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segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Brasil para aquém do Brasil [Diálogos com o teatro]

De um dos tantos conflitos e guerras civis suavizados e esquecidos do Brasil - o Cerco de Piratininga, em 1562 -, o Coletivo Estopô Balaio usa como mote para repensar o que foi e o que está o Brasil, e que devires podemos construir a partir daqueles que sempre estiveram às margens, a quem foram negados o estatuto de cidadãos - e mesmo de sujeitos.

Com o teatro documental que marca o trabalho do coletivo (como na excelente A cidade dos rios invisíveis, apresentada no bairro ao lado), Reset Brasil relembra o que muitos talvez sequer saibam, reelabora o que passamos por alto, resiginifca o que está cristalizado na história oficial. 

De um conflito aparentemente distante são puxadas outras tantas histórias, outros tantos conflitos e guerras suavizados e esquecidos no Brasil atual - principalmente esse conflito do dia a dia, banalizado por apresentadores de tevê, políticos e empresários oportunistas, que babam ódio em seus carros blindados e lucram com o sangue das periferias.

Contudo, para além dessas representações (quase abstrações, apesar de tão presentes e palpáveis nas suas consequências), Reset Brasil é feito antes de tudo de carne e concreto, e apresenta a quem estiver disposto a conhecer (levado pela mão, praticamente, já que vão buscar os espectadores na estação Brás) aquele pedaço da cidade e seus habitantes que os centrais, os cidadãos de fato, os mais próximos do sujeito universal (homem branco hetero cristão europeu ocidental*) não conhecem, seja pela distância, seja pelo preconceito, seja pelo medo, seja pelo não saber os códigos do lugar - e que muitos fazem questão de não conhecer, justo para poder manter o preconceito que os garante subjetivamente numa posição de moralmente valorosos e impecáveis.

A história do Cerco de Piratininga, da resistência indigena contra a ocupação pelos portugueses, apoiados por outros indígenas, do território em que hoje está São Paulo, serviu para que na construção do espetáculo pelas ruas de São Miguel Paulista os atores de ascendência indígena buscassem parentes pelo bairro, com quem possam reconstruir uma história de resistências e esboçar devires menos áridos. Descendentes de quem de fato ocupa esta terra desde tempos imemoriais, vindos de todos os cantos do país, mostrando aos brasileiros, aos paulistas e aos paulistanos sua condição de estrangeiros - do território, do solo, da própria história que reivindicam como a única. Uma espécie de “walking tour” por uma área da cidade relegada pelos poderes e pelos cidadãos de fatos, Reset Brasil conta a história de vida de gente tão banal quanto os espectadores - sim, somos banais e descartáveis como um morador da periferia, mesmo com nossa cidadania plena; assim como os habitantes dali são importantes e únicos, mesmo na sua condição de subcidadania.

A resistência desses sujeitos é apresentada na história das pessoas do bairro que emprestam parte de suas narrativas de vida, nas próprias ruas do bairro, nas vielas, nas casas que sobem contra o estado, reivindicando existência e cobrando a dignidade da cidadania que as paragens mais abastadas possuem: as mães de maio exigindo justiça pelos seus filhos mortos pela polícia, os moradores de ascendência indígena exigindo reconhecimento, homens e mulheres exigindo seus direitos - os básicos, de saúde, educação, moradia digna, alimentação, e os básicos-mas-não-tratados-como-tal, como diversão, descanso, qualidade de vida.

A crítica é direta, mas a forma como é construída, a partir do que é vivenciado por sujeitos periféricos (na cidade, na renda, na origem indígena ou negra) garante que o discurso não seja reduzido a jargões simplórios ou clichês de certa esquerda acadêmica (academicista).

Não por menos a peça nos convida a pensar e repensar que pátria é essa da qual tanto falamos em reconstruir, depois de seis anos de violências e de destruição ultra-liberal, militar e fascista-cristã: começar de novo a partir de onde? Dar o "reset" nessa nossa história de exploração e violências vai nos levar até que ponto? De onde seria esse recomeço para um país digno para todos?

Enquanto Haddad e a Faria Lima discutem o novo calabouço fiscal, as famílias milenares, que aqui vivem desde antes desta terra ser marcada pelo vermelho brasil da exploração e do sangue de milhões de pessoas, índios, negros e periféricos seguem resistindo - e suas demonstrações artísticas são momentos em que nós, os brancos colonizadores, conseguimos vislumbrar um pouco do que acontece para além de nossos horizontes limitados. É quando, deixando de lado nosso orgulho e nosso narcisismo, podemos vislumbrar que talvez as pessoas mais aptas a comandar o resgate do Brasil desse inferno tropical transformado pela cultura europeia nos últimos 523 anos não sejam os descendentes de quem fez esta terra ser regada de sangue para depois queimar até se transformar em areia e ódio.

O Cerco de Piratininga continua, com nativos (já confundidos em suas cores e ideias) dos dois lados disputando se seremos uma colônia, se buscaremos ser os novos colonizadores ou se seremos algo anterior a isso, anterior à europeia divisão mundial do trabalho e destruição da Pacha Mama. 


17 de abril de 2023


* Vale ressaltar que o sujeito universal pode ser incorporado por minorias, como tentativa (sempre incompleta) de se tornar um dos opressores - inclusive porque o Brasil não é parte do Ocidente.

PS: Sobre A cidade dos rios invisíveis ainda tenho esperança de um dia conseguir escrever sobre; infelizmente assisti à peça em momento de profunda crise da escrita.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Estrela não tão distante [Diálogos com a literatura]

Conforme Freud e a psicanálise, a arte é, muitas vezes, a sublimação de pulsões e desejos socialmente condenados, considerados sujos, feios, impuros; retrabalhados para serem apresentados no seu inverso, como algo belo, sublime - aqui nos termos de Edmund Burke, do século XVIII. No século XX, muitas vanguardas artísticas, se não afrontaram a ideia de sublimação, atacaram a ideia do belo na arte - fundamento de certa proposta artística e de visão de mundo -, minando posições normativas sobre o que seria legítimo ou não no campo estético, e por mais que o capital cultural siga dando as cartas do que vale e o que não ao grande público e ao público endinheirado, todo um circuito se fez à sua margem - ainda que não raro seja fagocitado, vide os graffitis urbanos.
Porém, e quando se põe a questionar a ideia da sublimação em favor de algo sublime, se utilizando dessa crítica à uma pretensa verdade artística? Carlos Wieder, personagem central de Estrela Distante, de Roberto Bolaño, talvez seja uma resposta.
Quando a arte perde sua função sublimadora e deixa de ser a representação do horror e passa a ser a apresentação do horror - mais que isso, horror produzido pelo próprio artista, como horror, pelo horror e para sua apresentação horrorífica.
A passagem de Guernica para as fotos de guerra, para programas estilo Datena - cuja performatividade do discurso produz o horror que ele diz denunciar. Carlos Wieder é apenas um passo além, um Datena sem covardia e que não só prega que se faça, como faz com as próprias mãos. Covardemente, sorrateiramente, escusado pelo terrorismo de Estado do governo golpista de Pinochet. Um governo que torturou e matou com requintes de crueldade, mas que expulsa o oficial que ousou tornar a miséria das vítimas mais que um momento de regozijo próprio e fez disso arte - uma arte que perturba, porque aquilo que apresenta é mais que uma representação do que a perversão de estado é. E Wieder é um perverso - como são perversos os covardes que defendem a ditadura e elogiam torturadores, incapazes de assumir suas próprias limitações, estampadas em suas testas -, mais inteligente, mais letrado e mais sorrateiro do que os exemplos que hoje temos à frente da nação, mas facilmente identificável em "intelectuais" e artistas que posam de "civilizados de direita", com colunas em jornais "sérios", espaço em programas cultos de televisão e cadeiras em universidades de prestígio.
Carlos Wieder é uma representação de Bolaño, representa a literatura nazista na América, aquela que participa de oficinas literárias, que escreve poemas com fumaça nos céus e com sangue nos corpos das suas vítimas. Carlos Wieder representa a arte do futuro, se seguirmos agindo sem a radicalidade que o momento exige.

08 de fevereiro de 2020

domingo, 17 de novembro de 2019

Bacurau e a volta dos que não foram (como vovó já dizia) [Diálogos com o cinema]

Composta em 1973, "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas, foi censurada pela ditadura militar - digo, movimento de 64, conforme o presidente do STF -, e ganhou a versão conhecida, com quase nada da original, que não os versos "quem não tem colírio usa óculos escuros" e "a serpente está na terra, o programa está no ar". Ainda que a versão consagrada traga uma série de críticas veladas à ditadura militar e à situação do país, fica muito aquém da versão original - inclusive faz sentido porque usar óculos escuro diante dos olhos "manchados com teus raios de luar". Há cerca de dez anos sua filha lançou uma versão eletrônica a partir da gravação do vocal do pai com a letra original:

"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa luz tá muito forte tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água, quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra, o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe, de outra terra, pra morder teu calcanhar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro"

Há ainda uma outra versão que circula na internet, um show ao vivo, com pedaços da letra original e alguns acréscimos:
"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Einstein usa Fitipaldi
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Hitler usa Pelé
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem New York usa São Paulo"

Além de um solo de boca, que pode ser lido tanto com uma ironia à pretensa incompetência artística do artista, como à precariedade em se fazer arte no Brasil dos anos 1970.

Quase meio século depois e a serpente saiu da terra - graças aos programas que estão no ar. O fascismo emerge forte, nascido aparentemente por geração espontânea para boa parte da esquerda e das forças progressistas, que não duvidaram radicalmente do fim da história de Fukuyama, aceitando implicitamente certa irrelevância do presente na história pós queda do muro de Berlin. Agora corremos atrás de entender como tudo isso aconteceu, como chegamos onde estamos tão repentinamente - aparentemente. Parte da esquerda (na qual me incluo) caiu na otimista crença liberal de raiz iluminista de que o bom senso cosmopolita prevaleceria por inércia: questão de tempo para as pessoas se darem conta de que a defesa dos direitos humanos é tão óbvio quanto a circunferência da Terra. Outra parte (ainda muito relevante dentro da academia) prefere seguir negando dados concretos de realidade em favor de fantasias infantis de poderes supra humanos que ocultam sua real impotência: a incapacidade de aceitar pequenos avanços como vitórias, seu "revolução ou deixa tudo como está", que se não falam abertamente, está nas entrelinhas, nada mais é que incapacidade de enxergar a fome real do outro (e seria possível "enxergar" o que é a fome graças à empatia, não é necessário ver alguém morrendo de fome ao vivo, uma experiência que não recomendo). Os revolucionários de gabinete que ontem gritavam contra a pretensa passividade do povo e as leituras erradas d'O Capital, hoje repetem as mesmas querelas [como a atual, iniciada por trotskystas indignados pela revista Jacobin ter dado voz a um intelectual afim ao stalinismo falar da situação atual do país], e amanhã serão os primeiros a fugir do país, ressentidos por não terem sido ouvidos. Dez anos atrás eu ironizava essa esquerda com o "Troféu Peter Pan de Resistência", no Trezenhum. Humor sem graça. No mesmo blogue, ridicularizava alunos que abraçavam polianamente pressupostos nazistas, assim como seitas evangélicas reacionárias e grupelhos abertamente fascistas que brotavam na Unicamp: minha crença no bom senso não me permitia imaginar que algum dia ganhariam não apenas relevância como o poder. Eu vi a bruxa e desacreditei: como tantos, deixei a vela se apagar.

**

E cá estamos nós, 2019, lambendo as feridas e tentando achar linhas de fuga para um devir menos aterrorizante, mas ainda temerosos de enfrentar a noite, o escuro - herança iluminista que achou que o mundo poderia viver num dia eterno, e que o capitalismo tem tentado tornar realidade em seu expediente 24/7 (eu mesmo escrevo este texto já passado da meia noite).
Kleber Mendonça é um desses artistas argutos e que tem lado, cuja obra não apresenta soluções, mas escancara problemas e nos permite elaborar melhor possíveis resistências e contraofensivas - seu senso de oportunidade está em descortinar os mecanismos de poder e dominação e não em tecer loas acríticas ao poder, cada vez mais confundido com o fascismo, como outro cineasta brasileiro, que agora se diz arrependido, por não ter lucrado tudo o que esperava.
Talvez um primeiro alerta cinematográfico para o fato da serpente do fascismo estar apenas adormecida tenha sido dado por Stanley Kubrick, em seu "Dr. Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar a bomba": a integração tranquila de oficiais nazistas nas altas esferas da inteligência estadunidense só poderia ter acontecido se já houvesse algum tipo de afinidade com o regime derrotado em 1945 [assim como nossa democracia, que aceita Delfim Netto e Paulo Guedes como se não fossem símbolos de propostas autoritárias e excludentes de sociedade, e ainda temos a pachorra de nos surpreender com seus "Heil Hitler" bananeiro-tropical]. João Bernardo comenta que não apenas o embrião das milícias fascistas é "made in USA", com as empresas de "segurança privada empresarial", contratadas para agredir trabalhadores, como a distância do liberalismo para o nazifascismo que hoje é consagrado nas ciências humanas, é um projeto de reescrita da história para tentar escamotear o que de fato se passou e as muitas afinidades entre o liberalismo e o totalistarismo - Hannah Arendt seria uma das mais proeminentes vozes dessa vertente. Porém, por muito tempo seguimos achando que o nazifascismo era apenas espectro de um mundo que não existe mais, ideia reforçada pelos filmes hollywoodianos que pintam Hitler como a besta fera da antipatia e grosseria - exatamente o oposto do carisma contagiante retratado por Leni Riefenstahl em "O Triunfo da Vontade", de 1935.
Voltemos ao Brasil de 2019, ou melhor, de daqui a alguns anos, retratado em Bacurau, pequena localidade do Sertão de Pernambuco - estado de tanta história de resistências e guerras. Essa dupla indeterminação - "sertão" e "daqui a alguns anos" - não é fator menor na leitura da realidade que o filme permite.

O sertão é tido, geralmente, como um lugar ermo e perdido também no tempo, na história, no espaço: um território de reserva, para ser utilizado em algum futuro (daqui a alguns anos), quando necessário ampliar fronteira agrícola ou qualquer outro projeto de indução econômica-capitalista. Antes desses momentos de "avanço", de "interiorização", é dado como um lugar vazio, que só desponta ao "país real" em tempos de crise - catástrofes naturais, como secas, ou fanáticos religiosos brotados da pobreza e da violência do estado, como Antônio Conselheiro e Monge José Maria. O sertanejo - antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha - é antes de tudo um não cidadão - ou deveria ser, uma vez que deixou tal condição graças às políticas sociais dos anos petistas, coisas simples e de baixo custo, como Bolsa Família e Programa de Cisternas (por sinal, uma delas aparece no filme). Essa inserção do sertão no mapa do poder, não no modo habitual, como um antro de atraso a ser domesticado, ainda que não completamente inserido na produção de mais-valia, foi suficiente para gerar revoltas do "Brasil do sul", de grileiros de toda espécie (de terras e de capital político) e das altas esferas burocráticas do estado, como a do judiciário - não por acaso, um dos "caubóis" contratados pelos estadunidenses é funcionário do judiciário.
Bacurau é síntese do sertão: mal está no mapa, e pode ser riscada dele, com aval do poder, sem fazer falta alguma ao país.

O "daqui a alguns anos" em que se passa a história é um futuro indefinido que num primeiro momento deixa o espectador perdido, reforçado pelo início tosco do próprio filme: será uma obra sobre uma distopia futura, meio século adiante, em que o sertão, esse lugar do atraso, congelado no tempo, ainda se vale de tecnologia da segunda década do século XXI? Não tarda para notarmos que esse futuro só não é presente por questão de detalhes - que as elites, bem representadas nos governos que tem assumido o poder nos países latino-americanos pela via golpista, militar ou judiciária, estão tentando resolver. O detalhe óbvio que essas elites não são capazes de compreender, deslumbradas consigo própria, enxergando o Big Ben na torre da matriz da cidade, a estátua da liberdade original em porta de lojas de departamentos de cidades caipiras e o skyline novaiorquino na barafunda arquitetônica paulistana (pastiches de modas europeias com toques de modernismo tropical que ignora o que é a vida nos trópicos): não são brancos - nunca serão. A herança grega é exclusividade europeia - não importa que a Igreja Universal tenha suas colunas dóricas -, e a tal tradição judaico cristã só é verdadeira enquanto nos países ocidentais - Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos. Jeanine Añez consegue ser, no máximo, uma mexicana pálida empapuçada de maquiagem; Bolsonaro e seu séquito - Bispo Macedo, Malafaia, Dom Orani - são apenas jumentos que podem ser descartados tão logo percam a utilidade. E por não serem brancos, por não serem ocidentais de verdade, são outras espécies de humanos, um degrau abaixo na hierarquia fascista do mundo.
Falta pouco para esse "daqui a alguns anos" ser presente, um tempo em que as pessoas, tocadas pela questão ambiental e buscando saídas saudáveis para suas frustrações - em especial a de serem losers numa sociedade pretensamente de winners  -, que não via massacres de seus colegas e compatriotas estadunidenses, se dediquem a safáris humanos. Primeiro, um presidente estadunidense que retome a tradição europeia de se chocar com violações gritantes dos direitos humanos dentro do seu território, e forçar sua externalização. Como foi feito com trabalho escravo - legal na África até 1960 -, como é feito com pesquisas científicas usando cobaias humanas, proibidas conforme o código de ética dos países centrais, mas realizadas tranquilamente no Brasil e outros países periféricos; como é feito com o tráfico de órgãos (retratado no filme "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears). O fim dos safáris de "mexicanos" no Texas parece exigir antes algum lugar onde eles possam acontecer sem problemas - Brasil, Bolívia, Cambodja, Uganda, Moçambique, África do Sul... O Rio de janeiro, por exemplo, mostra um grande potencial para esse tipo de "turismo de aventura": suas favelas, seus morros já tem todo o apelo de anos de divulgação internacional; [bailes funks na periferia de São Paulo talvez possam até despontar antes, além de ter a vantagem de poder matar vários gastando poucas balas, e ainda ser elogiado pelo governador, quem sabe condecorado]. O problema, por ora, é garantir a segurança aos turistas, porque há uma parte da criminalidade que ainda não coadunou o suficiente com o poder na divisão do domínio do território e suas populações. Mas isso é algo que tem se buscado uma solução, via governos comprometidos com milícias, milicianos, traficantes de drogas e paramiliatres - além, é claro, dos comprometidos com lavadores de dinheiro de toda ordem.
Enquanto não se põe ordem nas áreas propícias para safári humano, o que resta é acompanhar à distância, estilo reality shows, a câmera seguindo qualquer policial fascista transformado em um Capitão Nascimento - realizando o fetiche de parte das elites brasileiras -, estimulado por apresentadores de tevê a dar esculacho em um zé ninguém, desarmado e desprotegido, por ser pobre preto e periférico - até o momento da consagração, o assassinato de estado de alguém cuja vida não vale. Nesse ápice, nós, que não temos Hitler, veremos um de nossos líderes sair do helicóptero a comemorar, dando soco no ar como Pelé. Em casa ou acelerando seus potentes carros, os cidadãos de bem comemoram.


17 de novembro de 2019 [com complementos e título (mesmo que péssimo) dia 02 de dezembro]

ps: ainda pretendo escrever um texto sobre outro aspecto levantado pelo filme.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Carne farta para usos quaisquer [Diálogos com o Teatro]

Como assinalou a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia de Teatro, trezentas apresentações de uma peça como Carne - patriarcado e capitalismo, em um país como o Brasil, não é nada desprezível. Esse Brasil a que me refiro não é o Brasil de Margaridas, Marielles e Renatas Peróns, forjado na luta e na inclusão, mas o Brasil que ruma para o fascismo, na senda aberta por Serra, PSDB, Globo e grande mídia, em 2010, aprofundada com o golpe de Estado de 2016; Brasil em que uma tevê pública apresenta como legítima a falácia de "não há cultura do estupro" (antes dois ou três homens poucos controlados tentados por mulheres que pediram para ser estupradas, se forem bonitas, claro), como ficou claro no Roda Viva com Manuela D'Ávila, ao dar voz (e direito de interrupção da entrevistada por não concordar com ele) a alguém como o coordenador de campanha de Bolsonaro, o latifundiário Frederico D'Avila, ali presente para apresentar as propostas de seu candidato (que com indiscutível hombridade foge de toda sabatinada e situação em que ele não possa se apresentar como poderoso dono da verdade); Brasil em que a própria Kiwi já teve uma peça interrompida (em Curitiba, coincidentemente) aos gritos de uma espectadora que havia pagado para "ver teatro e não ouvir sobre política" [http://bit.ly/2KpCcS7] (episódio que as atrizes - Fernanda divide o palco com Maria Dressler - fazem menção durante Carne); Brasil de uma sociedade rota, de uma sociabilidade esgarçada, levada ao limite por uma elite e seus patos, inconformados em verem diminuir seus privilégios.
O mérito das trezentas apresentações, para além da insistência do grupo, está, sem dúvida, na qualidade do texto e da montagem. É uma peça que mantem do início ao fim um crítico discurso feminista radical, sem cair em simplismos de certos ativismos feministas (que costumo chamar de "acadêmico" [http://bit.ly/cG180114], ironizado na peça), de essencializar um pretenso feminino (ideal?), de fazer uma identificação entre machismo e homem, homem e machismo; e apresentar a mulher como vítima exclusiva e em uma condição que beira a minoridade. Mais que isso, Carne tem um recorte consideravelmente bem delimitado: mulheres em uma sociedade de classes de forte herança escravocrata, e um legado milenar de machismo e patriarcado - se os homens também são vítimas do machismo, não é essa a questão que o texto aborda, nem deslegitima; e ainda  que pincelem violências contra mulheres alhures, é só para mostrar que o Brasil não é o cu do mundo nessa questão, só mais um triste exemplo no globo. Inclusive é com a foto do gabinete de Benjamin Netanyahu, manipulada por jornais religiosos, que Carne vocaliza sem meias palavras e sem qualquer complemento o que a estrutura social baseada no patriarcado identifica como problema: as mulheres. "O problema é as mulheres". O dado é apresentado como uma faticidade que não precisa de análise ou crítica, tal qual vemos em diversos discursos - o deslocamento do contexto dessa frase é o suficiente para fazer emergir seu ridículo, sem necessidade de comentários. Veio à minha memória Flora Tristan, que no século XIX questionava como certos homens lidavam com essa humilhação indelével, de terem nascido de um ser que julgavam tão inferior, a mulher.
Ao trazer juntos o recorte identitário (identitários, melhor dizer, uma vez que fala também do racismo no Brasil) e o de classe é que, ao meu ver, dá ao texto de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas toda sua força problematizadora. Contextualizar as divisões de classe é impedir qualquer grande identidade feminina, feminista, que supere todas as divisões em nome de um ente abstrato idealizado. A cena que trata das patroas na sua relação com suas domésticas - paraguaias ou terroristas que exigem direitos [http://bit.ly/2tG7gWw] - é cristalina ao mostrar que a exploração da mulher não é privilégio de homens, e mais que isso, que essa exploração (como muitas das que homens impingem às mulheres) é apresentada como relação de trabalho - a mesma que a patroa terá com seus clientes em seu escritório em área nobre -, edulcorada com o discurso de uma parceria entre trabalhadoras (tipo motorista-parceiro), uma que sabe e comanda, outra que é pouco mais que um burro de carga, uma criança meio idiota, e que precisa ser conduzida - e que crescerá com isso, para seu próprio bem! Crescerá imersa em desejos de bens como os da patroa, se tornando presa fácil para produtos populares de baixa qualidade e longas prestações a juros elevados - que enriquecerão, ao fim, a patroa e seu grupo. Me fez lembrar história de uma amiga, que tretou em um grupo de e-mail de feministas, no qual feministas brancas, ricas e descoladas da zona oeste pediam (exigiam?) faxina a valores pornográficos a feministas negras, pobres, da zona sul - tudo em nome da "sororidade", sem exploração, porque mulher nunca vai explorar outra mulher...
Por ser uma peça que se propõe provocativa e problematizadora, é óbvio que ela não pretende adesão irrestrita do público a tudo ali apresentado. Vários pontos me fizeram pensar, não sei se concordo, se não seria talvez um pouco diferente, me fizeram repensar alguns conceitos que tenho - sem a obrigação de mudá-los, porém com a necessidade de revisá-los à luz desses novos argumentos. São pontos que vários ângulos são válidos, e eu seria no mínimo contraproducente se ficasse de picuinha. Contudo, contesto dois momentos da peça. 
O primeiro destaque é antes uma questão minha, visto que se trata de uma frase que aparece no fim da peça, sem destaque. Talvez a ideia fosse só ser uma frase provocativa; ela me parece, porém, perigosa - para o próprio movimento feminista e para todos os que têm interesse em uma sociedade igualitária e fraterna. Tal frase é um clichê que já ouvi de várias feministas acadêmicas: "O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias".
São duas sentenças incongruentes, tratam de questões muito diferentes - a não ser que se queira dizer que o feminismo seja uma espécie de machismo ao contrário, e não um questionamento radical das estruturas que garantem dominação de certo tipo de pessoas sobre outros. Que o machismo mata todos os dias, mata mulheres, homens, crianças, trans, isso não há o que questionar. Já a frase sobre o feminismo pode (e deve) ser contestada - Valerie Solanas só não pode ser usada como contraexemplo porque era ruim de mira. Certos grupos mais radicais tem um aberto discurso transfóbico e misândrico, legitimador de muitas violências. Assim, a frase acaba por expressar, ao meu ver, um ideal moderno-iluminista-cristão de pureza e unidade que não encontra respaldo na realidade. São diversos os feminismos - nas suas pautas e nas suas estratégias - e há em meio a esses feminismos alguns com posturas indefensáveis dentro da ótica dos direitos humanos e de um mundo sem discriminações de qualquer espécie - afinal, são movimentos feito por pessoas e não por santos da santa igreja. Negar essa realidade é abrir um caminho para a instrumentalização de bandeiras legítimas por grupos com interesses bastante suspeitos perante tais bandeiras.
O outro destaque é quando as atrizes narram uma série de notícias de jornal com violências de homens contra mulheres - via de regra, parceiros ou ex-parceiros. Aqui, me parece uma falta de calibragem no discurso. Os agressores expostos puderam responder em liberdade às acusações, estão foragidos há décadas, tiveram morosos julgamentos - aparentemente sem fim. Neste Brasil de ditadura judiciária, onde o arbítrio prevalece sobre os direitos das pessoas, é preciso ter cuidado para que a denúncia da impunidade não se confunda com a defesa de medidas de exceção - responder em liberdade é uma garantia individual que merece ser respeitada, a questão está no fato de todo o trâmite do julgamento levar uma década, e ainda deixar oportunidade para o criminoso fugir. Há necessidade de uma justiça célere e justa, para inibir outras violências do tipo - mas isso não pode ser feito ao atropelo do próprio direito, ou logo teremos Dallagnol e Moro nos aplaudindo.
Enfim, são dois pontos menores, que em nada diminuem o espetáculo, o qual, para além do humor abordar de um modo divertido questões delicadas e espinhosas, antes centrando em problematizá-las que a defini-las precisamente, consegue trazer o público para dentro dos diálogos - é preciso muitas vezes se controlar para não querer conversar com alguma das atrizes em certas cenas, "verdade, já tive experiência parecida!" -, que, junto com ótima apresentação multimídia e musical, faz com que não percebamos o tempo passar. 
Como crítica radical da nossa sociedade e da nossa sociabilidade, como desvelamento de comportamentos naturalizados, como denúncia de situações inaceitáveis que aceitamos por comodismo, como problematização desse próprio desvelamento e denúncias - e da própria peça -, Carne não pretende produzir um discurso de verdade, e sim anseia destruir pretensas verdades, por em xeque preconceitos (mesmo os "do bem"), deixando a cada um que veja o mundo que o rodeia por conta própria e compare com o discurso ali apresentado - não vai dar pra seguir enxergando ele tal qual antes, e ainda que ache que "não é bem assim", vai ser obritado a dar alguma razão a Carne. Uma peça necessária - e talvez de difícil compreensão, dado o grau de indigência intelectual que vivenciamos hoje. Ainda assim, necessária. Merece outras trezentas e mais trezentas apresentações.

28 de junho de 2018.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Para que serve a arte? [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em 2005 assisti ao filme Elefant, de Gus Van Sant, inspirado na chacina de Columbine (que por ser no estrangeiro ganha o nome de massacre). Um filme sobre a banalização das violências que sofremos e cometemos todos os dias - a história não é de dois adolescentes perturbados, é de adolescentes normais numa sociedade, essa sim, perturbada [bit.ly/cG050302]. Até então, bullying não era um termo corrente na sociedade, nem vulgarizado pela imprensa. Foi com susto quando me vi na pele dos personagens humilhados pelos colegas, que decidem se vingar a tiros de tudo e todos: tirando pela solução, era um retrato de muito do que passei na infância e adolescência - que eu abstraía tocando Beethoven ao piano.
Mais de dez anos depois, em 2016, assisto à dança Vértigo, das bolivianas Camila Bilbao e Camila Urioste [bit.ly/Cg160804]. Uma poética feminista, que para além do feminismo cutucou minha forma habitual de pensar: a crítica sempre pronta para o outro e ausente quanto a meus próprios hábitos (e generalizo esse hábito à esquerda brasileira em suas disputas fratricidas, especialista em autocrítica alheia). Alguns meses antes, assistindo a outra dança na mesma Galeria Olido, Percursos Transitórios, da Zélia Monteiro, me dei conta de tudo que eu trazia por resolver dentro de mim, quanto às perdas recentes e aos caminhos que a vida me exigia decidir [bit.ly/cG160623].
Entre o filme e as danças, em 2010, sei lá por que, a exposição do Helio Oiticica, Museu é o mundo, no Itaú Cultural, me trouxe uma epifania: foi quando tomei convicção que precisava mudar de vida, e isso começava por morar em São Paulo. Já morador da capital paulistana, sempre zanzando (ou flanando, para usar um termo chique) pelo centro, a exposição Espaço Imantado, da Lygia Pape, na Estação Pinacoteca, em especial sua obra Tteia nº 1, me abriu outra forma de perceber a cidade.
Por falar em epifania, um professor do curso de iluminação contou da que teve assistindo à peça O livro de Jó, do Teatro da Vertigem: até então ele se via confortável na sua bem paga carreira publicitária e pouco interesse tinha por teatro, foi ver a peça arrastado pela então namorada; depois dessa experiência, abandonou a carreira segura e preferiu se dedicar à iluminação cênica.
Não sei se é possível, no século XXI, definir com precisão e sem polêmica o que é arte e para que serve. Por mais que não seja o caso de achar tudo válido, uma definição única e fechada tampouco vale. Ainda assim me arrisco a dizer que uma das principais funções da arte - e aquilo que faz um grande artista - é nos desestabilizar. Uma boa obra de arte nos tira da nossa zona de conforto - não raro, nos joga na cara que nossa "zona de conforto" é antes "zona de comodismo", que de confortável nada tem. E estão enganados os leitores e as leitoras que adoram divisões simplórias do mundo, em achar que isso tem a ver com esquerda e direita: se o esquerdista Saramago me deixou catatônico uma semana com seu Ensaio sobre a cegueira; o conservador Borges me largou em um cipoal que até hoje me pergunto como sair com seu conto "O outro".
Provocar, ensinar a questionar (um ensino que nada tem de pedagogismo), oferecer formas novas de ver a nós próprios e de perceber o mundo que nos rodeia: a boa arte - ou a que busca essa excelência - tem em si  esse gérmen da subversão - na literatura, nas artes visuais, nas artes do corpo, na música, na arte urbana. A arte, se não corrompida pelo poder (econômico e político), é capaz de corroer o poder. 
Um graffiti na Avenida 23 de Maio lembrando dos assassinatos do nosso Estado que se finge de Direito, Amarildo e outros, grita aquilo que Globo e grande imprensa tentam calar; um pixo numa casa nos lembra que a cidade real nada tem da harmonia que políticos fascistas tentam nos impôr; uma peça pode fazer uma pessoa mudar de vida; um filme (e não uma peça publicitária de 1h30, feita em Hollywood e que passa na televisão) é capaz de fazer com que alguém perceba melhor seu entorno; um concerto aguça a audição para além da música; uma escultura aprimora a visão do quotidiano; uma dança que lembra das nossas dores...
É por isso que Dória Jr (o grileiro de terras gourmet) e André Sturm, respectivamente prefeito e secretário de cultura da cidade de São Paulo, fazem, desde que assumiram a prefeitura, uma cruzada contra toda forma de manifestação artística e cultural independente - ação reforçada pelo governador Alckmin (o bom moço cristão que estimula assassinatos extra-judiciais dos seus subordinados). Começou com a caça ao pixo e ao graffiti, por não serem "arte de verdade"; avançou sobre artistas de rua, que vendiam seu artesanato - que por estarem na rua não podem ser "artistas de verdade"; se estendeu aos artistas, músicos, dançarinos e atores, que até podem fazer "arte de verdade", mas por não serem úteis à sociedade e viverem "às custas do Estado", não merecem respeito nem financiamento; e agora avança sobre a população toda, ao acabar com o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que traziam para o contato artístico crianças de 5 a 14 anos. Afinal, lugar de criança não é tendo aula de artes, e sim aprendendo alguma profissão subalterna (engraxate? telefonista? segurança?), quem sabe pedindo comida no Habbibs, ou cometendo algum ilícito até ser morto pelo Estado que nega a ele qualquer oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. 
Sturm foi claro no seu não-dito: o Estado só deveria reconhecer como detentor de direitos (em último caso, o direito à vida, pois sem dinheiro não se vive na nossa sociedade) quem é útil e subserviente ao poder. E ainda chama de fascista quem o critica - e ele sabe que pode falar isso sem preocupação, porque poucos assistiram a uma montagem de Terror e miséria no III Reich, de Brecht, ou assistiram ao Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, leram O Tambor, do Günter Grass, ou mesmo 1984, do George Orwell, para se dar conta de quem é o fascista na história. 
Os objetivos de Sturm na secretaria de cultura parecem ser dois: um segue a lógica da rede Globo: não permitir qualquer centelha crítica no "populacho"; o outro, segue a lógica de seu chefe, a do gestor do PSDB: o Estado só deve manter programas públicos que dêem lucro: se o PIÁ não dá lucro, não tem porque o Estado mantê-lo - já se o Cine Belas Artes, de sua propriedade, com entrada a R$ 40, não dá lucro, aí cabe ao Estado manter, porque, afinal, ele é branco, fez FGV, tem bons contatos, e o cinema atende a pessoas como FHC, e não Zé Ninguéns sem qualquer oportunidade de cultura e lazer [nao.usem.xyz/aru5].
A Globo, porta-voz da nossa elite ignara e que ajudou a eleger o lobbysta Doria Jr, tem o recorrente discurso de que "a arte afasta os jovens das drogas". A questão é que, para essa elite, só é aceito como arte aquilo que age como droga: se entorpece e impede de pensar. Se emburrece, embrutece, desumaniza, então é útil, então é arte, arte verdadeira, tem direito até a R$ 700 mil reais do governo brasileiro - via Lei Rouanet - para realizar sua arte em Miami. Nada de Picasso, Vik Muniz, Os Gêmos, Lima Barreto, Ferréz, Borges, Racionais MC's, Chico Buarque, Dudamel, Pina Bausch, o que o Brasil precisa, segundo eles, é de mais Romero Britto, mais Bia Doria, mais Paulo Coelho, mais sertanejo universitário, mais explosões hollywoodianas, mais novela, mais Faustão e suas dançarinas. Mais ignorância publicitária enfeitada com elementos artísticos: vende milhões, rende milhões, não faz pensar e não incomoda o poder - é útil. É a arte nos tempos do finanfascismo.

24 de março de 2017
PS: estou esperando a hora que Alckmin ou Doria Jr soltar um "quem quer arte, que vá para Paris". Sorte deles que nossa grande imprensa é uma grande agência de publicidade tucana.


Esperando a hora que começarem a mandar queimar livros e obras de arte degeneradas e que atentam contra a moral e os bons costumes, como as de Lygia Pape - expertise eles já tem, com a combustão de favelas e museus...

Como o secretário de cultura trata os artistas, afim à lógica PSDB-Globo.

sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.


sexta-feira, 13 de março de 2015

Stifters Dinge em uma leitura kafkiana [Diálogos com o teatro]

"Uma composição para cinco pianos sem pianistas, uma peça sem atores, uma performance sem performers" - eis a descrição do espetáculo Stifters Dinge, de Heiner Goebbels e do Theatre Vidy-Lausanne, apresentado na segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Um espetáculo sem atores - no máximo dois contra-regras - em uma mostra de teatro não poderia deixar de causar algum estranhamento; porém há algo no que é apresentado que nos soa familiar, natural - e não deveria ser.
A obra de Goebbels é inspirada na do escritor austríaco do século XIX, Adalbert Stifter (daí o título, "Coisas de Stifter"), o qual reconheço desconhecer - daí que minha leitura possa ficar seriamente prejudicada. 
Ao fundo, os cinco pianos, com suas entranhas de cordas e martelos à mostra, contracenam com árvores secas e outros elementos dos quais se extraem sons para acompanhá-los na apresentação. No meio, uma grande chaminé. Esse cenário me remete a Metrópolis, filme de 1927 de Fritz Lang - a fábrica engolindo pessoas com suas chaminés soltando fumaça. A diferença está que não há pessoas neste caso - a máquina libertando o homem ou suprimindo-o? (A aridez do cenário me faz acreditar na segunda opção). Entre os pianos e o público, três retângulos no chão. Ao lado desses retângulos, caixas de sons e outros "instrumentos musicais", como dois grandes tubos de pvc. À direita de cada retângulo, uma grande gaiola com um recipiente plástico cheio d'água.
A figura humana não está totalmente ausente: dois contra-regras aparecem para auxiliar a máquina, no início da apresentação - daí me vir a lembrança de Na colônia penal, de Franz Kafka. O homem a serviço da máquina, bem adestrado para o bom funcionamento da engrenagem. Primeiro eles jogam um pó sobre os retângulos pretos, tornando-os brancos. A seguir, abrem a água para cada um dos retângulos. Passado um tempo, recolhem as mangueiras e a cena fica toda ela por conta do cenário-máquina. 
O que presenciamos, a partir de então, é a demonstração daquela estranha engenhoca e sua música, acompanhada de um trabalho de luz complexo e discreto, marcante sem ser espetacular: basicamente focos nos diversos "instrumentos" espalhados pelo palco, projetores sobre nos retângulos, auxiliados por ribaltas rente a cada um, e um projetor para os pianos do fundo. O clima é sombrio, tenso. Sinto como se estivesse assistindo à demonstração da máquina kafkiana de Na colônia penal, porém sem o condenado - ou seríamos nós os condenados, apenas sem perceber que temos nossa pena sendo marcada no fundo de nosso corpo enquanto comemos nossa ração diária?
A ausência humana é interrompida pela projeção da imagem de um quadro que retrata algumas árvores e o céu - que se modifica, perde e ganha contornos e realidade conforme são alteradas as cores, contraste e saturação -, acompanhada de um longo texto em off - o qual, acreditei eu ser de Adalbert Stifter. Uma meia presença, portanto, diante de um movimento estático. Contradições que não nos perturbam. A seguir, uma entrevista com um Levi-Strauss pessimista e desesperançoso. Me questiono o quanto um estruturalista assentir a falta de perspectivas para a humanidade não corrobora Kafka: "há esperanças, mas não para nós". Em dado momento, o antropólogo relembra de uma brincadeira juvenil, de sair caminhando em linha reta até cansar, na esperança de achar algo esquecido pela civilização nas margens de Paris - esperança que, velho, ele recusa até para os rincões do mundo. Fachos de luz passam a percorrer os retângulos, como scanners, como a enfatizar Levi-Strauss: nada passa despercebido pelas máquinas da civilização tecno-industrial. 
A música volta a ser executada - o show não pode parar, a música não pode parar, o trabalho não pode parar. O ritmo é frenético, há coreografia para os martelos dos pianos, fumaça é solta próxima à base da chaminé. Levo um tempo até notar que os pianos e todo o cenário meio Fritz Lang avançam por sobre os retângulos, em direção ao público - seria a máquina kafkiana colapsando? Não era o caso. A máquina percorre os retângulos, pára diante do público, como a encarar sua próxima vítima, e ao retroceder restam as águas borbulhando. Me sugere o inferno de Dante, mais ainda o Hades - seria esse o caminho que a máquina reserva aos homens?
O espetáculo acaba. Aplaudimos o homem por trás da máquina, mas é a máquina que avança para agradecer. Rimos com a piada, não estranhamos a ausência humana, e descemos para ver de perto a engenhoca que parece saído de um conto de Kafka para nosso deslumbramento ingênuo.

São Paulo, 13 de março de 2015

domingo, 9 de novembro de 2014

De utopias e memórias

Ao fim da fala da atriz que incorpora Heleny Guariba, morta pela ditadura civil-militar brasileira, o diretor convida os espectadores para um vinho fora da caixa preta do Espaço Sobrevento, no Belenzinho, zona leste de São Paulo. É a Cantata para um bastidor de utopias, adaptação da peça Mariana Pineda, de Federico Garcia Lorca, feita pela Cia do Tijolo, sob direção de Rogério Tarifa e Rodrigo Mercadante.
O intervalo é apenas uma meia pausa na ficção da peça que mistura a obra de Lorca, a guerra civil espanhola e a ditadura civil-militar brasileira: Federico Garcia Lorca seguirá incorporado por um dos atores, mas a atenção principal estará em alguma pessoa comum sentada à mesa - um qualquer como qualquer um ali, não fosse sua história. De peito aberto e cara à tapa, essa pessoa relatará um pouco da sua vivência nos porões da civilização brasileira - sempre fora da vista, mas não distantes o bastante para que não sejam ouvidos os gritos na Casa Grande -, o inferno de quem desafiou a ditadura - ou nem isso, apenas era amigo de quem contestava a "ordem". Um relato que não contará novidades ou detalhes desconhecidos: sua principal virtude, talvez, será a de deixar explícito que quem sofreu a violência do Estado não é alguma figura etérea de fotos em preto e branco dos livros de história ou que aparece na televisão percorrendo os corredores do poder - pelo governo e pela oposição -, que quem sofreu essa violência diretamente no corpo é alguém de carne e osso, uma pessoa comum, como os que assistem ao espetáculo. A quem resta algo de humanidade, se verá impelido a alguma reflexão - infelizmente não são todos que ainda possuem esse mínimo de sensibilidade para enxergar no Outro sua própria imagem.
As pessoas se levantam e seguem o breve cortejo até a entrada do espaço, ainda sem saber que o intervalo será tão ou mais pesado que a peça. Ao meu lado, um casal de idosos - setenta anos, talvez mais - se demora. Tardam a se levantar, e uma vez em pé se abraçam enquanto se esforçam para interromper as lágrimas que verteram abundantes durante a fala da atriz. Não sei quem são, não darão seu depoimento no intervalo, ao qual assistirão anônimos como os demais espectadores - mas as lágrimas me fazem imaginar que vejo ali sobreviventes que se não sofreram no corpo, sofreram na alma com as torturas dos militares. 
A quem acredita que a ditadura civil-militar é assunto encerrado, falta matar os sobreviventes e aqueles que ouviram suas histórias.

São Paulo, 09 de novembro de 2014.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Arte na rua num início de noite

Início da noite, caminho pela Paulista. Pessoas nas calçadas, carros na rua - muitas, muitos. Reparo em dois edifícios sendo terminados, erguidos na imponência de suas altas paredes de vidro, vazias de histórias e de significados - que não a marca da força grana que ergue e destrói coisas belas. Eis São Paulo, na poesia melancólica de suas ruínas, soterradas por quem tem mais. Passo por encoletados que pedem um minuto da atenção, oferecimentos de ingressos para teatro, santinhos de políticos e conselhos espirituais, por pedintes, vendedores de artesanatos e de milho verde, por artistas de rua diversos. Três deles tocam quase na esquina com a Brigadeiro Luiz Antônio. Bateria, teclado e violino. Tocam algo meio trilha sonora de filme, quase um Kenny G (sim, foi um juízo de valor) sem saxofone, menos grudento e mais melancólico. Poucas pessoas param para ouvi-los - três, para ser mais exato. Um deles, mais distanciado, tem no rosto as marcas da força da gravidade, de uma vida sem cosméticos. Traz entre os dedos um cigarro aceso, quase no final. Dedos grossos apontam uma vida de adversidade. Está sentado sobre sua carroça de recolher material reciclável, observa a banda com o olhar ausente, concentrado e distraído ao mesmo tempo, a música a pô-lo em algum outro registro de tempo - ou de espaço. Eu sigo a passos rápidos. Atravesso a rua.

São Paulo, 25 de setembro de 2014.