quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Martão, aprendiz de Rivarola em como ser inconveniente [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]

Já comentei alhures do colega Rivarola, o doutor Sabujinho do setor. Um colega servil com os chefes, desleal com os colegas e assediador das colegas. Um tipo feio, que parece figurante d'Os Simpsons, inconveniente, chato e de piadas precárias. 

Sempre me pergunto se alguém consegue achá-lo interessante, e penso que sua esposa tem uma auto-estima sofrível para aceitar estar com ele - porque se concordasse com as ideias liberais dele, teria largado um fracassado desses, que mesmo com doutorado no exterior e MBA numa das melhores escolas do Brasil, foi por um tempo motorista de Uber, como forma de complementar a renda, pois o sustento quem leva é a esposa (até hoje o salário dela é superior, mesmo eu não sabendo quanto ela ganha). E pior que nem é porque ele não aprendeu nada nesse MBA - o problema é mesmo de incompetência.

Uma coisa que aprendi com chefes formados nessas “melhores escolas” é que assédio moral e terror psicológico são a maneira de gestão de pessoas preferidas deles. Não conheci um chefe liberal dessas escolas que não fosse um filho da puta sem escrúpulos e ética. Pois foi com a chegada de uma nova colega, a Lima, que notei todo o esquema pelo qual Rivarola mescla assédio sexual com o moral. Na verdade, essa deve ser a única chance de conseguir dar uma escapada da “patroa” (provavelmente ele deve usar esse termo na roda dos amigos da igreja) sem precisar pagar para um prestadora de serviços sexuais, injustamente mal afamadas (e não há ironia nessa frase). Uma moça novinha, pouca experiência de vida, menos ainda de mercado, recém chegada a uma grande empresa costuma chegar sempre acuada: vai ser difícil se levantar contra o assédio - de um colega que parece tão popular e querido, ainda por cima -, e pôr seriamente em risco o emprego recém conseguido.

Acho que sua esposa sabe o marido que tem e por isso não se incomoda de ele ser esse galanteador fajuto, pois nunca vi suas empreitadas terem sucesso - que fosse um segurar a mão mais longamente (sem ser em joguinho pré-adolescente dele), uma bitoquinha, uma troca de olhares calientes, nada, nem no serviço nem nas confraternizações. Desembargador discorda, diz que apesar de ele ser acabado e desagradável, deve conseguir, sim. Meirelles não acredita, e se arrola o local de fala de mulher sensata. Nisso eu que preciso discordar dela: pois se ela é, sim, sensata, isso não vale para todo mundo - a começar pela esposa do doutor Sabujinho. Sem argumentos, ela resmunga concordância e admito ter ganhado o dia aí, porque consegui ser mais rápido que a Papa Léguas do raciocínio, logo eu, que sou sempre o último a entender as piadas, quando entendo. Todos democratas no grupo, recorremos aos princípios da pólis ateniense, e para não perder tanto tempo discutindo o sexo do anjo, fizemos uma votação, cuja tese vencedora foi a de ele não consegue nada, digo, que ele segue os mandamentos da igreja e é fiel, até que se prove o contrário.

Pior que nem era dele que eu queria falar. É da minha suspeita, despertada com a chegada da colega Líbero e confirmada agora: Rivarola está fazendo seguidores. É Martin, que quase tem um chilique se não falamos “martãn”, com esse ã francês bem assinalado, de onde eu prefiro chamá-lo logo de Martão, e me justifico com minha caipirice de quem fala “croisã” na padaria - e com recheio, ainda por cima! Enfim, Martão chegou pouco depois de mim no setor, não parece personagem decadente d'Os Simpsons, mas o Batatinha com pitadas do Gênio, da turma do Manda Chuva, da Hanna Barbera, só que insosso e muito bobo (por falar e Hanna-Barbera, sim, eu sei que se eu puser um chapéu e um suspensório verde eu pareço o Zé Buscapé). Quer dizer, eu achava ele muito bobo até isso - agora já está em outro patamar.

Pois na apresentação de Lima, ainda no grupo de whats, um dos colegas foi traído pelo corretor e soltou um “seis bem vinda, Lima” (a vírgula do vocativo fui eu quem pus). Demos todos as boas vindas virtuais, ainda que minha vontade fosse dizer “pêsames, você veja que merda o capitalismo faz com a gente: você vai ter que trabalhar aqui, e nem é o pior lugar”. Na segunda-feira, quando chega a infeliz para o trabalho presencial, Rivarola, tendo feito a avaliação da colega e achado que vale a pulada de cerca que ele tanto deseja, não perdeu tempo e para o setor todo ouvir soltou um “Seis bem vinda, Lima! Bem vinda, bem vinda, bem vinda, bem vinda, bem vinda, bem vinda”, com amplo e bôbo gestual - um pateta ridículo. Algumas pessoas deram uma risadinha amarela, uma que outra pessoa achou graça (certeza que é liberal e votou no coiso, ao menos no segundo turno), Lima ficou sem graça, visivelmente acuada, mas sorriu, ia fazer o que?; Carnegie ficou puto, como sempre, mas não sei como conseguiu não falar alto, permitindo que só nós da baia ouvíssemos: 

Esse filho da puta é engenheiro e não sabe nem contar: deu sete bem vindas, porque teve o primeiro. E, por fim, concluiu: sete é o número da mentira.

Achávamos que a cena constrangedora de assédio na frente de todos já tinha acabado, mas eis que entra em ação Martão, e mete os mesmos sete bem vindas de Rivarola.

Martão se perdeu no desenho e achou que o cósplei magro do Barney Gumble é o Manda Chuva.

Com essa minha frase arranquei mais risadas dos colegas próximos que Rivarola da sala toda.

Uma discussão até começou, mas preferimos pensar melhor, com calma, em casa. Para amanhã, se nada mais urgente aparecer, na nossa conversa de pós almoço iremos deliberar se o paspalho-mor do setor é Rivarola, o doutor Sabujinho, pela originalidade, ou Martão, o Batatinha-Gênio, por nem isso ter e imitar uma pessoa desnecessária, que talvez só ele veja como alguém legal.


13 de dezembro de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Sobre os tempos que não voltam mais [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]

Estávamos conversando aleatoriedades no pós almoço e acabamos entrando no papo “de um tempo que não volta mais”, como diz o poeta - ainda que esteja pra ver tempo que volte (a não ser como farsa), e mesmo ver algum poeta de verdade usar uma frase tão ruim. Enfim, conversávamos sobre nossa juventude, em especial os tempos de faculdade. Quem falara até então fizera questão de contar seus feitos pretéritos - quase difíceis de acreditar, a se ter como parâmetro as tristes figuras atuais, Dons (e Donas) Quixotes derrotados pelos moinhos de vento (ok, exagero, estamos todos ótimos, nem parecemos tão velhos assim).

Nisso, Macedo, talvez também descrente daqueles feitos todos, resolveu encarnar o Álvaro de Campos, e sem mudar o assunto, resolveu diversificar o tom da conversa, ao melhor estilo do Tabucchi: “Perguntei-lhe sobre aquele tempo, quando ainda éramos tão jovens, ingênuos, impetuosos, tontos, despreparados. Algo disso restou, menos a juventude - me respondeu”. Contou dois de seus feitos em não conseguir ficar com ninguém.

Eu ia perguntar se ele estava contando isso para provar aos solteiros da mesa que um início pífio não necessariamente não culminaria num final feliz, redentoso - e esse papo good vibes era mais a cara do Carnegie, que já tinha contado seus feitos futebolísticos, que só não tinha virado um grande astro ludopédico porque se recusava a vestir um uniforme que não fosse verde, e o seu amado clube não o quis, digo, ele teve outras prioridades e precisou abdicar do esporte -, mas Goreti se intrometeu e interjeitou, cabal: 

Esse é dos meus!

Como assim? Não entendi e pedi para ele se explicar. 

Empolgado, contou que não era só um pega ninguém (palavras dele), como ainda conseguia se queimar com as garotas nas baladas: no meio da tentativa de corte vinha uma frase absolutamente infeliz, e a seguir, rapidamente, a consciência de que tinha falado merda e perdido a chance - só não mais rápido que havia sido pra proferir tamanha groselha. Preferia nem se alongar muito, e como o atacante que perde o gol a dois metros do travessão e sem goleiro, isolando a bola nas arquibancadas, ele perdia o gol e já saía para buscar a bola e não voltar. 

Pior - continuou ele -, dei fora em duas garotas que eu estava super apaixonado. E contou os casos. 

Me sensibilizei com sua tentativa de não deixar Macedo sozinho como o fracasso juvenil, mas éramos da mesma faculdade e eu conhecia sua fama.

Que fama?!

Achei manjado esse lance de se fazer de humildão, depois de desentendido. Entretanto, me pareceu tão convicente nessa atuação que resolvi entrar no jogo e ver até onde iria.

A de mineirinho come quieto.

De onde você inventou isso?!

Inventei coisa alguma, era sua fama!

De onde inventaram isso?!

Ué, sempre tinha um monte de mulheres correndo atrás de você, você acha que a gente não sabia que você devia ficar com a maioria delas, só não saía contando por aí.

Que mulheres correndo atrás de mim?!

Muitas! Você arrancava suspiros apaixonados, quase o Tom Cruise da faculdade (só se for no tamanho da napa, ele pontuou). Era um dos mais requisitados! Disse o nome de três delas. Ele murchou e disse que era apaixonado pela primeira citada.

Pois ela era por você, achamos que vocês tinham ficado, não tinha dado liga e por isso ela parou de falar de você. Na verdade todo mundo achava que você tinha ficado com as três.

Certo, as mais cobiçadas da faculdade, totalmente factível! Quem mais?

Disse mais uma.

Ela não me achava com cara de psicopata?

Isso você soube, é? Mas uma coisa não invalida a outra.

Vai ver ela tinha uma paixão pelo perigo - completou Macedo.

O perigo com o Goreti é a de morrer esperando - contra argumentou Meireles.

Garantiu que não tinha ficado com ela também, porém ainda não me convencia que não era o galã pega todas da faculdade, por mais que Meireles confirmasse que já tinha ouvido suas histórias de fracasso. Sem falar que isso acabava até com a moral da história do Macedo (ao menos a que eu tinha imaginado), já que Goreti era um dos solteiros da mesa - e é solteiro não por convicção.

Com quem você viu eu ficando, ou soube de boa fonte, salvo minha namorada do primeiro ano e a ficante do último semestre?

De fato, eu nunca tinha visto ninguém além dessas duas, e ninguém tinha nunca contado uma fofoca do tipo. Mas e a fama?

Eu quem pergunto: por que você nunca me avisou?!

E eu lá ia saber que você não percebia as mulheres caindo em cima de você?

Porra, eu com essa fama toda e não pude aproveitar! E você só me conta duas décadas depois!

Macedo, talvez um pouco decepcionado por ver que seu caso era menos de competência e mais por outros atributos, assim como abriu, fechou o assunto:

Pois veja pelo lado bom, caro colega: ficou com a fama sem ter tido todo o trabalho.

Achei justa a colocação, Goreti é que já vai para mais de uma semana desolado com os tempos que não voltam mais.


09 de novembro de 2023


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sábado, 4 de novembro de 2023

Imprensa, ética e a formação do público para o jornalismo

No jornalismo de manchetes, de impacto imediatista, em um tempo de necessidade constante de novidades de hora em hora, a busca por furos jornalísticos se tornou a tônica de muitos jornalistas na grande imprensa - os sem escrúpulos, ansiosos por crescer na carreira a qualquer custa, sejam eles novatos ou experientes. O importante é dar sempre a notícia antes de todos os demais, na expectativa de que uma dessas seja uma grande notícia - o autor de um Watergate tupiniquim, só que sem todo o trabalho jornalístico de Woodward e Bernstein. Ao invés de investigações detalhadas, checagem dos fatos, dar voz ao outro lado, solta-se a notícia, simplesmente. 

Alguns profissionais da imprensa sabem segurar o andor, não por cuidado jornalístico, mas por terem noção do que é ou não relevante e pode se tornar uma reportagem de causar impacto. Mais que isso, porque costumam ter acesso a fontes de atores políticos importantes (políticos eleitos ou nomeados ou aqueles disfarçados de agentes estatais que atuam como poder à parte), que são quem lhes dão a perspectiva de em algum momento dar o famigerado furo, os primeiros a dar o ato consumado ou escancarar os bastidores desse ato.

O ponto é que para ter acesso a essas fontes, é preciso mais que algum renome e bom relacionamento: é preciso ter a simpatia desses atores. E para ter essa simpatia, esse acesso facilitado a fontes importantes, é preciso fazer o jogo deles até (quem sabe) surgir o grande momento. Ou seja, atuar como quinta coluna na imprensa: ser um amigo desse poder, mandar às favas o jornalismo, atuar como relações públicas ou assessor de comunicação extra-oficial, à espera de um momento em que possa se destacar por uma grande reportagem, que vai apagar esse seu passado “eticamente livre orientado” (para usar expressão do Overman, da Laerte). 

O que sobra é um jornalismo de notas de personagens em off, de denúncias surgidas do nada ao gosto de políticos, promotores ou juízes; de ouvi-dizeres, de ameaças dadas via imprensa, de balões de ensaio. Sim, estou falando dos muitos jornalistas que trabalharam para a Lava Jato (e que agora renegam o passado, não por conta do erro cometido na profissão, mas por terem apostado no cavalo errado - na verdade por terem tomado um cavalo por enxadrista), como estou falando das recentes famigeradas ASCOM de milicos, mas também de quem projetou Demóstenes Torres como paladino da ética (bem documentado no último livro do Nassif), dos mil balões de ensaio de ministros para o STF - ou mesmo Alckmin para vice de Lula. Um desses jornalistas que eventualmente soltou uma balão de ensaio que deu certo, no futuro vai cobrar dessa personalidade por esse serviço prestado.

Alguém mais ingênuo poderia perguntar como as empresas jornalísticas admitem esse tipo de profissional em suas fileiras. A resposta é simples: essas empresas têm o jornalismo como meio, não como fim; sua finalidade é aumento de lucro e poder dos patrões - e isso nem é novidade ou exclusividade brasileira, Orson Welles já denunciava no início da década de 1940 em seu clássico Cidadão Kane. Do apoio nem à ditadura militar (ou seria ditabranda?) ao bolso-guedismo; do golpe branco no Lula, em 1989, ao golpe efetivo na Dilma, em 2016, a imprensa brasileira nunca disfarçou que o Brasil só lhe interessa enquanto lhe der lucros privados - seu projeto de país é o projeto das elites que cá aportaram desde Cabral: saque e fuga para o exterior. 

Daí a importância da imprensa alternativa, que com a internet permitiu que jornalistas reconhecidos e de carreira sólida, forjados na grande imprensa, mas sem negar seus princípios, em especial os de ética e da profissão, pudessem ganhar projeção - ainda que reduzida, frente o poderio das cinco famílias e seus tentáculos na internet, sem falar na imprensa de internet que pratica o mesmo que a imprensa corporativa, publicidade “orgânica” disfarçada de jornalismo. Vale lembrar que essa imprensa alternativa desde sempre existiu, ligada ao contexto de resistência, como a imprensa operária.

Esses jornalistas, aferrados ao fazer correto da profissão, acabam por ter uma dupla tarefa: não apenas noticiar os fatos de maneira justa e fiel aos ocorridos como capitanear um processo de educação, de mostrar o que é notícia e como se faz jornalismo, um processo de formação de público à notícia enquanto bem público e não enquanto mercadoria para negociar com quem paga mais - isso a um povo forjado há gerações nesse ambiente de “empresa de comunicação” e “showrnalismo” (na expressão do Arbex). Não é tarefa pouca, mas é tarefa capital de quem ainda pensa em uma sociedade democrática e mais justa.

04 de novembro de 2023

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Carrinho de picolé

Há quatro anos minha mãe veio a São Paulo para meu aniversário - e, de quebra, conhecer o apartamento para o qual eu havia recém mudado. Chegou no fim da tarde e no outro dia pela manhã, tão logo acordei, me perguntou, perplexa:

Dani, eu meio que acordei de madrugada com galinhas cantando, como acontecia quando eu era criança. E não deu a impressão de que foi um sonho.

De fato, não havia sido um sonho: no pátio da escola em frente havia várias galinhas, que faziam barulho o dia todo - que eu adorava, diga-se de passagem.

Mas não estamos a um quilômetro da avenida Paulista?

Em Pato Branco, minha mãe só voltaria a ter esse tipo de experiência no fim de sua vida, quando voltamos a morar com ela e meu irmão pegou quatro galinhas para criar no quintal.

Somado a isso, o fato da rua ser muito silenciosa fazia com que eu me sentisse em outro lugar, no interior ou em outro tempo, ainda que pudesse desfrutar das vantagens da maior cidade das Américas em vinte minutos de caminhada. As galinhas, infelizmente, sumiram no meio da pandemia. Restou a escola, cuja algazarra dos alunos todas as manhãs remete à minha infância: na esquina de onde morava, estava a escola Dona Frida, a segunda escola da cidade, e a hora do recreio a gritaria era tanta que abafava até mesmo o som da serraria que ficava a uns cinquenta metros (sentido centro da cidade). Esse fuzuê foi muitas vezes meu despertador. Foi a destruição dessa escola, que era também a casa da dona Frida, uma das pioneiras da cidade e então com Alzheimer, que fez com que eu deixasse de reconhecer Pato Branco como minha cidade - se reduzindo, então, à casa de meus pais.

Hoje, sem galinhas na escola e um ano a mais para pôr nos formulários, acordo cedo e tomo café com Lia. Ela sai para o trabalho e eu volto a dormir. Era para eu estar no início de minhas férias, mas o burnout chegou antes e com ele a licença médica. No meio da manhã, tal qual minha mãe quatro anos atrás, acordo com sons familiares, e me questiono se sonhei ou não. Apuro os ouvidos e novamente toca o “apito de picolé”, que me leva à casa de meus avós maternos, na periferia de Ponta Grossa (em Pato Branco os vendedores com carrinhos ainda não tinham incorporado essa tecnologia). 

Havia os picolés de água, que eram doces, mas perdiam o gosto muito cedo e eu ficava incomodado de jogar fora o gelo que sobrava (meu pai toda refeição ressalva o “com tanta fome no mundo, nunca desperdice comida!”), havia os de leite, que eram melhorzinhos, e havia os de massa, meus favoritos, mas além de serem caros, segundo minha mãe, eu só comprava se fosse comer em casa, com uma colher de verdade, porque o sorvete vinha com uma colherzinha de pau e desde cedo eu tenho ojeriza a esse tipo de artefato na boca - mesmo que seja ver outra pessoa: meus amigos e colegas de trabalho sabem, já presenciaram meu escândalo involuntário quando essa cena aterrorizante acontece em minha frente.

A recordação é nostálgica e gostosa. Apita novamente. Sinto falta o barulho das galinhas de meus avós para a lembrança ficar completa - Ponta Grossa era um permanente domingo para mim, mesmo eu já crescido. Vou até a janela, não vejo nenhum sorveteiro. Será algo na escola? Ouço outras duas apitadas até que surge em meu campo de visão um homem oferecendo amolação de facas e outros objetos cortantes. É então que noto que a lembrança é boa porque meus pais tinham emprego, salário, podiam pagar um sorvete desses; não eram eles a empurrar esses carrinhos baixos, todos os dias, debaixo do sol, no calor, assoprando o dia todo as mesmas notas, contando trocados para ver se pagavam as contas básicas do dia.

A memória é traiçoeira. O que para mim é algo gostoso, no fundo é só o apito da precariedade na qual vive a maior parte da população, situação piorada desde 2015, quando foi empurrada para uma sobrevivência indigna pelas nossas elites  - coloniais, mesquinhas e pusilânimes -, e justificada a quem sofre esse açoite desnecessário por uma mídia sem escrúpulos e por mercadores da fé que fazem da religião uma droga - mas não o ópio apontado por Marx, e sim aquela entregue às crianças-soldado, descrita por Ahmadou Kourouma.

O apito do picolé passa. A lembrança dos cheiros e texturas da casa de meus avós também se esvai. A exploração e as injustiças sociais perduram.


19 de outubro de 2023


sexta-feira, 21 de julho de 2023

Banheiro interditado, 2 - o desvelar de um mistério [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Nos anos 90, as pessoas mais antigas vão se lembrar (não que eu tenha como me lembrar disso! Foi uma dessas que me contou, me falha a memória se foi o nobre colega Carnegie ou a nobre colega Meireles), havia uma propaganda de refrigerante em que, num primeiro momento, um líquido verde insinuantemente refrescante era despejado num copo; no momento seguinte a câmera abria o plano e no vasilhame do qual tal líquido saía e lia-se “óleo de fígado de bacalhau”; a seguir a voz em off recitava o slogan: “imagem não é nada, sede é tudo. Respeite sua sede”. Moral da propaganda: podemos ter sede do que for, inclusive de óleo de fígado de bacalhau, e isso merece ser respeitado por todos. Havia também quem interpretasse a mensagem como um alerta de que as imagens enganam, mas não acho que uma propaganda teria interesse em ludibriar alguém.

De qualquer modo, vou utilizar essa segunda interpretação para falar de criança: aparências enganam. Crianças bem comportadas, ou costumam ser pobres crianças reprimidas e infelizes; ou não são tão bem comportadas assim. Falo por experiência própria: sempre fui essa criança exemplo para professores e pais de amigos: artes fazia algumas, claro, mas eram coisas simples e não mereciam nem uma bronca de verdade. As artes mais espoletas, que mereciam ir para direção, tomar bronca, chamar os pais, quando não faziam a coordenação quase ter um chilique, essas eu nunca fiz - apenas era o mentor intelectual para meus coleguinhas com menos tino (e menos ideias).

Uma das grandes estratégias que criei quando criança foi sugerir que dois colegas arranjassem qualquer pretexto para serem levados pela professora para a coordenação, deixando livre até sua volta ou a chegada do bedel para outro colega aprontar alguma, como esvaziar o extintor de pó no corredor (outra ideia minha). Deu muito certo! O problema foi que meu colegas adoraram a estratégia e depois de três vezes ficou evidente o estratagema. Houve outros casos, mas não me lembro agora - nem depois, e se alguém lembrar, não é verdade!

Em meu último texto acerca do ambiente laboral no qual me encontro, comentei do banheiro, o aviso de interditado numa das cabines, ainda antes dos efeitos se fazerem sentir pelas vias olfativas, a estranheza de tal aviso estar escrito em giz de cera, e as marcas na porta da outra cabine - não sabíamos se de um rato (ou outro animal) ou de alguém com prisão de ventre violenta. Terminava as referidas linhas com um serviço de utilidade pública, sugerindo ao dono do intestino com sérios problemas de tráfego que comesse mais fibras. 

Se essa sugestão foi útil, não sei - creio que não -, porém o texto não deixou de ter suas utilidades. Duas, para ser mais específico.

Isso graças à colega Nudd (sim, tenho uma colega a uma letra de ser uma Ludd, e nem isso a sensibilizou a se tornar uma ludista). Ela leu meu texto e o pavor do rato no banheiro se espalhou agora também entre a ala feminina do setor. A tese de Macedo, o nobre colega, das marcas serem de alguém com prisão de ventre, não convenceu - também ninguém se apresentou como sendo o autor daquelas marcas de unhas na porta da cabine. 

Eis a primeira utilidade pública: agora temos todo um setor com medo de se sentar no trono durante o expediente. Provavelmente os chefes, se ficarem sabendo da minha existência e destas mal traçadas linhas, vão me agradecer, pois isso significa menos tempo ocioso. Claro, como bons liberais que são, tem suas limitações cognitivas, e nenhum momento em seus MBA de gestão de pessoas e negócios eles devem ter se questionando se uma pessoa com vontade de ir ao banheiro renderá mais que uma pessoa com suas funções fisiológicas elementares satisfeitas - o importante para eles é que seus subordinados fiquem o maior tempo possível na posição de trabalho, mesmo que não estejam trabalhando (para um liberal, imagem é tudo; e sede dos outros, ou qualquer outra necessidade que não lhe renda lucro, não é nada).

A segunda utilidade pública foi saber que nosso estranhamento com o cartaz não era sem motivo - a começar pelo fato de que a cabine não parecia estar com problemas naqueles dias. Estamos em julho, ou seja, férias escolares. Consequência lógica: volta e meia algum colega traz seu pimpolho para passar oito horas aqui, por falta de para onde despachá-los e não terem ainda idade para ficarem sozinhos em casa. A colega Nudd foi uma que trouxe a filha algumas vezes - uma garota de uns dez anos, muito bem comportada, ainda que faladeira, se lhe derem atenção. Pois ao se deparar com a foto que ilustrava o texto anterior, com o aviso de banheiro interditado escrito em giz de cera azul, de pronto a colega Nudd reconheceu a letra da filha - ou seja, não havia interdição alguma na cabine. 

Sim, uma criança bem comportada - como eu era.


21 de julho de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Banheiro interditado [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Começo com uma nota prévia e peço desculpas, mas nem tudo no mundo são perfumes, desodorante Brut e Leite de Rosas no mundo laboral.
No setor onde trabalho, o banheiro masculino, sem saída de ar externa - mas com uma ventoinha que liga junto com a luz, e não sei se tem outra função -, é composto oficialmente de duas cabines e duas pias. Digo oficialmente porque há sempre algum problema a assombrar o referido espaço no ambiente de trabalho.
Um dos problemas, já assumido como tradição da casa, é com uma das torneiras. Ninguém a usa - salvo quando a outra está pifada -, porque não se lava só as mãos nela, mas boa parte da calça e da camisa e, a depender da altura da pessoa, dá pra lavar o peito também, tamanha a força com que a água sai. Praticamente um trote aos novatos - ou a eventuais visitas ao setor que decidem ir ao banheiro.
O outro problema se dá sempre com a mesma cabine - justo a mais ampla e convidativa. Por muito tempo sua descarga quebrava reiteradamente. E lá íamos nós, dois dias sofrendo com os odores da retrete - talvez sofrendo até mais que o pessoal da faxina, porque esses, como não era com eles, não tinham o que fazer, e podiam se dedicar aos outros banheiros do local (por sinal, isto não é uma queixa ao trabalho da faxina, nem nessa nem em outra situação, no máximo critico a terceirizada, assim como quem contrata essa terceirizada, pelos salários vergonhosos pagos e pelo papel que nos disponibiliza - isso quando não fica duas semanas sem repôr a contento). Esse problema foi dado por resolvido quando nobre colega Carmen, que tem experiência com obras, arrancou a caixa de descarga e passamos a apertar direto no parafuso da instalação. Resolveu um problema, mas trouxe outro, menor: a maioria dos usuários do banheiro masculino, sem sensibilidade para apertar algo pontual como um parafuso, soca o dedo até onde pode, transformando a cabine numa grande poça d'água (limpa! O que suja, às vezes é a terra do sapato).

O problema atual, nessa mesma cabine, não sei bem qual é. De qualquer modo, agiram rápido e antes que acumulasse odores, puseram um aviso de banheiro interditado, escrito com giz de cera azul. Houve alguma discussão sobre esse detalhe lúdico do cartaz (ainda que no setor de Fernández, funcionário do topo, ele tenha tido que pintar mapas com lápis de cor, para economizar a tinta colorida da impressora), mas todos respeitaram. Ao cabo das conversas, sempre uma certa indignação: custava imprimir uma folha com um sinal de caveira, o aviso de interditado e em caso uso, risco de arma química? Instrutivo, direto, sem chances de achar que era piada.
Entretanto, o problema maior não foi esse, mas o detalhe reparado pelo nobre colega Goreti na cabine ao lado: marcas de garras na parede. Isso gerou novo debate, e desta feita mais acalorado - e mesmo com certa apreensão. Contando que estamos no décimo andar, não há janelas no banheiro e as marcas são próximas ao chão, excluímos a possibilidade de uma pomba gigante, do tamanho de uma curucaca. As curucacas, por não existirem em São Paulo, também foram excluídas - e junto excluímos aves grandes em geral. Gato foi outra opção levantada, mas como o bicho não foi até o alto da cabine - sem falar que ninguém nunca viu um gato dentro de todo o prédio -, descartamos a possibilidade. 
Todos com medo de assumir, mas a opção mais razoável que nos pareceu foi a de um rato, que teria subido pelo encanamento - talvez atraído pelo cheiro da outra cabine em um de seus outros problemas? - e tentado escalar a cabine. Pareceu bastante razoável e para evitar uma histeria coletiva, optamos por não comentar com as mulheres do setor - cuja anatomia não permite o uso da retrete em pé. Nobre colega Desembargador, entusiasta do Capirotinho, que adorava contar que recebia pra fazer cagadas, tem evitado essa pequena vingança contra a espoliação da mais-valia que sofre - e desconfio que tenha medo de ratos, porque tem escovado os dentes (fora do horário de almoço, claro, que como o nome diz, é para almoçar e não para fazer higiene bucal, como bem ensina o Capirotinho) com uma velocidade impressionante.
Estamos nessa situação há dois dias, e hoje o nobre colega Macedo trouxe a hipótese de alguém com "dificuldade de ir aos pés" ter feito aquelas marcas. Não sofro desse tipo de constipação, mas me pareceu meio exagerado alguém espernear e se debater com tamanha veemência na cabine apenas por certo congestionamento em seu tráfego intestinal. Desembargador, por seu turno, achou mais plausível que a história do rato. Daí, então, a necessidade desta crônica de utilidade privada: colega com prisão de ventre: coma mais fibras!

06 de julho de 2023


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa. 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um palhaço a tentar resgatar a criança de antigamente

Depois de quatro meses de aula, compramos e finalmente iríamos estrear a menor máscara do mundo. Minha grande preocupação ao chegar na aula e pegar meu nariz era ver como ele ficaria em meu rosto - ornaria ou não? Teria comprado um muito grande ou muito pequeno? (E quem sou eu pra me preocupar com tamanho de nariz de palhaço, eu que tenho uma cabeça pequena e uma napa avantajada? Enfim, a hipocrisia).

A aula foi incomum: ao invés de brincadeiras e exercícios de improvisação, exercícios de preparo corporal - que me trouxeram duas práticas corporais que sinto muita falta, as aulas de dança contemporânea com a Key Sawao e o boxe (a outra é tai chi, mas eu tento praticar em casa, de vez em quando) -, e depois uma fala convidando a rememorar o percurso de cada pessoa, em quem e no que nos marcou em todo nosso processo de vida, até chegar nesse quase-palhaço, nesse proto-palhaço, nesse palhaço-primordial pronto a se fazer em instantes - porque o palhaço é uma persona, não uma atuação. Em roda, porém voltados para fora, de olhos fechados, pusemos o nariz numa inspiração, e lentamente abrimos os olhos. “Vejam o mundo com olhos de criança”, convidou Paulo, o palhaço-professor. 

Abri os olhos muito lentamente, vi a rotunda: a textura do tecido me trouxe de pronto a lembrança do banco do ônibus que ia com minha mãe visitar meus avós. Chegávamos em Ponta Grossa meio da madrugada, eu só com meio olho aberto. 

Anos mais tarde, eu parava para visitar meu avô quando ia de Pato Branco para Campinas. Indicava ao taxista o caminho do asfalto, tal qual minha mãe fazia quinze anos antes, e de olhos bem abertos eu presenciava seu sorriso se multiplicar em dezenas pelo vidro da porta da sala, quando me via, enquanto ele tateava o molho de chaves atrás da certa para abri-la. 

O guarda-louça onde estavam as bolachas que eu comia ao chegar na casa deles, depois de ter ficado em minha casa de Pato, quanto meus pais eram vivos, hoje ocupa minha casa em São Paulo - mas a então criança pouco sabia da morte e das perdas, ou melhor, conhecia, mas não conseguia apreender, por mais que o adulto tampouco saiba lidar direito com elas.

O olhar de criança, de quem está descobrindo o mundo, sugerido pelo Paulo, fez aflorar também uma criança ansiosa por pôr ordem nessas descobertas todas, sem notar o ridículo de sua pretensão de toda uma vida. Uma criança que sofria bullying na escola e que aprendeu a evitar toda demonstração de afetos em público, para evitar ser alvo de chacotas - sempre o menos vulnerável possível, com minha cara de paisagem. O que parece ter refletido naquele nariz foi uma criança apolínea, irritada com todos aqueles palhaços falando fora da ordem, quando dava para se organizar, todo mundo assumir a ribalta na sua vez e a seguir dar a vez para o coleguinha.

O que esse palhaço precisa aprender é que essa criança, agora já adulta, pode entrar na brincadeira, sem medo do ridículo, porque tem repertório para entender a situação que está por trás de nossas ações, medos e anseios - e por saber o quão ridículo, o quão palhaços, somos todos.

 

29 de junho de 2023








quinta-feira, 25 de maio de 2023

Um cavalo de Troia no Le Monde Diplomatique - Comentário sobre o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança"

Os fascismos do século XX, assim como suas versões repaginadas neste início de século XXI, não são apenas formas de gestão do estado e da economia, não atuam apenas na macropolítica, como penetram profundamente no tecido social, nas relações micropolíticas, influenciando a sociabilidade como um todo - quantas histórias não conhecemos de famílias que se afastaram desde a emergência dos fenômenos de extrema-direita no Brasil, como o lava-jatismo e o bolsonarismo?

Tem sido comum estudiosos e analistas inserirem as técnicas neofascistas de comunicação e manipulação no seio da guerra híbrida[1]. Uma dessas estratégias consiste em forçar os limites do aceitável no debate público, de pouco em pouco, por aproximações sucessivas, de modo que parece desproporcional recorrer à justiça, e quando se nota, absurdos passam a ser ditos ostensivamente nas mídias e nas casas legislativas - desde da defesa da desigualdade de gênero e de raça, à defesa da tortura ou da criação de um partido nazista -, e nesse ponto, como tudo até então era tolerado, ações (tardias) no sentido de refrear esse avanço contra pactos civilizatórios elementares são apontados como pretensa censura à liberdade de expressão.

Assim como os fascismos do século XX souberam se utilizar das ferramentas de comunicação então emergentes, o rádio e o cinema, os neofascismos deste século XXI também souberam instrumentalizar com eficiência as novas tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais - Debord dizia que o “fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado”[2]. Esta afinidade entre novas tecnologias de comunicação e extrema-direita não me parece ser por acaso: o desenvolvimento da ciência - e as novas tecnologias dela derivada - não é neutro. A ciência faz parte de um “sistema-mundo” capitalista, está inserido dentro de uma lógica, de um momento histórico específico, e ainda que haja espaço para dissidências e questionamentos, o vetor principal é o de reforço da lógica do capital, do status quo.

Na esteira do ativista português João Bernardo[3], advogo a tese de que o fascismo não é um desvio que se aproveita de fragilidades do liberalismo em momentos de crise, e sim o contrário: quando o disfarce liberal mostra seus limites em conter a rebelião das massas e garantir as taxas de lucro, o capitalismo se vê forçado a se apresentar em sua essência, retomando suas raízes ocidentais de submissão, colonização e dilapidação do mundo e de povos tidos por inferiores; o sistema europeu de produção de hierarquias e produção de desigualdades, mundializado desde o século XV, ao menos; ou seja, a necropolítica identificada com o fascismo é iminente à expansão europeia/Ocidental e ao desenvolvimento capitalismo. Por conta disso - da essência destrutiva do capitalismo e da afinidade entre o capitalismo e o desenvolvimento da técnica sob sua égide -, as formas fascistas e neofascistas de socialização, de debate, de enfrentamento agonizante (e não agonístico) na ágora, vão sendo disseminados de um modo que soa natural - por aproximações sucessivas, como disse - até que, sem que se perceba, estamos reproduzindo essas formas de sociabilidade e de visão do mundo - como o punitivismo, por exemplo -, e o debate vai sendo rebaixado a dicotomias simplórias e soluções mágicas, que temos dificuldade para complexificar e reverter. Não por acaso, “costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror”[4]. Isso nos exige atenção e autocrítica permanentes, de modo a garantir que não acabemos, na ânsia de tentar estabelecer algum debate e desmascarar ações mais evidentes do fascismo, por reproduzir os pressupostos daquilo que combatemos - uma coisa é buscar instrumentalizar as técnicas de comunicação já desenvolvidas pela extrema-direita, outra é utilizar suas técnicas de manipulação.

Digo isso porque foi com assombro que li na edição de abril do Le Monde Diplomatique Brasil o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", da jornalista Ariane Denoyel.

Pelo livro que a autora do artigo escreveu - Geração Zumbi, investigação sobre o escândalo dos antidepressivos -, percebe-se que é alguém que tem familiaridade com o tema da produção de doenças para venda de remédios. Contudo, uma coisa é uma “epidemia” de depressão, cujo diagnóstico é bastante impreciso e manipulável[5], outra um caso em que o diagnóstico da doença depende de um teste preciso - uma amostra coletada reagir positivamente ao COVID-19 -, e que matou milhões de pessoas em todo o mundo, em um curto espaço de tempo (ainda que o número exato possa ser questionado, como a autora faz).

O artigo em questão me pareceu muito estranho na sua estrutura e recursos retóricos, por se utilizar de muitos elementos de fake news. Isso já seria problemático, mas o fato de ir de encontro com muito do que a extrema-direita mundial propagou desde 2020, me fez parecer um cavalo de Tróia que conseguiram pôr dentro da revista.

É evidente que ao texto subjaz um viés de confirmação da sua tese. Tese que tem como um de seus pressupostos o de que as grandes corporações não possuem restrições éticas na sua busca pelo lucro. Pressuposto compartilhado por muitos leitores do Diplô (este escriba incluído), e que se lerem o artigo sem a devida atenção podem ser “capturados” pelo raciocínio lacunar mas de fácil entendimento, induzidos a concordar com premissas falhas (por aproximações sucessivas?), até se chegar a uma conclusão que até agora não possui lastro na realidade empírica, ao menos não na forma radical como foi posto pela autora: de que as vacinas foram aprovadas apenas para lucro rápido das empresas farmacêuticas, que se utilizaram com sucesso de todo tipo de fraude e suborno dos órgãos de controle estatais e mundiais para impor seus interesses, à custa da segurança da população e calando todo e qualquer questionamento sobre sua eficácia e mesmo sobre sua necessidade.

É basicamente a mesma tese das teorias das conspirações dos antivax da extrema-direita, mudando apenas o beneficiado da fraude - sai a dominação chinesa, entra a das grandes corporações. Inclusive propõe a mesma saída: se vacina quem quer, ignorando que saúde pública deve ser feita de modo público e não como compras num site de e-commerce com a liberdade absoluta sobre si do homo-oeconomicus; que vacinação só tem efetividade se feita coletivamente, dentro de uma política ampla, para além de (pretensas) escolhas individuais.

A forma como é construído o texto, cheio de nomes de indivíduos solitários lutando contra a OMS, a FDA, a NIH, a ANSM, as grandes corporações capitalistas e sei lá quem mais, é outro ponto que reforça a suspeita de estratégia de manipulação. As citações de artigos científicos sem apresentar uma contestação a eles feitos dão um verniz de sério, mas não sustentam nenhuma delas: todas essas contestações teriam sido validadas pelas revistas e ninguém, nem um mísero cientista foi capaz de as contestar, pôr em dúvida, refutar?! Assim sendo, por que esses gênios não ganharam o Nobel, então? Ah, talvez porque foram “contra o Sistema”, em que ONU, OMS, governos, mídia, todo mundo está na mesma conspiração para vender vacinas e ficar rico destruindo a saúde da população[6]... A própria jornalista não se deu ao trabalho de plantar um “cientista”, que fosse, fazendo o outro lado das acusações - isso não seria o básico do jornalismo, mesmo de opinião, ao tratar de um caso dessa gravidade?

É muito estranho que o artigo levante suspeitas sobre o cuidado em divulgar casos adversos da vacina, ignorando com uma solenidade gritante todo o contexto da época, das campanhas massivas em nível mundial dos antivacinas e anticiência. Se o Brasil foi um caso modelo desse tipo de desinformação, com respaldo presidencial, a França da autora, onde protestos contra a vacina reuniram mais de 200 mil pessoas[7], não estava imune a esse tipo de ação de guerra híbrida. Este trecho aqui, por exemplo, parece ter saído direto de uma live do Bolsonaro: "O órgão também descarta sistematicamente efeitos que não aparecem na literatura científica, mas nós não temos distanciamento suficiente dessas vacinas para excluir qualquer causalidade"[8]. Basicamente um "‘Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz’. Não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem"[9] de alguém que sabe manejar o vocabulário com algum refinamento - só faltou defender a cloroquina, porque o discurso negando a ciência está ali presente, apresentando o método científico como regras forjadas para descartar aquilo que não é do interesse dos poderosos, por mais que as evidências fossem visíveis no “mundo real”.

Que haja contestações às vacinas contra a Covid e à forma como foram desenvolvidas dentro do meio científico, não duvido - afinal, estamos falando de ciência, não de religião. Contudo, esse tipo de debate é muito mais complexo e profundo do que foi apresentado pela autora - constrangedoramente rasa em todo artigo, como sói a todo texto de manipulação.

Por fim, o artigo termina falando da "autocensura dos jornalistas"[10] sobre os efeitos adversos das vacinas. Esse é o recurso básico elementar de qualquer fake news. Sim, artigos sérios também podem apontar esse ponto (e há vários no Diplô, que não coloco em suspeita), mas toda a construção da Ariane Denoyel é arquetípica de fake news, neste ponto ela apenas alterou a ordem do chamariz, tirando do início e colocando no final, para coroar toda a linha de raciocínio que construiu anteriormente - um exercício retórico bem reconhecível.

Não sou da área, logo, pode ser que a autora tenha razão em sua tese; entretanto, a estrutura do texto o desqualifica para um debate sério, dada toda sua construção falha, como assinalei acima. O pior, contudo, é esse reforço à forma neofascista de se relacionar com notícias (e com a ciência) e como, muitas vezes, acabamos por ser capturados por ela.

Estejamos atentos e vigilantes, sempre!


25 de maio de 2023


[1] LEIRNER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas e Política em uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2]DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[3]BERNARDO, João. Labirintos do fascismo (cinco volumes). São Paulo: Hedra, 2022.

[4]GORTE-DALMORO, D. “O Fascismo se enfia pelas frestas”. Jornal GGN, 03 de junho de 2017. https://bit.ly/3OeItUo

[5]Com isto não nego a existência da depressão ou outras doenças psiquiátricas, mas o quanto são tratados como casos clínicos necessário de intervenção farmacológica casos que definitivamente não o são, e poderiam ser resolvidos de modo mais efetivo e menos custoso de outras formas, com outras técnicas.

[6]Confesso que senti falta do Foro de São Paulo no artigo.

[7]“215.000 franceses protestam contra a vacinação obrigatória e o certificado covid-19 pela quinta semana seguida”. El País, 14 de agosto de 2021. https://bit.ly/434myUk

[8]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", grifo meu.

[9]“Bolsonaro se embaralha ao defender uso da hidroxicloroquina contra covid-19”. Poder 360, 16 de julho de 2020. https://bit.ly/3WdLp5F

[10]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança


PS: Texto escrito para a pedido da revista (após um e-mail mais sucinto), mas que não foi publicado.

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Doutor Sabujinho, o tiozão galanteador [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Os ventos não andam favoráveis ao doutor Sabujinho. Esqueci de comentar em meu texto sobre o fatídico colega Rivarola que ele também é um espécime da família tradicional brasileira (ainda que tenha dito não ter votado no Abominável na última eleição, mas tenho dúvidas, uma vez que defendia entusiasticamente o Cara de Cratera para governador). Uma das suas famas mais famigeradas no setor (e já se espalhando alhures) é que se trata de um galanteador inveterado, que adora posar de cavalheiro da high society - mas no máximo lembra um personagem genérico d’Os Simpsons, alguns dos bêbados que fazem figuração no bar do Moe (falta só ser amarelo). 

Quando Goleador chegou ao setor, antes mesmo de ela ser apresentada a todos, doutor Sabujinho já se dispôs a ensiná-la o trabalho - ela teve a infelicidade de ter uma baia livre bem defronte à dele. E assim foi, por duas semanas: ele sentado juntinho a ela, praticamente no colo dela - ou no decote, dizem as más línguas. Colega Carnegie, que senta próximo, conta ter ouvido certa hora doutor Sabujinho dizer a ela que eles tinham tudo para formar uma dupla de sucesso na empresa, tipo Bebeto e Romário na seleção - num trocadilho óbvio (e infame) com o sobrenome da colega; e ele deve se achar o Romário, claro. 

Sorte dele o chefe não ter reparado direito: duas semanas para ensinar o trabalho é de uma ineficiência digna de uma conversa muito séria. Ainda mais porque Goleador tinha alguma experiência prévia - apesar de seu grande mérito é saber parecer uma digital influencer, mesmo que sua conta no Instagram tenha menos seguidores que a do Pato Rei. Experiência prévia que fez com que na terceira semana ela já notasse que tinha coisas a corrigir naquilo que Sabujinho lhe ensinara - e fazia. Claro que ela não comentou com o próprio, afinal, ele não apenas foi muito solícito com ela, como se mostra alguém querido por muitos colegas (não por mim, gostaria de reforçar, e também saliento que acho que é falsa essa amizade dos demais) e, principalmente, pelo chefe.

Pela proatividade de quando chegou, até suspeitamos que Goleador fosse disputar o posto de puxa-saco-mor, mas até agora não foi o caso - até agora! O que foi notável é que tão logo outra baia ficou disponível, Goleador foi ocupá-la. Segue perto do doutor Sabujinho, mas não tanto - e, mais importante, de costas para ele.

Doutor Sabujinho, ainda que não tenha desistido, sentiu os cortes da nova funcionária, e decidiu retomar seus galanteios para com Beviláqua, a secretária (que suspeitamos ser bisneta do jurista Clóvis, por conta do sobrenome), uma moça na flor da idade, bonita e reservada. A pobre colega foi o primeiro alvo do fatídico colega, tão logo ele foi contratado - e por onde já começou toda sua fama, até porque em sua primeira apresentação ele salientou que quem sustentou a casa na pandemia foi a esposa, que certamente ganha mais do que ele até hoje.

Esta semana tivemos a saída de uma colega, que vai para um emprego melhor. Podia ter resolvido isso com um e-mail, todos ficariam mais felizes com uma partida assim, mas ela fez questão de um almoço de despedida. Discutíamos onde poderíamos ir quando o chefe propôs um restaurante tradicional (e um pouco caro) aqui perto - onde, dizem, o PSDB foi fundado e por isso se dizia um partido com um pé no popular. Animamos: pelo tom, quem iria pagar a conta era o chefe. Pois foi depois de fazermos os pedidos que soubemos que não era o caso: ele avisou com solenidade que o bolo seria por conta dele. Era possível ler na cara de muitos colegas: “O bolo?! E essa facada que vou levar por um prato que nem faço muita questão?”. Ficou aquele climão na mesa, talvez ele tenha até sentido - ou não, mais provável. A certa altura, ele foi ao banheiro e algumas pessoas conversaram rapidamente sobre a conta. Sabujinho foi até Beviláqua e disse que pagava a conta dela - afinal, o salário dela é menor que o dele, ainda que a herança que presumimos deva ser bem maior. Ela simpaticamente (mais do que deveria) disse que não precisava.

Pois na hora em que a conta chegou e foi cada um pagar a sua, chegou a vez de Beviláqua e o garçom avisou que a parte dela - uma água mineral e um filé de frango grelhado com uma salada frugal, o mais fitnesse um dos mais baratos do cardápio - já havia sido paga pelo “senhor na ponta da mesa”. Ela olhou para Rivarola que fez um sinal como quem diz “relaxa, eu paguei e está tudo bem, não vai me fazer falta”. Por ser uma pessoa bastante discreta (eufemismo para tímida), não é possível afirmar que Beviláqua ficou puta, mas o “Eu disse para ele que não era para pagar minha conta” me dita entre os dentes fez com que eu desconfiasse que ela estivesse consideravelmente emputecida com mais essa cantada do “senhor na ponta da mesa”.

Após esse episódio, começou a circular certa piada maldosa pelos corredores com relação ao doutor Sabujinho. Não se sabe quem começou, mas o que se tem dito é que o fatídico colega Rivarola é um tiozão da Sukita que se acha o tio da lancha. Particularmente, eu achei essa descrição injusta com o tio da Suquita.


12 de maio de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

As esquerdas (e o governo) seguem sem saber se comunicar com a maioria da população em tempos de internet

Houve um tempo em que as esquerdas sabiam fazer trabalho de base - não por acaso a Constituição de 1988, feita sob a pressão dos movimentos populares, desagrada nossas elites desde antes de promulgada. Com a ascensão do PT ao poder, no início do século, as esquerdas se acomodaram, passaram a acreditar demasiadamente na via institucional - sim, há movimentos que nunca arrefeceram, outros que surgiram, mas falo de modo geral -, e quem soube se aproveitar desse vácuo foram os evangélicos neopentecostais e a extrema-direita, dois grupos em boa medida fortemente ligados (comentei isso em outro texto: https://bit.ly/cG200121).

Na parte de comunicação, desde o fim da ditadura, a esquerda (ainda que não seja um bloco coeso, vou tratá-la no singular a partir de agora) não conseguiu fazer frente ao complexo midiático montado durante o período de restrições das liberdades - e no início do governo Lula, o PT chegou a acreditar que a Rede Globo seria porta voz oficiosa do governo de turno, independente de ser de (centro) esquerda ou direita. Algo muito diferente dos anos 1960, quando a esquerda soube fazer a leitura do momento e entender que a indústria cultural brasileira ainda não se fechara em sistema e era possível adentrá-la sem ser cooptado por ela (via festivais de canções, por exemplo). Estratégia exitosa e que só com a guerra cultural da extrema-direita olavista foi de alguma forma questionada com mais veemência (ainda que sem conteúdo).

Com o advento da internet, o que prometia ser uma terra livre para alguns ingênuos da tecnologia acabou por se mostrar uma terra onde a lei do mais forte impera. As tais Zonas Autônomas Temporárias (T.A.Z.) imaginadas por Hakim Bey, se acaso existiram de fato, souberam ser exploradas pela extrema-direita para seus atentados (ou em flash mobs despolitizadas). A esquerda bate cabeça diante dessa nova tecnologia - que já não é mais nova, tem trinta anos. E pior: se mostra incapaz de sequer mimetizar casos de sucesso do campo oposto - aquilo que dá para ser reproduzido dentro de certos princípios éticos, é claro.

A falha de comunicação do governo e fora do governo é muito prejudicial a várias pautas. Ao meu ver, um dos pontos dessa falha de comunicação é que a esquerda, mais que se burocratizar, se academicizou. A esquerda tupiniquim sempre teve um pé na academia, e isso não é um problema. O problema é quando essa classe média branca universitária, graças ao forte capital social acumulado (e que recusa a abrir mão, pelo contrário, faz de tudo para concentrá-lo ainda mais), começa a pautar praticamente todas as análises e estratégias da esquerda, partindo do pressuposto de que sua racionalidade é a hegemônica na sociedade. E sua racionalidade, pode não ser consciente, mas é uma versão suavizada da Teoria da Justiça, do John Rawls, com pitadas de humanismo ingênuo e preconceitos de classe (mal) disfarçados - porque a classe média (e me atribuo local de fala para dizer isto) é, via de regra, tímida, covarde e refratária a grandes riscos nas suas reivindicações: poucas são as pessoas da classe com a estatura de uma Dilma Rousseff ou um Guilherme Boulos. 

O caso do projeto de lei (PL) para regulamentar as grandes empresas de tecnologia no Brasil - e, por consequência, a divulgação de fake news por seu intermédio - é uma demonstração do retumbante fracasso da esquerda na comunicação com a sociedade - e me impressiona também como ela parece não perceber isso, ou não dar a devida importância.

Duas conversas que ouvi de passagem na rua, na quarta-feira, dia 3, quando era esperada a votação do PL. A primeira, pela manhã, em uma dessas barracas de venda de café da manhã na rua. Uma das pessoas comenta: “não estou falando só do Lula, estou falando de todo mundo; todo mundo é muito corrupto”. Ao que o interlocutor, o dono da barraca, responde: “Mas o que eles estão querendo mesmo é acabar com nossa liberdade de expressão”.

É visível que são duas pessoas muito simples, sem qualquer capital social, mesmo econômico ou cultural (para ficar nos termos de Bourdieu). 

Primeiro aspecto a ser notado: a questão da política como sendo a luta do bem contra o mal (e eu lembro de que esse tipo de raciocínio era, de alguma forma, reproduzido por vários colegas e amigos meus da faculdade de ciências sociais, mesmo quando já estavam no mestrado e doutorado), ou seja, a despolitização da política em favor de princípios religiosos (bem, mal, pureza, verdade, certo), o que mostra que o terreno está preparado para um novo arauto da moralidade, um novo salvador da pátria, um novo Jim Jones das Rachadinhas da Vivendas da Barra ou da Casa da Dinda.

O segundo, é que estou diante do lúmpen do lúmpen discutindo o que não tem, a não ser que virem um meme: condições de participar individualmente, isoladamente, como voz ativa no debate público, via concessões públicas de radiodifusão ou imprensa escrita, algum meio oficial e/ou reconhecido por onde o que dizem seria reverberado. 

Disso deriva uma outra questão: a internet se tornou não apenas uma nova ágora, mas ocupa também lugares de socialização: o clube, o bar, onde as pessoas se reuniam com iguais e semelhantes e se falava absurdidades sem consequências, por serem palavras ao vento (literalmente), com a desculpa de estar bêbado, caso se extrapolasse; ou mesmo a sala de estar ou de jantar, o antigo local onde a família se reunia para discutir os assuntos do dia (ou “aquele tempo bom que já passou”), agora expandido para além da família nuclear, uma retomada da família ampla que se fala todos os dias por meios virtuais. Talvez o medo dessa pessoa de perder seu fantasioso direito à liberdade de expressão, seja o medo de “terei que me calar dentro de minha própria casa” - decorrência da privatização do espaço público, que parece quase um tornar público o espaço privado, mas não é, uma vez que o espaço público que é contaminado por hábitos que não lhes são os mais adequados. E, claro, bem provável de haver um narcisismo dessas pessoas, desses “Zé Ninguém” tão bem caracterizados por Reich, que julgam um dia poder virar influencer, ter repercussão naquilo que dizem ou falam, influência que nunca tiveram nem nunca terão, embalados pelo canto das sereias de que a internet é um espaço aberto para oportunidades a todos. Contudo, essa confusão entre liberdade de expressão num espaço público e falar o que quiser num espaço privado é providencial para o discurso da extrema-direita e das grandes companhias de tecnologia para impôr o medo de cerceamento da liberdade (ironicamente, quem mais teme isso costuma ser quem mais defende a volta da ditadura, numa dissociação da realidade bastante evidente).

A segunda cena, presenciada no fim do dia, num ponto de ônibus, entre dois trabalhadores que aparentavam terem condições econômicas um pouco melhores que os da manhã - mas não muito, ou não estariam pegando ônibus em horário de pico. Um deles palestrava: “aí o PT vai pra favela da Maré, depois de fazer acordo com o tráfico, e não querem que a gente fique sabendo. É por isso que querem aprovar essa lei”.

Temos aqui uma outra camada de discurso, não mais de alguém que tem medo de não poder falar, mas de ser privado de conhecer - no fundo, um ignorante confortável com a própria ignorância, que o dispensa de encarar as próprias limitações. Talvez a pessoa tenha mais ciência (mesmo que não consciente) de sua condição, de seu capital social, quem sabe seja até mais cioso do que fala, para não se queimar com os próximos - atitude bem típica da classe média não totalmente cooptada pela guerrilha cultural neofascista (uma das facetas atualizadas do "arcaísmo tecnicamente equipado”, como dizia Debord sobre o fascismo). Neste caso, repassar materiais feitos por terceiros é uma estratégia de opinar sem se comprometer, uma vez que a pessoa não repassa o que escreveu ou falou, mas a fala de outrem - e não raro, quando confrontados com mais ênfase, dizem que estavam apenas trazendo um ponto para ser refletido, não necessariamente concordam com ele. Seja "opinião", seja “notícia”, o projeto de lei seria uma tentativa de censura dessa pessoa saber o que acontece de fato no mundo, a verdade; sendo que esse discurso da Verdade, de saber o Certo, de estar no caminho certo, lembra, novamente, muito do discurso religioso - e Safatle, em seu curso sobre psicologias do fascismo, de 2019 (as notas de aula podem ser baixadas em https://bit.ly/3MlKlJY) comenta dessa subjetivação do sujeito moderno ainda muito atrelada à subjetivação religiosa, cristã.


Qual o primeiro e mais evidente erro de comunicação da esquerda? Não conseguir ampliar sua bolha - isso quando consegue falar para a própria bolha. Não conseguir ir além de um academicês estéril ou de jargões que não se mostraram efetivos no debate, mas seguem sendo repetidos sem mudanças.

Quando a extrema-direita, mais bem vocalizada pelo discurso evangélico, decidiu acossar Dilma, na esteira das acusações ao Palocci, criou a expressão “kit gay” para a política anti-homofobia que o governo pretendia implementar. Em 2018, durante a campanha, tivemos a “mamadeira de piroca”. Agora, o pouco que vi, é que o que está em pauta no congresso é o “PL da censura”. Slogans rápidos, fáceis e que conseguem balizar o debate. A esquerda, por seu turno, depois de perder na discussão da PEC 95, agora sobe a hashtag contra a PL 2630. Tudo muito cativante. Um matema, uma fórmula matemática, uma expressão algébrica pode servir para explicar de maneira precisa um problema, mesmo social, mas não vai convencer quem está tomando café da manhã na barraquinha na rua, não diz nada para quem a preocupação com números é o quanto terão na conta até o final do mês? 

Em 2016 tentou se apelidar a PEC 95 de PEC da Morte, mas o termo não foi capaz de mobilizar - talvez porque no futuro estaremos todos mortos, então qual a diferença? Ou talvez porque a preocupação das pessoas seja antes de tudo a vida por levar. Sem dúvida porque a força de quem era favorável à emenda constitucional era muito mais forte, e era preciso um nome que os forçasse ao menos a se justificar. Agora a PL 2630 teve a tentativa do nome fantasia de PL das Fake News, mas em minha bolha, ao menos, o que vingou foi a expressão burocrática - e o debate foi mais pautado na questão da censura e da liberdade de expressão, como puseram a extrema-direita e as empresas, do que pelo combate às fake news. 

Sim, como a esquerda brasileira é adepta da democracia, falta uma coordenação central que dite de cima pra baixo como se dará a guerrilha de comunicação virtual; além de que, em geral, toda tentativa de algo um pouco mais célere e menos discutida esbarra em um sem número de problematizações de questões menores que fazem perder o foco e a possibilidade de uma ação estratégica. Ademais, no outro campo, temos evangélicos, olavistas, extrema-direita, grandes empresas de tecnologia todas juntas: era realmente difícil pautar o debate, mas #aprovaPL2630 #PL2630já e afins é uma ajuda que elas agradecem.


Bolsonaro tinha o cercadinho com seus apoiadores, tinha uma live semanal em que era como um convite para estar na sala com ele - a sensação a seus seguidores era que eles quem adentravam o Palácio do Planalto, e não o contrário, que ele entrava na sala das pessoas, caso fosse um discurso em cadeia nacional. Servia para ele falar as obscenidades típicas, divulgar fake news e falar de ações de seu governo (o que parece uma fake news). A escolha de ser às quintas-feiras, inclusive, me parece providencial: era combustível para conversas nas confraternizações de trabalho, na sexta, e nas de família, no final de semana - além de alimentar manchetes de jornais durante vários dias. 

Lula não precisa polemizar, mas poderia utilizar um esquema semelhante, seja para mostrar e comentar as ações do governo (por exemplo: as ações de inteligência da polícia contra os ataques na escola, que deveriam ser trending topics por dias, mas o que temos é que os ataques parece quase que pararam “porque sim”, porque os agressores em potencial decidiram parar), divulgar dados contextualizados, fazer a defesa do governo sem depender da boa vontade da mídia nas suas edições, apresentar sua versão contra os ataques da mídia-mercados. As lives deveriam ser a nova Voz do Brasil. A Voz do Brasil tem um ranço fascista? Tem. Como nossos tempos também - mas não me parece que repetir isso seja algo anti-ético, ainda que sua origem não seja nobre.

O que o governo usa são pedaços de discursos dos ministros ou do Lula em redes sociais. Não há um horário do governo, do presidente. É aleatório. Novamente, a extrema-direita agradece a incompetência palaciana - e a mídia tradicional também, pois mantém o governo na sua dependência.


Se as esquerdas e o governo não se reinventarem na parte de comunicação, se não se adaptarem aos novos formatos, àquilo que chega a maiores parcelas da população, dialoga com elas e faz sentido; se não retomar aquilo que foi feito na década de 1960, 70 e fizer uma boa leitura crítica do momento, se aproveitando das brechas existentes, daqui cinquenta anos seremos nós quem estaremos lutando contra ícones da cultura nacional aliadas ao fascismo e ao pior do que a civilização europeia nos legou.


04 de maio de 2023


PS: Sei que este texto tem uma contradição de fundo: falo da necessidade de nos comunicarmos além da bolha de esquerda acadêmica branca classe média, com um textão com toda cara de bolha de esquerda acadêmica branca classe média, que será lida por meus pares, quando muito. Dois pontos em defesa: primeiro, o público alvo deste meu texto; segundo, digo isso muito baseado em minha experiência de anos como comunicador social - o que também faz com que eu reconheça minhas limitações, por não ser uma pessoa midiática. Por isso esse apelo a abrirmos espaço para que tome a dianteira nesse processo quem soube se adaptar aos tempos de memes e reels e, principalmente, não sofre dos cacoetes acadêmicos brancos classe média.

PS2: Para constar: eu mesma cometi aqui o erro (corrigido quando revisava o texto) e chamei o projeto de lei de PL 2360, ao invés de PL 2630. Se eu tivesse mantido, talvez boa parte dos leitores nem teria percebido o erro.