quarta-feira, 28 de abril de 2021

Dia do Livro virou dia do ignorante letrado

Semana passada pipocou em minha bolha virtual que era o dia do livro. Muitas pessoas - basicamente todas elas de esquerda - fazendo loas acríticas a esse objeto, como se fosse qualquer panacéia - o emplasto Brás Cubas que nos tiraria das trevas que atravessamos há meia década. Nada contra livros e quem os lê, eu mesmo sou um ávido leitor, acumulador de livros e tenho três publicados, com um quarto para breve. Porém, um livro é só um livro. Se acaso pode ser tido como o mais importante meio de transmissão de conhecimento intergeracional - pude, graças ao livro, por exemplo, ter acesso direto ao que Descartes escreveu (ainda que meu latim não permitisse uma leitura fluida), sem dependência de uma transmissão boca a boca ao longo do tempo, que acarretaria não só uma dificuldade de acesso às suas ideias, como a deturpação delas nesse telefone sem fio de séculos -, ele é apenas uma das formas de aquisição do conhecimento - imprescindível para pessoas de inteligência mediana, como este escriba, mas longe de ser o principal meio de educação e aprendizagem. Se se bastasse por si, Foucault e Lacan não teriam perdido seu tempo no Colege de France, por exemplo, e o homeschooling deveria ser defendido como alternativa razoável à educação.

Um livro é só um veículo, um monte de papel com letras (ou imagens) dentro. Não torna ninguém nem de esquerda, nem crítico, nem inteligente: Sara Winter já posou com vários livros; Olavo de Carvalho, pelo que li de comentadores, para escrever sobre Gramsci e Aristóteles, teve que ler esses autores; Mainardi assina uma tradução de Ítalo Calvino (o que me faz imaginar que tenha lido o livro); alguém acha que ler algum livro da série "Guia do politicamente incorreto" do que for ajudaria a pessoa a refletir sobre o assunto? Para completar: tenho vários ex-colegas das ciências sociais e filosofia, alguns com doutorados no exterior, capazes de leituras hermenêuticas profundíssimas de marxistas ou de autoras feministas, e incapazes de uma leitura simples da realidade, não indo além de chavões precários (também tive professores universitários assim). 

Um desses chavões é levar a metonímia ao pé da letra, e acreditar que o anti-intelectualismo do fascismo seria um ódio ao objeto livro, olvidando que o mais famoso opositor à escrita (e por consequência, ao livro) foi Sócrates, como aparece em Fédro (275a) - e ninguém acha que Sócrates seria inimigo do conhecimento ou do saber, pelo contrário. 

Parte dessa esquerda, inebriada pelo seu reflexo no espelho (no qual aparecem seus títulos universitários e a lombada dos livros lidos, nem que seja só a orelha), talvez por nunca ter lido Paulo Freire (a direita neofascista fala muito mais do patrono da educação do que a esquerda), muito menos ter sentado frente a frente para uma conversa franca, horizontal, com alguém sem instrução formal, adere fácil a essa retórica simplória, elitista e preconceituosa de apologia do livro, por não acreditar que alguém possa aprender a ler o mundo pela razão dialógica (e não monológica e hierárquica como ela) e ter capacidade crítica que ela, arrotando autores em francês e alemão, adquiriu com dificuldade - quando adquiriu. Eu mesmo era um desses até meus 20 anos, quando fui dar aula de alfabetização para senhoras acima de 60 anos. Depois de me sentir envergonhado pelo meu preconceito, aproveite tudo o que elas me ensinaram (inclusive vocabulário), aprumei os ouvidos, e aprendi mais em conversas com gente que não lê livros (mesmo que letradas) mas consegue ler o mundo, do que o contrário. Depois se questionam como Bolsonaro tem penetração em certas camadas da população (como Lula o tem): talvez porque ele não rechace os iletrados como burros ou inferiores? Esse discurso de "é inteligente quem lê" soa um requento daquele que eu ouvia nos anos 1990, de que nordestino não sabia votar, por isso elegia coronel (como se no sul/sudeste não se fizesse exatamente igual, com famílias donas de seus quinhões nos municípios do interior).

Essa esquerda classe média com formação acadêmica precisa urgentemente entender suas limitações e encontrar seu lugar. Isso não quer dizer que sejam inferiores e nem que não sejam importantes. Porém enquanto esses intelectuais-revolucionários-de-gabinete não reconhecerem seu papel marginal na luta de classes estarão agindo como linha auxiliar da burguesia, dividindo as esquerdas, desarticulando a ação e dando munição ao discurso de extrema-direita, que junto com o inimigo sempre abre um flanco para acolher parcela dos humilhados, estimulando o ressentimento. Essa classe média que se pretende crítica precisa antes de tudo fazer uma autocrítica, compreender seu lugar, sim, de privilégio diante da maioria da população, numa sociedade desigual como a brasileira, e lutar pela democratização dessa condição. Sem isso, o discurso contra os efetivos privilégios do 1% e do 0,1% da população poderá ser facilmente desarticulado como contraditório, incongruente e defesa de interesses mesquinhos. 


28 de abril de 2021


PS: ao buscar uma imagem para ilustrar este texto, achei essa tirinha em inglês. Imaginei que esse preconceito pesado fosse algo mais universal, mas ao buscar sobre o cartunista, descobri que Lucan Levitan é brasileiro. A classe média, mesmo a intelectual, mesmo a artista, ainda tem a casa grande como seu paradigma.

PS2: se alguém se sentiu ofendido pelo título, não me desculpo, mas me explico: considero todo preconceito uma ignorância - e, sim, ela pode ser sanada pelo conhecimento, geralmente um conhecimento concreto do objeto empírico do que move esse preconceito (no caso, o iletrado ou o não leitor).

PS3: Meu próximo livro, Linha de produção/Linha de descartes, sairá em breve pela Editora Urutau. Quando tiver mais detalhes, divulgarei aqui e em minhas redes sociais.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Reabrir as escolas, sim; retomar as aulas presenciais, não

Há dez meses, em 28 de junho de 2020 [https://bit.ly/cG200728], eu comentava que a esquerda e o campo progressista tinham grande oportunidade para puxar um debate sobre educação, ensino e escola: o que é, como pode ser, para que serve, quem participa? Havíamos garantido o Fundeb, a pandemia e o distanciamento social se impunham (com todas as consequências e dificuldades para as escolas), e entrava um ministro da educação que agia nas sombras e deixava, portanto, caminho aberto para que outros atores pautassem a discussão sobre educação. Se houve tal discussão, não chegou até mim. 

O tema só voltou à minha bolha semana passada, com o projeto de lei que põe as aulas presenciais como atividade essencial. Esquerda e professores foram contra, mas para mídia, donos de faculdades e deputados, quem são os professores para falar de educação? Partindo em desvantagem, silenciados pela mídia (não esqueçamos o oligopólio midiático), a forma como foi feita o oposição mostra mais uma vez a fragilidade do discurso da esquerda, incapaz de um pensar mais amplo, para além dos termos postos pelo poder. E a seguir assim, dificilmente conseguirá se impôr nas suas razões, porque a lógica na qual se insere é favorável à simplificação e mercantilização da educação.

A aprovação dessa lei não é apenas de interesse imediato dos donos de escolas e faculdades privadas, mas também de muitos pais de alunos da educação básica. Ao se opôr sem conseguir aprofundar a discussão, sem atentar o suficiente a certas reivindicações legítimas que acabam indo ao encontro de Lemann e seus colegas de classe, a esquerda dá oportunidade para a direita atacá-la como alheia aos problemas do povo, e os professores como "típicos servidores públicos", preguiçosos, que não querem trabalhar - vide o dueto tão bem sincronizado do Ricardo Barros com a Tábata Amaral.

Tábata, como sempre, merece um tratamento à parte. Anda difícil a vida dos sugar babies dos ricaços da nação, que tentam se equilibrar entre o que mandam seus donos e o que reivindicam seus eleitores. Inicialmente Tábata votou a favor da urgência do projeto, fez vídeo se justificando, para uma semana depois votar contra (seus colegas, menos espalhafatosos, puderam manter a coerência com os donos). Esse vídeo merece uma análise [http://bit.ly/tabataeduessen]. A golden girl do partido clandestino dos capitalistas seguiu seu roteiro manjado: "argumentou" que veio da periferia, conhece na prática os problemas do povo humilde, é aliada da educação e por isso votou sim. Também não deixou de se fazer de frágil e vítima indefesa, postura à qual apela toda vez que é questionada pela sua submissão incondicional aos seus daddies: se disse cansada de lacração de redes sociais - só se esqueceu de falar da esquerda antiga e autoritária e da misoginia da qual seria vítima (talvez porque isso já não gere mais efeito). A pequena malandragem da deputada está em se dizer a favor da educação como atividade essencial, sendo que o projeto de lei fala de aula presencial como atividade essencial. Pior, seu argumento apela para as crianças, mas o projeto aprovado põe também como essencial as aulas presenciais nas faculdade, às quais assistem várias mães - mas ela não se mobilizou para que as faculdades sejam obrigadas a oferecer gratuitamente creche para os filhos de suas alunas e funcionárias. O verniz da moça é lindo, mas um leve olhar atento já mostra que ela é tão sincera quanto qualquer notícia que circula nas redes de WhatsApp bolsonaristas.

Aqui eu volto à esquerda - boa parte dela, não toda - que segue em seu cochilo, esperando a pauta vir do governo, ao invés de ela pautá-lo; e que tem tido dificuldades para sair dos conceitos postos pelo poder - inclusive os sindicatos, ainda imprescindíveis mas mambembes.

Assim como a Tábata Amaral, também eu acho que educação é atividade essencial. O ponto é se educação só acontece em sala de aula. Se for, está certa a sugar baby: que se abram as escolas e sobrevivam os mais sortudos (já que a Covid, pelo que parece, não leva em consideração se o organismo é forte ou não). Para dar um ar mais descontraídos, poderíamos chamar o "seu Sílvio" para animar as marchas macabras para as escolas, "sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror". Agora, se educação também é feita fora da sala de aula, é de se questionar o que as concessões públicas de radiodifusão foram obrigadas a fazer por ela nessa pandemia (e antes dela também), o que tem sido feito pelos pais e responsáveis dessas crianças, para que tenham tempo e condições para educar seus filhos (redução da carga horária sem diminuição dos vencimentos, por exemplo), o que tem sido feito a favor da cultura, etc. 

Educação ser essencial não implica em escola ser essencial. Mas onde esteve o debate sobre o que é educação nesta pandemia, em que professores, pais e alunos brigavam com computadores e celulares na esperança de oferecer arremedos de aulas (sendo que praticamente todos os lares tem um televisor que sintoniza emissoras abertas)?

E tendo feita a distinção entre educação e escola, aí, sim, podemos discutir a reabertura das escolas, contudo numa chave completamente diferente da retomada das aulas - o que excluiria as universidades, e parte dos lucros dos daddies da Tábata -, até porque o estresse emocional de conviver com essa pandemia, que nos faz viver num eterno "dia da marmota", é grande tanto para professores quanto para alunos, e fica difícil um bom aproveitamento das aulas nessa situação (falo por experiência própria, ainda que minha graduação atual seja EaD). A manutenção de escolas abertas, num regime especial, deveria ser algo proposto pela esquerda e pelos professores desde o início, não só por uma questão de sensibilidade social, como para tentar ter nas rédeas a condução da discussão. Me explico.

Há necessidade de distanciamento social, mas não são todos que puderam fazer: alguns por serem de atividades essenciais, outros porque entramos nessa surreal discussão sobre economia ou vidas, e tiveram que seguir oferecendo oito horas de trabalho alienado ao lucro do patrão, mesmo correndo risco de vida, para não morrer de fome - porque o lucro não pode diminuir, digo, a economia não pode parar. Uma amiga que trabalha num grande hospital privado contou que tão pronto as escolas foram fechadas, os funcionários se queixaram que não teriam onde ou com quem deixar os filhos, logo, ficava difícil manter o ritmo habitual de trabalho; a solução veio praticamente de imediato: o hospital alugou uma escola próxima, contratou cuidadoras, e vida que segue normal (para os ricos e quem os atende). 

Essa deveria ter sido uma das funções assumidas pelas escolas - as públicas, ao menos: local onde trabalhadoras deixassem seus filhos com alguma segurança quando fosse imprescindível. Crianças não iriam para ter aula, iriam para que suas mães não tivessem que pagar para a vizinha do bairro apinhar quarenta crianças no quintal da sua casa, para que elas não ficassem na rua ou sem um adulto por perto. 

E como fazer isso com alguma segurança? Eis a discussão que o sindicato (e não a Tábata e seus amigos do "centrão") poderia conduzir: redução da jornada para um ou dois dias por semana por professor? Escolas com no máximo 20% dos alunos? Vacinação para seus profissionais como prioritários? EPIs de qualidade e bônus salarial? Contratação emergencial de quem fosse para cumprir essa função, sem obrigatoriedade aos professores? Não sei, os profissionais da área com certeza saberiam melhor como fazer - inclusive se isso seria realmente possível de ser efetivado. 

Contudo, a discussão não feita virou discurso entregue para a direita aprovar o projeto de lei como ela bem quis, e ainda ganhar argumentos contra a esquerda e contra os professores. Na atual conjuntura, com as esquerdas incapazes de articular e/ou emplacar uma resposta à altura da situação, parece que sua demonização só se reverterá se as atuais medidas se transformarem em tragédia.



23 de março de 2021

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O tudo bem que nos sufoca


"Oi, tudo bem?" é uma forma quase canônica de cumprimento no Brasil. Usamos (os bem educados) para cumprimentar do atendente da padaria ao bom amigo que há tempos não víamos. Questão feita, resposta dada com o mesmo automatismo: "tudo, e você?".

Há anos esse "tudo bem?" me incomoda - desde que acompanhei um amigo com crise renal ao pronto socorro, às oito horas da manhã de um domingo, e o vi cumprimentando (e sendo cumprimentado) por uma conhecida (também com cara de dor) com o "oi, tudo bem?". Se por um lado é uma demonstração de educação - o que não é pouco para estes tempos de esgarçamento da sociabilidade, consequências da reação à tímida democratização da democracia e dos direitos humanos, com a ascensão da extrema-direita neofascista e das ditas guerras híbridas -, por outro revela muito da nossa cordialidade de cala-a-boca, das interdições sociais sutilmente (im)postas.

É curioso notar que nas línguas europeias ocidentais-coloniais, o tudo bem é marcadamente do português. O "qué tal?" espanhol, o "how are you?" inglês, o "comment ça va?" francês, o "wie gehts?" alemão, se traduzidos mais fiéis à letra, significam "como está". Se cumprem, numa primeira camada, a mesma função do "tudo bem", num segundo momento oferecem abertura à resposta do interlocutor.

O tudo bem, se se analisar mais detalhadamente, direciona a resposta. Não é uma pergunta aberta, que convida a uma resposta pessoal, não se pergunta como a pessoa está: ela é um protocolo, sinaliza qual deve a resposta do interlocutor, se não quiser ser inconveniente. É uma mostra de educação e descaso ao mesmo tempo: pergunto como você está, mas se estiver mal, por favor, não me diga: quero saber que está tudo bem.

É parte da construção do mito do brasileiro como um povo alegre: provavelmente nos dizemos alegres porque não nos é dada a oportunidade de admitir nossa tristeza, ou mesmo nuançar nossas emoções (perguntei a amigos residentes em Portugal, dizem que lá se usa também o “tudo bem”, mas não com a mesma hegemonia que aqui). Estamos sempre tudo bem. Mesmo em meio a pandemia, seguimos com essa pergunta completamente sem sentido diante de quatro mil vidas perdidas por dia - apenas para o COVID -, desemprego, fome e uma série de inseguranças quanto ao futuro. E noto que as pessoas seguem respondendo com o automático "tudo", a ponto de causar estranhamento minha resposta habitual: "felizmente estou bem no que posso estar, mas, não, não está tudo bem". Não por acaso, o Brasil é o segundo país com maior número de depressivos nas Américas - fica atrás apenas da terra do mito do sucesso individual, os EUA. 

Christian Dunker, em entrevista à BBC [http://bit.ly/dunkerbbc1], por conta de seu novo livro, Uma biografia da depressão, comenta que a "depressão e ansiedade acabam sendo duas formas de sofrer que vão compactando a narrativa, a tal ponto que o sujeito acaba se resumindo a 'eu sou um depressivo'. Faz parte da depressão esse déficit narrativo, essa demissão de contar sua própria história, sua vida, e dividi-la com o outro". Indo ao seu encontro, podemos dizer que o "tudo bem" é um desses compactadores da narrativa nas relações interpessoais - dos mais arraigados. Tudo bem? Tudo. Estamos sempre bem, tudo está sempre bem. Até que a tristeza negada de ser compartilhada, numa tentativa de alívio, transborda e nos toma. Ao depressivo brasileiro, a culpa por não estar na grande comunhão nacional da alegria, ou a culpa por mentir: tudo.


14 de abril de 2021