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domingo, 12 de setembro de 2021

12 de setembro: o fiasco da tentativa de uma nova onda antipetista

Se o 7 de setembro bolsonarista foi um fiasco, o 12 de setembro da tal terceira via é até difícil de classificar. Houve forte discussão se a esquerda estaria sendo sectária ao não participar do ato convocado pelo MBL - assim como muito se debateu se o Grito dos Excluídos, que acontece há 27 anos no dia 7 de setembro, deveria ser mantido ou a esquerda e os movimentos sociais deveriam fugir e deixar a rua para os fascistas. 

Modestos mas não esvaziados, os Gritos dos Excluídos aconteceram em todo o país - e tive a impressão de terem sido maiores que em anos anteriores (quando eu participava, ainda que discretamente, da sua organização). O 12 de setembro, mesmo com convocações na grande mídia e sem o temor de "conflito nas ruas", foi um fiasco digno de nota.

Contudo, as notas tem sido postas sempre no MBL, responsável pela convocação e, portanto, pelo fracasso. Nada mais falso. MBL nunca teve organicidade nem relevância, se não for a reboque de outros movimentos - sempre de tendências fascistas, fascistóides ou fascistizantes.

Muitos temiam que o 12 de setembro tivesse considerável adesão e a esquerda ficasse escamoteada num pretenso movimento de impeachment, com a pauta capturada pela extrema-direita - tal qual aconteceu em 2013, pelo próprio MBL (surgido para confundir os incautos com o MPL que puxava os protestos) e afins. Parte da esquerda já tinha ajudado a preparar o terreno para o putsch mblista da pauta, ao focar demasiadamente na figura do presidente da República, com o #ForaBolsonaro se sobressaindo a temas mais importantes de quem o conduz (e que, sabemos, serão mantidos por um eventual governo Mourão). Era limitar todo o movimento a tirar o presidente (seja da cadeira presidencial, seja da corrida de 20220) e deixar a boiada seguir passando - tal qual explicitara o ex-secretário de Geraldo Alckmin, então ministro de Bolsonaro.

Não houve fracasso do MBL nos pífios atos de 12 de setembro. O que fracassou foi toda uma estratégia de parte das elites de repetir o movimento de impeachment de Dilma, derrota de Haddad em São Paulo e eleição de Bolsonaro: o ato deveria ter sido um fato político novo, ele marcaria uma nova grande comunhão nacional dos que não estão fechados com nem o fascismo bolsonarista nem com a social-democracia e entulhos do estado de direito (como foi o impeachment de Dilma). Não estar junto com os fascistas de sapatênis do tucanato, com a #TurmaBoa do coronel esclarecido do Ceará ou com empreendedores do movimento bolsonarista light (como bem classificou Pablo Villaça) seria pactuar com setores minoritários e radicalizados da sociedade, com os corruptos, com os autoritários. 

Com a meia dúzia que conseguiram aglutinar, apesar de toda mobilização, fica evidente quem são os minoritários, mas ainda assim devem insistir no discurso de que são eles os democratas - as análises de certos jornalistas porta-vozes do capital já apontam essa tentativa, ao culpar o PT pelo fracasso, por se recusar ao participar do ato contra o partido e contra Bolsonaro.

O ponto agora para essas elites é como conseguir derrubar Lula e o PT, para não serem obrigados a fazer uma escolha muito difícil em 2022. Devem fazer mais algumas tentativas com uma terceira via civil, enquanto aumentam os ataques às esquerdas e analisam se o enquadro de Gilmar Mendes e Temer a Bolsonaro de fato colocou o mandatário na linha que eles gostariam - ou se Mourão teria alguma viabilidade política, ou Santos Cruz. Lula, por seu turno, deve fazer também acenos, já que, em tese, sai ainda mais forte desses dois fracassos seguidos dos movimentos anti-lulistas.

Esquerdas e movimentos sociais marcaram suas mobilizações para o dia 02 de outubro. Será um teste vital para ver sua capacidade de mobilização e, principalmente, sua capacidade de articular pautas importantes para o conjunto da sociedade - desemprego, inflação, educação, saúde, comida, vacina -, e sair da armadilha de encarnar todos os males em Bolsonaro (seria interessante que conseguisse furar a cortina de ferro posta pela mídia corporativa, mas isso é mais complicado). Uma mobilização que consiga pautar o debate de temas e não de nomes.


12 de setembro de 2021

quarta-feira, 15 de maio de 2019

15 de maio: a flor e a náusea (outras flores virão?)

Com atraso, muito atraso – três anos e um dia, desde a posse de Michel Temer, para ser mais exato -, as pessoas envolvidas com educação – professores, estudantes, gestores, pais, cidadãos – parecem ter finalmente conseguido se organizar e se articular minimamente para fazer frente o desmonte da educação no Brasil – em especial a pública, mas não só.
O mérito dessa organização cabe a Abraham Weintraub, ministro da educação (sic) do governo (sic) Bolsonaro. Pode ser que tenha sido um lance estratégico, dando ensejo aos protestos de hoje, os quais serão subvertidos pela narrativa (oficial) distribuída por WhatsApp, favorecendo o governo; mais provável é que seja só ignorância, incompetência e incapacidade do ministro (a exemplo de todo governo).
Os protestos foram bonitos, tranquilos – com a polarização violenta da sociedade estimulada pela extrema-direita (nisto inclui Globo e similares), temia certa quebradeira por pessoas ali postas para isso, ainda mais diante dos poucos policiais que faziam a proteção das pessoas – e grandes. Tive a impressão de que sequer no ato da Paulista em defesa da democracia e contra o golpe, pela permanência de Dilma, com o Lula, tinha tanta gente – talvez as duas manifestações estivessem pau a pau, inclusive numa certa “energia” que corria entre os manifestantes. Mais que isso, convém reparar na guerra de narrativas: eu chegava em São Paulo às duas da tarde, hora programada para o início do protesto na capital, e a rádio do grupo Globo girava o país comentando como estavam os protestos – uma narrativa “neutra”, que comentava da pauta da reforma da previdência e no grande número de pessoas, sem elencar os problemas para as pessoas que queriam passar de carro pela Paulista e não podiam. Sem comprar o discurso de fora Bolsonaro, sem chamar os patos para a avenida, porém sem também deixar para dar uma nota curta no jornal da noite, no curto exemplo que tive, a Globo se abriu ao jornalismo sério como disfarce para fustigar o governo – e isso não é pouco, dada a pouca fibra do presidente e dos seus, é bem possível que ele sinta a pressão.
Contudo, o que realmente chama a atenção é só agora acontecer uma reação de tal monta, sendo que elementos tem sido dados desde o segundo governo Dilma, mas em especial desde o golpe de 2016: a ponte para o futuro, desvinculação dos recursos do pré-sal para a educação, a PEC dos gastos públicos (que não com juros), a reforma do ensino médio – tudo isso justificado pela mídia, pelos especialistas a serviço da mídia, pelo ilustrado ministro Barroso. Única reação digna de nota foram dos estudantes secundaristas ao fechamento de escolas, em 2015, ainda antes da Blietzkrieg golpista da trinca judiciário-mídia-capital. Não apenas isso: a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 22 de março, por parte de Doria Jr e sua base, para investigar “desvio ideológico” nas universidades, é motivo suficiente para as estaduais paulistas estarem paradas, por ordem do reitor – que ou não entenderam a situação, e não perceberam que tem sua cabeça a prêmio, ou estão dispostos a agir a la Ernesto Araújo e em troca de poder para agora, entregam tudo (e todos) o que o chefe mandar. As universidades, porém, preferiram fingir que o ataque à sua autonomia não era com ela.
No plano federal, a inabilidade de Bolsonaro tem mostrado um tiro no pé das elites que o puseram lá, para afastar o sapo barbudo ou seu sucessor. Temer, político habilidoso, tinha deixado pronto o desmonte da educação pública de modo lento, gradual e seguro. Bolsonaro, ao acelerar o processo, articulou a reação e pode pôr tudo a perder. O corte de 30% nos orçamentos das universidades públicas, os cortes gerais na educação, as ameaça de fim de humanidades nas universidades, a ameaça de ensino residencial (homeschooling) são o escancaramento do que Temer tinha posto no horizonte, sem maiores reações. Primeiro com a PEC 95 (aprovada no dia em que caiu o avião da Chapecoense), que congelou gastos sociais por vinte anos – e entre tirar da saúde, segurança ou educação, é bem evidente que educação seria escolhido, por não ser algo de efeito imediato. A seguir, sua reforma no ensino médio, que tirou as ciências humanas – filosofia, sociologia, história – da grade obrigatória, e permitiu que parte das disciplinas fosse à distância (EaD). No médio prazo o que isso implicaria? A EaD diminuiria o mercado de trabalho para professores, diminuindo a demanda (e a sua necessidade, segundo a leitura dos cabeças de planilha) desses cursos. Os cursos de humanidades cuja principal ocupação é lecionar, sem a obrigatoriedade, tende a cair ainda mais (a concorrência em filosofia na Unicamp, por exemplo, foi de 5,1 candidatos por vaga em 1997, para 10,9, vinte anos depois, motivado, em boa medida pela abertura do mercado de trabalho nas escolas, durante o governo Lula); menos procurados, seriam cursos que poderiam ter suas verbas cortadas com “melhores” justificativas, de modo a acomodar a universidade no arrocho orçamentário imposto pela PEC. Ao cabo, primeiro os cursos de humanidades nas universidade públicas minguariam (nas particulares já são minguados), logo as próprias universidades – talvez os hospitais passassem para a pasta de saúde, como forma de garantir o funcionamento daquilo que boa parte da sociedade vê como único serviço prestado pelas universidades –, e isso, ao que tudo indica, sem maior alarde, sem conseguir mobilizar a população na sua defesa.
O ponto agora, uma vez que as pessoas preocupadas com a educação e com a educação pública no Brasil conseguiram se organizar, é manter a mobilização e levá-la para além de pautas reativas, de negação, incluindo no debate público problematizações e propostas positivas: a forma como a educação – tanto a básica quanto a superior – tem sido atacada e modificada, sem discussão com a população, com os interessados e com especialistas da área, e sem maiores reações da sociedade, mostra que há, sim, uma percepção de que algo não vai bem. Se acaso se centrar em voltar ao que era, este movimento iniciado dia 15 de maio não vai conseguir angariar apoio necessário para fazer uma contraofensiva aos desejos dos donos do poder (e não apenas dos ocupantes de turno do Palácio do Planalto). Assim como é urgente revogar os cortes nos orçamentos das universidades e retomar a vinculação das receitas do pré-sal à educação, é preciso propor uma discussão de ampla reforma da educação, repensar a função da escola (ainda faz sentido uma escola tão conteudista num tempo de internet? Melhor não seria centrar em aspectos de relações inter e intrapessoais?), o papel do ensino na vida de uma pessoa (é só meio para ascensão social, ou pode fazer sentido no momento presente do aluno?), a inserção da universidade na sociedade. É preciso que escolas e universidades se abram ao seu entorno (o projeto dos CEUs da Marta Suplicy é um bom exemplo), dialoguem com todos – dialoguem e não façam palestras -, entendam carências urgentes do grosso da população que não são contemplados pela universidade e conciliem isso com necessidades de médio e longo prazo de toda nação.
Foi aberta uma brecha, como a flor no poema de Drummond. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio." As forças democráticas e de esquerda da sociedade precisam aproveitá-la!

15 de maio de 2019

sábado, 19 de dezembro de 2015

As ruas começam a incomodar a Grande Imprensa

Um das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho", de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário. Num país em que "político" é tido como termo pejorativo pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada" -, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964; os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou.
E assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros, claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies; numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente distribuída.
Nesta semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio, protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da democracia.
A Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida" (por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia. Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam manifestações comunistas?).
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe, quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é, merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito; Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo, reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas - porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito, transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante e as bandeiras que defendem.
A rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual - mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a última palavra: sim, senhor.


19 de dezembro de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Uma conversa banal sobre o 15 de março [Qual gigante acordou?]

Dois respeitáveis senhores, bem vestidos, sem espalhafato, num mercado da zona cerealista, em São Paulo, conversam sobre os protestos contra a Dilma, no dia anterior. São contra o PT, e isso soa óbvio. Na ala de bebidas do estabelecimento, talvez parte da explicação: o governo que diz que a inflação está sob controle, como justifica um reajuste de quase vinte por cento em dois anos, em uma garrafa de conhaque Louis XIII: de nove mil e quinhentos para onze mil e duzentos reais (nunca tinha visto tudo isso de número em víveres, o que muito me impressiona, toda vez que vou a essa venda)? 
Mas é a conversa entre ambos que realmente me impressiona:
Viu a Dilma, ontem? Tomou no cu - fala, polidamente, o primeiro.
Pois eu achei é pouco: tinha que queimar ela em praça pública - responde, muito cordato, o segundo.
E eu com meus botões me pergunto como falar em democracia com gente que tem mentalidade da época da inquisição medieval.

16 de março de 2015

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cria cuervos (sobre a expulsão do repórter do CQC de uma manifestação)

Assisto ao vídeo da expulsão do repórter do CQC da manifestação contra o PT e a Dilma, e a favor da ditadura militar, dia quinze de novembro, na Avenida Paulista. O manifestante que gravava a cena tece comentários ao fim da ação anti-mídia: "achei é que foi pouco". E foi mesmo. Não que merecesse mais - ou mesmo isso -, mas para quem viu o cortejo das esquerdas na última manifestação chamada pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013, atacadas verbal e fisicamente por hordas de extremistas, achou a tal gritaria dos viúvos e das viúvas da ditadura nível iniciante: uns gritos, dedos em riste e a expulsão, sem ameaça séria ao repórter, que sequer precisou da ação dos policiais (que estavam do lado!) para conter o magote histérico. 
Como não sou jornalista não sou afetado pelo corporativismo (como atinge mesmo a excelentes nomes, como Paulo Nogueira), e tento evitar dois pesos duas medidas: por isso não condeno a ação contra o humorista. Já vi em greve da Unicamp, repórter da Folha de São Paulo tirar foto de papéis de divulgação publicitária, atirados por alunos numa ocupação da reitoria, para noticiar a perda de documentos importantes da instituição: se for para noticiar mentira (falo de fatos falsos, não se trata sequer de uma visão parcial), defendo que movimentos barrem a imprensa. Que a imprensa não se satisfaça com esse tratamento (por mais que muitas vezes mereça), acho do direito dela, e faz todo sentido não acatar cerceamentos - apesar de quando a polícia militar a impede de trabalhar, como no cerco aos manifestantes no hotel Linson, na Augusta, a Grande Imprensa no máximo solta uma nota de rodapé de pesar.
No caso dos manifestantes anti-PT e pró-militares de sábado, vale lembrar, antes de tudo, que o tal repórter é, antes de mais nada, um humorista, e o programa do qual participa tem como um dos seus expedientes principais, avacalhar com aquilo que estão acompanhando (eu ia dizer ironizar, mas para usar ironia é preciso um pouco de sofisticação intelectual e educação, algo que Marcelo Tas e seus pupilos, se possuem, não gostam de usar). Por mais boçais que sejam - talvez justo por isso -, os manifestantes na Paulista querem ser levados a sérios: o que esperavam que os manifestantes fizessem com quem chega para avacalhar em rede nacional com seu protesto? Que o receba com pompas de ser iluminado, só porque tem uma credencial de jornalista (se é que tem) e é acompanhando por um câmera? A situação é um pouco diferente no caso do repórter do Diário do Centro do Mundo, que cobria com intuito sério a manifestação - porém aqui trago o exemplo que vivi na Unicamp: se os manifestantes achavam que ele noticiaria inverdades, deveriam deixá-lo atuar, só porque jornalista se crê intocável? Jornalismo é uma profissão de risco, a depender de que linha o jornalista decidir seguir. Ser impedido de exercer seu trabalho por parte de um grupo de pessoas é um desses riscos, e isso não significa, necessariamente, cercear a liberdade de expressão - pode vir a ser, por exemplo, num caso de ameaças prévias ou agressões sistemáticas.
Aqui concordo, ainda que por um caminho diferente, com a análise de Paulo Nogueira, do DCM: a imprensa está criando seus próprios corvos. Pela sua incitação ao ódio, mas também pelo uso sistemático da mentira, ou da "desinformação", como preferem os mais pudicos. A recusa em contribuir, ou mesmo compactuar, com a imprensa se dá porque a população tem percebido - ainda que inconscientemente - que a imprensa não está ali para relatar os fatos, e sim para distorcê-los ao sabor dos seus interesses. E isso traz uma questão muito mais assustadora do que expulsão de jornalistas por extremistas: uma questão que atinge a população média, em tese longe de extremismos. Tratarei em uma próxima crônica.

São Paulo, 20 de novembro de 2014.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Os que protestam e os que reprimem

São três e meia da tarde de uma terça-feira. Na avenida Paulista uma manifestação fecha uma das pistas ao reunir um número considerável de pessoas. São agitadas bandeiras que não conheço. Há retratos em preto e branco - parecem fotos da época da ditadura - e a maioria está vestida de vermelho. Imagino que seja protesto lembrando o golpe civil-militar de sessenta e quatro. Uma faixa que consigo ler mais ou menos fala em "ocupar criar". Não é contra a copa, não há black blocs, não há estudantes. As camisetas dos manifestantes me situam: é um protesto do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Ouço depois no rádio que, sim, protestam contra o golpe, entretanto protestam também contra a repressão policial, e reivindicam moradia digna. A Polícia Militar faz a escolta. Não vejo o choque. Tampouco vejo a "tropa do braço". Os soldados não estão com os habituais escudos, utilizados em dias de protestos habituais. Em compensação, estão todos com suas armas letais no coldre - uma diferença bem marcante para os dias de protestos classe-média. Passo pelo corredor polonês de policiais que espreme os manifestantes. Um dos militares me assusta com seu olhar vidrado, sangue nos olhos, a mão na arma, em busca de um inimigo que justifique sacá-la e apontá-la. Ao redor, nenhum sinal de tumulto ou perigo que justifique sua agressividade (ainda que então restrita à simbólica). No mini-carro-de-som uma mulher saúda os manifestantes e cumprimenta polícia militar - ela conhece quem os escolta e que gritos de provocação podem ter conseqüências bem mais pesadas do que nas manifestações contra a copa das pessoas brancas e com teto. Não é só isso que marca a diferença para os protestos-base que agitam o país desde junho e são noticiados com alarde pela imprensa e comentados em profusão nas redes sociais. A pauta é menos genérica, porque aquelas pessoas vestidas de camisetas vermelhas não reivindicam o impossível: elas ainda reclamam o possível e necessário. Uma mulher, filho no colo, comenta com um pedinte: "quero que meus filhos cresçam e sejam alguém na vida". É esse o desejo de fundo, a pauta genérica não explicitada por aqueles que protestam: ser alguém na vida. Porque só é alguém na vida quem trabalha ou, preferencialmente, quem possui dinheiro. O protesto que presencio não é por mudanças profundas, é por inclusão - e isso dá uma idéia do tamanho do nosso atraso. Para quem é sub-cidadão, cidadão de terceira classe, entrar no sistema produtivo, ser explorado, é um avanço na sua condição social - só pode gritar contra o trabalho quem tem emprego ou quem não necessita, por alguma feliz fortuna da vida. Mesmo assim a maioria chancela esse sistema que a suga e pouco lhe devolve. E é por isso que reivindicam os trabalhadores sem-teto e tantos outros movimentos de excluídos: serem chancelados por esse sistema que as exclui; ser alguém na vida, ter um emprego que os explore e os faça útil (sic) à sociedade; uma moradia que não custe caro e horas em trens e ônibus hiperlotados até o trabalho; algumas migalhas de direitos que a classe-média-demófoba vê como reivindicação de privilégios: saúde, educação, segurança pública de qualidade. Sim, porque aquelas pessoas de vermelho também reivindicam segurança - mas segurança de verdade, que a solução habitual brasileira, a de atirar antes, perguntar depois, só lhes traz mais insegurança. Em meio às camisetas do MTST passam três pessoas também de vermelho - porém no peito está estampada a logomarca de um banco. São alguém na vida, esses três. Ao menos assim diz a sociedade, assim devem se sentir, diante daqueles que protestam. São cidadãos de segunda classe - quem sabe tenham até férias. A miséria de vida que compartilham com os sem-teto é a mesma. A mesma miséria dos policiais militares que fazem a escolta, uns com cara de tédio, outros com olhar de raiva. O militar com a mão na arma sabe que seu emprego não lhe garante realmente ser alguém na vida. Sua vida a serviço do Estado o torna um respeitável homem de bem de segunda classe, pronto para ser humilhado pelos homens de bem de primeira classe, no primeiro deslize que cometam contra alguém de cima e não de baixo. E os de baixo - esses cidadãos de terceira classe que protestam - estão tão perto que a raiva que ele traz no olhar talvez seja para encobrir a descoberta terrificante de ser um deles. A mão na arma serve para lembrá-lo da sua insignificante superioridade. 
O protesto corre pacífico, noticiam no rádio.

São Paulo, 01 de abril de 2014.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Por que tanto medo dos protestos contra a copa?

   Há um processo agressivo de desqualificação dos protestos em curso, e não falo aqui de jornalistas reacionários (ao menos eu não os via assim até pouco tempo atrás). Dois colunistas fizeram com que me acendesse esse sinal de alerta: Marcelo Rubens Paiva, do Estado, e Nirlando Beirão, do R7. O primeiro diz temer "pela integridade física e mental desses moleques mascarados", dispostos, segundo ele, a atacar torcedores adversários em nome de frustrar um ídolo tupiniquim, a tal copa do mundo, "instituição mundial que amamos a cada quatro anos". O segundo anunciou o fracasso do protesto de sábado por ter aparecido somente "os habituais gatos pingados" (entre mil e três mil pessoas), enquanto um bloco de carnaval sozinho atraía vinte mil pessoas, para não falar nos demais quarenta que se espalhavam pela cidade; e conclui, depois de vários qualificativos que rebaixam o debate: "o que aconteceu em junho de 2013 foi importante. Mas não tem nada a ver com os surtos da atual moléstia infantil do protestismo".   

Não sei se alguém nos protestos acredita que vai barrar a copa. Eu mesmo não sou muito simpático ao lema #naovaitercopa. Porém reconheço que como "grito de guerra", como "slogan de campanha", é um mote interessante, tanto que incomoda colunistas como os dois supra citados, e aponta que a briga não é exatamente por migalhas. Se incomodar, não concordar, achar um lema surreal, contudo, não autoriza os colunistas a agirem de má-fé e distorcerem propostas e fatos. Apesar que jornalista brasileiro tem memória extremamente curta, capaz de esquecer o que disse em menos de vinte e quatro horas (Jabor é nosso caso emblemático), e pode ser que o que escreveram foi resultado dessa amnésia que acomete significativa parcela dessa categoria. Não serei Poliana em acreditar nisso, insisto em achar má-fé.  

Ambos taxam os manifestantes de infantis, de moleques. É o que a Grande Imprensa dizia do Movimento Passe Livre, a meia dúzia de gatos pingados de arruaceiros e vândalos que ia nas suas primeiras manifestações, a ridícula briga por vinte centavos. Até se darem conta que a população não é tão bovina quanto criam.   

Paiva dá a entender que a revolta contra a copa vai se voltar contra os torcedores que aqui vierem. Diz que a revolta deveria se voltar contra o governo que assumiu responsabilidades e não cumpriu, e não contra a instituição copa, que não tem culpa de nada. O escritor só esqueceu que houve uma série de exigências da Fifa - tanto que os jogos serão em pasteurizadas arenas, ao invés de aproveitar estádios já prontos, históricos da copa de cinqüenta, como o velho Maracanã, o Pacaembu, a Vila Capanema, etc -, e que se os estádios estão quase prontos é porque dinheiro público que poderia ir para obras importantes foi canalizado para a instituição mundial que ele ama e me põe indevidamente junto (até gosto de futebol, de ir ao estádio, mas acho copa um porre, e sei que não estou sozinho).   

Já Beirão abusa da ignorância de seus leitores, e faz o jogo do Fla-Flu apedeuta que toma as discussões na rede. Ele atribui o fracasso da manifestação ao número de participantes. Vale lembrar que o primeiro ato do MPL devia ter no máximo duzentas pessoas, e que a quinta terror tinha pouco mais que o do dia vinte e dois (entre dois e cinco mil, a depender da fonte). Fracasso foi o protesto da semana seguinte à quinta terror, com milhares de pessoas nas ruas, vestindo as cores nacionais, deslumbrados com o prédio da Fiesp, atendidos por ambulantes, tirando fotos com policiais militares, hostilizando o MPL e a esquerda, enquanto protestavam contra impostos (e financiar o passe livre como?), contra o Lula (?), contra o casamento gay. O fracasso foi tamanho que o MPL se retirou temporariamente de cena, reaparecendo mais tarde nas periferias. Voltando ao protesto atual. Juntar mil pessoas, no mínimo, para apanhar da polícia militar numa tarde chuvosa e cheia de opções muito convidativas, parece estar longe de ser fracasso. Ainda mais a se julgar pela repercussão. Se o fracasso está em não alcançar seu objetivo, raros foram os protestos de sucesso, e melhor é mesmo ficar em casa, assistindo o jogo da rodada.   

E aqui o maior perigo da postura tomada por Nirlando Beirão, Marcelo Rubens Paiva, e tantos outros: um dos maiores legados (se não o maior) dos protestos de junho de dois mil e treze foi trazer a discussão política para o espaço público, para o quotidiano, autorizar a rua como espaço político democrático, e abrir espaço na Grande Imprensa para protestos que acontecem quase diariamente desde muito tempo e eram solenemente ignorados (quem escuta noticiário no rádio, por exemplo, nota a diferença). A desqualificação dos protestos contra a copa, assim como a forma que foram reprimidos pela polícia militar, é uma tentativa de retornar ao estado anterior, em que protesto era sinônimo de vagabundagem, e a população era tida por letárgica.   

Beirão sugere (e Paiva não fica muito atrás, nas entrelinhas do que diz) que "a copa é só a copa. Melhor relaxar e aproveitar". Com todo dinheiro e política envolvidos no evento, a copa não é só copa, e os protestos contra ela têm uma dimensão política que amedronta os donos do poder - tanto que seus cães de guarda já latem na Grande Imprensa.   

São Paulo, 24 de fevereiro de 2014

sábado, 25 de janeiro de 2014

São Paulo, 460: a capital do choque.

Tem-se que os agricultores de antigamente, ou os pescadores, sabiam ler os sinais da natureza e eram capazes de dizer se iria chover ou fazer sol, se viria seca ou enchente, frio ou calor. Me sinto um pouco como esses antigos, mas a natureza que sei ler é a da urbe, a social, a de São Paulo. Feriado na cidade: aniversário de quatrocentos e sessenta anos da principal cidade do país, ano de copa do mundo e eleições, manifestações estavam programadas. Não fui atrás de saber sobre elas, fiquei em casa brigando contra a preguiça causada pelo mormaço. Que só foi superada quando minha amiga chegou, no fim da tarde, e decidimos sair um pouco, aproveitar que a temperatura serenava conforme o sol se escondia para dar um rolê pelo centro e comer uma açaí na avenida São João. Durante a tarde eu ouvira helicópteros: como não partiam dos hospitais ao redor do meu apartamento, desconfiei que havia protestos, mas a 23 de maio seguia seu fluxo normal. Teria eu errado, e aqueles helicópteros significavam outra coisa? Na Sé, grandes grupos de policiais indicavam que eu estava certo. Chegamos no viaduto do Chá no mesmo momento que chegavam os caminhões da tropa de choque da polícia militar. Enquanto eles se posicionavam, um morador de rua dormia na calçada, como se nada estivesse acontecendo. Minha amiga ficou, eu fui ver como estava o protesto, que seguia pela Xavier de Toledo, escoltado pelos militares, e o choque na retaguarda. Duas motos da polícia militar passam em alta velocidade, os manifestantes são obrigados a dar passagem; alguns deles tentam derrubar os policiais - é claramente o que os mantedores da ordem querem, para justificar o avanço da tropa de choque e o início do que datenas e bonners chamarão de baderna -, não conseguem. Volto para encontrar minha amiga e seguirmos nosso plano original - me recordo que na "quinta terror" de junho eu havia saído após o início da pancadaria da polícia para encontrar minha amiga Misson e irmos tomar um mate ao lado da casa de mate que fui hoje. No Theatro Municipal, em algumas horas haverá apresentação do Balé da Cidade de São Paulo. Na São João, a "feirinha do rolo" junta várias pessoas, enquanto em frente a lanchonete rola uma baladinha. A segunda parte do nosso plano era voltar pela Augusta - a qual imaginamos ter algo da continuação dos protestos. A praça da República está cercada por policiais - impressiona. No palco montado para a comemoração do aniversário da cidade, um show de samba-rock, o clima é muito ameno. No caminho, os cinemões da República, vendedores ambulantes, transeuntes passando como se nada excepcional estivesse acontecendo. Pouco antes da Consolação, outra balada - são oito horas da noite. Na entrada do Minhocão, um fusca queimado atrapalha o trânsito. Antes, uma agência bancária quebrada e pixações contra a polícia. O protesto já passou por ali. Na Augusta, alguns poucos rastros dos protestos - que ou foram amadores ou, mais provável, não tiveram muita chance contra o avanço dos militares. A Augusta está interditada pelo choque: parte dos manifestantes, encurralados pelos dois lados, se refugiou dentro de um hotel. Me estico para ver: parece cena de terrorismo, soldados todos paramentados, com capacetes e armas em punho, fazendo revista em um hotel. Fico a imaginar se, durante alguns dos grandes eventos que o Brasil sediará, acontecer algo nessa linha - atentado sério, e não jovens revoltados que usam paus e pedras e vinagre - o tamanho despreparo de nossas forças ditas de segurança. Meus olhos ardem: há restos de bombas de efeito moral no ar. Damos a volta na quadra. Na Frei Caneca, estamos no meio de um grupo que explica que teve que arrebentar a grade de um estacionamento para que as pessoas pudessem fugir da polícia militar, que os encurralava. Várias viaturas passam nessa hora. Não olha, não olha, diz um deles, e então reparo que estamos no meio de um grupo de jovens todos de preto, com mochilas e demais equipamentos necessários para ação direta. Minha amiga fica temerosa, eu acho graça - faltavam achar que meu visual praia poderia ser disfarce black bloc. A Augusta segue interditada, mas a fila para a balada já se forma, ao lado da fila de policiais que desviam o trânsito e, em certo momento, um comboio de "night bikers". A primeira quadra após o bloqueio, direção Paulista, ainda há movimentação de todos em função da presença maciça de policiais, na quadra seguinte, a rua ferve como todo sábado à noite: adolescentes descem, os bares cheios, os maître de inferninho convidando pra tomar cerveja com a mulherada, mendigos catam latinhas, pedem moedas, dormem. A mesma coisa na Paulista, com seus adolescentes, skatistas, artistas de ruas, mendigos, famílias estátuas vivas. Protesto? São Paulo é a cidade do choque.

São Paulo, 25 de janeiro de 2014.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O que esperar do ato desta segunda, 17?

Os protestos de quinta-feira-13 e a forma como o Estado reagiu à manifestação até então pacífica puseram a disputa pelo espectador e a opinião pública no centro da manifestação desta segunda – tática levantada inteligentemente pelos manifestantes. Na manifestação do dia 13, a polícia militar, atendendo aos apelos da Grande Imprensa – vale lembrar os editoriais da Folha e do Estadão, para não citar a abjeta mídia televisiva – por mais “rigor” na repressão aos “baderneiros” conseguiu com isso reverter a opinião pública que, como praxe num país conservador e de forte raiz ditatorial como o Brasil, se punha contra os “arruaceiros” e a favor da polícia descer o cacete em todos aqueles “vagabundos”. Nesta segunda, a disputa será por colar a pecha de “vândalos” novamente naqueles que protestam.

Conforme a Grande Imprensa, a polícia militar não pretende utilizar o choque desta feita – que ficará de reserva, para qualquer eventualidade. Não ter o choque – tropa apta a “controlar” rebeliões em presídios, por exemplo – no trato com os manifestantes é positivo. Contudo, a falta de preparo da polícia militar em lidar com a população, com o povo, com manifestações, não torna o cenário muito tranqüilo.

Torço para estar errado, mas vejo grandes chances do protesto não ser tão pacífico como desejam os que dele participarão. E não falo por causa dos exaltados, que esses se controlam enquanto a multidão não é “provocada” por bombas de gás e balas de borracha. Como a briga é pela opinião pública, é bem provável que a ordem do governador Alckmin e seu secretário de segurança pública (sic), Fernando Grella Vieira, seja infiltrar mais homens do que geralmente ocorre. A solitária pedra que citei em outra crônica terá a companhia de outras, e pode ser o estopim para a polícia militar reprimir com “rigor” manifestantes que nada tem a ver com policiais à paisana. Ou pode ser que a polícia não use de toda a violência do dia 13, apenas o suficiente para inflamar os ânimos amainados de alguns, e deixe o “vandalismo” correr solto. Diga-se de passagem, os tais atos de “vandalismo”, supondo terem sido cometidos pelos manifestantes, são bem leves e ordeiros: barricadas com lixo são necessárias para atrapalhar o avanço da polícia, e a quebra de vidros é coisa pouca, perto do que uma multidão pode fazer. Mostra disso é o respeito às vacas sagradas brasileiras – os carros –, que seriam barricadas bem mais eficientes.

As sugestões dos manifestantes para que filmem os “exaltados” pode ser positiva, se depois for possível mostrar que se tratam de policiais militares – conseguir um IPM seria pedir demais e inócuo. Controlar os ânimos dos manifestantes de fato, isso parece difícil, mas não de todo impossível – a multidão é capaz de controlar os que a formam, quando ainda sob seu próprio controle.

Foi algo que discuti com amigos, ainda durante a manifestação do dia 13, com a avenida Paulista livre de carros e pessoas para o choque passar: tendo a polícia militar apelado para a violência, talvez seja o caso de apelar para a irreverência. Como os skatistas que vi arriscarem umas manobras nessa hora, na Paulista, ou como o magistral dançarino de “Stayin Alive”, no vídeo reproduzido no youtube. Independente disso, um grupo mostrou saber fazer uso do poder das imagens e tem feito “intervenções” capazes de rodar o mundo: os manifestantes com flores é uma delas, e a citação de Os fuzilamentos de 3 de maio, de Goya, não parece ser por acaso – penso que novas imagens do tipo podem surgir hoje, que esse pessoal é bom.

Pelas proporções que o ato promete tomar, é bem provável que os governos – municipal e estadual – cedam e revoguem o aumento da passagem ainda esta semana. Daí, inclusive, o "inusitado" apoio de formadores de opinião que até ontem eram contra os manifestantes e abusavam de adjetivos pejorativos para se referir a nós. É sabido que os protestos não são por vinte centavos – são por direitos, como gritam muitos cartazes, e são também por causa de qualquer insatisfação difusa. Se essa insatisfação for canalizada para outras bandeiras (que seja ainda na linha do transporte público, algo como “R$ 3,00 ainda é um roubo”), achar um novo estopim, pode ficar impossível controlar as séries de manifestações – mais fácil, então, ceder agora os vinte centavos, mesmo abrindo o “perigoso” precedente de que disputar o poder de fato com os políticos traz resultados. Estes atos, de qualquer forma, deixam no ar o risco de a Copa do Mundo ser realizada sob estado de sítio.

Havia terminado este texto quando vejo na internet a notícia de que entulho foi depositado no Largo da Batata, local da manifestação de hoje – santa coincidência! O Estado põe seus primeiros infiltrados.

São Paulo, 17 de junho de 2013.


sábado, 15 de junho de 2013

Premeditação na violência policial e quatro erros de avaliação dos donos do poder

Leio na Grande Imprensa que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, responsável último pelos atos da polícia militar sob suas ordens “afirmou que atos abusivos de policiais serão investigados. 'Não temos nenhum compromisso com o erro. A polícia tem uma corregedoria. Então será apurado qualquer abuso que tenha sido cometido. A polícia trabalha. Exceção, se houve um abuso isolado, isso vai ser rigorosamente apurado'”.

Sobre abuso das nossas polícias, isso merece um texto só para o tema. Qualquer investigação séria vai mostrar que não houve excesso dos abusos por parte da polícia militar paulista nas manifestações do dia 13 de junho – e não falo isso com ironia. O que houve de excepcional foi a aplicação no centro rico da cidade mais rica do país do mudos operandi que essa polícia utiliza nas franjas pobres da cidade – em Capão, em São Miguel, em outras regiões “esquecidas”. Foi a atuação banal e costumaz, feita em doses homeopáticas e diárias contra negros, pardos e pobres, concentrada em uma dose de choque contra a classe média branca. Nada de extraordinário, apenas a democratização da repressão.

A polícia militar, por mais que tente aparentar o contrário, não é burra. Toda as ações contra os manifestantes, no dia 13 de junho, dão a clara impressão de premeditação. O que parece ter havido por parte da cúpula da polícia militar e do governo foram alguns erros de avaliação na hora de montá-la.

Dizem as autoridades que havia um pacto com os manifestantes que foi desrespeitado. As autoridades sabem que há uma diferença grande entre esse tipo de movimento – quase espontâneo – e passeatas organizadas por sindicatos e outros órgãos para-estatais de controle da ordem. As tais lideranças o são porque haviam feito a chamada para o ato, não porque têm qualquer ascendência sobre supostos subordinados. Esse tipo de pacto, se feito, teve o único intuito de servir de álibi para a ação da polícia.

Polícia que demorou para agir, a crer na versão oficial – e não porque fosse possível qualquer negociação – já que os manifestantes não deveriam parar a Consolação. Como comentei no relato do que vi na manifestação [http://j.mp/cG19DMp]: eu estava na linha de frente quando o choque interveio. Antes dele, no máximo uma dúzia de policiais militares fazia a contenção, na altura da Consolação com a Maria Antônia e Caio Prado. Uma dúzia de policiais militares para fazer a contenção de milhares de manifestantes é uma provocação, é um convite a “passem por cima, por obséquio”. Aconteceu que os manifestantes não fizeram esse favor. Foram longos e tensos minutos em que os manifestantes ficaram parados, gritando “Vamos pra Paulista”, mas sem avançarem de fato. Mesmo sem justificativa, o choque resolveu agir – “ataque preventivo”, como poderiam justificar depois, com ajuda de Datenas da vida. Oficialmente, a ordem era impedir que bloqueassem a Paulista – e conseguiram: quem a bloqueou foi a polícia, como seguiam interditando o centro da cidade, mesmo com os manifestantes bem longe.

Pela violência inaugural da polícia militar, pode-se supor que o plano era não apenas dispersar os manifestantes, como esperava-se que boa parte deles desistisse e fosse embora – restando alguns mais “valentes” para tomar porrada sob a justificativa de vândalos. Realmente, ouvi algumas pessoas, logo que a polícia começou a vandalizar, que iriam embora. No Fakebook uma amiga se desculpava por ter feito o mesmo: justificou que temia pela sua segurança. A grande maioria, contudo, permaneceu. Primeiro erro de avaliação das autoridades.

Por falar em vândalos, um parágrafo à parte. Sempre foi essa a justificativa para deslegitimar todo o movimento. Do outro lado, tentava-se argumentar que era uma meia dúzia que se aproveitava. Até a intervenção da polícia, era impossível qualquer ato do tipo, porque quem ousasse vandalizar qualquer coisa, seria impedido pelos demais manifestantes. Depois da polícia agir... horas há que é necessário: queimar lixo no meio da rua vira necessidade: é tempo que se ganha para fugir da truculência. O grosso da “depredação” dos bens públicos e privados, contudo, não viria daí, e sim de vidros de estações e bancos quebrados. Começa que ação contra coisas é bem diferente do que contra pessoas – um vidro troca-se, um olho, não. E é de se questionar o quanto isso é feito por manifestantes mais exaltados. A polícia já havia avisado que poria policiais à paisana na manifestação – oficialmente para filmar e identificar esses “arruaceiros”. Contudo, quando filmam um policial fardado quebrando o vidro da própria viatura – não fosse a gravação e depois seria apresentada como outra prova do vandalismo que justificaria a ação violenta da polícia –, não é preciso nenhuma teoria conspiratória para saber que os policiais à paisana não estão para filmar, mas para exaltar ânimos, quebrar agências e estações – no mínimo metade é ação deles –, tacar a solitária pedra que vai justificar o avanço animalesco da polícia (este último exemplo não me refiro à manifestação do dia 13).

O terceiro erro de avaliação foi que a Grande Imprensa apoiaria a ação incondicionalmente – em editoriais, os mui democráticos Folha e Estadão já haviam pedido ações mais enérgicas contra os manifestantes. O problema é que a Grande Imprensa notou que não poderia distorcer os fatos o quanto precisaria, e que a população começava a formar uma opinião independente sobre as ações da polícia. A enquete no programa do Datena, perguntando se o espectador concordava com aquele tipo de protesto, e com ampla maioria do sim era uma mostra ao vivo disso (depois a pergunta foi alterada para “protesto com baderna”). Bater frontalmente com os espectadores seria admitir sua parcialidade, sua mentira – tiveram que recuar, em nome do que chamam de “credibilidade”. Segundo erro de avaliação foi da mídia, ao achar que o espectador seria refém da sua versão, custasse o que custasse.

A pancadaria democrática do início do protesto foi abusada até o final e depois dele. Como também comentei em meu relato, a Paulista já fluía normalmente e do outro lado da rua, vi três homens serem atacados por três bombas da polícia – qual a necessidade de dispersar uma “multidão” de três pessoas? O objetivo dos “excessos” mesmo sem a menor justificativa parece ser amedrontar os manifestantes para o próximo ato – não funcionou agora, mas no próximo... É esse o caso dos tiros em jornalistas, mais no fim do protesto. Segundo a jornalista da Folha – que tem a versão mais plausível – o policial mirou nela e atirou: estava num estacionamento, não havia manifestação, nem manifestante por perto. Curiosamente no olho – único lugar que uma bala de borracha pode causar um estrago mais grave à pessoa. Curiosamente, não houve manifestantes com esse azar, e sim profissionais da imprensa: um manifestante poderia ser justificado como “efeito colateral” dos confrontos, que não havia essa intenção, que tivera azar – e a versão da polícia militar e do Estado predominaria. Contra alguém da imprensa, a versão da polícia fica sob suspeição – inclusive porque o tiro foi dado quando o clima estava mais ameno, numa rua que em nenhum momento foi um dos principais campos de batalha. Foi, na verdade, um recado para os manifestantes que pretendem ir ao próximo ato, reforçado pelos discursos das autoridades, do governador Geraldo Alckmin, inclusive: quem aparecer segunda vai se machucar, vai perder o olho, vai estar com a vida em risco – afinal, “quem não reagiu está vivo”, e isso vale pra “bandido” quanto pra “baderneiro”.

Arrisco afirmar: esse é o quarto erro de avaliação das autoridades: segunda-feira poucos, pouquíssimos vão ficar em casa por medo do que aconteceu no dia 13.


São Paulo, 15 de junho de 2013.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

SP não pode parar? (apenas outro relato do dia 13/06)

Sete e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar pro carro antes do grosso da multidão começar a correr na direção contrária, por causa das bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros, arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.

Eu chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a primeira opção e que a polícia militar direcionaria os manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.

O clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia - ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que, definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela. Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!", alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.

Nessa hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época, um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?", brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam em alta velocidade.

Na principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes, pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua. Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica; vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".

Na Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?", "vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir pessoas concretas.

No fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego. Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática: uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do Brasil", ao vivo na TV.


São Paulo, 14 de junho de 2013.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Contra o que protestam em SP?

Na quinta-feira, seis de junho, passam por mim, na rua Augusta, nove da noite, muitas motos da polícia militar, quatro carros da força tática, dois do choque. Um tanto alheio ao Fakebook e noticiário, sabia da manifestação por ter ouvido, alguns minutos antes, a conversa entre dois policiais militares, na República. Ainda assim me admirei: tudo isso para uma manifestação? Depois ficaria sabendo que aquilo não era nada. Na terça, dia onze, oito horas da noite, na Paulista, trinta e quatro (dessa vez me dou ao trabalho de contar) motos da polícia militar passam, direção Consolação, zunindo como um enxame de abelhas. Pouco depois, trinta e quatro passam de volta, direção Paraíso – quero crer que as mesmas. Outras doze logo passam no mesmo sentido. Mais dois carros da força tática. Isso em menos de dez minutos. “Eles chegaram na Paulista, eles chegaram na Paulista”, avisa, alarmado, o dono da banca de jornais ao segurança do Conjunto Nacional. Em casa, vejo no noticiário que cerca de cem manifestantes haviam subido a Brigadeiro e tentavam impedir o trânsito na Paulista. Em meio às manifestações, duas pessoas são feridas por alguém que demonstra que um carro é também uma arma – além de boa parte dos problemas de mobilidade da cidade. Fugiu impune, e desconfio que muitos homens de bem comemoraram sua violência – porque queimar lixeiras e atrapalhar um trânsito é um exagero, ferir ou matar pessoas, conseqüência dos atos da vítima. “Quem não reagiu está vivo”. Vivo e sem hematomas – mas não parecem muito confortáveis nas suas vidas medíocres e vazias, vide o tanto se enraivecem por nada.

A Grande Imprensa faz sua parte: vende posicionamento travestido de notícia – vende ideologia como se fosse verdade, para usar termos mais à esquerda. Baderneiros, arruaceiros, vândalos. Quem muito precisa de adjetivos é porque tem algo a esconder da realidade, se apresentada crua à interpretação dos sujeitos – a liberdade é da imprensa, não do espectador, temido se puder pensar e criar seus próprios juízos (e deixar de ser mero espectador para se tornar sujeito ativo).

O motivo oficioso é o aumento de vinte centavos na passagem do transporte público. O Movimento Passe Livre reivindica além, o direito constitucional de ir e vir, negado (ou ao menos restringido) a quem não tem condições financeiras de bancar o lucro dos empresários do setor – há tempos costumo dizer que há dois modelos de transporte público no mundo: o que serve o público e o que se serve do público; o Brasil claramente segue o segundo.

Há, contudo, alguma outra questão de fundo, que não tem a ver com passagem de ônibus e metrô. Se fosse só isso, não há como negar um certo exagero dos manifestantes – ainda que fácil de compreender. Definitivamente, não é só isso. Se eram cem manifestantes subindo a Brigadeiro, havia no mínimo cinqüenta e quatro policiais – um para cada dois. Certamente já havia mais policiais lá, já que a Paulista estava tomada de militares. Vivemos em uma sociedade com direito ao voto. Daí para uma democracia, a distância é grande. Nossa representatividade é torta e pouco representativa; nossa polícia ainda é militar, nosso judiciário ainda é ineficiente, nossa imprensa age em conluio obsceno com os donos do poder – estatal e financeiro. Manifestações só são toleradas se dentro do Fakebook ou da cabine de voto. Quando afrontam de fato o poder – e quem domina a rua detém o poder, isso é sabido por todo governante –, há o aparato repressor e ideológico armado e pronto para atacar. E esse aparato é desproporcional, exagerado para uma democracia. A democracia pressupõe, exige a dissensão – negá-la como faz a Grande Imprensa, como faz o Estado, é negar a própria democracia.

Há algo além no grito desses manifestantes e na resposta violenta do Estado. Estamos numa situação social confortável, desemprego baixo, salários numa média boa para os padrões tupiniquins. Aqueles que estão protestando não se direcionam contra um bode-expiatório, eleito Judas da vez dos direitos humanos, como Malafaia ou Feliciano. Não reclamam de não terem emprego, como os Ni-Ni da Espanha. Não saqueiam lojas em busca de bens de consumo anunciados como as chaves da felicidade e negados a seguir, como em Londres. Não gritam contra um ditador, como nos países árabes – afinal, temos o sufrágio universal que garante o verniz democrático à nossa sociedade. Não é imitação do que está acontecendo no estrangeiro – sair de casa na chuva e no frio para apanhar da polícia militar não é a mesma coisa que ir passear no shopping; queimar ônibus não equivale a lutar boxe na academia. Não é reivindicação kitsch de uma aura libertária a la 1968, como em manifestações universitárias irrelevantes. Tampouco são organizados para desestabilizar a ordem: os manifestantes não são parte de um pretenso grupo bolchevique ou de criminosos, de modo que não faz sentido a presença exagerada da polícia militar. Ela serve como provocação – justo de quem deveria zelar pela ordem – e tem o efeito esperado: a reação inflamada de alguns manifestantes, que justificaria a pancadaria em todos.

O que os donos do poder defendem? Sabe-se lá quantos segredos de Estado não estão nas gavetas das empresas. É fácil, contudo, saber de quem se defendem.

O que os manifestantes reivindicam? Contra o que, contra quem gritam? Não me parece haver um único motivo – o que ouso afirmar é que não tem nada a ver com vinte centavos.

São Paulo 12 de junho de 2013.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Praça Roosevelt, skatistas, GCM e nosso déficit democrático

O vídeo que circulou na internet no início do mês mostrando a ação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo contra skatistas na Praça Roosevelt [http://j.mp/ZIZmZi], no centro da cidade, acaba sendo uma pequena amostra de tensões latentes (ou nem tão latentes assim) da sociedade brasileira atual, tendo como foco agonístico a questão da convivência com o diferente (e a cidade como palco), com conseqüências para a discussão sobre segurança pública, dos direitos humanos e usos da cidade (que passa de palco para personagem do drama político).

O vídeo é uma prova do que poderia ser tido por despreparo da GCM, mas parece antes ser fruto do seu preparo precário, mesmo. Para piorar, esse preparo não é substancialmente diferente da polícia militar – ainda que a GCM não guarde o nível de letalidade da PM (estimulada e ovacionada pelo governador Geraldo Alckmin, assim como por apresentadores raivosos na TV). Quando se recorda que o fortalecimento das Guardas Civis no governo Lula, que almejava a ascensão de uma força civil de segurança pública que paulatinamente suplantasse a militar (bem ao estilo do seu governo de comer pelas bordas e evitar o conflito aberto), se deu sob o pressuposto de respeito aos direitos humanos – condições para buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU –, é de se questionar seriamente o papel das forças de segurança no país. Podemos retomar, quase trinta anos depois, o refrão de Tony Belloto, agora sob a forma de pergunta: Polícia para quem precisa? Quem precisa de polícia? Que fique claro: não se trata de repetir um bordão não de todo incomum em considerável parte da nossa intelectualidade acadêmica preguiçosa, que prega o fim da polícia no mundo (para pôr o que no lugar? civis com balaclavas, como no Fórum Social Mundial?, ou liberarmos um estado de natureza hobbesiano, cada um por si e uma arma na mão?), ou acha que é levando porrada que se aprende (até ser ele ou seu filho quem apanha, aí descobre que pau-de-arara não é do bem, como certo dramaturgo durante a ditadura civil-militar): o ponto é adentrar esse que parece ser um dos núcleos do gládio político atual, tanto na política-quotidiana, como na esfera político-institucional – há tempos acuso como ponto de divergência essencial entre os dois principais partidos do país, o PSDB sob a égide paulista e o PT, a questão dos direitos humanos.

Passemos o vídeo em revista. Temos seis atores em cena: a GCM, o que chamarei aqui de leão-de-chácara da GCM (ou só leão-de-chácara), os skatistas, a praça Roosevelt, e, escondidos, a prefeitura e os moradores do entorno da praça.

O vídeo começa com um guarda à paisana e sem identificação – o leão-de-chácara da GCM – dando uma gravata em um rapaz. Não é possível saber o que motivou a ação – conforme a imprensa, a GCM acusa os skatistas de estarem em área proibida, por mais que não haja área proibida na praça. Independente disso, não há dúvidas de que o golpe é exagerado: uma gravata serve mais do que para imobilizar, serve para matar alguém. Imobilização pode ser feita com uma chave-de-braço, algo que o leão-de-chácara deu mostras de não saber fazer, em outro vídeo, esse vinculado por reportagem do SBT: apelando para a força, ao invés da técnica, mais do que imobilizar, ele acaba por machucar o cidadão agredido-imobilizado [http://j.mp/TLOkP9].

Depois que ele solta o rapaz, a pequena multidão, que estava em cima, se dispersa um pouco. Ficam em volta, vendo o desenrolar da ação da GCM, sem a mesma pressão até então, mas sem se comportarem como boas ovelhas. A GCM resolve, então, dispersar de verdade o pessoal, e faz uso de spray de pimenta. Nenhuma novidade nesse abuso, coisa que se aprende com a PM:

O uso desse expediente, por mais que seja comum, mostra o despreparo da GCM: não há risco de tumulto, não há ameaça contra os “mantedores da ordem”, nada que justifique o uso do spray, a não ser a tentativa de mostrar quem manda ali.

Logo a seguir, uma guarda discute com o skatista. Isso pode ser tanto mostra de falta de justificativa para a ação quanto de desmoralização da força de segurança: se se está correto, por que discutir, ainda mais assim, dando de dedo? Se se está correto, via de regra, não é preciso levantar a voz – até porque o skatista não estava exaltado a ponto de precisar gritar a ele que se calasse. Creio eu que seja os dois.

Diante da aproximação de um grupo dos dois que discutem, aparece um guarda empunhando um cassetete. A cena é patética, e se olhada com certo distanciamento, quase dá dó: o guarda sabe da sua desmoralização, da sua impotência: não pode dar porrada como o leão-de-chácara (não tem o mesmo porte e, ademais, está fardado), e não consegue impor respeito pela sua farda. Resta-lhe apelar ao falo da ordem, como substituto das suas frustrações.

Depois do breve relato do cinegrafista, é possível ver o leão-de-chácara, junto com outros três guardas, protegidos por um surreal sem-número de outros mais, intimando o skatista. O leão-de-chácara, então, se aproxima – escoltado por outro GCM, lo muy valente do cinegrafista e passa a ofendê-lo e agredi-lo verbalmente (desejava uma reação do rapaz, para ter “justificativa” para poder dar porrada?): “agita, seu arrombado” “seu pau no cu” “cala essa porra dessa boca, quem tá errado aqui é você, seu bosta, não serve para porra nenhuma” “seu merda do caralho” “taca pedra, seu pau no cu” “você não trabalha porra nenhuma, você é vagabundo, que fica aqui andando de skate, seu arrombado”. E depois tenta intimidá-lo: “pode filmar, seu lixo, tem filmagem de você tacando pedra” (a reportagem do Estadão perguntou pela tal filmagem e não foi respondida).

A ação do leão-de-chácara, particularmente (mas a da GCM não está muito aquém), não apenas não corresponde ao que se espera de um agente de segurança pública, como ele age mais como um pit-boy, desses macho-alfa que arranjam brigas em boates, espancam homossexuais, e que parece que a única possibilidade de ressocialização é via castração química. Seu amadorismo é tão grande que dá vontade de duvidar que seja da corporação, parece antes um desses homens de bem que, iluminados e estimulados por âncoras fascistóides como Datena, resolvem fazer uso do que possuem de bom (a força) para ajudar a guarda civil contra os “lixos sociais”. Seu discurso é do fascistismo presente na Grande Imprensa brasileira: a negação do Outro, acusado de lixo (e o que se faz com lixo? joga-se fora ou queima-se) e mandado que se cale; a lógica do ser humano ter que ser útil: “não serve para porra nenhuma (...), não trabalha porra nenhuma”; o agir em nome da defesa da ordem. Arbeit macht frei era também um slogan de defesa da ordem, de uma ética do trabalho, de uma limpeza social.

Mas seria ingenuidade minha acreditar que as forças de segurança do país – não falo aqui da chamada banda podre – não estejam imbuídas, da cúpula à base, dessa mentalidade de inspiração fascista, estimulada por toda uma parcela da população e pelos donos do poder – afinal, para estes, o discurso do medo é altamente lucrativo. Se parte da população critica os “excessos”, é porque ela não vê problema nos motivos da ação: apadrinham a dispersão de vagabundos, a prisão de baderneiros, o “rigor” da polícia contra o crime – sendo que rigor, aqui, não raro, é extrapolação da lei. Está aí para provar a votação enorme do jagunço da PM, que se orgulha de, dentre as suas 36 mortes, não ter matado nenhum “inocente” [http://j.mp/RUtYDP]. Apadrinham, como os moradores do entorno da Roosevelt, a limpeza das praças dos elementos indesejados – só falta alegarem motivo de saúde pública.

A ocupação ou esvaziamento da praça Roosevelt (neste caso, mas não apenas), as formas de ocupação dos espaços públicos, isso está aberto a discussões. Um acordo sobre essas questões deve ser buscado pelo debate, ainda que dificilmente a decisão tomada não desagrade um lado, por mais que se discuta – isso não exime, contudo, de ser discutida. A GCM entra no meio dessa discussão, fazendo o trabalho sujo para a prefeitura – que encampa interesses econômicos na região – e para os cidadãos de bem que vivem no entorno na praça – esses que trabalham com amor e orgulho, não usam drogas e, logo, têm o direito a classificar quem presta quem não. Por isso a guarda não apenas obriga que se cumpra a ordem, mas precisa discutir: a ordem não está tão bem estabelecida para que seja simplesmente cumprida, de forma que a ação da GCM está aberta à disputa política.

Como estão abertas à disputa as funções e as ações da polícia e demais forças de segurança. Assim, cabe a pergunta: quem precisa de polícia? Dessa polícia, não são os moradores das periferias, ao certo; não é a parte mais carente e mais marginal da população – e se pensassem um pouco, tampouco seria a classe média e os moradores do centro e dos bairros nobres. Se a Grande Imprensa evita esse debate, ou tenta desqualificar todos que o põem, é porque seus interesses e dos seus patrocinadores estão sendo atendidos com essa polícia/política. E tais interesses não têm nenhuma afinidade com a democracia – a não ser que formos pensar numa democracia hayekiana, mas não é essa que está em nossa Carta Magna.

Se Gilberto Freire conseguiu construir o mito da democracia racial, a partir da proximidade da casa grande e da senzala, nosso republicanismo sempre agiu na direção contrária, de separar o máximo a casa grande da senzala: da reforma urbana no Rio de Janeiro, no início do século, ao plano posto em prática em Palmas, no Tocantins; a delimitação de bairros para ricos e para pobres, de áreas permitidas para ricos e para pobres. Casa grande e senzala só voltam a se juntar nos espaços privados de uso público, shopping centers e condominíos fechados, em que todos têm seu papel muito bem delimitado e vigilância constante – garantidora de que todos estão cumprindo seu script adequadamente.

A revitalização da praça Roosevelt é uma mostra de que a ordem é uma ordem a serviço de um grupo bem específico – não é em favor da cidade, nem da grande massa dos seus moradores. A se acreditar na versão oficial, a praça passou por um processo de decadência nas décadas de 1980, 1990, e teve uma revivescência com a instalação de diversos grupos teatrais. Aproveitando que a praça já estava sendo novamente ocupada, prefeitura interveio para “revitalizá-la”. O resultado é sabido: a especulação imobiliária tem expulsado muitos desses grupos que foram responsáveis pela reversão da decadência da praça. Não houve, por parte do poder público, tentativa substancial de evitar que isso acontecesse, para manter a praça como um dos centros de cultura da cidade.

Esqueceram, contudo, de combinar com os russos. Uma praça de cimento e escadas no centro de uma cidade carente de espaços públicos é um convite aos skatistas – que vem de todas as partes da cidade, quer seja das áreas ricas, quer das pobres. Ou seja, a senzala invade a casa grande, numa situação sem o controle dos shopping centers e clubes de bacanas. A princípio, não seria nenhum problema: no máximo regulando um pouco seu uso, ao reservar áreas para o skate, áreas para os cachorrinhos (para os pedestres, esses fracassados sociais, não houve sequer direito a calçadas no entorno da praça), e a convivência poderia se dar de maneira pacífica – o que não quer dizer que não haja problemas e conflitos. Mas ao tentar impedir a prática de skate justificando o barulho causado pelas pranchas, os moradores do entorno mostram que seu interesse não é o conviver com o outro, não é o do aprendizado com a prática da alteridade: é o de fazer da praça um versão a céu aberto da sua vida classe média uniforme e precária.

Vamos ver como age o novo governo. Via de regra o PT é mais sensível aos direitos humanos, às demandas sociais e disposto ao diálogo (ainda que isso, muitas vezes, sirva para encobrir a ausência de políticas efetivas para que se atenda as reivindicações dos mais pobres). Tem agora um exemplo prático de consertar no quotidiano da cidade o que seu partido institui no plano federal, tanto nos excessos da GCM como na sua própria ação ordinária, e mostrar que lado Haddad está disposto a agradar e a desagradar no curto prazo. A praça Roosevelt pode se tornar um caso emblemático em favor de uma mentalidade mais democrática em São Paulo. Ou se tornar outro caso em que o governo age em favor dos interesses de quem tem mais.

São Paulo, 24 de janeiro de 2013.