segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A grande imprensa e sua condescendência com atos fascistas

Começo falando o óbvio: diante do fascismo, ou você o afronta abertamente, ou você está pactuando com ele, na medida que dá brecha para que seja naturalizado como uma posição aceitável - até mesmo razoável - dentro do espectro político e das diversas formas de sociabilidade que uma sociedade moderna comporta. Por ser uma posição extremista, exige uma contraparte extrema também. A mídia brasileira já tem um débito enorme com o país por seu apoio ou sua omissão diante da ascensão de Bolsonaro e Moro (para não falar no golpe de 2016). Era sabido quem eram, de onde vinham, havia razoáveis indícios de por quais caminhos obscuros trilhavam suas trajetórias. Se calaram foi por não acharem tão grave, por acharem que controlariam os fascistas depois de assumirem o poder - assim como a direita liberal europeia confiou nas suas instituições, no século XX. A história não se repete, mas isso não quer dizer que não vá por sendas semelhantes.
Feita a desgraça de esgarçamento do pacto social de 1988 e da fraude nas eleições de 2018 (depois de quatro tentativas frustradas de golpes brancos), parte da mídia pula fora do barco fascista e finge criticidade - e ignora de que lado estava até um mês atrás. Não que não seja válido esse movimento, porém não se deve aceitar como um dos nossos, dos anti-fascistas, dos progressistas, apenas como aliados de ocasião, cujo apoio é importante agora e cabe abandonar tão logo não sejam mais úteis - sim, estou pregando uma ética estritamente utilitária (como defendem os neoliberais, ou seja, eles próprios) nestes casos.
Folha de São Paulo talvez seja o veículo mais avançado na oposição light a Bolsonaro. Já se fez de virgem no bordel quando o mandatário da nação disse que cortaria sua verba publicitária (e alguns amigos, infelizmente, caíram, fazendo assinatura digital, ao invés de apoiarem o jornalismo independente e deveras crítico); trocou críticos mais agudos por outros suaves, que batem em Bolsonaro mas contemporizam com parte da elite que apoia o governo, e atualmente tem publicado trechos da #VazaJato, o que mira o coração do projeto neofascista de periferia que as elites nacional e internacional têm para estes Tristes Trópicos. 
Contudo, o caminho para a integração do fascismo como norte político razoável persiste. Como já disse em outro texto, o fascismo entra pelas frestas [http://bit.ly/cG170601], está oculto no que nos pareceria, à primeira vista, uma afronta a ele [http://bit.ly/cG170315]. A forma como o jornal mancheteou as recentes investidas fascistas contra a cultura, na Flipei, em Paraty (RJ), e na feira do livro de Jaraguá do Sul (SC), mostra como nem mesmo a Folha faz oposição séria ao fascismo - talvez por não considerá-lo tão perigoso quanto o petismo conciliador de soma positiva (para usar jargão econômico) de Lula.
Sobre o cancelamento de Miriam Leitão e Sérgio Abranches no evento catarinense, a Folha, dentre os grandes veículos de fake news autorizada, digo, grandes veículos de mídia corporativa, é quem mais se preocupou em dar nome aos bois, mas fez isso discretamente, longe da manchete ou do texto de destaque: “Após protestos, feira do livro em SC cancela presença de Miriam Leitão - Evento em Jaraguá do Sul recebeu mensagens contra a participação da jornalista e do sociólogo Sérgio Abranches”. Mensagens de quem? É preciso ler a notícia para saber. Os outros veículos foram ainda piores. O Zero Hora, de Porto Alegre, por exemplo, tem como manchete: “Após receberem ameaças, Miriam Leitão e Sérgio Abranches são cortados de evento literário“. Sabendo quem é Miriam Leitão, um leitor desavisado mas não de todo desinformado, pode muito bem achar que a pressão se deu por “esquerdistas” - afinal, a esquerda que é violenta, vide a facada em Bolsonaro,e Miriam é uma reconhecia antipetista. A Folha, no trecho que a salva, comenta: “Ela é vista como oposicionista ao governo Jair Bolsonaro (PSL), presidente que teve na cidade 83% dos votos válidos na última eleição”. As demais publicações não foram além de divulgar o tom da petição online que barrou a jornalista, sem especificar de onde vinham as ameaças: “Por seu viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim, que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”. Ou seja, uma petição que pode ser tanto dos extremistas fascistas quanto dos "extremistas" "esquerdistas" - a mesma estratégia errada para a eleição de 2018, de pintar o PT e a centro-esquerda como extremo.
O caso da tentativa de atentado a Glenn Greenwald, em Paraty, também teve uma cobertura vergonhosa. O jornal dos Frias fala em “protestos”, “atos” e fogos para atrapalhar. Nada de atentado, de fogos para impedir de falar e tentar machucar [http://bit.ly/32pRjV4]. Pior foi o UOL, portal do grupo, que tinha como manchete: “‘Gringo de m...' e 'Lula Livre': Glenn leva gritos à Flip e polariza Paraty” [http://bit.ly/2YWYQsr], pondo o jornalista estadunidense como culpado pelos transtornos causados pelos fascistas: não fosse Greenwald e Paraty não teria polarização, seria o perfeito éden da harmonia social - faltou também dizer que os agressores eram cidadãos de bem agindo dentro do seu direito de tentar calar, ferir e, por que não?, matar alguém.
Não adianta Folha publicar reportagem contra a Lava Jato e seus métodos mafiosos, eventualmente se posicionar contra o governo Bolsonaro, se anunciar favorável ao diálogo e à razão, se ela tolera ações fascistas e as trata como expressões de que a democracia no Brasil vigora, de que “as instituições estão funcionando normalmente”. Mas falta à Folha sinceridade, coragem e boa fé (e vergonha na cara, também). Se tivesse, ela teria que assumir que não apenas se "equivocou" ao apoiar Bolsonaro, como mentiu ao tratar a esquerda brasileira como disruptiva da democracia ou das instituições - o único risco que PT e congêneres trazem é de diminuição dos lucros dos seus patrocinadores. O que a Folha segue a ignorar é que ou ela combate abertamente o fascisco - e isso significa, sim, "Lula Livre" -, ou não adianta depois ficar #chateada porque o fascista no poder não quer lhe abrir os cofres, ou resolver fechá-la de vez. Com fascista não se dialoga, não se pactua, a não ser que você seja um também.

17 de julho de 2019


quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Minimalismo: um documentário branco [Diálogos com o cinema]

Admito: o filme me chamou a atenção porque achei que dizia respeito ao movimento artístico e não a um movimento moral. Passada essa frustração inicial, decidi assistir ao documentário de Matt D’Avella, Minimalism: a documentary about the important things (Minimalismo: um documentário sobre as coisas importantes), em cartaz no Netflix (é assim que fala?).
O documentário mostra um pequeno período da vida de pessoas brancas com dinheiro suficiente para ter uma vida confortável sem necessidade de trabalho alienado que descobriram que não precisam mais trabalhar para ter uma vida confortável, desde que abram mão de alguns excessos. Parece tautológico, e é – na minha escala de valores, isso seria o bom senso: trabalho se preciso, se não, vou aproveitar a vida frugalmente. Minimalismo é uma “filosofia” de vida, uma moral, uma ética pós-moderna pseudocrítica que defende uma vida simples, apenas com o que é necessário. Aqui o filme poderia entrar na ótima questão do que é necessário, inclusive ressaltando nossa “segunda natureza”, como diziam Marx e os antropólogos, que nos (im)põe necessidades vitais para além das biológicas – e que são, em boa medida, legítimas. Mas o documentário, como parece ser a própria ética ali exposta, é para consumo rápido, não para refletir, questionar, pensar: é uma auto-ajuda um pouco menos tosca, um pouco menos caga-regras, e com algum potencial para críticas posteriores – se as pessoas estiverem aptas e dispostas a tanto.
Além da branquitude de todos (exceto um entrevistado de terceiro plano), chama a atenção que nessa vida só com o básico (levando em conta as necessidades culturais, deixemos claro), carro não é excesso, por mais que se possa locomover com outros meios de transporte; notebook Macintosh não é excesso, por mais que um aparelho de marca genérica seja capaz de alimentar um blog; uma casa de subúrbio americano, com todo seu fausto (e fastio?), não é excesso; ou se for, uma casa própria, ainda que hipercompacta, é imprescindível. Por mais que o discurso perto do final fale em aprofundar os laços comunitários, o tal minimalismo é uma ética profundamente individualista-possessiva, afim aos ideias americanos, liberais, neoliberais, apenas levemente repaginado pela pós-modernidade com ares do Vale do Silício. Comunidade é bom, mas minha propriedade primeiro. Não por acaso os dois protagonistas, que tomam a maior parte do filme, Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus – autores de um livro sobre a importância de não consumir o que não é essencial que saem em turnê pelos EUA vendendo um livro supérfluo –, conseguem facilmente adentrar a indústria cultural do país, em programas televisivos, para passar sua mensagem “revolucionária”, conforme o segundo negro que tem voz no filme, um qualquer que assiste à palestra dos dois. Seu potencial questionador é aquele que conhecemos aqui no Brasil com filósofos e historiadores pop, ou seja, inofensivo (dou o braço a torcer, Karnal ainda tem alguma substância, ainda que geralmente fique no rés-do-chão; Cortella é de uma precariedade constrangedora, não por acaso até Olavão e Pondé também se considerem filósofos).
Questionamento sobre o modo de produção? Muito superficialmente o filme passa pelo modo de produção de desejo, induzido pela publicidade, mas muito, muito, e bota muito superficialmente, sem nenhuma crítica, está ali só para lembrar: a publicidade nos induz a querer o que não precisamos. Às vezes. Talvez. Mas é do mundo ser assim, não reclamemos, apenas nos vacinemos contra, se for o caso. Produção material? E isso existe? Desigualdade de renda? De oportunidades? Questões sociais, definitivamente, não entram no horizonte dos minimalistas. Sequer a questão ambiental é trazida: não se apela aos desperdício de recursos naturais que a produção de lixo travestido de produtos traz, é tão somente uma tentativa de resposta super narcisista à crise do hedonismo desesperançado do consumismo desenfreado – menos mal que não se desenha, não no filme, como uma religião laica, onde há pecado porém não há deus. E nisso o título é explícito na precariedade dos ideais ali expostos, do egocentrismo, do etnocentrismo do tal minimalismo ético: ouso dizer que no mundo atual, as coisas importantes ainda são a fome, a miséria, o desmatamento, o trabalho alienado, a falta de perspectivas, questões que atingem a enorme maioria dos seres humanis; diminuir o consumo só é algo importante se você não passa fome, se você tem liberdade para escolher onde trabalhar, se vai trabalhar, se quer morar numa casa grande ou pequena, ter carro ou não. Com muito boa vontade, 10% da população mundial talvez esteja nesse patamar.
Ainda assim, para muitos, mesmo nestes Tristes Trópicos, Minimalism: a documentary about the important things pode ser um despertar da consciência. Se for alguém mais crítico – como este escriba se considera – vai ajudar a repensar alguns hábitos (e se indignar com tudo o que o filme negligencia). Se for crítico só até onde não incomoda (como certo pessoal das esquerdas (brancas) da zona sul carioca, zona oeste paulistana), vai aderir a uma onda que pode ser nova moda hypster de expressão da individualidade via consumo gourmet.

09 de julho de 2019

sábado, 6 de julho de 2019

João deixa a porta aberta

Sobre a partida de João Gilberto, dois comentários me chamaram a atenção, não exatamente sobre o mestre da bossa nova, mas sobre o que são estes tempos - e quem somos nós. 
Bob Fernandes comenta que sua partida neste 2019 inglório é um epitáfio para nosso país, nestes tempos em que vaia de bêbado - rico - vale; vaia transformada em panelas, patos, camisas da seleção brasileira, rezas de pastores endinheirados e editoriais sisudos de William Bonner ou entrevistas descontraídas com o Ratinho. A vaia que cala a arte, a política, o amor, o futuro.
Um dos meus bons amigo de São Paulo, restaurador de móveis, conta no seu Instagram [https://www.instagram.com/luizhansted/] quando, no início dos anos 1980, com seus seis, sete anos, ouviu pela primeira vez João Gilberto, e se encantou com "Falsa Baiana". Estava na casa da tia, que saíra para comprar cigarros e deixara o disco tocando: “Eu não mexia na vitrola de casa, imagine na da casa dos outros. Mas fui até ela e, com muito cuidado e medo de riscar o disco, voltei o braço para o início da faixa. Ouvi muitas vezes até minha tia voltar. É curioso e belo como as artes agem na nossa vida”. Eu vou além: é revelador como a arte é algo que exige e insufla coragem. 
Fazer, contemplar, desfrutar a arte é algo impossível de ser feito sem sair do lugar. Toda arte digna de ser chamada assim tem algo que incomoda, que perturba, que desloca - uma obra que deixa tudo como está é publicidade, usa elementos artísticos, não é arte. E o fascista, o reacionário, é um medroso, um pusilânime, alguém em pânico que se recusa a sair do lugar, a rever quaisquer das suas posições e atitudes. Para esconder essa covardia toda é que grita, se junta em grupos e milícias, ameaça, é por isso que é tão visceralmente contra a arte: porque a arte é para os corajosos. 
O artista, diante da grosseria, da barbárie, não se intimida, não pede desculpas, ele afronta, ele retruca: “vaia de bêbado não vale” - seco e direto, sem poesia, se o momento exige. A partida de João Gilberto talvez não seja um epitáfio, seja um aviso: não esperemos salvadores, sejamos artistas!

06 de julho de 2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

A morte, que nos joga o presente na cara.

“Viver é ir morrendo aos poucos”, me ensinou uma vez minha mãe, enquanto dividíamos uma dor. Quando for a nossa morte, a morte definitiva, biológica, essa, arrisco, nos será indiferente: não estaremos mais aqui – nem em lugar nenhum – quando ela nos encontrar. É no trajeto até esse  nosso encontro que a morte – seja a real, seja a simbólica – dói: parte da vida. 
O mundo atual tem dificuldade em lidar com a morte: criamos, inclusive, éticas super racionais que tentam negar a morte como parte da vida – e, admito, estou inserido nesse espírito do tempo, ainda que tente ir contra. Porém, a vida só subsiste com a morte: para as vidas que surgem é preciso que outras partam, até para a Terra sustentar todo mundo. Ouso ainda: a vida só faz sentido com a morte: a perspectiva de nosso fim é que dá sentido à nossa existência no mundo. E a morte nada tem de racional: ela chega quando chega, o fim é o fim quando acontece, e não porque se cumpriu um ciclo, se esgotou o que havia para ser. Em geral o fim chega no meio, interrompendo de chofre algo que prometia se alongar ainda muito tempo – não só prometia, desejávamos. E vai sobrar para quem fica a batata de lidar com isso, com a dor da perda, com o luto, com a existência rasgada em algo que era então praticamente essencial.
Talvez uma das coisas mais devastadoras de um fim seja nos jogar no rosto o presente, esse instante fugidio que parece sequer existir, e com o qual preenchemos de futuros, tentando nos antecipar aos instantes fugidios que virão a seguir – ou ao menos acreditamos que virão. E quando chega o fim – a morte –, nossa fantasia de que o futuro de fato existe é interditada. Vem a sensação de vazio, de solto no espaço. Todos nossos projetos, nossos planos, nossos sonhos, nossos desejos para aquela pessoa, aquela situação, de repente passam a ser mera ilusão – e eram tão reais até um segundo atrás: estavam ali, ao nosso alcance, bastava o calendário chegar, o relógio marcar mais meia hora!
Lidar com os cacos – de futuro, de presente, de si próprio, porque parte nossa estava em grande medida ancorada nessa quimera. Puxar o passado com a esperança de que isso aplaque nossa angústia, nosso vazio, que explique que tinha que morrer ali, que justifique aquela dor. Em vão: a dor está presente e de nada adianta a razão negá-la. É difícil estar sozinho essas horas – por mais que seja necessário: a solidão assola, amedronta, e se mostra em sua crueza.
Mas haverá uma hora que a vida se impõe, e recomeçaremos a preencher nosso presente de futuros e projetos, com base em novas fantasias – ou se apoiando mais firmemente em velhas -, desejando que dessa vez o fim não venha, tentando abafar a angústia de saber que a morte é nossa única certeza – sorrateira e iminente –, fingindo ignorar solenemente que, a não ser que nossa morte venha antes, essa dor voltará – porque viver é ir morrendo aos poucos.

02 de julho de 2019

PS: por coincidência, o professor Roberto Romano faz uma postagem hoje em seu facebook intitulada “Sobre a dor na separação”. Indica o livro A separação dos amantes, do Igor Caruso. A ver se não revejo minha posição...