quarta-feira, 21 de julho de 2021

Periferias e carências

São Miguel Paulista, periferia de São Paulo. Para além de todo um quê muito específico de periferia, o vento frio que corta o céu azul de inverno me traz à memória a periferia que eu muito frequentei quando criança: a casa de meus avós, em Ponta Grossa. Passando em revista essas lembranças, noto que há toque da ingenuidade que não me permite enxergar como o bairro de fato era: não consigo ver ali uma periferia pobre, apesar de saber que era e ainda é. Talvez as boas recordações dos meus avós, talvez pelas casas terem quintais, não serem uma colada na outra, talvez efeito da comparação com a periferia ainda mais pobre que às vezes passava de carro com meus pais, em Pato Branco - o "bairro" do Rasga Diabo, uma pirambeira com casas de madeira sem pintar, algumas de lona, onde moravam pessoas de carne e osso (muitos anos depois me veio o estranhamento desses passeios e questionei à minha mãe o porquê deles: me disse que era para eu e meu irmão termos alguma noção do mundo, que não se resumia à nossa agradável vida de classe média moradora do centro). Em São Miguel, como costumo ver não só nas periferias de cidades grandes e médias de São Paulo, as casas são grudadas uma nas outras, em terrenos estreitos e sem recuo; algumas só possuem o reboco, outras nem isso; algumas pintura recente, outras pinturas descascando. No meu trabalho, faço o que me cabe, pergunto questões práticas, faço algumas orientações. O novo normal já está instituído: como eu temia, é o mesmo do velho normal, só que com máscara no rosto e nas prateleiras produtos mais caros - mais pobreza, mais escassez, mais carências. Eu observo o material no chão, os restos de uma sociedade que há muito se especializou em produzir lixo - em vários sentidos. Aqui, falo no literal. Sempre me questiono se numa dessas visitas não vou me deparar com minhas próprias sobras, ali prontas para serem manipuladas por pessoas invisíveis para a maioria da sociedade. Terminada minha obrigação, tento, como de costume, puxar algum assunto. Pergunto se alguém tem outro trabalho. Todos sinalizam, com grande desconfiança, que não - o que o "fiscal" está querendo com uma pergunta dessas? Comento então: "quer dizer que é sair daqui, ir pra casa, ligar a tevê e descansar?". O olhar de alguns - das mulheres, em especial - sinalizam um sorriso amarelo por trás das máscaras, como a questionar "o que esse branquelo que deve ganhar o todinho na cama de manhã entende da vida?", eu prossigo: "invejo vocês, porque eu moro sozinho, e depois do trabalho preciso limpar a casa, pôr roupa pra lavar, preparar o almoço do dia seguinte...". O suspiro é uníssono: "Ah, sim, isso eu também tenho que fazer". Reitero que perguntei se tinham outro trabalho e não outra fonte de renda. Um homem se empolga em contar da rotina, sair das oito horas de labuta pesada para lavar louça, dar um jeito na casa, preparar janta e almoço, usar o fim de semana para a faxina pesada e lavar a roupa. Alguém tira sarro: "cadê a mulher? Virou gay que tem que fazer isso?". O homem desconversa, eu sem conseguir esboçar uma boa reação (reconheço que não tenho raciocínio rápido, e nessas situações isso faz muita diferença), o máximo que consigo falar é "está certo ele, mulherada de hoje quer homem parceiro, não um cara folgado". As mulheres, como é comum nessa cooperativa, ficam em silêncio. Uma se arrisca a falar - baixinho - que usa o sábado para afazeres, e que à noite ou no domingo se reúne com a família, para se divertir - e ressalta, como se cometesse pecado: "mas é só de vez em quando". Um outro rapaz também vem me contar da sua rotina, que ele não precisa trabalhar em casa: sua mãe e seu irmão dão conta, e ele então usa as noites para ir ao culto e os fins de semana para curso de informática. Noto a empolgação em contar para alguém "importante" sua rotina, mesmo eu repetindo em quase todas as visitas que sou um "zé ruela" sem poder nenhum - o que também é mentira da minha parte: sou branco, classe média, falo difícil, representante oficial do Estado; a polícia nunca me parou na rua para averiguação. No caminho da volta, lembro que ir para meus avós era uma das raras ocasiões em que eu pegava táxi - o ônibus vindo de Pato Branco chegava às três da manhã, não era o caso de esperar até às seis para pegar o ônibus urbano e encarar mais uma hora de viagem. Junto com a nostalgia de meus avós, me bate também uma melancolia. Penso no Haiti, penso em carências. O valor do material reciclado, por mais que tenha tido uma baixa, ainda está bom, e permite a essas pessoas ganharem mais do que em muitos empregos "visíveis"; ainda assim, no silêncio da maioria daquelas mulheres, no falar baixo das poucas que se arriscam a dizer algo, no contar da rotina de homens que em outra ocasião já me justificaram que seu emprego é um "emprego normal", como a se defender de antemão de qualquer juízo de valor que eu pudesse fazer, são gritantes as carências ali presentes: de serem vistos, de serem ouvidos, de serem reconhecidos não só como cidadãos, também como pessoas.

21 de julho de 2021


segunda-feira, 5 de julho de 2021

Neorrefugiados

O frio que faz na cidade de São Paulo não é extremo, mas torna mais difícil minha tarefa de sair da cama, às seis da manhã – é um fator a mais nessa dificuldade de acordar na República Federativa-Fascista do Brasil, em que vivemos desde 2016. Conseguindo me desvencilhar das cobertas, resta comer algo, cuidar dos gatos, ler alguma notícia (ou o último “xadrez”) enquanto tomo chimarrão para esquentar, até dar a hora de pegar o metrô e descer na estação Tietê. 

No espaço ao lado da rodoviária (pode-se chamá-lo de praça?), há cerca de três semanas um pequeno “campo de refugiados” voltou a se formar – havia um antes, que deve ter sido devidamente higienizado por algum programa da prefeitura, que levou essa visão triste para fora da vista, porque para uma parte da nossas elites e seus lacaios de classe média a prestações, pobreza não existe se não é visível. 

Refugiados pode soar estranho a brasileiros que estão simplesmente morando na rua – até porque um refugiado costuma ser alguém que se vê obrigado a sair de sua terra, por conta de uma situação em que corre risco de vida, para um lugar onde se sinta seguro. De que terra saíram os brasileiros que hoje habitam essa praça? Que ameaças sofreram para ir morar na rua? Que segurança há ali, em barracas sob o relento, o frio, o intenso trânsito de carros? Quem os persegue? 

Sem perguntar, deduzo respostas, e por isso insisto que ali estão refugiados - ou neorrefugiados, para marcar a distância de quem veio de outras paisagens, ainda que sua situação não seja nova na história do país - , saídos de sua casa para a rua, para uma praça onde julgam mais protegidos do que em uma viela escura, perseguidos por entidades desencarnadas e sem um rosto único, mas que cobram sacrifícios de gente como essas, vistas como semi-gente, semi-animais sacrificiais. São todas “pessoas marrons”, que uma vez Eliane Brum comentou em crônica, falam um bárbaro português em que não há espaço no seu mindset para fazer uma call de job do home-office após o brunch, talvez nem para bater uma bad por conta de seu freela ou de seu home estar um tanto down.

Os que ali estão, fica claro, não queriam estar. Há uma meia dúzia de barracas, algumas montadas com esmero, simulam casas, evocam desejo de um lar. Uma das “casas” em especial me chama a atenção: a maior e a mais à vista dos passantes, bem montada com suas paredes de lona forradas internamente com “cobertores de doação” (ou “cobertor de mudança”), dentro há uma outra barraca, essa de camping, onde há algo mais fofo que faz a vez de colchão. Nunca vi os moradores da casa, mas desconfio que seja ao menos um casal – me pergunto se alguma das muitas crianças que correm e brincam pela praça também mora ali. Semana passada notei que havia um caixote com duas garrafas de corote e cigarros – deviam vender a seus colegas de campo. Hoje havia uma bicicleta – sinal de possível trabalho de seus moradores, entregador de aplicativo –, estoque de cobertores de doação e um caixote de engraxate – quem engraxa sapatos hoje, ainda mais do lado de fora do terminal Tietê? Havia também um detalhe extra na “casa”: em uma das “paredes” foi feito um puxadinho com mais um cobertor de doação, bem precária, se tomada a “casa” principal como parâmetro – ainda que ela também seja bem precária. Está mais para uma casinha de cachorro, mas dentro dormia uma pessoa. 

Atravessando a rua, na alça da marginal Tietê com a ponte com a avenida Cruzeiro do Sul, outra meia dúzia de barracas – todas montadas num ar mais de prestes a levantar o acampamento. São também pessoas com mais posses, ao menos três das famílias ali instaladas: há um Fiesta de quarta geração, um Monza e um Monza modelo antigo (sendo que o carro foi parado de produzir em 1996). Quando eu tinha meus oito anos, lembro de em alguns domingos frios acordarmos cedo, eu e meu irmão, e levarmos cobertores para montar barraca dentro do Santana azul de meu pai, com gibis, papeis e lápis de cor – ligávamos o rádio do carro e ficávamos ali, brincando, a meia luz, já que a porta da garagem estava fechada. 

Evoco essa lembrança pelo ano dos carros, porque não há nenhuma similaridade entre a brincadeira de crianças de classe média em alguns domingos com a situação das crianças que ali vivem com suas famílias, domingo a domingo, sob interpéries e com o futuro mutilado de um país em frangalhos.

05 de julho de 2021.