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sexta-feira, 22 de junho de 2018

Futebol: o louvor ao mau-caratismo

Lembro de quando tinha meus dez anos, ouvir conversa dos adúltolos, que repetiam o que a mídia apregoava, que artes e esportes eram formas eficientes de manter jovens longe das drogas. Adúltolos porque duvido que eles ali - início da década de 1990 numa cidadezinha de fim de mundo do Paraná - tivessem a mínima noção das complexidades da questão das drogas e defendiam abstinência como prática "correta", ignorando que drogas são várias - as legais, que matam no trânsito, no bar, em casa, e as do mal, que... que deixam as pessoas louconas, ou que matam por overdose, apenas, não por overdose como por abstinência -, assim como a forma de se relacionar com elas - do uso recreativo ao abuso -; e ignorando que o meio artístico é um local privilegiado de drogas - tanto o uso quanto o abuso, entre artistas, técnicos e produtores. Não compreendiam que o que de fato tira jovens das drogas nas artes é que a vida ganha novas possibilidades, outros significados, maior diversidade de prazeres - possibilidades que o mundo do trabalho não costuma oferecer -, deixando menos espaço para ser ocupado pelo abuso de drogas (ou de religiões embotadoras da vida e da alegria).
Nos esportes, menos explícito e louvado, as drogas - uso e abuso - não deixam de estar presentes, tanto entre profissionais, na exigência de alto rendimento subhumano (subhumano porque não acho que o homem-máquina seja sobrehumano, antes o contrário, sua degeneração, o abdicar de parte da humanidade em prol de números), quanto de amadores, na tentativa de imitar ídolos, alcançar padrões estéticos sugeridos pela mídia, quanto pela frustração em seguir humanos - sem recordes, com gorduras.
Acompanhando algumas partidas da copa do mundo (acompanhei quase todos os jogos da primeira rodada, um saco, jogos parecidos e modorrentos, muita tática e pouco jogo, ficam entre jogos de futebol do Mega-Drive 16 bits e uma uma quase versão para bola redonda de futebol americano), desconfio que, pior do que ouvia na infância, esportes não apenas não deixam jovens fora das drogas, como ajudam a forjar uma ideia gloriosa do mau-caratismo. Mau caráter que não se restringe ao seu expoente-mor, o perverso mimado que se supera dentro e fora das quatro linhas, o "menino Neymar" (conforme ouvi na narração radiofônica, visto que tenho um mínimo de amor próprio para não me rebaixar a ouvir Galvão Bueno, o locutor do fascio nacional, em sua sabedoria plena, universal, de grande pai do falo gigante).
Não lembro de quem li (acho que foi o Dráuzio Varela ou o Mino Carta), da primeira vez que foi a um estádio de futebol, década de 1950, assistir a uma partida de futebol, e saiu estarrecido com o cinismo em campo - jogadores simulando faltas para tentar enganar o juiz e levar a melhor. Imagino qual não seria o horror ao ver uma partida hoje. Pior: qual não seria o horror daquele menino ao ver o cai-cai, a simulação, o fingimento, o engodo louvados em alto e bom som para todo o território nacional como sinais de esperteza, comportamentos positivos, heróicos, ensinados às crianças desde a seus primeiros passos, conquanto que seja a favor de "nós" - qualquer semelhança com processos jurídicos e/ou políticos fraudulentos, mas louvador como divinos por alguns (que ostentavam a camisa canarinho, por sinal) porque a favor deles não parece ser mera coincidência. Agora se o resultado for contra o "nós", independente que seja parte do jogo ou malandragem, resta indignação e clamar por justiça - aquela recusada aos outros. O gol da Suíça foi roubado, dizem, e é grande a ira por conta disso num certo país tropical - mas ninguém fala em devolver o pentacampeonato, nem se envergonha de ter ganho aquela copa com um gol irregular na primeira partida (por mais que isso pouco alterasse o resultado final do grupo). Neymar, o pai dos espertos, se irrita quando é feito de bobo, passa a se achar cheio da razão - a mesma razão que o autorizava a enganar.
É preciso ressaltar, ainda que Neymar seja o rei da velhacaria ludopédica (ele xingando o jogador costa riquenho é de uma finura exemplar), isso não é privilégio brasileiro: é o que há de mais corriqueiro nesta copa - mais que gols, mais que futebol. Nesta e em outras: vale lembrar que o México foi eliminado pela Holanda, em 2014, numa simulação vergonhosa de Robben. De volta à Rússia, no jogo entre Senegal e Polônia, por mais que eu estivesse torcendo para os africanos, deu vergonha o fingimento de Niang, que não apenas parou a partida para ser atendido de uma lesão de mentirinha, como ainda teve a sorte de ao entrar sobrar-lhe a bola para marcar o segundo gol. Desnecessário me alongar nos exemplos, há aos borbotões em cada jogo desse que é considerado o maior espetáculo esportivo do planeta. Se o uso do árbitro de vídeo tem ajudado os espertos a não se darem bem, ainda falta a Fifa decidir que de fato que se dêem mal - o cartão por simulação está aí, e toda partida acabaria por falta de jogadores em campo, se fosse aplicado. Menos drástico, bastaria estabelecer que jogador que seja atendido cumpra cinco minutos de espera antes de voltar a campo - afinal, diante das caretas feitas, é bom se certificar que não houve mesmo nenhuma vértebra quebrada ou uma hemorragia interna. Até lá, já seria de grande ajuda se o esporte pudesse ser usado como exemplo de ética - ou de falta de, já que os atletas servem antes de contra exemplo. Duro que os porta-vozes que a mídia nos impõe são tão anti-éticos quanto Neymar e seu cupinchas.

PS: uma dúvida se me abate desde o início da copa: com os jogadores jogando há muitos anos na Europa e alhures, os treinos da seleção e a instruções são em qual idioma?

PS2: ainda que eu seja de longa data torcedor da escrete argentina, não dá para esquecer o "que vengan los macacos" de um jornal local em alguma final olímpica contra a Nígéria. Que vuelvan más temprano los hermanos (e que junto los acompañen Neymar e cia).

22 de junho de 2018


Conforme um amigo, Neymar, preocupado com a saúde do costariquenho, sugere ao adversário "tomar caju, suco da fruta".

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Marginais, bárbaros, selvagens nos estádios: e nós?

O assunto é o da moda, e minha abordagem aqui, eu sei, não é nada original; mesmo assim escrevo sobre o evento entre atleticanos e vascaínos, na última rodada do campeonato nacional ludopédico. As imagens de brigões apanhando covardemente (porque não conseguiram bater covardemente) apenas coroou a face tida como aberração do esporte mais popular do planeta no país do futebol. Vale lembrar, contudo, que o conflito entre torcedores não é novidade no esporte, como não foi novidade neste campeonato. 

Teimando em tratar como excepcional o que é corriqueiro, em negar que isso é parte do esporte e reflexo da sociedade (o enorme contingente de policiais destacado para o estádio e arredores em dia de jogo apenas corrobora a violência inerente e não ritual do futebol-show), a imprensa arrota, verdadeiramente horrorizada e inconscientemente satisfeita (afinal, é notícia, é capa do jornal, é motivo fácil pra colunas), uma série de pretensos desqualificativos desse Outro, reflexo maldito de nós mesmos. De bandidos e marginais a bárbaros e selvagens, o espectro de adjetivos é amplo, mas me restrinjo a um breve comentário sobre esses quatro, muito utilizados.

Sobre bandidos, convém sempre lembrar que doentes e criminosos são crias da própria sociedade onde vivem – atiradores de escolas nos EUA, suicidas em universidades brasileiras de ponta, agressores sem motivos e policiais sádicos ao redor do mundo. Marginais, como o próprio nome diz, é porque há um núcleo do qual alguns – em geral muitos – foram excluídos. Àqueles que acusam o Outro de marginal sobra sempre auto-incriminações implícitas: ou crêem que os tais marginais se põem à margem por opção? Entre viagens pra Disney, baladas caras e carro importado, escolheram tráfico de drogas ou a vida medíocre em escritórios temperada com brigas em estádios.

É a mesma função de auto-comiseração, porém num plano mais ontológico e menos social, o uso do ajetivo bárbaro: vem da tradição greco-romana, quando os homens ainda não eram todos iguais, tratar o diferente não como um Outro, mas como uma sub-raça inferior. Se o Outro nos devolve nosso reflexo e nos obriga a repensar nossa condição no mundo, o bárbaro apenas serve para provar nossa superioridade narcísica frente sua ignorância e rudeza.

Por fim, o adjetivo selvagem, que tanto me agride: um pouco menos de etnocentrismo e positivismo nos cairia bem. Os selvagens, se guerreavam o faziam com fins mais nobres do que a violência gratuita que foi filmada em Joinville: a violência podia ser real, mas era também ritual, o adversário era um Outro digno de respeito – a tal ponto que o ritual de antropofagia significava incorporar as suas qualidades. O que se vê hoje em dia – nos estádios e fora deles, que o diga a internet – é o adversário como inimigo, um ser ignóbil (pelo elevado motivo de não concordar conosco) que merece ser destruído e aniquilado. Não é alguém que respeitamos e invejamos suas qualidades, é alguém que pequeno e que nos perturba por nos apresentar nossa pequenez. A violência gratuita dos estádios não é ritual nem auto-reflexiva, mas é um reflexo de nossa sociedade, em que as pessoas são reduzidas a um insignificante e facilmente substituível parafuso no sistema que tem por obrigação gerar lucro e crescimento econômico. Não é selvageria, é hiper-civilização.

E então abundam propostas de como conter tal violência: aumento do efetivo, fim das torcidas, prisão de torcedores, torcida única, jogo em estádio vazio. A cada proposta eu ouço a afirmação da falência de uma sociedade, de uma cultura em que um jogador de futebol mediano ganha mais do que um escritor ou um intelectual de ponta. E tudo isso é normal, porque violento são os outros.

São Paulo, 10 de dezembro de 2013.