitas vezes me parecer como uma postura de distinção social - uma amiga que aderiu não faz muito ao veganismo, sem perceber, certa feita tropeçou no seu argumento: "o direito dos animais vai ser a nova luta de classes", disse. Eu não quis polemizar, mas entendi do meu modo: nova luta de classes não que os animais substituirão os humanos na luta de classes, mas porque serão usados para escamotear a real luta de classes, a exploração do homem pelo homem, a luta entre os humanos de plenos direitos e o exército de reserva. Muitos ex-pobres só muito recentemente passaram a comer carne bovina, coisa que antes era quase exclusivo dos patrões - e agora que sentem terem adentrado o paraíso que viam de longe, são abominados como bárbaros, antiéticos. Em abatedouros, pessoas matam milhares de animais todos os dias não por sadismo, mas porque é uma questão de matar ou morrer - literalmente, pois trabalham para fugir da fome. Ao mesmo tempo, cachorros são mortos todos os dias para virar comida - e não é por hábito cultural, é por fome, mesmo.
Se a esquerda não for capaz de escutar o outro, de acolher o diferente, de compreender o mundo em gradações e diversas cores, certamente vamos perder a batalha para o fascismo.

13 de dezembro de 2018

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sextou na marginal Tietê

Sextou! São quase dez da manhã de uma sexta-feira banal nestes Tristes Trópicos. Diferentemente dos últimos dias, o clima está ameno e o céu, nublado. À pé, atravesso a ponte Cruzeiro do Sul. Da marginal Tietê sobe o ruído do trânsito carregado. Da ponte, vislumbro a São Paulo das escolhas erradas: a retificação do rio de Ulhoa Cintra - e a própria negação de possível função paisagística (ou mesmo de transporte, que não de esgoto) do rio, dando um respiro ao cinza urbano -, a marginal de Prestes Maia, o metrô de Faria Lima que corre ao meu lado - cujo projeto do consórcio alemão descartou estruturas e espaços prontos ou reservados para o modal (como o que depois viria a ser a terceira pista de Serra, outra escolha errada para éssepê), em favor de uma rede de custos elevadíssimos. Na beira do rio, junto a uma saída de águas pluviais (quero crer), observo entre as tremulantes bandeiras do Brasil fixadas na ponte, um homem. Ele está terminando de lavar roupa. Está na última peça, que estende ao lado das demais, no concreto. Mais de uma dezena de pombas o rodeiam, acompanham sua lida. Ao terminar de estender, ele pára e fica olhando para algo que não percebo - outra bandeira atrapalha minha visão. Ou talvez olhe para o nada, para a São Paulo das escolhas erradas, para o Brasil de patriotas canalhas, que amam os "USA" e odeiam o brasileiro. A previsão é de chuva a partir do meio dia - temo que não dê tempo de sua roupa secar -, o trânsito segue pesado.

07 de novembro de 2018


quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O espantalho de 2013

O movimento dos coletes amarelos na França têm feito muitos verem semelhanças com as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil, e torcem contra, por ser, pretensamente, um movimento de extrema-direita. Surpreende que muitos que fazem análises nessa linha são professores universitários - não raro marxistas -, que parecem presos demais aos livros para entenderem a história, que não quando contada a devida distância. Os "deve ser!", os "es muss sein!", das revoluções só são necessários porque aconteceram - até o momento derradeiro eram possibilidades em disputa, com infinitos devires de possibilidades -, e a pretensa pureza do movimento e de seus participantes é uma ideologia moderna que boa parte da nossa sociedade insiste em acreditar - mesmo os que denunciam ideologias mil mundo afora.
Já li acusações de que o MPL - Movimento Passe Livre - teria sido financiado com dinheiro da direita, para desestabilizar o governo petista. Se assim fosse, a direita não necessitaria criar um movimento cacofônico naquele instante, o MBL. Se o MPL ia de escola em escola agitar os protestos, o MBL foi um ensaio do uso das novas tecnologias - aliadas às velhas mídias - para mobilização popular. Também ignora-se que o MPL agia desde muito com a bandeira do - vejam só! - passe livre, e contra reajustes nas tarifas. O que houve diferente em 2013 foi o contexto, o caldo criado, insatisfações latentes que eram engolidas junto com o Big Mac e o refrigerante de dois litros, nos churrascos do fim de semana, nas prestações do carro e da casa nova. Como comentou Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept_Brasil, as novas mobilizações - junho de 2013, rolezinhos, greve dos caminhoneiros, coletes amarelos na França - são mobilizações espontâneas, ambíguas, com sua direção desde sempre em disputa e seus participantes de forma alguma coesos [http://bit.ly/2zMeVqf]. O ponto é que a direita tinha alguma estratégia e muito dinheiro, e foi capaz de direcionar o movimento - inicialmente de esquerda -, enquanto a esquerda cobrava pedágio de pureza de ideias e ideais para acolher quem ia às ruas, se negava a ouvir e dialogar de fato com quem não aderia desde o princípio com suas teses, e acreditava demais na democracia liberal-burguesa e no determinismo histórico (ainda que sempre discurse no sentido contrário)
Junho de 2013 foi um ponto crítico, um catalisador de insatisfações, que tomou uma direção que a esquerda não esperava - o agir político para boa parte da esquerda, desde a ascensão petista, foi um esperar e assistir e publicar alguma análise crítica em revista indexada. E boa parte dessa esquerda segue achando que ação política é esperar, e os grandes momentos acontecerão quando tudo estiver pronto, e o que vier antes é farsa e manipulação. A esquerda perdeu a noção do tempo kairótico, talvez porque tenha desaprendido a enxergar o mundo diretamente, na angústia do sem sentido que se desenrola à nossa frente, sem controle e com mil possibilidades. De modo algum, contudo, as jornadas de Junho de 2013 foram inauguradoras do mal estar, criadoras de algo novo - no máximo ajudaram fomentar o que já vinha sendo cevado nos meandros da sociedade, sob nossos narizes. Falo isso porque reli recentemente três artigos da edição 12 da revista Casuística. artes antiartes heterodoxias, que fui idealizador e agitador, entre 2009 e 2012. São, portanto, quase um ano anteriores a junho de 2013, seis anos anteriores à emergência fascista das urnas de 2018. Nesses três artigos estão explicitados o neofascismo paulista (texto de Anna Coloda), as fake news (ainda nomeadas como mentiras) aceitas como mentiras, mesmo, sem necessidade de lastro com a realidade (texto meu); e o desejo de autoridade violenta, do juiz que quer ser general, "a justiça dos carrascos que punem antes de julgar" (texto de Cassio Correa); encerra o bloco uma foto de Natasha Mota, quatro crianças negras vislumbram um horizonte em aberto.
Parar as análises em 2013, como muitos doutores tem feito, é pedir para falhar fragorosamente novamente diante das urgências do presente. Os fatores que levaram à vitória (temporária) do fascismo vem de antes - e ouso dizer, os questionamentos da década de 1960 são os que tem emergido nestes anos 10: as resoluções do sistema aos problemas e insatisfações levantados naquela década caducaram e essas mesmas insatisfações e problemas ressurgem (num novo contexto, claro, mas no seu cerne, muito próximos). Ou abandonamos o espantalho de 2013 e partimos para um questionar profundo da produção, da sociabilidade e da mobilização política neste século XXI - acompanhado de tentativas de reorganização da mobilização política, com vistas a novas formas de sociabilidade e produção -, ou seguiremos em discussões acadêmicas beletristas e estéreis enquanto eles ganham as almas de trabalhadores e desempregados e fazem a guerra contra quem reagir à destruição do mundo que almejam.

05 de dezembro de 2018

Os textos da Casuística, páginas 24 a 30 (www.casuistica.net)

Neofascismo à Paulista (Anna Coloda)
O movimento de recrudescimento da direita fascistóide é visível em todo o país: militares queimam documentos enquanto a sociedade civil, Veja à frente, defende torturadores e, por conseqüência, a tortura – para não falar na “ditabranda” brasileira, conforme a Folha de São Paulo –, sob a desculpa de punição para os dois lados – o que significa punição dupla para torturados ou prescrição de crimes contra a humanidade.
No estado de São Paulo, sob a égide do PSDB, esse movimento ganha cores neofascistas, ao se tornar bandeira eleitoral e política de governo – a ponto de dar legenda para um jagunço disfarçado de policial. Fato para ser lamentado por todos os que defendem a democracia, dada as diretrizes que deram origem ao partido. Liderados pela dupla Serra-Alckmin – um dia antagonistas no partido –, o PSDB se tornou refugo do malufismo – a foto de Lula e Haddad com o próprio, assim como o discurso “tradição, família e propriedade” da propaganda petista, é mostra da tentativa de evitar a sangria desse eleitorado conservador-tosco, em nome de um projeto de poder.
As ações contra populações carentes – cujo exemplo mais simbólico é Pinheirinho –, os programas de assepsia social oficiais e extra-oficiais da cidade de São Paulo – Projeto Nova Luz, “limpeza” da cracolância dos nóia, reiterados e inexplicados incêndios em favelas –, para não falar no “atire antes, pergunte depois”, prática que se inspira no velho bordão “Rota na rua” – apenas prescindindo da Rota, ao se tornar ação corriqueira e banal de toda a PM do estado –, mostram que o partido caminha para agradar um nicho eleitoral que, a princípio, pretendia acabar. O discurso eleitoral de Serra e seus apêndices jornalísticos – em especial o mentiroso Folha de São Paulo –, em 2010, é prova que o PSDB, perdido com a reorientação conservadora na política econômica do PT, aceitou se diferenciar dele no quesito direitos humanos.
Se enquanto política de governo isso assusta – e quase chega a surpreender, mas não esqueçamos da criminalização dos movimentos sociais durante os anos FHC –, enquanto ideologia é velha conhecida dos paulistas. Talvez o que tenha mudado ao longo dos anos, que dê uma cara mais moderna a esse neofascismo seja a troca do discurso contra “raça” em nome de discurso (e atitudes) contra “escolhas”: não se discursa mais sobre a incompetência de negros, mas dos favelados; não são mais os nordestinos que emporcalham o Estado e a cidade, são os homossexuais. Persiste, de qualquer modo, o velho orgulho paulista, da locomotiva do Brasil (mesmo que já tenhamos visto o Concorde ser aposentado e planejarmos um trem em alta velocidade, São Paulo segue sendo uma locomotiva. Emblemático), em que “nove de julho é dez”. Para além das práticas políticas e policiais, o neofascismo paulista é visível em algumas representações artísticas.
No coração financeiro da capital, próximo ao Masp, se levanta em sua sisudez que lembra o neo-clássico-nazista – uma releitura racional dos modelos classicistas – o prédio do Bradesco. Pela ideologia ensinada nas escolas do grupo, em que crianças são submetidas à ética do trabalho, à anulação de demonstrações de personalidade e execrados em qualquer demonstração crítica, a arquitetura do prédio da Avenida Paulista é o que menos choca – no natal, em sua decoração kitsch, até ajuda a fazer a festa da família paulistana.
Na música, o grupo de rock Ira! ofereceu por duas décadas os hinos da intolerância paulista. Eles, que queriam lutar, mas não com a farda brasileira, não tiveram pudores em cantar contra a gente feia e ignorante, em favor de gente da sua terra e do seu sangue (quer algo mais nazista que isso? Nasi poderia responder). “Pobre Paulista” talvez seja o hino mais bem acabado de uma época, em que nordestinos eram acusados pelos males paulistas – intolerância essa que se aplacou com a escassez de empregadas domésticas. Aplacou mas não acabou: o problema do nordeste que só faz festa e vive às expensas de São Paulo, que é onde se trabalha, continua – e tem voz mesmo entre professores doutores em políticas educacionais das universidades estaduais paulistas. Para o consumo interno, a ira paulista apenas trocou de foco, como dito acima: o neofascismo paulista não vê problemas na agressão contra homossexuais, pobres, esquerdistas – seja feita por civis ou militares. Os chamados “excessos”, como a morte de um publicitário que não parou em uma blitz, são acidentes lamentáveis, mas plenamente justificáveis.
Onde essa política higienista irá acabar? Não sei, e tenho medo: não vem de agora, não é obra de um partido – que um dia se pretendeu progressista –, é algo que vem arraigado, e que, a depender da educação oficial, apenas será aprofundado. Não se trata de cair no maniqueísmo bem e mal, mas não é o caso de ser indiferentes, pois, como a música do Ira! atesta: é ódio mortal.

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“Quem não reagiu está vivo”: a mentira aceita como mentira (daniel gorte-dalmoro)
O desenho estatal contemporâneo é fundado e dependente da mentira. Não existe Estado se não na mentira.
A mentira ideológica, tão denunciada por marxistas, de que o Estado não é neutro, antes um órgão de uma classe específica, destinado a favorecê-la, em detrimento da grande maioria da população. Aos que rejeitam de cara essa visão, convém dar uma olhada na proporção de renda da população e dos que teoricamente são seus representantes no legislativo – e isso pode ser no Brasil ou nos EUA.
Outra mentira é o chamado “segredo de Estado”. Acreditar que um Estado possa existir sem segredos – e mentiras, que não raro são necessárias para ocultar tais segredos – é desconhecer a essência do Estado. Não existe possibilidade de novas relações entre Estado e sociedade, é tudo ou nada. Maior transparência não significa fim das mentiras. A perseguição a Assange é mais necessária do que a qualquer grupo terrorista – pois estes desestabilizam governos, aquele é capaz de chacoalhar Estados. A questão que o wikileaks põe é: o que pôr no lugar?
Há ainda a terceira mentira, tratada no século passado como “mentira totalitária”, em que a verdade empírica perde poder de veridicção sobre si própria, ou se torna irrelevante, porque a mentira passa a ser aceita como mentira, mesmo. Mentira e verdade deixam de ser polos antagônicos e passam a conviver pacificamente conforme o interesse do momento do governo, de uma classe, de um grupo. A lei passa a ser relativizada, e o Estado se desobriga de cumpri-la, uma vez que a mentira tem autoridade sobre a verdade.
Falar em “verdade” e “mentira” pode soar um tanto absoluto. Reconheço que são termos que podem ser postos em dúvida. O ponto aqui não é que a verdade seja posta em dúvida: a verdade Estatal já é sabida de antemão mentirosa, sem chance de réplica dos fatos, e isso não é tido como um problema.
Em 2 de outubro completam vinte anos de um dos muitos lamentáveis atos de barbárie do Estado brasileiro. O assassinato imediato de 111 pessoas indefesas pelo Estado (a se acreditar nos seus números oficiais, altamente questionáveis), para não falar nos mortos em decorrência de doenças contraídas na chacina.
111 deveria ser um número interdito no Brasil: em memória do silêncio daqueles que não puderam se defender de cães treinados para matar, o silêncio dos que sequer tiveram direito a clamar a verdade dos fatos, o número real de mortos, as condições em que foram mortos – e, antes disso, na qual eram tratados.
Ao contrário disso, o que temos? O assassino-mor, Antônio Fleury (sobrenome que só tem a marcar negativamente a história brasileira), livre, leve, solto, eventualmente eleito. O comandante da época, Coronel Ubiratan Guimarães, até ser morto em crime passional, se candidatava com grande orgulho das 111 pessoas que assassinara – e ganhava.
“Quem não reagiu está vivo”. Essa frase é sempre mentirosa quando dita por um agente do Estado.
Nos teóricos clássicos do Estado, este é fundado para garantir, antes de tudo a vida. Diante de um Estado que a desrespeita, é legítimo se voltar contra esse Estado. “Quem não reagiu está vivo” é mentirosa, contudo, não só por isso: com a mentira generalizada institucionalizada, todos sabem que as pessoas foram assassinadas indistintamente de terem reagido ou não. Por que alguém que está sendo julgado pelo tribunal do crime iria reagir contra a Rota? Por que e com o que um publicitário desarmado iria reagir contra a PM? Que espécie de confrontos são esses que os tiros saem sempre só de um lado? Só a Rota já matou 45 pessoas em 2012: o PCC tem toda razão de existir e agir.
Não que os chamados “bandidos” sejam bonzinhos, ou matem menos que polícia, mas a partir do momento que a polícia age como “bandida”, perde razão de ser, se torna tão bandido quanto aqueles que diz combater: escolher quem mata menos é uma falsa escolha.
Se a polícia não dá garantia, muito menos dão os responsáveis por ela. Geraldo Alckmin, acima de todos, ainda que ele não possa ser elevado a bode expiatório: é política de seu partido, o PSDB paulista, criminalizar movimentos sociais, populações carentes e usar de meios paralegais para combater pessoas abaixo de uma certa linha de renda – não existe auto-combustão em favelas, por mais que a mídia divulgue essa outra mentira estatal, sabida mentira, e aceita assim mesmo. É bandeira do seu partido e com fortíssimo respaldo na população. “Quem não deve não teme” é mentira também apregoada. Se a polícia não respeita a lei, como saber o que temer? No crime, ao menos, sabe-se que suas leis são cumpridas.
Resisto em chamar de neofascismo a esse movimento que toma São Paulo. Há várias similaridades entre a política tupiniquim atual e a do Partido Nacional Socialista Alemão, sim, mas há muitas diferenças também – de contexto, antes de tudo –; acho que o termo causa um certo choque, o que poderia ser positivo, mas simplifica em demasia a questão e impede uma crítica mais acurada do que está acontecendo agora, século XXI.

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Cartão vermelho (Cassio Correa)
O juiz vem correndo, com o cartão já empunhado. Sacou, como arma. Como revólver que atira. Não reflete, não analisa – arranca, com voracidade.
Estica a mão, furando o céu da expectativa, rasga o ar pesado com sua faca vermelha. O braço estica, catarse, como um zagueiro que tira de cima da linha. A cara se contorce, o olho fecha, e abre, com a justiça dos carrascos que punem antes de julgar. Prazer, gozo, ordem.
O juiz de futebol é carrasco, executor – não árbitro. É choque, não mediador.
O arbítrio é substituído pelo autoritarismo. Não falo com ninguém, sai daqui, sai daqui, diz, negando réplica, recurso, argumento, conversa. Sai daqui, aponta os dedos pra longe.
Vem o capitão (ó capitão, meu capitão). Sai daqui, eles gritam, ninguém entende, já não são palavras. Ah, é? Saca o amarelo e interdita a palavra. Vai falar mais? Vai? Sai daqui!
Nas cabines de comentários (ó comentário), seus mentores aplaudem a restauração da ordem. Manutenção do estado de direito de permanecer calado. Ele quis controlar a partida. Ah, o controle… A partida controlada, a palavra controlada, Batman devolvendo a paz à partida. Dizem: são garotos mimados, precisam de controle. São divas ricas, precisam de controle. São malandros, precisam de controle. O controle (dizem) que a cidade não tem…
A cidade, com suas catracas e viaturas nas esquinas.
Autoritarismo. É esse o caminho das coisas, aqui, Brasil, século XXI.
A escola é autoritária. A universidade é autoritária. Cada vez menos se admite a participação dos alunos nos rumos do seu próprio aprendizado. Qualquer contestação deve ser resolvida por uma mão pesada, dita dura, que dissolveria os problemas. O fracasso aumenta e faz aumentar o pedido de mordaça, no espaço da sociedade em que mais se espera o diálogo.
Nas ruas? Só a força do cassetete pode salvar. Limpar o resto de gente que fica nas calçadas. Expulsar o povo, transformando a cidade em deserto. Bandidos e mocinhos autoritários, brincando de guerra com a cidade. Dando cavalos de pau com seus camburões.
No trabalho? É só assim que o trabalhador vai entender seu lugar na máquina social. Que se cale. Sai daqui! Sai daqui! Há um direito divino em cada chefe, guiando seu povo pelo moedor de carne. O trabalhador moderno não questiona. Precisa entender hierarquia, mesmo que errada, mesmo que injusta. Se questiona, rua. Se rua, cassetete.
E a justiça? Há um homem e sua capacidade de julgar. Há a defesa da propriedade dos tabletes de manteiga furtados nos bolsos magros dos famintos. Há o livre-arbítrio pra desumanidade das corporações. Audiências que não escutam as partes, sentenças dadas como raios divinos, desprezo e humilhação contra aqueles que invocaram o que se chama justo.
Lembram do tanque de guerra na Praça da Paz? Esses juízes torcem para o tanque.
E o esporte, enfim, com seus presidentes vitalícios – generalíssimos que justificam o esporte controlado (na mão deles).
No Brasil, primeiro se atira, depois se impede a pergunta.
O país do futebol é um país, afinal.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A reinvenção (acidulce) do quotidiano [Diálogos com a literatura]

Localizado num canto de cidade, relegado por não ser centro, mas central na vida da cidade e de tantos citadinos. Subúrbios, esse conceito confuso nestes Tristes Trópicos, ora sinônimo do termo estadunidense descrito por Mumford (entre outros), ora a periferia tão típica das grandes cidades brasileiras. Os subúrbios de A invenção dos subúrbios, de Daniel Francoy, ficam num ínterim entre essas duas possibilidades, é a invenção de uma classe média que se equilibra com dificuldade na média, na mediana, na moda, que pega trânsito todo dia para chegar ao centro e ao trabalho, com os olhos no futuro radioso que a espera diante de um presente que é um eterno quase. 
Uma cidade feita de fantasmagorias de si própria, onde parece faltar concretude, sem contudo cair na pura imagem irreal - não, não é alucinação, mas o mais firme parece não ir além da garoa fina e das nuvens de poeira de Ribeirão Preto. O próprio autor, ele próprio parece se equilibrar numa existência que vaga pela antessala do existir, ensaiando um adentrar a concretude do ser, que se afirma nos traços das letras, mas se perde no vão entre uma palavra e outra, tropeça no prosaico do pôr do sol que ilumina um Cristo num caminhão de mudança. 
Os subúrbios inventados pelo autor parecem parados no tempo, se alimentando da ilusão da Terra se mover ao redor do sol - ainda que isso bate para resultar em mudanças reais, quase perceptíveis. Sua invenção parecem ser a tentativa de dar algum lastro ao quotidiano fugidio e repetitivo.
A escrita de Francoy é agradável, facilita o trânsito pelo banal das cenas. Sua principal marca é um humor sutil em tom melancólico - ou seria uma escrita em tom melancólico com pitadas de humor sutil? Muitos dos textos terminam de forma abrupta, quando esperávamos um fecho que desse um sentido a tudo aquilo descrito e experimentado, entretanto, era apenas isso: o sem sentido do quotidiano, a vida de anônimos e anônimas, o Mundo Real indo pouco além de um loja de R$ 1,99 com duas entradas (ou seriam saídas?), sendo uma delas pela avenida da Saudade.

03 de dezembro de 2018