sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Discussão britânica

Não sou “O cara pontual”, mas primo pela pontualidade. Eu iria dizer que sempre fui assim, porém não sei por que cargas d'água com minha primeira namorada eu era o primor do atraso. Não teve um encontro ao qual cheguei na hora. Freud deve explicar. Ou mesmo ela, que é formada em psicologia. Nos últimos tempos ando deliberadamente um pouco menos rígido – dizem que até na Alemanha se tolera dez minutos de atraso –, porém sigo com a opinião de que pontualidade é uma questão de educação e respeito para com o outro.

Faço esse preâmbulo todo porque o Brasil não costumava ser um país famoso por sua pontualidade, como a Inglaterra ou a Alemanha. Tanto é que o ser menos rígido que comentei acima foi justamente para ser um pouco menos folclórico num país onde não há dez minutos de tolerância, mas meia hora de atraso regulamentar, pelo menos. Salvo cinema e um que outro evento, chegar na hora é pedir para ficar esperando com cara de tacho. E mesmo no cinema, que aparentemente começa na hora: é um festival de propagandas e trailers antes do filme, que se pode dizer que há os tais dos dez minutos, um pouco mais.

Cheguei a pensar que as coisas começavam a mudar, e o Brasil caminhava para ser uma nova Inglaterra no quesito pontualidade. Ao menos bem que poderia ser assim. Aconteceu esta semana, quando eu fazia o (longo) trajeto casa de Campinas – casa de Pato Branco. No meio do caminho tem Ponta Grossa, tem Ponta Grossa no meio do caminho. Chego à cidade de Vila Velha às cinco da manhã, pego minha passagem para as seis. Não convém dormir, então puxo um livro para ajudar a passar o tempo. Tenho um do Rubem Braga e um do Anthony Giddens à mão. Opto pelo segundo. Está interessante, fala de sexo. Cuido da hora e presto atenção para ver se o meu ônibus não chega. Dez para as seis, avisam que está saindo o ônibus para São Paulo. Não se trata do meu, que vem de Sampa. Termino o capítulo, são seis horas, nada do ônibus chegar. Vejo que o sol está nascendo e resolvo ir até a plataforma ver o espetáculo. Ao chegar à plataforma qual não é minha surpresa em ver o espetáculo do meu ônibus saindo!

Pergunto ao funcionário da empresa – que se auto-denomina princesa, mas seria mais sincera se se chamasse Tristeza dos Campos – se o ônibus está indo para a garagem (como sempre faz) e vai voltar depois. Confirma que está indo para a garagem, só que de lá ele segue viagem. Reclamo que não avisaram que o ônibus partia, e ele responde que eu devia ter prestado atenção à hora. Aqui acontece um diálogo que eu nunca imaginava que aconteceria em português, a não ser que fosse dublagem. Reclamo que no meu relógio são seis horas. Ele argumenta que já passou das seis. Digo que na passagem está que o horário do ônibus é seis e dois, ao que ele contra-argumenta que no relógio do computador já são seis e quatro. Faltou o arremate: ele dizer que o ônibus havia esperado um minuto além do seu horário, e que se eu me atrasara a culpa era minha, que não reclamasse dele (que me vendera a passagem uma hora antes) ou da empresa, que apenas cumpria britanicamente seu horário.

Não houve tal arremate e eu também não quis prolongar a discussão sobre a pontualidade da empresa, questionar porque tal pontualidade não era seguida sempre, já que quando faço o caminho de volta o ônibus é previsto para chegar às 23h10min em Ponta Grossa, mas chega sempre com mais de dez minutos de atraso, sendo que o ônibus que parte para Campinas sai às 23h15, no máximo cinco minutos além do previsto. Eram seis e cinco já, eu chegara um minuto atrasado e não tinha razão de reclamar. Ou mesmo que tivesse, eu queria chegar logo em casa. Melhor era pegar um taxi e correr atrás do ônibus. Já devidamente instalado neste para a última parte do trajeto, me perguntei se o Brasil não estaria começando a seguir o padrão britânico de pontualidade, e eu que não me dera conta. Se assim fosse, eu deveria ser o último a reclamar da mudança. Ao fim da viagem, faltou compreender como entra nesse padrão os quarenta e três minutos de atraso que com que cheguei ao meu destino.


Pato Branco, 26 de dezembro de 2008



sábado, 13 de dezembro de 2008

Humor refletido

Assisto a alguns números do grupo Barracão Teatro, apresentados em comemoração pelos seus dez anos. Não sei se deveria chamá-lo de campineiro, visto a rixa (o racha) que há entre Barão Geraldo, o distrito onde fica a Unicamp e o referido grupo, e Campinas. Racha que se acentua, até onde me consta, no teatro. Ontem assisti a “Encruzilhados entre a barbárie e o sonho”, recomendação de uma amiga que parece ter sacado meu gosto e anda acertando em cheio nas suas indicações – coisa não muito simples, para o chato que sou. Antes dessa peça, tinha me recomendado, dentre outros, o livro A arte de provocar efeito sem causa, do paulistano Lourenço Mutarelli, o qual devorei (e quase fui devorado) em um dia.

Pois essa amiga tinha dito que a peça era minha cara, que eu iria gostar, e que não era palhaço (as outras quatro apresentações do grupo nessa comemoração são de palhaço). Não fosse a indicação dela e eu não teria ido assistir – mais por conta da distância e do rodopiar do ônibus até lá. Começa a peça com um ator imitando um desses vendedores ambulantes que formam rodinhas nas praças das cidades. O mesmo jeito de falar, erros de português que costumam caracterizar esses pequenos animadores de auditórios de praça pública. Detalhe que notei: ao contrário de caracterizações de tipos semelhantes feitas por alunos do curso de cênicas do IA, não havia ali o tom de estereótipo e de deboche. Era antes uma imitação, que tirava um ar cômico desse tipo de figura, mas deixava que o espectador se desse ao trabalho de identificar e rir, não forçava um riso de maneira grosseira.

Tom cômico. Começa a peça e esse é o tom que ela tem. A Professora da Luz, o animador de auditório de praça pública, um assiste de palco. Um cenário meio circo decadente. A ligação entre este mundo e o divino, o poder da telepatia e a explicação das escolhas das pessoas. Pensei que minha amiga tivesse se equivocado na sua indicação – não que eu não goste de coisas engraçadas, mas ela tinha dito que era uma peça mais séria. Vou rindo, como todo mundo. Não é porque não era o que eu imaginava que vou achar a peça ruim.

Em dado momento, a atriz que fez a Professora da Luz surge em meio à platéia vestida como espectadora qualquer, com a diferença de ter surtado. Será uma mulher que o assistente fará voltar ao seu passado para compreender como as suas escolhas a levaram até lá. A partir desse momento, por mais que tenham feito piadas a rodo, tive dificuldades para rir. Também não vou tentar fazer um resumo do que aconteceu a partir daí, porque, além das cenas, o que veio foi uma avalanche de idéias bastante densas – seja em termos existenciais, seja em termos sociais – jogadas uma atrás da outra. Violência gratuita, solidão, bullying, as recordações de um velho que contra o tempo e contra o nosso tempo insiste em ter e manter sonhos, mesmo já sendo muito velho para isso, conforme frase da personagem.

Mais para o fim da peça, quando minha vontade é antes de chorar do que de rir, noto que não estou tão sozinho. Reparo na platéia. Pouco mais da metade também parece não conseguir rir das piadas. Alguns ainda gargalham como se estivessem vendo Zorra Total. Os dois caras que estão ao meu lado, por sinal. Para mim, aquele riso solto e despreocupado se torna quase ofensivo. Lembro do espetáculo deles que assisti no dia anterior, “Www para freedom”, espetáculo de palhaço. Não consegui rir muito, ao contrário da platéia. Achei que o problema fosse meu mau humor, ou que eu fosse mal amado, sei lá. Afinal, palhaço é para dar risada, por mais que estejam tratando de guerra e que um dos “personagens” (na verdade um personagem invisível com quem o palhaço interage) se mate com um tiro no peito. Não é?

Termina a peça. Foi ótima, mas não teve graça. Tenho quase uma sensação ruim pelas risadas do início. Lembro de uma peça que assisti há tempos, a também excelente “Borboletas de sol de asas magoadas”. É sobre o universo transexual e segue script parecido. Saí de lá me questionando sobre o que pensar dessa leveza toda, desse humor que perde a graça e se torna amargo com o desenrolar da peça, por mais que os atores sigam iguais ao início. Qual o poder de alcance de tal forma de crítica? Quantos dos que assistiram a peça se sentiram tocados, quantos acharam divertidíssima do início ao fim, quantos acharam chata e sem graça, quebra-clima?

Comecei a peça rindo dos trejeitos do Outro, a Professora da Luz, o animador de auditório de praça pública, pessoas que certamente não sou. Terminei calado, incomodado pelo meu próprio reflexo naqueles personagens que eu julgara caricatos e distantes.


Campinas, 13 de dezembro de 2008


quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Televisão e infelicidade

Tenho andado mais tranqüilo nos últimos dias. Já faz um tempo que saiu uma reportagem no jornal que deixo bem guardada para usar – sempre que necessário – como calaboca àqueles que insistem em dizer que sou alguém para baixo, meio depressivo (o meio é por minha conta). Pessoas que geralmente também me têm por pessimista, por mais que não haja nada que comprove tal posição, muito pelo contrário. Me assumo como um realista (ou tentativa de, já que a questão da realidade é algo que dá pano para manga numa discussão filosófica-sociológica), ao que eles respondem que é a resposta típica dos pessimistas. E se digo que sou, no fundo, alguém muito otimista – o que deveras sou, a ponto de ser chamado por muitos de “humanista ingênuo” – preciso presenciar pessoas gargalhando defronte a mim. Gargalham porque provavelmente se atribuem a si o título de otimistas, antes um polianismo de segunda categoria com seu otimismo calcado na sua fé e nada mais, assim como o pessimismo dos pessimistas costuma ser no “sempre foi assim”. Dois belos argumentos que só atestam graus diferentes no caminho para o ressentimento e a preguiça intelectual em buscar qualquer resposta convincente e menos simplista. Enfim, me desvio do rumo que queria tomar nesta crônica, que era um rumo alegre.

Eu falava da reportagem do jornal. Diz ela que “pessoas infelizes vêem mais tv que as felizes”. Pronto! Era a prova cabal que eu precisava para provar que não sou infeliz: não assisto tv. Na verdade, nem tenho tv em casa. Com isso já posso, citando estudos do professor John Robinson, da Universidade de Maryland, dizer que sou alguém feliz. E num passe de lógica que estou com preguiça de explicar em detalhes aqui (na verdade, é preguiça de pensar se a conclusão está de acordo com as premissas), chego à conclusão que pessoas felizes não podem ser pessimistas ou depressivas. Logo, sou uma pessoa alegre, pra cima e otimista. Feliz, em suma.

Esse estudo ajuda também a entender porque eu quase surto quando passo dois meses seguidos confinado em Pato Branco – para alívio dos meus pais, que ainda que saibam que o problema não é com eles, parece que não sossegam o suficiente com somente uma resposta negativa. Pois a culpa está que na casa dos meus pais tem televisão – duas, ainda por cima! É certo que praticamente não assisto tv, mesmo nas férias. E estas férias nem serão férias de verdade, já que preciso estudar e, pior, aprender francês! O que não é de todo mal: o problema é que estudar línguas cansa. Mesmo que eu já tenha uma noção de francês. Já sei, por exemplo, que chuchu em francês é repolho. Torço para quando eu souber como é repolho em francês surja uma francesa – ou alguém de outra nacionalidade, não faço tanta questão – com quem eu possa usar esse conhecimento – ainda que me pareça um tanto brega. Eis aí um otimismo bem ao gosto dos que se declaram otimistas.

Fujo novamente do assunto que me propus tratar aqui. Deve ser a alegria. Alegria não de não ter tv em casa – acho que isso até me rebaixa na escala social, mas pouco me importa –, e sim de estar finalmente em férias, ainda que vá passar as férias estudando.

Fico imaginando o que seria da minha vida não fosse a ciência. Estaria eu até agora procurando uma justificativa para meu otimismo um tanto sui generis. A ciência me salva de grandes preocupações metafísicas, como salvou milhares de crianças hiperativas. Antigamente, quando não se sabia que isso era doença, crianças que sofriam desse mal - que ao invés de serem chamadas de doentes eram chamadas de sarnas -, os pais mandavam elas irem brincar e ficar pulando no quintal de casa (quando casas tinham quintal), enquanto hoje, cientes da doença dos filhos, socam pílulas goela abaixo dos pimpolhos, de modo que eles possam ficar quietinhos, obedientes e bem-comportados em frente à tv. Isso pode acabar por torná-las infelizes, como vimos no estudo de Maryland. Não se trata, contudo, de verdadeiramente um problema: uma pílula a mais entuchada e essas crianças estão felizes como se tivessem ganho na loteria.

Falando em ganhar na loteria, lembrei de outra história que não tem nada a ver com o que queria escrever (já nem sei bem o que queria escrever). Amiga minha, mais nova que eu, me contou semana passada que “ganhou” uma hérnia de disco. Isso é razoavelmente diferente de ganhar na loteria, eu sei. Quer dizer, desconfio, já que não sofro de hérnia de disco nem nunca ganhei na loteria. Lembrei dela porque não se deixou abater pela notícia, ainda que eu desconfie que ela terá dificuldades em voltar a praticar capoeira, conforme pretendia. Estava feliz sei lá porque, e continuou feliz, mesmo com uma hérnia de disco. E olha que ela tem tv em casa! E ela não vai à igreja, e me deve uma visita há mais de um ano, coisas que serviriam para contrabalançar a tv, já que ir à igreja ou visitar os outros seriam coisas de pessoas felizes, segundo a mesma pesquisa.

Essa é uma parte da pesquisa que pode ser utilizada contra mim, pelos otimistas que insistem em ter uma idéia pessimista a meu respeito: a última vez que fui à igreja já faz quase dois anos. Foi nas igrejas históricas de Minas. Tenho cá minhas dúvidas se o “ir à igreja” que deixa as pessoas felizes inclui as visitas guiadas, ou se não estaria antes ligado ao que se chama de missa ou culto ou algo equivalente. Quanto a visitar os outros, é algo que eu faço, ainda que mais comum seja eu fazer visitas a mim mesmo. De qualquer forma, acho que a igreja ou o social são argumentos fracos, já que a reportagem chamava a atenção para a tv, e tv eu não assisto! Em compensação escrevo crônicas bestas (inspiradas em reportagens bestas de pesquisas bestas), sem razão de ser (a não ser serem bestas) e sem um fim a dar. Como esta (ainda por cima cheia de parênteses para se justificar).


Campinas, 11 de dezembro de 2008


sábado, 29 de novembro de 2008

Textos sem pausas

Um amigo ontem me perguntou como era meu processo de criação de texto, se havia rascunho à mão antes (óbvio, rascunho depois?), ou ia direto ao computador. contei que costumo ir direto ao pc, até porque não escrevo uma versão preliminar, apenas penso ela, e o texto sai como em enxurrada. Daí a necessidade de um meio com o qual eu possa dar vazão às palavras da forma mais rápida possível. Penso isto agora: segundo dizem por aí, uma das ferramentas características e mais usadas pela geração que, se não aprendeu sob, se desenvolveu com os editores de texto eletrônicos, é o recorta-cola. Não sei se procede tal senso-comum ou se é discurso apologético a la McLuhan ou Wired, sei que por qualquer arcaísmo, por algum cacoete saudosista, não me afeiçoo desse novo hábito que a tecnologia oferece.
Voltando à conversa. Esse amigo passou a defender o abandono do computador no processo de escrita pois, segundo ele, perdia-se muito do contato com seu texto, que estaria em boa medida em ter a caneta entre os dedos e vê-la sangrar pelas páginas de papel, enquanto as folhas usadas se acumulam vivas ao nosso lado.
Na hora discordei dele, principalmente por conta da necessidade de rapidez na escrita. Mas hoje acordei e se ainda não concordo com ele, tampouco concordo com minha opinião de ontem.
Relembrando do livro por meio do qual conheci o escritor israelense Amos Óz, o excelente Conhecer uma mulher, lembrei que a mulher do protagonista insistia em usar caneta-tinteiro, a qual precisava ser reabastecida a cada dez palavras. Fiquei tentando imaginar como deve ser não só o processo de escrita, mas do próprio pensar quando se tem que obrigatoriamente fazer uma pequena pausa de tempo em tempo. Você, no meio de um insight genial, correndo atrás da idéia antes que ela escape e... pausa para mergulhar a pena na tinta. A depender do meu modo de escrever, o texto acaba aí, ou então perde a vitalidade com que vinha correndo. E aqui eu me pergunto: por que rapidez deveria ser sinônimo de vitalidade? De onde vem essa dificuldade em estabelecer um contato mais tranqüilo, menos afoito com as palavras e as idéias?
Não sei. Sei que enquanto punha essas idéias no papel (não escrevo em casa esta crônica) uma idéia que me pareceu muito boa cruzou na minha frente. Passou rápido e eu, lerdo, não consegui segurá-la a tempo.

Campinas, 29 de novembro de 2008

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Carta para Folha: Educação

Muito bom o artigo de Dagmar Zibas. Apenas complementando: quando ela fala que os professores passaram a ser 'considerados insumos de segunda categoria', vale ressaltar que esse processo começa no Estado e se estende a toda a sociedade. Em uma busca rápida pela internet não é difícil encontrar sites que descrevem o programa de formação continuada do Estado, o Teia do Saber, como um programa de 'reciclagem dos professores da rede pública' (está em uma página do IB-Unicamp ou da Secretaria de Educação do Estado, por exemplo). Não sei se era necessário lembrar: o que se recicla é lixo.

Campinas, 27 de novembro de 2008

domingo, 23 de novembro de 2008

Arte na praça

Fim de semestre é sempre uma correria. Hora em que você tem todos os trabalhos para entregar, e não adianta tentar se antecipar: no fim, você vai acabar fazendo tudo em cima, por mais cedo que tenha começado. Não que seja novidade para mim, graduando de carteirinha que sou: posso dizer que já estou habituado. Fim de semestre também é a época em que costumo ter idéias mirabolantes, seja para contos, seja para jogos, seja para programas na rádio Muda. Idéias e muita vontade de pôr em prática. O duro é que falta tempo. E quando o semestre acaba e o tempo abunda, falta vontade. Vai entender. Outra coisa que sempre me bate em fins de semestre: vontade de jogar computador. Este semestre apaguei os jogos do pc: uma hora jogando equivale a três horas sem estudo: uma de jogo, outra me lamentando por estar jogando quando estou cortando horas de sono para conseguir dar conta de tudo o que tenho por fazer, outra para descansar e recuperar as energias para estudar. Isso quando nessa hora de descanso eu não acabo dormindo e acordando só quatro horas depois. Enfim, sem joguinho tenho pulado etapas e ido direto para o sono, o que não me desagrada, de forma alguma.

Porém, o pior do fim do semestre é que é fim de semestre também para quem estuda no Instituo de Artes. Isso significa que é justo nessa época, em que você não tem tempo para quase nada, que na Unicamp pipocam recitais, coreografias, encenações. Destas, admito, não sou um grande entusiasta. Nada contra o teatro, pelo contrário. Minha birra é com o curso de artes cênicas da Unicamp, mesmo. A montagem de “As rãs”, do Aristófanes é um trauma só não superior ao do professor de latim que disse que eu era um mau exemplo por ir bem na disciplina sem ir às aulas. Bem, pensando agora, se formos ver etimologicamente ele até tem razão: o que ele estava “ensinando” ali não era um saber, um conteúdo, mas disciplina – dessas que quartéis prezam tanto. Voltemos ao IA.

Semana passada, fingindo não ser fim de semestre, resolvi aproveitar os barulhos que aconteciam pela Unicamp. Recital de música barroca, de piano, apresentação de música latina e de jazz. Duas semanas antes, eu já tinha caído sem querer, quando ia para o Bandejão, em uma apresentação de dança, no teatro de Arena da universidade. Meu primeiro comentário aqui é que se a universidade está criando artistas, ela não está criando público. Não só por conta das apresentações serem no fim do semestre (quanto a isso há pouco a fazer, penso), como por serem pouco divulgadas, e por não se cobrar o respeito que uma apresentação exige. Isso é mais evidente nas apresentações de música. Já comentei rapidamente em uma crônica anterior que a música hoje tem a função de barulho: ninguém mais aprecia música. Eu mesmo, admito, escuto muito, mas sou um mau apreciador, apreciando-na geralmente em apresentações ao vivo (o que deve dar uma vez por semana ou menos) e algumas poucas vezes em gravações. Me dei conta dessa sensível e gritante diferente quando, em jantar na casa de um amigo, sugeri que ele deixasse a música rolando. Estudante de filosofia que outrora quisera ser músico, fui fuzilado pelo seu olhar. Sua irmã me explicou: ele abominava que música fosse tocada sem ser apreciada, sem a devida consideração pela obra.

Música hoje é cada vez mais só som ambiente (apesar que com a qualidade do que se toca em rádio...). Casal de amigos que passou as férias na Europa contaram que foram reprimidos em uma praça de Viena, na qual se projetava um concerto, por estarem conversando. Isso que era uma projeção e não um concerto ao vivo! Bem, os cinemas brasileiros são uma mostra do quão longe ainda estamos desse padrão de respeito pelo outro.

O ponto que eu realmente queria tratar aqui, tem a ver com a formação de público, porém está mais relacionado com a divulgação da arte. Assistia eu àquela maravilhosa apresentação de piano (e me irritava com o casal pré-adolescente de 50 anos na minha frente que não paravam de se cutucar e dar risadinhas, pais da pianista, por sinal), quando me perguntei: por que um evento como esse não pode acontecer quotidianamente nas praças do centro da cidade? Sete horas da noite, o centro já desertificando, porque as lojas fecharam e não há mais sentido para ficar nele – ainda mais que as praças de Campinas são pouco convidativas –, um piano em um caminhão-palco, uma apresentação de dança em coreto, um grupo de choro em um palquinho. Por que não? Arte gratuita, de qualidade e não esporádica, dando um pouco de vida, de música a um centro cada vez mais abandonado por todos – poder público e população. Tentar retomar um pouco o significado de cidade, de centro, de público, de aberto a todos, de democrático. Pois o que vemos hoje é um centro destratado pelo poder público, largado pelas classes média e alta, que se trancam em shopping centers; arte de qualidade restrita a teatros impeditivos à maioria da população, seja pelo preço, seja pela localização; e à população o divertimento de segunda categoria disponível na televisão (apenas para constar, a classe média tem opções, mas não se ajuda, preferindo freqüentar Teatro Tim com suas sofríveis peças com atores globais a alguma coisa diferente e de qualidade).

Quixotesco da minha parte querer isso, dirão muitos. E creio que em alguma medida estão corretos: querer um centro vivo (para além do horário comercial) e artístico é mesmo quixotesco, é realmente pouco factível, principalmente porque aqueles que seriam capazes de torná-lo factível são os primeiros a desestimular e boicotar tais iniciativas. Lembro que no início da filosofia discutia muito com um colega de classe sobre popularização da música clássica. Eu defensor dela ser tocada em ônibus, para habituar o ouvido; ele dizendo que isso não era possível, ou só seria depois de um aprendizado bastante dolorido imposto às crianças (como assistir a ensaios de orquestra. O dolorido é por minha conta). Tempos atrás houve a apresentação de uma orquestra em um programa imbecilizante de domingo. O medo dos produtores do programa era que ela fizesse com o que o ibope despencasse, afinal, sabe como é, a massa ignara só quer saber de funk, pagode e sertanejo. O resultado foi que a orquestra foi o ponto alto do ibope daquele programa. Demanda por arte de qualidade há. Cabe ao poder público oferecê-la à população. E eu prefiro ter que pedir silêncio a assistir a uma apresentação sozinho.

Em tempo: sei que caberia ao cidadão reivindicar arte nas praças. Para isso, contudo, a cidadania precisaria ser algo de que toda a população dispusesse, não somente aqueles que podem pagar por ela.


Campinas, 23 de novembro de 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Os fantasmas da cidade

Semana passada, em São Paulo, eu comia macarrão vendido numa kombi na saída da faculdade, em companhia de um colega. A conversa ia e vinha, interrompida alguns momentos para fazer as mastigações recomendadas quando na ingestão de alimentos sólidos. Até aí, tudo normal. De repente, um homem que vinha perambulando se aproximou de mim e falou algo como “Beatles”. Até aí, tudo normal também. Conheço essa história e cada vez mais me convenço de que o mundo deve estar certo e eu, errado. Devo ser realmente parecido com os Beatles, em especial o John Lennon, ainda que uma vez tenham dito que eu lembrava o George Harrison.

Pois bem, ao contrário do que muito provavelmente haviam feito até ali com o homem, não o ignorei, e ele se sentiu à vontade para sentar ao meu lado e tentar puxar papo. Perguntou o meu nome, o nome do colega que estava ao meu lado, e a cada resposta pedia para que eu perguntasse o nome dele, ao que respondia com o feminino do nome dito (ou ao menos do nome por ele ouvido, pois ao Anderson respondeu se chamar Sônia). Comento só porque achei curioso. Me ofereceu o cigarro que trazia nos dedos, falei que não fumava, perguntou porque e expliquei. Tentou alguma conversa mais, mas o papo não rendeu. Se despediu e se levantou. Se aproximou da kombi de macarrão, ao que foi enxotado como um cão vira-lata, e seguiu seu perambular.

Sua figura – talvez melhor seria dizer sua cena? – me lembrou um romance de Sartre. Não lembro agora qual, desconfio que é Os dados estão lançados, mas é desconfiança. No romance, seja ele qual for, os personagens morrem, mas seguem perambulado por aí. Vêem pequenas injustiças quotidianas acontecendo, se indignam, mas quando tentam fazer algo, não conseguem, pois afinal são fantasmas, não são mais pessoas.

Algo parecido pode ser aplicado ao Daniela (afinal, seguindo a lógica dele e sendo eu o escriba desta crônica, seu nome aqui é esse): trata-se de um fantasma, um espectro que perambula pela cidade falando com todos e não recebendo resposta de quase ninguém. Com uma pequena diferença em relação ao romance sartreano: Daniela não está morto. Pelo contrário: está muito vivo, e toda essa sua existência se faz sentir quando é enxotado pelo dono da kombi de macarrão. Talvez também se faça sentir no medo que pode sentir por morar na rua. Quem não lembra, ou melhor, quem ainda se lembra do assassinato em série de mendigos (e não pessoas!) no centro de São Paulo, uns quatro anos atrás? Quem se lembra que a única coisa excepcional naqueles assassinatos era o fato de serem em série e não isolados, um cá, outro lá, um esta semana, outro na semana que vem, como acontece quotidianamente? Esta é uma desconfiança que não tem qualquer direito de ser tida a partir do que presenciei ou conversei com ele.

Voltemos à sua não-existência. Fiquei pensando o que deve ser uma vida assim: ser ignorado como se não fosse ninguém, como se fosse alguém de vidro, um mudo que ainda não se deu conta de que não tem voz. Um personagem do romance de Sartre que não optou por ser assim – como nós, que silenciamos e nada fazemos diante das pequenas injustiças quotidianas –, foi obrigado a sê-lo. O que não deve ser perambular pela cidade em busca de alguém que confirme que eu existo, alguém que não vire a cara quando eu me aproximo, e que se aceita que eu existo, aceita que eu não sou um cachorro (pareceu música brega agora, e eu não resisti à piada)? Qual não deve ser a angústia de ser ignorado e ao mesmo tempo perseguido?

Retomamos a conversa, eu e o Anderson. Pouco depois o Daniela passa voltando de onde vinha. Pára na lixeira, acha três latinhas vazias, nos cumprimenta contente com seu achado. O saudamos. E ele se perde na bruma de pessoas que saem da faculdade. Talvez ele consiga se fazer presente em meio àquelas vozes e risos que agitam a noite. Então pode ser que ganhe outro cigarro, ou um gole de pinga, para parar de encher o saco. Como se se tratasse de um despacho para espantar um mau-espírito.


Campinas, 13 de novembro de 2008

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Conversas entre universitários

Estava difícil bandejar hoje. Não por conta da comida, pesada como sempre, mas que estava até saborosa. O problema é que, sem achar companhia, resolvi enfrentar a referida casa de pasto sozinho. Nenhuma novidade até aí, e há seus pontos positivos em comer solito: acabo me inteirando um pouco do que pensa a pretensa elite intelectual brasileira. Mas há conversas que embrulham o estômago, mais do que salsicha ao molho com salada de berinjela e suco de caju.
Bandejão cheio, sento a esmo em qualquer lugar. Ao meu lado, um rapaz e uma garota conversam. Não consegui identificar de que curso eram, e isso não vem a ter grande importância. Nem sei - ou lembro - do que falavam no início. Alguma conversa banal que não me chamou a atenção. De repente, não mais que de repente, o cara enceta um papo que começou a me aferventar o sangue.
Começou contando a história - que ele deve ter lido em alguma dessas milhares de correntes de e-meio lidas e repassadas por idiotas - de que o prêmio Nobel de medicina do ano passado (ele devia estar pensando no alemão que ganhou este ano), aos quatro anos de idade, com os pais mortos em campos de concentração (ainda que Hausen não me soe muito judeu ou cigano, mas enfim) e abandonado pelos vizinhos que tinham ficado responsáveis pelo seu cuidado, já fazia parte de uma gangue, e só sobreviveu por causa disso. Terminada a história eu esperei o arremate lógico desse tipo de pensamento - que não podemos dizer que prima pelo refinamento, ou mesmo pelo pensamento -, mas ele emendou a história do próprio pai: com sete anos era ele quem cuidava da quintanda do avô. "Meu pai já era micro-empresário com sete anos!". Lindo, pensei, conclua dizendo que só é pobre quem é vagabundo e que qualquer um, desde que trabalhe, ganha um prêmio Nobel, e me deixe comer em paz. Mas não, ele tinha mais a falar. Disse que quando tivesse um filho, aos quatro anos o largaria a 30km de distância de casa e se ele voltasse para casa, ótimo; se morresse, não era forte o bastante para fazer parte da família. Deve ser brincadeira dele, pensei. Pelo mutismo sério da moça, contudo, não devia ser tão brincadeira assim. Tentei me concentrar no meu almoço, contar as trinta e três mastigações; pensar em coisas agradáveis, como meu time beirando a terceira divisão. Mas o cara falava alto, e em breve lá estava sua voz ocupando minha mente novamente, me fazendo ter dificuldades em engoliar a comida. As pessoas, segundo ele, deviam ser criadas na dificuldade, porque se vivem na facilidade, não aprendem nada, não se tornam nada que presta. E citava o Nobel de medicina e o seu pai. Tive vontade me virar e dizer: "percebe-se logo que você sempre bebeu água mineral francesa, ainda que morando no Brasil", mas me contive: tive emoções demais por estes dias, melhor maneirar. Ele seguia com sua verborraria fascista torturante. Se dizia contra o nazismo, que não havia essa de raça pura, mas fazia sentido que se primasse pela sobrevivência dos mais fortes. "O Nobel de medicina fazia parte de uma gangue com quatro anos!". E começou a contar a história dos espartanos - provavelmente lida em outra dessas correntes de emeio, ou na mesma, é mais provável - , que largavam as crianças com sete anos na selva, no frio, nuas e com uma lança, e elas tinham que enfrentar lobos e todos os animais e o frio e o diabo a quatro para voltar para casa (talvez ele não soubesse que a casa do espartanos era Esparta). Cansei do papo e resolvi sentar no lugar vago ao lado.
Ali a conversa melhorou, pero no mucho. À minha direita, novamente um garoto e uma garota conversavam. Banalidades que eu me esforçava em ouvir, para não ser tomado de assalto pelo fascista do outro lado. Daqui a pouco, senta na mesa ao lado um rapaz que sofre de nanismo. Bem, qual o problema, pergunto eu. Nenhum, respondo. Às vezes, nas primeiras vezes, pode até chamar a atenção. E desde a primeira vez faço questão de não reparar, afinal não há nada mesmo em especial para reparar, e ele já deve estar cansado de ser reparado à toa. Os dois ao meu lado reparam. Não era a primeira vez que o viam, como não foi difícil de saber. E gargalham e começam com algumas piadas sobre a altura do rapaz. Tive vontade de perguntar se sentiam muita falta do programa do Ratinho. Desconfio que responderiam que não, que isso era coisa do populacho. Que eles só assistiam programas sérios, como Jornal Nacional e Brasil Urgente. E se acaso acontecia de ligarem a tv no Ratinho quase toda noite, era só para ficar informado do que o zé povinho tem visto.
No outro lado, o fascistóide continuava falando que é na porrada e na dor que se aprende. Bem provável que se dependesse dele o rapaz com nanismo já teria morrido há muito, talvez contribuindo para o bem da ciência, certamente para a assepsia da cidade. Porém deixando mais triste a vida da dupla da direita.
Eu terminara a comida. Ainda restava a sobremesa. Sorte minha que era laranja. Pus ela na mochila e fui em busca de um pouco de ar fresco, arejar as idéias e pensar no que será do mundo quando essa a elite, amanhã, estiver no poder.

Campinas, 31 de outubro de 2008

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Chama tua mãe

Não sei bem quando me veio a iluminação (até agora) esclarecedora. Acredito que foi ao fim da minha primeira graduação, quando me deparei com a indefectível pergunta sobre o futuro. O diploma era uma desculpa a menos para seguir fora do “mercado de trabalho”. Mas achei um álibi para permanecer mais tempo fora, me preparando.
Me preparando para o que? Para o mercado ou para a vida?
Foi aí que me dei conta de maneira mais nítida da distinção entre envelhecer e amadurecer. E desde então minha briga tem sido em nadar contra a maré e fazer com que à passagem do calendário eu amadureça e não me encaminhe para ser um velho (no sentido pejorativo do termo).
Isso não significa – eu não precisava dizer, mas faço questão de ressaltar – que eu vá tentar esconder as marcas que o tempo traz, pelo contrário: quem acabou de me conhecer já nota os cabelos um tanto ralos, e os de longa data, já me comentaram a marcante alteração nos traços. Inclusive tenho notado que são essas marcas que formam a beleza da idade (e da pessoa que as carrega): uma pele mais lisa é bonita em uma moça de dezoito anos, não em uma mulher de trinta, quarenta anos, ainda mais que da pele lisa pode-se imaginar que ela traz consigo uma razoável falta de maturidade e certa inexperiência – ainda que essa conclusão não seja necessária, ao menos quanto às moças de dezoito anos.
Todo esse preâmbulo porque hoje eu, com um quarto de século nas costas, desde 2000 morando fora da casa dos pais, os cabelos ralos e dois dias de barba por fazer, vou atender a alguém que toca a campainha. É uma mulher que munida de um Ford Fox vende travesseiros. Não me interessei. Mas voltei pensando nos meus amigos: boa parte empregado, muitos já casados ou em vias de, nenhum com filhos ainda – mais por terem “boa cabeça” e camisinhas sempre à mão –, todos já ganhando ou entradas, ou rugas, ou dores, ou peso, ou seus primeiros fios de cabelo branco, ou, como eu, perdendo cabelos. Pensei a quantos costuma ocorrer – ou há a possibilidade de acontecer – de, ao atenderem uma vendedora, escutarem: “chama tua mãe e pergunta se ela quer comprar travesseiro”?

Campinas, 30 de setembro de 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

Um futebol de domingo

Era para ser uma pelada de domingo de manhã, nada mais. E dava a impressão de que assim seria. Estávamos em cinco e esperávamos por mais gente, para completar dois times e começar a jogar. Batíamos bola – uma bola de futebol society – enquanto isso. Foi quando chegaram duas pessoas mais, uma delas trazendo uma bola de salão (não por acaso mais apropriada para quando se joga futebol de salão). Trocamos de bola para continuar aquecendo. E quando a bola de salão parou nos meus pés, senti que o que eu tinha ali não era uma bola, mas meus doze, treze anos. A partir desse instante, pela próxima hora, aquele não seria mais um simples jogo de domingo de manhã, mas meus velhos jogos de fim de tarde, de segunda à sexta, quando a chuva não caía bem na hora e tirava o ânimo de subir o morro.
Olhei para o lado, onde estavam o Pilati, o Fido, o Tobias, o Rodolfo, o Odená – que tinha um fusca pintado igual ao do filme Se meu fusca falasse, e, por ser mais velho, se sentia no direito de não jogar no gol –, o Cristiano (que tudo mundo queria pro seu time, já que não se incomodava em jogar de gol), entre outros?
Esperamos um tempo mais, ver se chegava mais alguém. Não chegou. Chamamos algumas pessoas que também procuravam mais gente para jogar. Olhei um tanto receoso: na minha experiência de mais de uma década atrás, gente que vem de fora costuma jogar mais sério, dar mais porrada, reclamar mais. Foi isso que acabou com aquele grupo que por três (ou seriam quatro?) anos se reunia quase religiosamente às 17h30 na quadra do meio do Patão, de segunda à sexta.
Contudo, os tempos são outros, e o grupo é outro também. Não é só uma década que me separa daquele grupo, como uns mil quilômetros de distância, em média. Mas alguma coisa ali me fez me sentir que eu era o mesmo. A bola pesada na quadra de cimento, na qual é bom não cair para não se ralar? Eu na ala esquerda lamentando que não sei rodar e tentando ver se alguém no meu time tinha afinidade ao jeito que eu jogo? De qualquer forma, tratei de jogar como jogava antigamente (e como ainda jogo atualmente): para me divertir, desestressar e não para arrumar briga. Coisa que aprendi com o tempo e não sabia aquele tempo: tratei de ignorar e mesmo fazer piada e rir do colega de jogo que não parava de reclamar: estava lá para brincar e nada mais. E como toda brincadeira, jogava sério o suficiente para marcar gols e descontraído o bastante para não me incomodar em perder ou ganhar. Perdi o jogo, mas saí me achando o melhor em campo, como todo mundo.
Na volta, voltei tentando encontrar a escola onde estudei na pré-escola, a Associação de Pais e Mestre, onde casais mais ou menos na mesma idade que eu se escondiam para subverter os costumes – ou ao menos assim pensavam fazê-lo –; a casa onde morava uma família de negros (isso é marcante em uma cidade onde praticamente todo mundo é branco de ascendência italiana ou alemã), a casa onde tinha um são bernardo, a outra em que um dia eu tinha entrado para ver um tucano; a casa dos padres, quase caindo aos pedaços, e a dos Nezelo, que tinha um carrão antigo, banheirão, com velocímetro em milhas e marcha do lado do volante, e um porão cheio de peles (e pulgas). Eu me pergunta se iria assistir tv ou jogar mega-drive ao voltar para casa. Quem sabe passar na locadora alugar uma fita?
Porém não foi isso que encontrei pelo caminho. Encontrei uma avenida vazia, que pelo silêncio até lembrava o caminho de outrora até minha casa. E foi tudo. Pouco depois de vencer essa avenida, ao me deparar com ruas mais movimentadas, me deparei também com os pequenos desrespeitos quotidianos que preciso engolir diariamente. Eles foram me trazendo de volta para a casa de agora. Quando finalmente abri a porta, senti uma dor nas costas – antigamente eu não me contundia a cada jogo que jogava –, e me vi preocupado com o que fazer para o almoço. Eu voltava a 2008. 1995 ficava perdido em algum canto da minha memória, esperando ser iluminado por uma próxima bola de salão em uma quadra de cimento sob o sol de primavera.

Campinas, 28 de setembro de 2008

domingo, 14 de setembro de 2008

Três classes de cidadãos

"Uma das coisas interessantes do filme é que ele mostra uma França não francesa". Fiz esse comentário à amiga que me acompanhava no cinema, ao terminar de ver o filme O segredo do grão (Le graine et le mulet), do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche. Já em casa, pensando um pouco sobre o filme, noto que não tive, ao menos em um primeiro momento, condições de compreendê-lo com mais profundidade. Fruto desse preconceito de "França não-francesa" que o diretor evidencia de maneira muito sutil.
Marcado por tomadas fehcadas e por um dinamismo nos diálogos, o filme me pareceu muito feliz na sua apresentação dos aspectos sonoros do dia-a-dia retratado, seja no almoço em família do domingo, na briga da mãe com a filha que não aprende a usar o penico, seja no silêncio gaguejante do protanista frente à burocracia municipal.
O filme se passa em meio à comunidade árabe de Marselha e conta a história de um velho, demitido do estaleiro onde trabalhava há 35 anos, apenas 16 dos quais com registro. "Você está velho, já não dá lucro, e eles não querem mais franceses; querem quem está de passagem", comenta um amigo quando ele lhe conta que deve perder o emprego em breve. Aos 61 anos e sem perspectivas, resolve, com o dinheiro da indenização, reformar um barco para transformá-lo em restaurante, no qual servirá como prato principal o cuzcuz feito pela ex-mulher.
Começa sua peregrinação pelos meandros do Estado. No banco, só darão um empréstimo se ele tiver licença da prefeitura, a qual só obterá se conseguir a aprovação da aduana para o projeto, a qual está condicionada a ter a garantia financeira para o empreendimento. O já conhecido "só te daremos dinheiro se você já tiver dinheiro". Com a ajuda dos filhos, amigos e da filha da sua atual companheira, consegue reformar o barco e a licença de um dia, no qual pretende convencer alguns figurões a financiar sua empreitada. Nesse evento, a câmera passeia por mesas onde estão franceses "legítimos", tratanto com desdém (ainda que receosos) o empreendimento de um "não-francês".
Estou no fim do filme e não preciso ir adiante - até para não desestimular ninguém de assiti-lo porque já sabe o final. Relembrando essa cena me dei conta do meu preconceito, até porque foi só nela que eu dei conta do preconceito dessa personagem. Não se tratava de um francês (uma francesa, no caso) falando de um não-francês, mas de uma gaulesa falando de um não-gaulês, o qual tinha a audácia de querer concorrer com ela. Assim como os não-gauleses franceses, no início do filme, temiam e falavam com certa raiva dos não-gauleses não-franceses, que aceitavam piores salários e menos direitos e tomavam, assim, seu empregos. O filme mostra essa disputa entre essas três "classes", assim digamos. A dificuldade dos franceses de segunda classe de acesso ao Estado - afora o seguro desemprego -, ao mesmo tempo que vêem seus empregos ameaçados pelos imigrantes que chegam.
Estou, claro, fazendo apenas um recorte de um dos aspectos que o filme levanta. Há vários outros dignos de serem notados e que não me ative aqui (como o fato de ter de apelar à ex-mulher para tentar recomeçar a vida). Friso uma vez mais o caráter muito vivo e quotidiano dos personagens, em especial suas conversas, que conseguem fazer com que um filme de 2h30 e quase sem qualquer suspense ou tensão passe rapidamente. Igual a um almoço em família no domingo.

Campinas, 14 de setembro de 2008

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Será a Universidade pública tudo o que ela se vê?

É do conhecimento dos meus amigos mais próximos uma certa amargura com a universidade, iniciada com minha participação em grupos de educação popular, despontada com a greve das estaduais paulista no ano passado e aprofundada com meu estágio na prefeitura de Campinas. Alguns me acusam de ressentido. Não creio ser esse o caso. Penso ser antes do parte do meu repertório de “humanista ingênuo” – como não raro me classificam – insistir em não olhar o mundo com olhos cínicos (ou mesmo fatalistas, desses que aceitam que é assim e pronto) e tentar dar sempre oportunidade ao mundo (parte dele, vá lá) de me decepcionar. Um olhar normativo, como já (muito bem) me apontaram, mas cuja normatividade está na exigência de coerência entre teoria e prática, entre o dito e o feito (há, claro, certas restrições: espero um mínimo de razão e humanismo na palavra, antes desta se transformar em ação, um skinhead espancar nordestinos ou gays, por exemplo, não me é defensável sob nenhum aspecto).

É essa ausência de coerência entre teoria e prática que me incomoda na universidade. Pior, é a cegueira do grupo político que defende abertamente a universidade inserida no seu contexto social quanto a essa discrepância que me deixa perturbado. Não é raro ver acadêmicos (professores e alunos) acusarem com palavras veementes a direção política tecnocrática (conservadora e anti-democrática) que é dada à universidade, ao mesmo tempo que se esforçam para seguir os parâmetros tecnocráticos exigidos – cujo desrespeito traz conseqüências prejudiciais, como perda de bolsas, mas cujo respeito também traz conseqüências prejudiciais, como pesquisas cada vez mais precárias.

E se a universidade não possui uma reflexão consistente sobre si própria, o que dizer sobre a relação dela com a sociedade. Não é raro escutar pelos corredores da universidade um auto-elogio narcísico de que ela seria o espaço de pesquisa e produção de conhecimento. Até aí, nenhum problema. O qüiproquó, penso eu, se dá porque julgam-na o espaço exclusivo de produção de conhecimento, quando, na verdade, se trata do espaço privilegiado. Fora da universidade também é possível pensar, ainda que não haja estímulo para que se centre nisso. Fora da universidade também há trocas entre “pensadores”, pois professores, para ficar apenas em um exemplo, também são formados, não raro possuem pós-graduação, e têm, mesmo perante a academia, respaldo para proferirem opiniões “qualificadas”.

Se as conseqüências disso ficassem restritas somente à universidade, a sua auto-imagem e a uma certa precariedade na produção de conhecimento, tudo bem, as conseqüências não seriam tão graves. Contudo, a universidade se pretende detentora de um discurso sobre toda a sociedade (ou realidade): seu conhecimento não é um conhecimento sobre a universidade, mas prioritariamente sobre o que se passa fora dela. Aqui a ausência de auto-crítica começa a se mostrar nefasta para a sociedade. A academia é apenas uma realidade, mas se pretende falar sobre as outras, sem, contudo, ter a experiência dessas outras realidades. Pior: sem se dar conta de que ainda que seu discurso seja sobre a realidade externa, ele é produzido a partir de dentro e com olhos de dentro, não raro por professores-pesquisadores que desde os dezoito anos de idade só conhecem o ambiente universitário ou as observações distanciadas, seguindo padrões ditos científicos, de ambientes alienígenas.

A defesa da universidade como centro exclusivo de produção de saber ignora - justamente por seus defensores nunca terem saído da universidade - a precariedade de tal conhecimento produzido – ao menos frente a prática que se pretendia inspirar com ele. Não raro conhecimentos que se pretendiam discutir a condição social se tornam discussões beletristas auto-referenciadas, distantes anos-luz da realidade que dizem apreender. E tais conhecimentos, na hora em que se transformam em prática... não se transformam em prática, dando razão ao (falso) ditado de que na prática a teoria é outra. O problema, ao meu ver, é que na teoria a prática é simples. Simplificada exatamente porque os teóricos desconhecem em absoluto a prática, ou julgam equivalente a prática de escrever um livro, participar de uma greve em uma universidade ou seguir parâmetros de produção científica e trabalhar oito horas repetindo roteiros para clientes, enfrentar a polícia em confronto no campo ou ter a exigência de vender determinado volume de produtos, sob o risco de não ter um salário necessário para a subsistência, ou mesmo da perda do emprego.

Estou falando, claro, preferencialmente das ditas ciências humanas. Mas acredito que essa alienação na torre de marfim que são as universidade públicas brasileiras - ainda mais quando reforçada pelo discurso tecnocrática-especialista - pode se aplicar também às ciências físicas e biológicas (e não só no Brasil): ou será muita coincidência que grandes cientistas do século XX eram também fortemente politizados? Se fosse verdadeira a crença de que o cientista deve se fechar no laboratório e trabalhar só na sua pesquisa, esquecer do resto para não perder o foco, a física da primeira metade do século passado deveria ter sido um retumbante fracasso. Não sou físico, mas não é o que ouço falar.

Por fim, enquanto se mantiver o discurso da universidade como centro exclusivo de produção de saber, mesmo entre aqueles que se dizem críticos do nosso modelo social excessivamente exclusivo, se tratará de uma profecia auto-realizável de uma crença injustificável, a qual só reforça o modelo (pretensamente) criticado: por que professores de escola não poderiam, eles também, produzir conhecimento, mesmo já fora da universidade, dadas condições mínimas para isso? Claro que com trinta horas de aula semanais, em um emprego desprestigiado (dentro da própria universidade, por aqueles que formam esses professores), com salários baixos (principalmente se levada em conta a importância da profissão) e o estigma de que “professor é professor porque não tem capacidade para ser pesquisador”, como disse um eminente sociólogo de esquerda e ex-presidente de uma república bananeira, a universidade continuará sendo o local exclusivo e não privilegiado de pesquisa e produção de conhecimento.

E o pior é que, ao que tudo indica, a mudança desse quadro depende não só da pressão externa à universidade, mas principalmente de um movimento interno de auto-reflexão, auto-crítica e perda desse narcisismo coletivo. E sendo assim, não me parece que será tão em breve que teremos a universidade como produtora de grandes pensadores e pensadoras. Continuará uma produtora de técnicos e técnicas de nível superior, aptos a atender demandas prementes, ao invés de questões necessárias.


Campinas, 03 de setembro de 2008


terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fantasmas ao celular

No teatro, duas mulheres sentadas na minha frente conversavam antes de iniciar a apresentação. Uma delas tinha um celular, desses todos modernosos, com teclado padrão qwer e tela sensível. Utilizava-o para mostrar gráficos enquanto conversavam. Não ouvi do que tratavam, mas pelos gráficos, desconfio que não deviam falar dos filhos (na verdade, torço para que não estivessem falando dos filhos!). Muito provavelmente, aproveitavam cada minuto, inclusive os de domingo, no teatro, para conversar sobre negócios. Time is money, já dizia Benjamin Franklin. Até aí, nenhuma novidade no uso de celular. No filme Missão Impossível 2, Tom Cruise tem uma fala em que comenta que se tivesse celular, não teria férias. Saiu, inclusive, reportagem no caderno Mais, da Folha de São Paulo, discussão sobre a intromissão do celular na vida quotidiana (faz tempo essa reportagem), e essa “facilidade” de poder levar o trabalho para onde você estiver, não precisando mais ficar necessariamente confinado no escritório (estamos tratando de uma fatia da população, que fique claro).

No ônibus, sexta-feira, o cobrador tira do bolso o celular e começa a escrever alguma mensagem sms. A imagem me faz de lembrar de outra, não muito diferente, mas com um policial como protagonista: está parado ao lado da viatura, escrevendo alguma mensagem pelo celular. Aí um outro lado do celular (das novas tecnologias), não tão comentado, mas que não também se trata de nenhuma novidade: assim como você leva trabalho para casa, leva a casa para o trabalho. Isso talvez torne um pouco menos pesada a rotina. Afinal, se algum amigo quer marcar algo para depois do serviço, não precisa passar por qualquer PABX, basta ligar no seu celular. Se você quer saber se está tudo bem em casa, ou mesmo contar qualquer novidade a alguém, um sms permite que isso seja feito durante o expediente, e sem grande indiscrição. Ou seja, as novas tecnologias acabam sendo uma via de mão dupla: não é somente o trabalho que invade a vida particular, mas a vida particular que invade o trabalho.

Há, todavia, um porém: a via pode ser de mão dupla, mas as pistas não são equivalentes. A intromissão do trabalho na vida particular tende a ser muito mais forte do que a recíproca. Primeiro porque uma notícia que vem da casa para o trabalho dificilmente surge como um imperativo como pode acontecer com o trabalho que chega à casa: faça ou terá sanções. Segundo porque, mesmo que seja algo preocupante a notícia que vem de fora do serviço, a pessoa é obrigada a esquecê-la enquanto trabalha, para não prejudicar seu rendimento, e deixar para resolver depois. Tente fazer o mesmo com o trabalho: chefe, não vou me preocupar com todos esses pepinos que apareceram porque estou em casa e combinei de jogar bola com meu filho.

Existe ainda um outro ponto interessante: um certo desprendimento entre “corpo e alma”, mais radical do que já acostumava acontecer. Explico esse “corpo e alma” com um exemplo próprio e que deve ser conhecido pela grande maioria: na escola (mesmo na faculdade), aquela aula chata, chatíssima, que se é obrigado a assistir. Enquanto a professora fala sobre a revolução e porque quem não tem a leitura que ela tem de Marx é idiota, você pensa em algo mais agradável, como o futebol de domingo, a jogatina de quarta, a crônica para escrever (tem uma tirinha da Mafalda muito boa, como sempre, que trata desse drama: o Filipe está na aula e começa a repetir para si mesmo “preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção”, ao que é interrompido pela professora: “entenderam crianças?”). Com o celular, essa árdua tarefa de achar o que fazer (ou o que pensar) enquanto espera o tempo passar se torna mais leve, até mesmo “produtiva” (não para a empresa, claro): converso, troco novidades com amigos, mesmo que eles estejam no outro lado da cidade, ou em outra cidade. A atenção totalmente fora do espaço onde o corpo está preso.

Fosse isso só para as atividades chatas, talvez fosse até positivo. Mas não me parece ser esse o caso, ainda mais no Brasil, onde a falta de educação no uso do celular é avassaladora (falo no Brasil por desconhecer a realidade nos demais países). Não é cena incomum pessoas abrirem seus celulares no cinema para ler a mensagem que chegou. Falo do celular, mas não se trata só dele. Há uma crescente dificuldade em se concentrar em apenas uma tarefa. Escutar música, por exemplo. São poucas as pessoas que conheço que fazem isso. Geralmente o que acontece é pôr a música para acompanhar alguma outra tarefa: cozinhar, estudar, usar a internet, ler, escrever (como acontece comigo agora). Isso quando não para acompanhar três ou quatro tarefas concomitantes. Há quem acredite que se trate de um melhor aproveitamento do tempo, mesmo uma evolução, ao se aproveitar das potencialidades humanas que a tecnologia permite fazer uso. Eu, por meu lado, questiono a qualidade dessas atividades, desse aproveitamento do tempo: se o objetivo é apresentar o maior número de coisas feitas no menor espaço de tempo, ótimo; já se se trata de desfrutar do fazer, ainda que haja certa ansiedade em conhecer o final do processo, o resultado é catastrófico, e o aprendizado dele resultante, precário, se comparado àquele de um processo plenamente concentrado. E não falo mais de atividades pesadas, coisas que se é obrigado a participar: falo de momentos lúdicos, prazerosos. Também não defendo aqui que seja feita uma coisa de cada vez, sempre. Há momentos e momentos (como agora, que precisei desligar o som para concentrar em uma conclusão, já que me perdi da idéia original da crônica e não sei bem onde estou, ainda que não tenha sido por culpa da música). A questão está que não há essa distinção entre momentos e momentos começa a esmorecer: tende-se sempre a fazer mais do que uma coisa por vez, pouco importa o momento.

Para concluir (porque já estou me enrolando muito): talvez um outro problema seja aquele já apontado por George Orwell em 1984, e que geralmente as pessoas ignoram: o Grande Irmão não é somente a teletela que vigia as pessoas 24 horas por dia. Ela é também a teletela que não permite que as pessoas fiquem um minuto sequer em silêncio. E se concentrar em uma atividade lúdica, em silêncio, significa, muitas vezes, se concentrar em si mesmo. E talvez seja de nós mesmos, do nosso corpo e da nossa alma, que buscamos fugir ao nos concentrar em várias coisas ao mesmo tempo (ou em nenhuma, segundo minha visão).


Campinas, 19 de agosto de 2008

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Carta para a Folha: Transporte público

Na reportagem de domingo sobre livros de auto-ajuda (Cotidiano), sem querer, Lair Ribeiro, no exemplo dado de gente que escreve sobre como ficar rico sendo que anda de ônibus, enunciou um elemento geralmente tido por secundário quando discutida a questão do trânsito no Brasil, em especial nas grandes cidades: em nosso país, um dos primeiros sinais do 'sucesso pessoal' está justamente no carro que se tem, a ponto de não ser tão incomum as pessoas terem na garagem carros que valem tanto quanto ou mais do que o imóvel onde moram. Mesmo que o transporte público melhore enormemente, se torne eficiente, cômodo e barato, mesmo assim quero ver se a madame, voltando das suas compras no Shopping Cidade Jardim vai aceitar fazer a viagem em pé, enquanto sua empregada, que subiu alguns pontos antes, viaja confortavelmente sentada. Enquanto esse exemplo continuar sendo risível pelo seu absurdo, continuaremos discutindo como melhorar o fluxo do trânsito para os carros e, quando sobrar tempo (e orçamento), o transporte público para os pobres.

Campinas, 06 de agosto de 2008

domingo, 27 de julho de 2008

O Lula estadunidense?

Lembro que logo no primeiro discurso que vi do então pré-candidato ao governo dos Estados Unidos, Barak Obama, creio que foi o feito após a primeira vitória no seu percurso rumo à indicação pelo partido Democrata, alguma coisa soava mal aos meus ouvidos e não me deixava adentrar na obamania que tomava conta do mundo e dos meus quatro amigos daquela madrugada de carnaval. Não se tratava apenas de manter a escrita e ser “do contra”, como dizem que gosto de fazer, mais por esporte do que por convicção – ainda que nunca tenham conseguido embasar tal tese de maneira satisfatória –, tampouco por conta de eu torcer para a senadora Hillary Clinton – não por julgá-la melhor ou pior do que Obama, já que não conheço nenhum dos dois para ter uma opinião formada, mas porque acho que vinte e oito anos de administrações Bush-Clinton no grande paradigma de democracia no mundo poriam alguns questionamentos oportunos sobre o ideal democrático (ou seria ideologia?) propagado de maneira cega pelos quatro cantos, inclusive por pessoas de boa fé.

Clinton perdeu, e por mais que eu torça por Obama em novembro, ainda não me deixei levar pela sua simpática figura. Semana passada creio ter encontrado a pedra no sapato que me impedia de adentrar na obamania. Infelizmente a pedra já estava grudada à palmilha, de modo que ela vai seguir comigo até que me provem que (mais uma vez) me equivoco. Só não me digam que faço isso só para ser do contra!

Foi na cobertura do seu discurso em Berlin. Ali ficou claro quem Obama lembra, não só pelo aspecto simbólico – um negro chegar à Casa Branca, caso Obama seja eleito, não é pouca coisa, pelo contrário – mas pela depuração de eventuais abalos profundos que o tal homem simbólico pode causar no Establishment. Nisso, as semelhanças com Lula, por enquanto, são gigantescas.

Comecemos pelo discurso do começo, o começo dessa coceira que me coça quando tento pensar no tal do Obama: foi um discurso vazio, cheio de jargões e frases de efeito, mas sem conteúdo. Disse isso já naquela madrugada. Passada a fase das prévias, Obama deu uma guinada forte à direita, em busca do voto dos tais dos indecisos e independentes. Disse o contrário de muito o que defendera durante as prévias e, em um caso extremo, precisou organizar uma segunda coletiva do dia para desdizer que havia desdito o que havia dito. Segundo muitos analistas, tal guinada foi o principal fator da queda abruta na diferença de intenção de voto entre ele e McCain.

Agora foi a vez do discurso em Berlin. Não sei qual é a receptividade dos berlinenses aos candidatos a presidente dos EUA. Pode ser que aquela massa de pessoas presentes para ouvir Obama em nada se distinga da massa que estará presente para ouvir McCain, em um eventual discurso deste na capital alemã. De qualquer modo, a receptividade mundial ao candidato democrata não encontra qualquer similaridade com o candidato republicano. Obama está desfilando pelo mundo (e olha que ele ainda nem foi eleito!), como Lula desfilava quando recém-eleito: ave rara em exibição nos principais mercados do planeta. Este, o operário que virou Rei; aquele, o negro que virará Imperador do mundo. Corram, venham ver! Só ver.

As esperanças depositadas em Obama são grandes. Alguns obamaníacos amigos meus tentam pôr os pés no chão: sabem que seu eventual governo não será nada revolucionário. Mas acreditam que será significativo. Obama conseguiu construir qualquer aura em torno de si, talvez por seus discursos vazios, bem feitos e sem comprometimento, talvez pelo espetáculo feito pela imprensa em torno dele, talvez por sua figura assaz simpática, talvez alguma lembrança de Luther King e de 1968.

Change, yes we can”, diz o slogan do candidato democrata. “Mudança”, foi a primeira palavra dita por Lula após anunciada a sua vitória. O resultado dos seus oito anos de governo, ao que tudo indica, é uma generalizada sensação de desânimo e um cinismo morfético. Que a história com Obama seja diferente, que seu simbólico não fique restrito ao fato de ser negro, como de Lula ficou restrito ao de ser ex-operário (talvez bem comportado também seja simbólico em Lula, mas não foi com isso que ele construiu sua aura).


Campinas, 27 de julho de 2008

quarta-feira, 16 de julho de 2008

"Infelicidades"

Conversa velha, ainda que tenha escutado ontem e tratasse de notícias recentes. Velha porque os jornais de hoje já trazem uma mais nova – do mesmo teor, infelizmente. Na conversa ouvida ontem, um típico homem de bem, com toda a sabedoria dos primeiros fios de cabelo branco que começam a despontar, comenta o infortúnio de outra vítima “inocente” de uma ação policial. Diz compreender o lado dos policiais. Afinal, bandido hoje não respeita mais ninguém, nem a polícia, não resta outra alternativa que meter bala e matar os bandidos. O bom e velho “bandido bom é bandido morto”, ao gosto de Hebe, Padre Marcelo, Henri Sobel, e tantos outros. É certo, completava ele, que às vezes acontecem infelicidades como a morte de “inocentes”, mas é o preço a se pagar. Claro que para ele é um preço a se pagar enquanto não for a filha dele a próxima vítima “inocente”.
Antes de continuar, abro um parênteses para explicar o porquê do inocente entre aspas. Não se trata de dizer que somos todos culpados por ter deixado a situação chegar ao ponto que chegou, a ponto sermos todos culpados, como no título do último romance do Férrez, Não há inocente em São Paulo
. Ponho as aspas porque, ao vivermos em um Estado Democrático de Direito, todos somos inocentes antes que se prove o contrário. Também porque é dever do Estado proteger a vida dos seus cidadãos. E não há na Constituição, até onde eu saiba, distinção entre a vida dos “cidadãos de bem” e dos “cidadãos do mal”, geralmente designados como “marginais” (o que é muito acertado, se se deixar de lado a carga negativa que o termo atual carrega) ou “bandidos”. Assim sendo, toda vítima da polícia é, a princípio, vítima inocente – ainda mais sabendo como age a polícia brasileira, com seus “mortos em confronto”, não raro desarmados, rendidos e fuzilados pelas costas, a curta distância.
Os jornais de hoje, a exemplo do que publicaram há dez dias, há uma semana, há dois dias, estampam a notícia de mais uma vítima “inocente” da ação policial. Os homens de bem possivelmente tenham se alarmado com mais essa fatura que chega à sociedade: “meu Deus, o que está acontecendo?”, talvez se perguntem, evocando a iluminação divina que tanto falta a esse tipo de gente, apesar dos crucifixos e dos adesivos da Nossa Senhora ou com o nome de Jesus, que não raro ostentam. Se se trata de novidade para quem acha que a culpa no campo é do MST ou que na favela só tem bandido, para os marginais, essas milhares de pessoas que vivem à margem da sociedade e do Estado, acostumadas a serem tratadas sempre como suspeitas – quando não como criminosas, logo de cara –, é apenas um passo além no processo de democratização do país. É o dia-a-dia que há muito eles estão acostumados a enfrentar e obrigados a calar, que chega, finalmente, ao asfalto. As vítimas “inocentes” dessa ação de ascepcia social ainda são poucas, se comparadas ao número de vítimas totais da polícia; por isso ainda são tratadas como “infelicidades”. Mas não parece ser tratar de um fenômeno isolado. Boa parte da população, inflamada por jornalistas policiarescos e filmes de Hollywood, pensa que justiça é necessariamente feita com sangue – ou pelo menos com a execração pública dos suspeitos. Os políticos, temerosos de questionar a irresponsabilidade dos meios de comunicação e serem taxados de autoritários, de quererem a volta da censura, e terem que arcar com a perda do apoio da imprensa nas próximas eleições, aceitam pôr mais lenha na fogueira, defendem a ação da polícia e acusam os críticos de irresponsáveis. A oposição, por seu turno, trata de cobrar ações mais duras, na esperança de angariar votos da classe média temerosa. E assim, nesse elevado e frutífero debate, vai-se construindo uma solução democrática de guerra ao crime. Com custos, preços a pagar, como toda guerra, mas justificada pelo princípio da luta do bem contra o mal.
Se o típico cidadão de bem não fosse de uma incapacidade intelectual aviltante, cuja principal função do diploma superior (quando não do título de mestre ou doutor) é avalizar o senso comum que arrota com pompas de erudição, talvez esses quatro assassinatos cometidos pelo Estado noticiados pela imprensa, ocorridos só no mês de julho, já seriam mais do que suficiente para acender uma luz amarela. Mas o homem de bem não tem um raciocínio tão refinado para poder pensar em três cores. E esta não é a primeira vez que se tem razões suficientes para luzes amarelas serem acendidas. Não ficarei nem um pouco surpreendido ao ouvir, como solução para o fim das vítimas “inocentes” das ações policiais, que todo homem de bem blinde seu carro. Isso, inclusive, abreviaria o trabalho da polícia: ela atira (como tem feito), se a bala bater e não entrar no carro, era inocente, se entrar e acertar os ocupantes, não tem problema: eram bandidos, foi até bom que acertou. Os motoristas de táxi podem se abraçar e celebrar o assassinato, como fizeram neste último caso.

Pato Branco, 16 de julho de 2008

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Um trem para uma outra visão


Aluguei esta semana o filme O trem de Zhou Yu, filme de 2003 do chinês Zhou Sun. O filme conta a história de uma artesã oleira que duas vezes por semana faz uma longa viagem em trem para visitar seu namorado, um poeta e funcionário de uma biblioteca, até que em uma dessas viagens se depara com um veterinário hedonista. Achei um filme de uma poética delicada, semelhante a outros filmes orientais, como o japonês Dolls, de Takeshi Kitano, ou os do sul-coreano Kim Ki-Duk.
Em O trem de Zhou Yu, o trem e o trajeto simbolizam mais do que o superar distâncias pelo amor, antes o próprio amor como um trajeto a ser percorrido, com seus percalços e seus encontros e desencontros fortuitos, capazes de mudar sua rota, de fazer com que se pare antes da estação desejada, que se conheça paisagens inesperadas, e se desconheça horizontes queridos. Também podem simbolizar que entre duas pessoas, entre dois amantes, há distâncias maiores a serem superadas do que aquela percorrida pelo trem. O filme, contudo, não se resume a metáforas com trens e trajetos e estações. Há outros momentos de sutil poesia, como quando escritor e artesã, mesmo juntos, não conseguem olhar para a mesma direção; ou o questionamento sobre a fragilidade da arte, frágil como o amor. Mais do que um modelo para amar – como se costuma encontrar nos filmes ocidentais – O trem de Zhou Yu apresenta as complicações e contradições do amor.
Porém um outro ponto me chamou bastante a atenção: o filme se passa na China do início do século XXI. Um país já com índices de crescimento assustadores, mas cuja prosperidade, conforme a imagem vendida pelos detentores da “liberdade”, está localizada nas ilhas capitalistas, como Shenzhen, por exemplo. No resto do país – ao menos é a visão que sempre tive a partir da leitura dos jornais – uma vida controlada, cheia de restrições, infeliz e, se não de pobreza, sem nada além do básico. Não é o que o filme passa. Talvez seja proposital. Patrocinado pelo governo, fez-se um filme em que é apresentada uma visão positiva do regime. Se é isso, o faz com impressionante sutileza. Os três protagonistas do filme, o poeta funcionário de biblioteca, a artesã oleira e o veterinário, nenhum está nessas ilhas capitalistas de prosperidade e “liberdade”. Soam antes como cidadãos comuns, da classe média do regime dito comunista do país. O veterinário é apresentado como o personagem já mais afim à nova China, mas está longe de ser um novo rico. E nem por isso há um clima de terror, vigilância ou controle. A ponto de, em certa altura, eu resolver dar uma olhada nos créditos do filme, para averiguar que se tratava mesmo da China e não do Japão ou da Coréia. Nota-se certas intromissões na vida dos personagens em alguns momentos, como quando um funcionário público tenta uma aproximação com a artesã, e pelas tantas comenta que só terá direito a uma casa depois que se casar; ou quando o poeta é avisado de que será demitido da biblioteca, mas pode optar em ir para o Tibet. Em suma, a impressão que o filme passa é o da China comunista como um país de terceiro mundo, não muito diferente do Brasil ou da Argentina: cidades sem qualquer beleza, com ruas sujas; pessoas com condições de vida razoáveis; e um governo que não é empecilho para que se viaje, compre cigarros ou que um poeta namore uma oleira de uma cidade distante.
Pode ser contra-propaganda chinesa, e não se deve, portanto, levar o filme tão a sério. Mas admito que serviu para tirar muito da impressão de 1984 que eu tinha sobre o sistema do país. Significa que a imagem que tenho da China depois filme é boa? Tanto quanto a do Brasil. Trata-se que a China “classe-média comunista”, assim digamos, ganhou ares de um país qualquer.

Campinas, 26 de junho de 2008

quinta-feira, 22 de maio de 2008

American way of live x manière française de vie

Se os Estados Unidos tem o american way of live para vender ao mundo, calcado na competição e no self-made man individualista; os europeus têm também seu modo de vida para consumo externo (e interno), pretensamente superiores: social-democracia, humanismo, alta-cultura, com seus escritores, intelectuais, orquestras, artistas. E, assim como tem os otários que compram a propaganda estadunidense, há também os otários, como este escriba, que compram a propaganda européia. Está certo que nos justificamos por justificavas que aparentemente são melhores do que as do modo estadunidense, mas os defensores deste acham que possuem a mesma razão, ainda que por razões diferentes. De qualquer forma, pouco importam as razões, elas não justificam a opção praticamente passiva por um ou outro modelo.
É sempre alentador quando um filme consegue fazer uma boa crítica de qualquer um desses modelos. Do american way of live temos mais facilidade em encontrar exemplos, do que do modelo europeu, já que é o modelo predominante. Às vezes é difícil achar uma crítica a ambos, ou pelo menos uma crítica a um dos modelos que não tragam escondida a defesa do outro. Pois é justamente o que Julie Delpy faz em seu filme Dois dias em Paris, na qual ela também interpreta a protagonista. Na verdade, esse tom do filme foi uma agradável surpresa. Ao ler a sinopse no jornal, que falava de um casal nova-iorquino que tenta recuperar o relacionamento em Paris, a cidade natal da protagonista, imaginava um drama, com diálogos existenciais. Não que o filme não tenha sua profundidade, mas ele quebra justamente com essa aura de seriedade. Na sinopse do cinema, falava em comédia romântica, termo que imediatamente me remete a Sandra Bullock e Julia Roberts, o que me trás arrepios. Se realmente se trata de uma comédia romântica, felizmente não segue o american way of romantic comedy.
Logo no início do filme, Jack, o namorado da parisiense (Marion), um americano que não sabe francês, paranóico com ataques terroristas e hipocondríaco, reclama do fato de ter que ficar na fila sob um céu nublado para tomarem um táxi, na saída da estação de trem. A mulher sai em busca de alternativa. Enquanto isso o grupo que está à sua frente na fila se apresenta como um grupo de cidadãos estadunidenses e pergunta se Jack não sabe onde está o Louvre. Ele diz que sim, que é ali perto e indica o caminho. A americana que pediu a informação agradece e confessa o quanto os franceses são metidos e pouco confiáveis. O grupo parte e quando Marion volta Jack já é o segundo da fila. Rebate a crítica de Marion por ter indicado o caminho errado - até porque o Louvre ficava há milhas de distância, segundo ela - dizendo que “os mais fortes sobrevivem”, logo, não pode ser acusado de ter feito nada de errado. Esse início é a chave para não imaginar que o filme, que no seu desenrolar vai se centrar na crítica aos pretensos círculos intelectuais e artísticos parisienses, irá fazer apologia do modelo estadunidense.
E o que se desenrola a seguir é uma sarcástica crítica aos ideais franceses – e europeus – que atacam de 68, na figura dos pais de Marion, como no próprio comportamento desta, aos ataques contra a globalização, feito por um gay-exotérico-lunático. Boa parte do desenrolar da história se dá em torno de temas sexuais, cantadas, encontros com ex-namorados, amantes, com algumas pitadas de preconceito, grosserias, falta de educação, racismo e rebeldia adolescente por parte dos personagens – e o filme se passa em círculos de artistas, escritores, fotógrafos, etc, teoricamente a nata do manière française de vie.
Enfim, uma sugestão para mais do que dar umas risadas, quebrar uns paradigmas.


Campinas, 22 de maio de 2008

quarta-feira, 23 de abril de 2008

A campainha

Cheguei em casa ontem no meio da tarde. Não deu cinco minutos e tocou a campainha. Olhei pela janela o pedaço de rua que me é permitido ver e não vi ninguém. Nesses casos, geralmente, não atendo: ou é para a casa da frente (cuja campainha é somente para os iniciados, tão escondida fica), ou é alguém vendendo algo que não preciso e não comprarei. Se fosse algum amigo meu, deveria saber que ou fica no pedaço que enxergo, ou liga para avisar que está tocando a campainha e quer ser atendido. Se é do correio, nunca falei nada, mas também ficam nesse pedaço que me é visível. Voltei ao meu afazer do momento, que era ler o jornal (saíra cedo e sequer tivera tempo de folhear antes de ir para uma aulinha na universidade). Mais dez minutos, e novamente a campainha. Repito a operação anterior, e não vendo ninguém, não atendo. Suspeito que talvez fosse as três meninas – na casa dos seus dez anos, não mais – que estavam sentadas em frente a casa ao lado quando cheguei, que estivessem fazendo uma das mais tradicionais traquinagens da sociedade contemporânea, tocar a campainha e correr (ou se esconder). A idéia me diverte, pois lembro de quando eu tocava a campainha e me escondia, quase ao lado dela: era evidente que era eu quem tocava e não era difícil me achar (se não me engano, uma vez me acharam, e tomei um pito). Será que ainda há isso em pleno século XXI? Volto ao meu jornal.
Por um longo tempo não fui incomodado pela campainha. Não contei, mas creio que deve ter dado uns quarenta minutos. Mas ela toca novamente. Novamente, ninguém a vista. Passo a suspeitar que, como já aconteceu uma vez, ela fora tocada há um certo tempo e o botão meio que enroscou, passando a tocar automaticamente de vez em quando, sem necessidade de ninguém para pressioná-lo. Saio com a cara fechada (não sei porque), para ver se é isso mesmo o que está acontecendo. Vou seguindo a passos duros pelo corredor que me separa da rua. Escuto, na casa ao lado, certo fuzuê. Ao abrir o portão que me leva ao pátio da frente consigo escutar uma das garotas, bastante eufórica, falar num sussurrante alto “ele abriu o portão! ele abriu o portão!”.
Vou até a campainha, verifico se não era mesmo problema nela. Na verdade, vou para não perder a viagem. Ainda tento manter no rosto o semblante fechado, de gente séria, de gente adulta, que não admite ser perturbado e ter seu tempo perdido por conta de uma besteira como essa, como a dizer “crianças irritantes! Não entendem que um adulto é ocupado demais para isso?”. Mas não consigo. Tenho um sorriso já estampado no rosto. Me seguro para não gargalhar alto e estragar a brincadeira das meninas. Volto a passos leves pelo corredor. Retomo o jornal. E me decepciono com as meninas terem cansado da brincadeira tão cedo.

Campinas, 23 de abril de 2008

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Carta pra folha: Navio negreiro

Nem entro na questão de se o Bope é o "SBP" da sociedade fluminense, como afirmou o coronel Marcus Jardim (Cotidiano, 16/4).
Mas que as fotos que a Folha publicou dos "insetos" capturados pela polícia poderiam muito bem vir com a legenda "navio negreiro", isso poderiam.
Castro Alves soa hoje mais atual do que nunca.

Campinas, 18 de abril de 2008

terça-feira, 1 de abril de 2008

As pessoas-camundongo

No ônibus da moradia, dia desses, um rapaz e uma guria - creio que do Instituto de Artes, mas isso pouco importa - conversavam. Peguei a conversa com o rapaz enunciando uma série de brindes que havia ganho: xampu da marca tal, sabonete qual, loção de barba outra, outras tranqueiras do gênero e R$ 150,00 em vale compras no shopping. De início achei que ele havia ganho em algum sorteio, mas não. Diante da empolgação da guria com os brindes, arrematou: ganhava tudo aquilo e não precisava fazer nada, só provar uns produtinhos.
A garota seguia empolgada: "é tão legal ser cobaia humana". O rapaz concordou. Mas ela queria mesmo ser cobaia de remédio. Chegou a lamentar não ter uma doença para poder sê-lo, mas o rapaz disse que não precisava estar doente e falou que tinha contato para isso também. Procurou nas suas coisas a carta de recomendação, mas só achou a de produtos de beleza. Entregou-lha e reiterou que valia a pena; que, caso não fosse selecionada, dariam a ela cinco reais, o que já era lucro. Falou como se esses R$ 5,00 dessem para fazer grandes compras (e não só para pagar o ônibus até lá), e que fossem realmente a troco de nada.
A garota agradeceu a carta e a conversa encetou pela de cobaia de remédio. Para mim, o uso de cobaia humana, ainda que indignante, não é novidade - longe disso, já até saiu na imprensa, há alguns anos, reportagem sobre. Por um tempo tive razoável contato com estudantes de medicina, e sei o quanto estes não fazem um dinheirinho extra emprestando seus organismos à "ciência". Trata-se de algo sempre ocultado - óbvio -, mas que nos deixa alarmados, quando ficamos sabendo: se um estudante de medicina, que corrido seis anos será "doutor", não vê problemas em tomar remédio mesmo não tendo comprovadamente nada, não verá problemas em receitar remédio para qualquer dor de cabeça que diagnostique.
Minha ingenuidade foi a de imaginar que essas cobaias eram recrutadas prioritariamente nas faculdades de medicina e farmácia. Ingenuidade mesmo, e grande! Se hoje tomar Prozac é sinal de status, algo a ser alardeado com orgulho, e como se isso não fosse sinônimo de doença (curioso que nunca vi ninguém orgulhoso de estar tomando remédio para vermes ou hemorróidas. Acho que isto dá uma boa crônica), por que alguém vai achar ruim em tomar um comprimido qualquer, e ainda ganhar R$ 800,00 ou mais em um final de semana?
Talvez minha grande perplexidade na conversa das duas pessoas-camundongo tenha sido essa vontade de ser cobaia, de emprestar o corpo e a saúde para ser prova de testes. E fazê-lo não por certo ideal, por amor à ciência, por certa esperança em um remédio que é prometido como revolucionário, por amor à humanidade, ou mesmo que somente pelo dinheiro. Essa vontade de ser cobaia me parece antes um desamor ao próprio corpo, um desdém à própria saúde. Vivemos em uma sociedade que não titubeia em negar a saúde em nome de um corpo visualmente "bonito", por que, então, não emprestar as entranhas em troca de uma bolada que vai me permitir comprar roupas de marcas que vão me deixar "bonito" (talvez não por acaso que as duas pessoas que serviram de móvil a esta crônica fossem tão ligadas a marcas)? Não deixando marcas ou cicatrizes visíveis, e pagando bem (ou R$ 5,00, já está valendo), que mal tem? Não diz o ditado, "o que os olhos não vêem, o coração não sente"?


Campinas, 01 de abril de 2008

domingo, 23 de março de 2008

Esquecer para não sofrer

Fato tão banal no mundo: o término de um relacionamento. Daí a pergunta tão banal quanto: o que fazer? Banal, mas longe de ser simples. Em uma sociedade em que estar triste por mais de um dia é doença; em que não se sabe lidar com perdas ou com fins – a não ser quando final seja o do “felizes para sempre”, ou seja, um não-final –; o dia seguinte ganha, geralmente, proporções um tanto exageradas.
É curioso que tais proporções não atingem somente quem tomou o pé na bunda, mas, não raro, também quem deu o pé na bunda. Como diz Tanizaki: “o divórcio é uma experiência triste”. Creio que isso deva em parte por causa da dificuldade geral em lidar com qualquer fim, em parte por conta de certa preocupação e consideração pelo outro, em parte por certo narcisismo, em parte por uma concepção de amor romântico absurda mas amplamente difundida e defendida, como mostra o psicanalista Jurandir Freire Costa, por exemplo, em seu livro Sem fraude nem favor.
Independente das causas, está ali uma situação em que a pessoa, triste pela sua situação, precisa tocar a vida em frente. Mas como fazê-lo, se o peso do outro e do relacionamento recém-desfeito ainda impede os movimentos? Alguns vão se fechar na sua dor, “curtir um pouco a fossa”, como se diz comumente, fazer o luto, como se fala no jargão psicanalítico, para depois, já mais leves desse peso, porem a vida novamente na marcha desejada (se é que é possível a vida seguir na marcha que desejamos). Outros tentarão negar o relacionamento e a pessoa, em uma atitude bastante ressentida, no melhor estilo “ex bom e é ex morto”, como diz uma comunidade do Orkut. Haverá ainda aqueles que simplesmente descartarão o que acabaram de viver, como se fosse uma pilha já sem carga, e partirão para outro relacionamento, quase que instantaneamente. Em comum a todos esses casos, a necessidade de livrar o presente do espectro do outro e do relacionamento terminado. Porém, há uma sensível diferença entre fazer o luto e simplesmente esquecer. O filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de 2004, dirigido por Michel Gondry, escrito em parceria com Charlie Kaufman e Pierre Bismuth, entra na minha lista de bons filmes que conseguem tratar do tema de maneira interessante.
No filme um tratamento permite que as pessoas apaguem uma paixão frustrada da sua memória, evitando assim toda a dor e sofrimento que sua lembrança possa trazer. Após o tratamento as pessoas saem limpas, puras, virgens (não vou lembrar bem os termos usado no filme, mas a idéia é esta) para seguirem com suas vidas. Eis o sonho de muitas pessoas: sem o cinismo herdado de cada amor, como já alertava Cartola, estarmos aptos a nos apaixonarmos de novo com todas as nossas forças, como se fosse a primeira vez. Quantas vezes já não ouvi elegias para o primeiro amor, aquele tão puro, sincero, verdadeiro e intenso? E olha que nem sou psicanalista, nem nada.
E, se ainda não existe qualquer tratamento que nos permita reviver a cada relacionamento o primeiro amor, creio que muitos ainda investem energias nesse sentido, como a tentativa de esquecer, ao invés de se fazer o luto. Vejo dois problemas principais dessa tentativa: primeiro que acredito que em 99% dos casos ela não funciona, pois o passado que não foi fechado não se torna passado, mas um fantasma que ronda à espreita, aguardando o melhor momento para reaparecer e perturbar o presente (A liberdade é azul, do Kielowski, é outro filme que aborda bem esta questão); segundo porque na impossibilidade de se voltar à pureza e à virgindade do primeiro amor, a única coisa que se consegue manter de semelhante é a imaturidade. E assim a pessoa está apta a quebrar a cara como da outra vez, e reforçar sua crença de que o que rege o amor é o cinismo. Com tal atitude, evita-se parar para refletir como foi o relacionamento, quais as expectativas e as possibilidades, quais os erros e os acertos, pois isso poderia fazer com que a pessoa admitisse que o que ela esperava estava muito além do que alguém poderia oferecer; que o amor talvez não seja um perfeito mar de rosas, mas um caminho pedregoso, confuso, complicado, com suas belezas e seus incômodos, em que é preciso, muitas vezes, ceder a troco de nada e sem achar que se trate de um ato heróico ou sublime, mas simplesmente de uma necessidade imposta pelo momento, em que optamos por aceitar. Enfim, teria de assumir a responsabilidade por seus atos.
Voltando ao filme. Ainda bem que, a despeito de todo o avanço da indústria farmacêutica, ainda não chegamos ao estágio do tratamento proposto pela Clínica Laguna: significa que ainda nos resta a esperança de sermos donos da nossa história e, quem sabe, das nossas vidas: uma porta para o amadurecimento que ainda permanece aberta. Agora, se o amor resiste a tudo, quando encontramos nossa cara-metade, ou estamos predestinados a alguém, isso fica por conta do clichê romântico que não conseguimos abandonar tão fácil, muito menos no cinema.

Campinas, 23 de março de 2008

sexta-feira, 21 de março de 2008

O policial-bicho-papão

Esta semana eu estava em um trailer de lanche, aqui perto de casa, e presenciei uma cena banal, que deveria, creio eu, ter me deixado revoltado, mas o máximo que consegui foi sentir tristeza – medo, talvez.
Um grupo de universitários, atendendo ao pedido de três crianças na faixa dos seus oito, dez anos, pagou um lanche a cada um. Cheguei no momento em que era feito o pedido. Um clima desagradável no ar, o rosto contrafeito do dono da lanchonete diante daqueles três moleques eufóricos e vestidos fora dos padrões da classe média que freqüenta o local. De qualquer forma, anotou o pedido e foi fazer os lanches.
Enquanto fazia, sem se incomodar que as crianças estavam perto, comentava com a garota do grupo que ficou de pagar a conta que a partir daquele momento eles iriam aparecer sempre e incomodar os clientes para que pagassem lanche para eles. A garota não respondeu nada, mas ao voltar à mesa comentou, agora ela contrafeita, o que lhe dissera o dono. Havia poucas pessoas no local, mas o clima desconfortável era evidente. As crianças sentiram, tanto que ao invés de comerem lá, optaram por levar o lanche e comer em outro lugar. Eu pensava ainda bem que o meu era para viagem desde o início, pois comer olhando para o dono seria indigesto. Sinceramente, se vivemos em uma ordem capitalista, pagando a conta e não agindo fora dos “bons costumes”, me parece que quem vende tem obrigação de não fazer distinção – segundo autores neoliberais, essa seria uma das grandes vantagens do sistema capitalista: fazer o bem sem olhar a quem, somente à carteira. Já presenciei naquela mesma lanchonete crianças que incomodavam bem mais do que aquelas três, de ficar derrubando cadeiras e passando de mesa em mesa; mas como estavam bem vestidas, acompanhadas dos pais, nunca vi o dono criar um clima chato para ver se iam embora. Todos pagaram igual, então por que a distinção?
Mas a cena que realmente me entristeceu foi quando os garotos iam embora. Um último ainda saía do lugar, quando uma viatura da polícia encostou em frente e um policial saiu de lá e se dirigiu ao trailer. Nesse trajeto os dois – criança e policial – ficaram frente a frente, e a criança ficou desesperada e começou a chorar. O policial se pôs um pouco de lado e falou, delicadamente, que ela podia passar, o que ela fez correndo e sem titubear. Não me pareceu que a cena tenha agradado ao policial.
Mas ao dono do trailer... Ele, depois, comentava, se divertindo, a cena, como que dizendo que tinha razão ao querer aquele tipo de gente longe, e arrematava: “quem não deve não teme”. Olhei para ele; mulato, mas com o sucesso do trailer, pôde comprar um carro bom, dar condições para que os filhos entrassem na Unicamp, não deve morar na periferia, e sua fonte de
informação não deve ir muito além do Jornal Nacional. Fiquei com vontade de perguntar o que deviam aquelas crianças, mas preferi pegar meu lanche e sair logo, para não perder de vez o apetite com mais comentários de um típico “homem de bem”.
Se o dono do trailer, sua postura frente as crianças e o comentário da cena, me deixou revoltado, a cena me deixou triste. Fiquei a imaginar que representação aquela criança (assim como seus amigos) não faz da polícia, e do próprio Estado que ela representa. Pela idade, muito
provavelmente ainda não foi abordado ou sofreu uma geral da polícia, mas a imagem de homens-besta os policiais já possuem. Imagem que eu, branco, classe média, bem remediado, nunca tive – pelo menos para mim, quando criança.
Está na Constituição, e normalmente as pessoas que não se enquadram nos “homens de bem” queremos um Estado justo para todos, o qual começa por tratar a ricos e a pobres de maneira igual (mas de forma alguma a justiça se encerra aí!). Mas é evidente que isso não acontece. Pior: com a imagem que a polícia possui, não será tão breve que o Estado realizará esse preceito constitucional de igualdade. A tarefa do Estado, que hoje luta com o estado paralelo que é o crime organizado, não é somente de adentrar a periferia (falo em adentrar sem uso da truculência policial), oferecendo serviços e proteção, mas revolucionar uma imagem que vem desde tempos imemoriais, de descaso, na melhor das hipóteses, ou de violência, a qual talvez o desespero da criança frente o policial tenha sido uma boa síntese. Aqui minha tristeza, mesmo meu medo: ainda que olhando de longe, não vislumbro aberturas de mudança para um futuro próximo. Teremos que presenciar ainda por muito tempo cenas desse tipo e comentários daquele calão? Que futuro é esse que nos espera?
Os donos do país dizem atacar o Estado-Leviatã, essa besta-fera que destrói a liberdade; os desde sempre oprimidos se defendem do Estado-monstro (ou bicho-papão, no caso da criança), que só traz destruição, medo e (mais) violência; os “homens de bem” da classe média ficam amigos dos policiais, pregam “quem não deve não teme”, a tolerância zero (que deve começar de baixo, claro, ainda que admitam que o mal exemplo vem sempre de cima, dos políticos, todos ladrões), e sequer me dão nota fiscal.

Campinas, 21 de março de 2008