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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O apagamento do humano no corpo humano

Lendo Os Anormais, do Michel Foucault, e fazendo associações aleatórias sem muito rigor, como é do meu feitio, a apresentação do autor da dialética e forças em conflitos que permeiam o corpo do prazer e do desejo a partir do século XVII fez com que relacionasse com o discurso de vários grupos feministas atuais sobre a “invisibilização” do corpo feminino - e que o mesmo vale para o masculino, acrescento eu.

Parece contraditório: o corpo feminino é ainda muito visado e utilizado, principalmente o corpo que se encaixa nos padrões de beleza da indústria cultural (que movimenta toda uma série de ramos industriais paralelos). Se no passado os difusores desses padrões se centravam na publicidade de agências e nas concessões públicas de televisão, hoje está espalhado pela internet e redes sociais, com suas milhares de influenciadoras digitais em potência ou em ato – numa triste democratização do trabalho de reificação do outro a partir de si, feito sem consciência. 

É mais que conhecida a crítica de que padrões de beleza irreais são mobilizadores de desejo e, ao mesmo tempo, de insatisfação, os quais são canalizados para o consumo (de homens e mulheres). Ao lidar com o corpo do desejo, o espetáculo busca instrumentalizar o inconsciente, o desconhecido de cada um para si próprio, para um fim racional-utilitário. 

Parte das críticas a essa instrumentalização, ao invés de visarem o consumismo subjacente a essa estetização (proto-fascista?) do corpo, acabam por mirar no próprio corpo – esteja no padrão ou não –, gerando cruzadas contra o corpo feminino (ou feminizado, no caso de homossexuais masculinos, travestis e mulheres trans), perceptível tanto em grupos conservadores e reacionários, quanto em grupos ligados a pautas identitárias: ambos tentando normatizar o desejo do outro a partir de seus ideais de usos verdadeiros e autorizados do corpo e da imagem.

Ao mesmo tempo que tem toda essa visibilidade, vários grupos feministas denunciam que o conhecimento mesmo do corpo pela mulher (e pelo homem também) passa ao largo. Nos últimos anos tenho notado a emergência de vários coletivos que se centram no empoderamento feminino a partir desse autoconhecimento mais elementar - cada um com sua abordagem, algumas mais críticas, outras esotéricas e bastante “ingênuas”. Conhecimento que é também a assunção do corpo como local de desejos e de prazeres legítimos – não só desejos do outro, tal qual geralmente posto à mulher na “divisão social do prazer”, e sim do próprio sujeito. 

Como mostram os contos do Marquês de Sade, na virada do século XVIII para o XIX, a ignorância é uma benção - para os dominadores. Vivendo em sociedade, em uma estrutura machista, se constituindo a partir das relações tecidas no dia a dia, se conhecer, conhecer seu corpo para além das funções médico-biológicas e espetaculares, reconhecer seus limites, seus desejos e seus prazeres, soam tarefas micropolíticas primordiais – até para que grandes mudanças estruturais na sociedade que venham a acontecer tenham raízes firmes para não sucumbirem ao primeiro sopro reacionário. De quantas mulheres não li o relato – ou mesmo os ouvi pessoalmente –, de que só foram ver sua vagina e tentar conhecê-la depois de provocadas por esses grupos de empoderamento a partir do próprio corpo, que só se autorizaram ter prazer e gozar durante as relações sexuais depois de mais velhas, do divórcio ou da maternidade – estas, numa dupla heresia a vários desses grupos que combatem o prazer: uma mãe que ainda busca o sexo.

Há, contudo, um ponto no discurso desses grupos que preciso discordar: não raro fazem um paralelo entre o desconhecimento do corpo da mulher por ela própria com o fato de que os homens seriam desde cedo estimulados no sentido contrário. Nada mais equivocado. Uma sociedade onde as pessoas conhecem seus corpos, experimentam-no de diversas formas e tem prazer com ele é uma sociedade com menos insatisfeitos, com menos gente disposta a destruir – seja a felicidade alheia, seja a si próprio, seja a natureza, via consumo desenfreado. Homens, por mais que tenham facilitados os acessos para posições de mando, graças à estrutura patriarcal da nossa sociedade, ainda assim estão na estrutura geral do capitalismo-espetacular como consumidores – não podem estar satisfeitos ou não consomem.  

Via de regra, o menino é estimulado a se masturbar e ensinado que todo o prazer emana de seu órgão genital – para si e para a mulher. Assim, no homem já (de)formado, seu prazer sexual se vincula estritamente ao pênis – sendo que boa parte dos homens sequer sabem lavá-lo direito, achando que o esmegma é capa protetora da glande. Outras zonas erógenas do corpo não são apenas desconhecidas, como temidas - um arrepio por um estímulo em outra região pode ser prova de fraqueza, que põe a masculinidade em risco. 

Esboço de foto-performance para o texto,
executado sem muita qualidade


Que a criança tenha tido a sorte de não ter uma educação machista – como este escriba –, ainda assim o corpo masculino, dentro do ideal fortemente posto e cobrado pela sociedade, deve ser um corpo rijo, duro, firme, forte, um corpo sob controle - seja o corpo trincado de academia, seja o corpo do homem desleixado com a aparência, que acha sua barriga flácida sexy enquanto critica mulher que tem celulite ou pelos. As implicações psicoemocionais para os homens são muitas e foge do meu escopo enumerá-las aqui - assim como suas consequências em cadeia para outras pessoas do seu entorno. Sigo centrado no corpo: os movimentos tidos por mais sensuais, mais femininos, o serpentear, o rebolar, não cabem ao corpo masculino: sinalizaria não apenas um homem homossexual (como se isso fosse qualquer demérito), como, pior, um emasculado – vale recordar que “seja homem” ainda hoje é um chamado à honra bravia, pretensamente superior, e muitas vezes aplicado às mulheres também. (Me vem agora um insight: se a capoeira não seria uma resistência negra também contra esse enrijecimento do corpo praticado pela cultura europeia-branca-cristã).

O masculino na nossa sociedade, já apontava Bourdieu em A dominação masculina, é uma espécie de varinha mágica que tem o dom de tornar o que toca automaticamente superior – o contrário acontece com o feminino: daí que qualquer gesto que faça alusão ao feminino ou à posição da mulher é rebaixador, é ridículo (vide várias comédias de Hollywood), é inferior e deveria ser evitado por pessoas razoáveis - afinal, estamos numa sociedade liberal-meritocrática, em que o que importa é ser vencedor, ser superior: toda inferioridade seria uma mácula (expediente instrumentalizado para adesão cega ao líder fascista). Trago um relato próprio quanto a isso: quando comecei a fazer dança contemporânea, com o curso de “Técnicas e Pesquisa de movimentos”, com a Key Sawao, mesmo tendo feito anos de yoga e tai chi, tive que entrar em outra qualidade de movimentos - e que não eram meras imitações do que o professor mandava. A dificuldade nesses movimentos não foi o de fazer, mas de aceitar que eu estava tendo iniciativa de fazê-los; incomodava não por ser uma postura que socialmente fosse encarada como inferior (como a do cachorro, no yoga, que eu fazia sem dramas), mas por apresentar a mim mesma prazeres com meu corpo em movimentos que não são “autorizados” a um homem - anos depois, com muita análise e crises, me daria conta de que desde criança não me identificava com o gênero masculino, nunca fui “homem”, apesar de todo esforço em me encaixar, e isso foi consequência de romper essa primeira armadura do corpo masculino, rijo e sob controle.

Nosso corpo - independente do sexo biológico e do gênero - guarda um manancial de potencialidades, abafadas pela tradição europeia decorrente da reinterpretação da filosofia grega, principalmente a platônica. Reprimir tais potencialidades já foi útil à Igreja católica - e vem sendo novamente útil às neopentecostais -, já foi útil ao sistema capitalista (por afinidades eletivas, como dizia Weber) para forjar o corpo produtivo, que parece agora descobrir que explorá-lo de modo controlado pode gerar uma nova fronteira de lucro - infelizmente, vários grupos identitários acabam reforçando esse movimento, ao traçar limites de como devem ser as pessoas da minoria ou da dissidência sexual que elas representam, como acusam Elizabeth Badinter e Judith Butler.

Que tenhamos coragem e organização para, numa afronta à sociedade e a quase dois milênios de história, podermos ser livres com nosso corpo - nos usos, movimentos, experimentos e prazeres que tiramos dele. E que a partir desse corpo, expandido para além da imagem que vemos no espelho e das relações hierarquizadas com que fomos educados, consigamos construir também outras qualidades de relações com pessoas e corpos que nos envolvem.

Movidas pela necessidade, mulheres e transexuais já começam a se embrenhar nessa direção; os homens (principalmente os heterossexuais), imaginando terem poder numa estrutura em que, no máximo, são os capatazes, ainda tardam para perceber sua real condição e atacam aquelas pessoas cuja coragem deixa evidente seu comodismo, sua covardia submissa.


10 de janeiro de 2022

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Corpo-preconceito

É algo que me chamou a atenção desde que comecei a fazer dança contemporânea, há três anos, com a Key Sawao: o quanto o corpo não carrega de memórias, de medos, de prazeres, de conceitos, de preconceitos que racionalmente parecem muito bem resolvidos.
Nascido e crescido numa cidade pequena e interiorana (recentemente orgulhosa de produzir um dos líderes do nazi-fascismo tupiniquim deste início de século) de um estado reacionário de um país machista, nada mais óbvio que achar homossexualidade um desabono à pessoa, ainda que fosse seu direito, e não justificasse qualquer forma de segregação ou violência - postura que vinha de casa e era muito avançada para a cidade (e seus três gays assumidos). Ainda chocado me recordo do choque em presenciar quase todos os alunos da escola (confessional, católica) perseguirem um garoto de onze anos, durante o recreio, quando ele ousava sair da sala, xingando-o, vaiando-o e cuspindo nele, por ele ser "jeitoso". Também lembro que com dezesseis anos meu maior receio com gays era tomar uma cantada - coisa de adolescente inseguro em cidade fim de mundo. Pouco depois, já na universidade, em cidades maiores - ainda que provincianas e conservadoras -, levei um sem-número de cantadas e descobri que dizer um tranqüilo "não" resolvia a questão na maioria dos casos - houve alguns insistentes, em que precisei fechar a cara e sublinhar o "não". Fora isso, muitos colegas, conhecidos e amigos homossexuais - alguns assumidos, outros então em vias de -, a ponto de me livrar daquele preconceito de antanho, e ainda discutir com meus pais até eles assumirem de modo enfático que cada um faz o que quer da sua vida íntima e nos cabe tão-somente respeitar - e errado são os fiscais do cu alheio.
Encerro as digressões e volto para 2013, aula da Key. Ela dá um exercício que conheço da época que praticava yoga: fica-se de gatinho (ou de quatro, em linguagem mais sexualizada) e mexe de forma circular cabeça e quadril, cada um para um lado. Talvez a primeira vez que fiz essa posição, dez anos antes, ela tenha sido um tanto incômoda, não lembro; sei que agora ela me perturba profundamente, dada minha completa descoordenação de circular cabeça e quadril ao mesmo tempo, ainda mais para lados opostos. Em compensação, em outro exercício, uma breve seqüência de gestos passada pela Key, minha trava foi não motora, e sim psicológica: um desses gestos consistia em passar o braço sobre a cabeça. Não faço idéia das causas, sei apenas que ele ganhava uma conotação tão gay que tive dificuldade em fazê-lo e levei tempo para naturalizá-lo. Desagradável (e necessária) surpresa: não sabia que ainda tinha esse preconceito arraigado, melhor, nunca soube que tive esse preconceito tão arraigado. Não me pareceu, a exemplo dos meus dezesseis anos, insegurança quanto à minha sexualidade - até porque não vejo qualquer problema ou demérito em ser gay -, mas me rendeu algumas sessões de análise. Surpresa também desse inusitado trazido pelo corpo: ficar de quatro, dançar com outro homem, nada disso me levou a questionar minha masculinidade, agora passar o braço sobre a cabeça...

29 de dezembro de 2016