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quarta-feira, 15 de maio de 2019

15 de maio: a flor e a náusea (outras flores virão?)

Com atraso, muito atraso – três anos e um dia, desde a posse de Michel Temer, para ser mais exato -, as pessoas envolvidas com educação – professores, estudantes, gestores, pais, cidadãos – parecem ter finalmente conseguido se organizar e se articular minimamente para fazer frente o desmonte da educação no Brasil – em especial a pública, mas não só.
O mérito dessa organização cabe a Abraham Weintraub, ministro da educação (sic) do governo (sic) Bolsonaro. Pode ser que tenha sido um lance estratégico, dando ensejo aos protestos de hoje, os quais serão subvertidos pela narrativa (oficial) distribuída por WhatsApp, favorecendo o governo; mais provável é que seja só ignorância, incompetência e incapacidade do ministro (a exemplo de todo governo).
Os protestos foram bonitos, tranquilos – com a polarização violenta da sociedade estimulada pela extrema-direita (nisto inclui Globo e similares), temia certa quebradeira por pessoas ali postas para isso, ainda mais diante dos poucos policiais que faziam a proteção das pessoas – e grandes. Tive a impressão de que sequer no ato da Paulista em defesa da democracia e contra o golpe, pela permanência de Dilma, com o Lula, tinha tanta gente – talvez as duas manifestações estivessem pau a pau, inclusive numa certa “energia” que corria entre os manifestantes. Mais que isso, convém reparar na guerra de narrativas: eu chegava em São Paulo às duas da tarde, hora programada para o início do protesto na capital, e a rádio do grupo Globo girava o país comentando como estavam os protestos – uma narrativa “neutra”, que comentava da pauta da reforma da previdência e no grande número de pessoas, sem elencar os problemas para as pessoas que queriam passar de carro pela Paulista e não podiam. Sem comprar o discurso de fora Bolsonaro, sem chamar os patos para a avenida, porém sem também deixar para dar uma nota curta no jornal da noite, no curto exemplo que tive, a Globo se abriu ao jornalismo sério como disfarce para fustigar o governo – e isso não é pouco, dada a pouca fibra do presidente e dos seus, é bem possível que ele sinta a pressão.
Contudo, o que realmente chama a atenção é só agora acontecer uma reação de tal monta, sendo que elementos tem sido dados desde o segundo governo Dilma, mas em especial desde o golpe de 2016: a ponte para o futuro, desvinculação dos recursos do pré-sal para a educação, a PEC dos gastos públicos (que não com juros), a reforma do ensino médio – tudo isso justificado pela mídia, pelos especialistas a serviço da mídia, pelo ilustrado ministro Barroso. Única reação digna de nota foram dos estudantes secundaristas ao fechamento de escolas, em 2015, ainda antes da Blietzkrieg golpista da trinca judiciário-mídia-capital. Não apenas isso: a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 22 de março, por parte de Doria Jr e sua base, para investigar “desvio ideológico” nas universidades, é motivo suficiente para as estaduais paulistas estarem paradas, por ordem do reitor – que ou não entenderam a situação, e não perceberam que tem sua cabeça a prêmio, ou estão dispostos a agir a la Ernesto Araújo e em troca de poder para agora, entregam tudo (e todos) o que o chefe mandar. As universidades, porém, preferiram fingir que o ataque à sua autonomia não era com ela.
No plano federal, a inabilidade de Bolsonaro tem mostrado um tiro no pé das elites que o puseram lá, para afastar o sapo barbudo ou seu sucessor. Temer, político habilidoso, tinha deixado pronto o desmonte da educação pública de modo lento, gradual e seguro. Bolsonaro, ao acelerar o processo, articulou a reação e pode pôr tudo a perder. O corte de 30% nos orçamentos das universidades públicas, os cortes gerais na educação, as ameaça de fim de humanidades nas universidades, a ameaça de ensino residencial (homeschooling) são o escancaramento do que Temer tinha posto no horizonte, sem maiores reações. Primeiro com a PEC 95 (aprovada no dia em que caiu o avião da Chapecoense), que congelou gastos sociais por vinte anos – e entre tirar da saúde, segurança ou educação, é bem evidente que educação seria escolhido, por não ser algo de efeito imediato. A seguir, sua reforma no ensino médio, que tirou as ciências humanas – filosofia, sociologia, história – da grade obrigatória, e permitiu que parte das disciplinas fosse à distância (EaD). No médio prazo o que isso implicaria? A EaD diminuiria o mercado de trabalho para professores, diminuindo a demanda (e a sua necessidade, segundo a leitura dos cabeças de planilha) desses cursos. Os cursos de humanidades cuja principal ocupação é lecionar, sem a obrigatoriedade, tende a cair ainda mais (a concorrência em filosofia na Unicamp, por exemplo, foi de 5,1 candidatos por vaga em 1997, para 10,9, vinte anos depois, motivado, em boa medida pela abertura do mercado de trabalho nas escolas, durante o governo Lula); menos procurados, seriam cursos que poderiam ter suas verbas cortadas com “melhores” justificativas, de modo a acomodar a universidade no arrocho orçamentário imposto pela PEC. Ao cabo, primeiro os cursos de humanidades nas universidade públicas minguariam (nas particulares já são minguados), logo as próprias universidades – talvez os hospitais passassem para a pasta de saúde, como forma de garantir o funcionamento daquilo que boa parte da sociedade vê como único serviço prestado pelas universidades –, e isso, ao que tudo indica, sem maior alarde, sem conseguir mobilizar a população na sua defesa.
O ponto agora, uma vez que as pessoas preocupadas com a educação e com a educação pública no Brasil conseguiram se organizar, é manter a mobilização e levá-la para além de pautas reativas, de negação, incluindo no debate público problematizações e propostas positivas: a forma como a educação – tanto a básica quanto a superior – tem sido atacada e modificada, sem discussão com a população, com os interessados e com especialistas da área, e sem maiores reações da sociedade, mostra que há, sim, uma percepção de que algo não vai bem. Se acaso se centrar em voltar ao que era, este movimento iniciado dia 15 de maio não vai conseguir angariar apoio necessário para fazer uma contraofensiva aos desejos dos donos do poder (e não apenas dos ocupantes de turno do Palácio do Planalto). Assim como é urgente revogar os cortes nos orçamentos das universidades e retomar a vinculação das receitas do pré-sal à educação, é preciso propor uma discussão de ampla reforma da educação, repensar a função da escola (ainda faz sentido uma escola tão conteudista num tempo de internet? Melhor não seria centrar em aspectos de relações inter e intrapessoais?), o papel do ensino na vida de uma pessoa (é só meio para ascensão social, ou pode fazer sentido no momento presente do aluno?), a inserção da universidade na sociedade. É preciso que escolas e universidades se abram ao seu entorno (o projeto dos CEUs da Marta Suplicy é um bom exemplo), dialoguem com todos – dialoguem e não façam palestras -, entendam carências urgentes do grosso da população que não são contemplados pela universidade e conciliem isso com necessidades de médio e longo prazo de toda nação.
Foi aberta uma brecha, como a flor no poema de Drummond. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio." As forças democráticas e de esquerda da sociedade precisam aproveitá-la!

15 de maio de 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O judiciário como linha de frente no avanço neofascista [Zeitgeist 2033]

O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche, "o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos [um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente [...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução comum para essa diversidade de questões". 
"Nação em cólera em período de crise". Para além do momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico, hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI, novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que trabalhava para empresas chinesas,  preso desde 2017, teve sua prisão confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu [https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Possuidora de três grandes reservas petrolíferas - México, Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política - popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais - seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina, Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras, Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento, daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos "inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua "revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA, a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento. 
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas, antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas, um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente" as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos, como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...

11 de janeiro de 2019

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O espantalho de 2013

O movimento dos coletes amarelos na França têm feito muitos verem semelhanças com as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil, e torcem contra, por ser, pretensamente, um movimento de extrema-direita. Surpreende que muitos que fazem análises nessa linha são professores universitários - não raro marxistas -, que parecem presos demais aos livros para entenderem a história, que não quando contada a devida distância. Os "deve ser!", os "es muss sein!", das revoluções só são necessários porque aconteceram - até o momento derradeiro eram possibilidades em disputa, com infinitos devires de possibilidades -, e a pretensa pureza do movimento e de seus participantes é uma ideologia moderna que boa parte da nossa sociedade insiste em acreditar - mesmo os que denunciam ideologias mil mundo afora.
Já li acusações de que o MPL - Movimento Passe Livre - teria sido financiado com dinheiro da direita, para desestabilizar o governo petista. Se assim fosse, a direita não necessitaria criar um movimento cacofônico naquele instante, o MBL. Se o MPL ia de escola em escola agitar os protestos, o MBL foi um ensaio do uso das novas tecnologias - aliadas às velhas mídias - para mobilização popular. Também ignora-se que o MPL agia desde muito com a bandeira do - vejam só! - passe livre, e contra reajustes nas tarifas. O que houve diferente em 2013 foi o contexto, o caldo criado, insatisfações latentes que eram engolidas junto com o Big Mac e o refrigerante de dois litros, nos churrascos do fim de semana, nas prestações do carro e da casa nova. Como comentou Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept_Brasil, as novas mobilizações - junho de 2013, rolezinhos, greve dos caminhoneiros, coletes amarelos na França - são mobilizações espontâneas, ambíguas, com sua direção desde sempre em disputa e seus participantes de forma alguma coesos [http://bit.ly/2zMeVqf]. O ponto é que a direita tinha alguma estratégia e muito dinheiro, e foi capaz de direcionar o movimento - inicialmente de esquerda -, enquanto a esquerda cobrava pedágio de pureza de ideias e ideais para acolher quem ia às ruas, se negava a ouvir e dialogar de fato com quem não aderia desde o princípio com suas teses, e acreditava demais na democracia liberal-burguesa e no determinismo histórico (ainda que sempre discurse no sentido contrário)
Junho de 2013 foi um ponto crítico, um catalisador de insatisfações, que tomou uma direção que a esquerda não esperava - o agir político para boa parte da esquerda, desde a ascensão petista, foi um esperar e assistir e publicar alguma análise crítica em revista indexada. E boa parte dessa esquerda segue achando que ação política é esperar, e os grandes momentos acontecerão quando tudo estiver pronto, e o que vier antes é farsa e manipulação. A esquerda perdeu a noção do tempo kairótico, talvez porque tenha desaprendido a enxergar o mundo diretamente, na angústia do sem sentido que se desenrola à nossa frente, sem controle e com mil possibilidades. De modo algum, contudo, as jornadas de Junho de 2013 foram inauguradoras do mal estar, criadoras de algo novo - no máximo ajudaram fomentar o que já vinha sendo cevado nos meandros da sociedade, sob nossos narizes. Falo isso porque reli recentemente três artigos da edição 12 da revista Casuística. artes antiartes heterodoxias, que fui idealizador e agitador, entre 2009 e 2012. São, portanto, quase um ano anteriores a junho de 2013, seis anos anteriores à emergência fascista das urnas de 2018. Nesses três artigos estão explicitados o neofascismo paulista (texto de Anna Coloda), as fake news (ainda nomeadas como mentiras) aceitas como mentiras, mesmo, sem necessidade de lastro com a realidade (texto meu); e o desejo de autoridade violenta, do juiz que quer ser general, "a justiça dos carrascos que punem antes de julgar" (texto de Cassio Correa); encerra o bloco uma foto de Natasha Mota, quatro crianças negras vislumbram um horizonte em aberto.
Parar as análises em 2013, como muitos doutores tem feito, é pedir para falhar fragorosamente novamente diante das urgências do presente. Os fatores que levaram à vitória (temporária) do fascismo vem de antes - e ouso dizer, os questionamentos da década de 1960 são os que tem emergido nestes anos 10: as resoluções do sistema aos problemas e insatisfações levantados naquela década caducaram e essas mesmas insatisfações e problemas ressurgem (num novo contexto, claro, mas no seu cerne, muito próximos). Ou abandonamos o espantalho de 2013 e partimos para um questionar profundo da produção, da sociabilidade e da mobilização política neste século XXI - acompanhado de tentativas de reorganização da mobilização política, com vistas a novas formas de sociabilidade e produção -, ou seguiremos em discussões acadêmicas beletristas e estéreis enquanto eles ganham as almas de trabalhadores e desempregados e fazem a guerra contra quem reagir à destruição do mundo que almejam.

05 de dezembro de 2018

Os textos da Casuística, páginas 24 a 30 (www.casuistica.net)

Neofascismo à Paulista (Anna Coloda)
O movimento de recrudescimento da direita fascistóide é visível em todo o país: militares queimam documentos enquanto a sociedade civil, Veja à frente, defende torturadores e, por conseqüência, a tortura – para não falar na “ditabranda” brasileira, conforme a Folha de São Paulo –, sob a desculpa de punição para os dois lados – o que significa punição dupla para torturados ou prescrição de crimes contra a humanidade.
No estado de São Paulo, sob a égide do PSDB, esse movimento ganha cores neofascistas, ao se tornar bandeira eleitoral e política de governo – a ponto de dar legenda para um jagunço disfarçado de policial. Fato para ser lamentado por todos os que defendem a democracia, dada as diretrizes que deram origem ao partido. Liderados pela dupla Serra-Alckmin – um dia antagonistas no partido –, o PSDB se tornou refugo do malufismo – a foto de Lula e Haddad com o próprio, assim como o discurso “tradição, família e propriedade” da propaganda petista, é mostra da tentativa de evitar a sangria desse eleitorado conservador-tosco, em nome de um projeto de poder.
As ações contra populações carentes – cujo exemplo mais simbólico é Pinheirinho –, os programas de assepsia social oficiais e extra-oficiais da cidade de São Paulo – Projeto Nova Luz, “limpeza” da cracolância dos nóia, reiterados e inexplicados incêndios em favelas –, para não falar no “atire antes, pergunte depois”, prática que se inspira no velho bordão “Rota na rua” – apenas prescindindo da Rota, ao se tornar ação corriqueira e banal de toda a PM do estado –, mostram que o partido caminha para agradar um nicho eleitoral que, a princípio, pretendia acabar. O discurso eleitoral de Serra e seus apêndices jornalísticos – em especial o mentiroso Folha de São Paulo –, em 2010, é prova que o PSDB, perdido com a reorientação conservadora na política econômica do PT, aceitou se diferenciar dele no quesito direitos humanos.
Se enquanto política de governo isso assusta – e quase chega a surpreender, mas não esqueçamos da criminalização dos movimentos sociais durante os anos FHC –, enquanto ideologia é velha conhecida dos paulistas. Talvez o que tenha mudado ao longo dos anos, que dê uma cara mais moderna a esse neofascismo seja a troca do discurso contra “raça” em nome de discurso (e atitudes) contra “escolhas”: não se discursa mais sobre a incompetência de negros, mas dos favelados; não são mais os nordestinos que emporcalham o Estado e a cidade, são os homossexuais. Persiste, de qualquer modo, o velho orgulho paulista, da locomotiva do Brasil (mesmo que já tenhamos visto o Concorde ser aposentado e planejarmos um trem em alta velocidade, São Paulo segue sendo uma locomotiva. Emblemático), em que “nove de julho é dez”. Para além das práticas políticas e policiais, o neofascismo paulista é visível em algumas representações artísticas.
No coração financeiro da capital, próximo ao Masp, se levanta em sua sisudez que lembra o neo-clássico-nazista – uma releitura racional dos modelos classicistas – o prédio do Bradesco. Pela ideologia ensinada nas escolas do grupo, em que crianças são submetidas à ética do trabalho, à anulação de demonstrações de personalidade e execrados em qualquer demonstração crítica, a arquitetura do prédio da Avenida Paulista é o que menos choca – no natal, em sua decoração kitsch, até ajuda a fazer a festa da família paulistana.
Na música, o grupo de rock Ira! ofereceu por duas décadas os hinos da intolerância paulista. Eles, que queriam lutar, mas não com a farda brasileira, não tiveram pudores em cantar contra a gente feia e ignorante, em favor de gente da sua terra e do seu sangue (quer algo mais nazista que isso? Nasi poderia responder). “Pobre Paulista” talvez seja o hino mais bem acabado de uma época, em que nordestinos eram acusados pelos males paulistas – intolerância essa que se aplacou com a escassez de empregadas domésticas. Aplacou mas não acabou: o problema do nordeste que só faz festa e vive às expensas de São Paulo, que é onde se trabalha, continua – e tem voz mesmo entre professores doutores em políticas educacionais das universidades estaduais paulistas. Para o consumo interno, a ira paulista apenas trocou de foco, como dito acima: o neofascismo paulista não vê problemas na agressão contra homossexuais, pobres, esquerdistas – seja feita por civis ou militares. Os chamados “excessos”, como a morte de um publicitário que não parou em uma blitz, são acidentes lamentáveis, mas plenamente justificáveis.
Onde essa política higienista irá acabar? Não sei, e tenho medo: não vem de agora, não é obra de um partido – que um dia se pretendeu progressista –, é algo que vem arraigado, e que, a depender da educação oficial, apenas será aprofundado. Não se trata de cair no maniqueísmo bem e mal, mas não é o caso de ser indiferentes, pois, como a música do Ira! atesta: é ódio mortal.

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“Quem não reagiu está vivo”: a mentira aceita como mentira (daniel gorte-dalmoro)
O desenho estatal contemporâneo é fundado e dependente da mentira. Não existe Estado se não na mentira.
A mentira ideológica, tão denunciada por marxistas, de que o Estado não é neutro, antes um órgão de uma classe específica, destinado a favorecê-la, em detrimento da grande maioria da população. Aos que rejeitam de cara essa visão, convém dar uma olhada na proporção de renda da população e dos que teoricamente são seus representantes no legislativo – e isso pode ser no Brasil ou nos EUA.
Outra mentira é o chamado “segredo de Estado”. Acreditar que um Estado possa existir sem segredos – e mentiras, que não raro são necessárias para ocultar tais segredos – é desconhecer a essência do Estado. Não existe possibilidade de novas relações entre Estado e sociedade, é tudo ou nada. Maior transparência não significa fim das mentiras. A perseguição a Assange é mais necessária do que a qualquer grupo terrorista – pois estes desestabilizam governos, aquele é capaz de chacoalhar Estados. A questão que o wikileaks põe é: o que pôr no lugar?
Há ainda a terceira mentira, tratada no século passado como “mentira totalitária”, em que a verdade empírica perde poder de veridicção sobre si própria, ou se torna irrelevante, porque a mentira passa a ser aceita como mentira, mesmo. Mentira e verdade deixam de ser polos antagônicos e passam a conviver pacificamente conforme o interesse do momento do governo, de uma classe, de um grupo. A lei passa a ser relativizada, e o Estado se desobriga de cumpri-la, uma vez que a mentira tem autoridade sobre a verdade.
Falar em “verdade” e “mentira” pode soar um tanto absoluto. Reconheço que são termos que podem ser postos em dúvida. O ponto aqui não é que a verdade seja posta em dúvida: a verdade Estatal já é sabida de antemão mentirosa, sem chance de réplica dos fatos, e isso não é tido como um problema.
Em 2 de outubro completam vinte anos de um dos muitos lamentáveis atos de barbárie do Estado brasileiro. O assassinato imediato de 111 pessoas indefesas pelo Estado (a se acreditar nos seus números oficiais, altamente questionáveis), para não falar nos mortos em decorrência de doenças contraídas na chacina.
111 deveria ser um número interdito no Brasil: em memória do silêncio daqueles que não puderam se defender de cães treinados para matar, o silêncio dos que sequer tiveram direito a clamar a verdade dos fatos, o número real de mortos, as condições em que foram mortos – e, antes disso, na qual eram tratados.
Ao contrário disso, o que temos? O assassino-mor, Antônio Fleury (sobrenome que só tem a marcar negativamente a história brasileira), livre, leve, solto, eventualmente eleito. O comandante da época, Coronel Ubiratan Guimarães, até ser morto em crime passional, se candidatava com grande orgulho das 111 pessoas que assassinara – e ganhava.
“Quem não reagiu está vivo”. Essa frase é sempre mentirosa quando dita por um agente do Estado.
Nos teóricos clássicos do Estado, este é fundado para garantir, antes de tudo a vida. Diante de um Estado que a desrespeita, é legítimo se voltar contra esse Estado. “Quem não reagiu está vivo” é mentirosa, contudo, não só por isso: com a mentira generalizada institucionalizada, todos sabem que as pessoas foram assassinadas indistintamente de terem reagido ou não. Por que alguém que está sendo julgado pelo tribunal do crime iria reagir contra a Rota? Por que e com o que um publicitário desarmado iria reagir contra a PM? Que espécie de confrontos são esses que os tiros saem sempre só de um lado? Só a Rota já matou 45 pessoas em 2012: o PCC tem toda razão de existir e agir.
Não que os chamados “bandidos” sejam bonzinhos, ou matem menos que polícia, mas a partir do momento que a polícia age como “bandida”, perde razão de ser, se torna tão bandido quanto aqueles que diz combater: escolher quem mata menos é uma falsa escolha.
Se a polícia não dá garantia, muito menos dão os responsáveis por ela. Geraldo Alckmin, acima de todos, ainda que ele não possa ser elevado a bode expiatório: é política de seu partido, o PSDB paulista, criminalizar movimentos sociais, populações carentes e usar de meios paralegais para combater pessoas abaixo de uma certa linha de renda – não existe auto-combustão em favelas, por mais que a mídia divulgue essa outra mentira estatal, sabida mentira, e aceita assim mesmo. É bandeira do seu partido e com fortíssimo respaldo na população. “Quem não deve não teme” é mentira também apregoada. Se a polícia não respeita a lei, como saber o que temer? No crime, ao menos, sabe-se que suas leis são cumpridas.
Resisto em chamar de neofascismo a esse movimento que toma São Paulo. Há várias similaridades entre a política tupiniquim atual e a do Partido Nacional Socialista Alemão, sim, mas há muitas diferenças também – de contexto, antes de tudo –; acho que o termo causa um certo choque, o que poderia ser positivo, mas simplifica em demasia a questão e impede uma crítica mais acurada do que está acontecendo agora, século XXI.

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Cartão vermelho (Cassio Correa)
O juiz vem correndo, com o cartão já empunhado. Sacou, como arma. Como revólver que atira. Não reflete, não analisa – arranca, com voracidade.
Estica a mão, furando o céu da expectativa, rasga o ar pesado com sua faca vermelha. O braço estica, catarse, como um zagueiro que tira de cima da linha. A cara se contorce, o olho fecha, e abre, com a justiça dos carrascos que punem antes de julgar. Prazer, gozo, ordem.
O juiz de futebol é carrasco, executor – não árbitro. É choque, não mediador.
O arbítrio é substituído pelo autoritarismo. Não falo com ninguém, sai daqui, sai daqui, diz, negando réplica, recurso, argumento, conversa. Sai daqui, aponta os dedos pra longe.
Vem o capitão (ó capitão, meu capitão). Sai daqui, eles gritam, ninguém entende, já não são palavras. Ah, é? Saca o amarelo e interdita a palavra. Vai falar mais? Vai? Sai daqui!
Nas cabines de comentários (ó comentário), seus mentores aplaudem a restauração da ordem. Manutenção do estado de direito de permanecer calado. Ele quis controlar a partida. Ah, o controle… A partida controlada, a palavra controlada, Batman devolvendo a paz à partida. Dizem: são garotos mimados, precisam de controle. São divas ricas, precisam de controle. São malandros, precisam de controle. O controle (dizem) que a cidade não tem…
A cidade, com suas catracas e viaturas nas esquinas.
Autoritarismo. É esse o caminho das coisas, aqui, Brasil, século XXI.
A escola é autoritária. A universidade é autoritária. Cada vez menos se admite a participação dos alunos nos rumos do seu próprio aprendizado. Qualquer contestação deve ser resolvida por uma mão pesada, dita dura, que dissolveria os problemas. O fracasso aumenta e faz aumentar o pedido de mordaça, no espaço da sociedade em que mais se espera o diálogo.
Nas ruas? Só a força do cassetete pode salvar. Limpar o resto de gente que fica nas calçadas. Expulsar o povo, transformando a cidade em deserto. Bandidos e mocinhos autoritários, brincando de guerra com a cidade. Dando cavalos de pau com seus camburões.
No trabalho? É só assim que o trabalhador vai entender seu lugar na máquina social. Que se cale. Sai daqui! Sai daqui! Há um direito divino em cada chefe, guiando seu povo pelo moedor de carne. O trabalhador moderno não questiona. Precisa entender hierarquia, mesmo que errada, mesmo que injusta. Se questiona, rua. Se rua, cassetete.
E a justiça? Há um homem e sua capacidade de julgar. Há a defesa da propriedade dos tabletes de manteiga furtados nos bolsos magros dos famintos. Há o livre-arbítrio pra desumanidade das corporações. Audiências que não escutam as partes, sentenças dadas como raios divinos, desprezo e humilhação contra aqueles que invocaram o que se chama justo.
Lembram do tanque de guerra na Praça da Paz? Esses juízes torcem para o tanque.
E o esporte, enfim, com seus presidentes vitalícios – generalíssimos que justificam o esporte controlado (na mão deles).
No Brasil, primeiro se atira, depois se impede a pergunta.
O país do futebol é um país, afinal.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Banca do Enem cava trincheiras na defesa da democracia e da educação

Os elaboradores do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) cavaram importante trincheira contra os retrocessos no país, em especial contra o Escola Sem Cérebro, conhecido popularmente como "Escola sem partido". Também é um tapa em quem acha que corrente de WhatsApp e meme no Facebook servem para se informar. Não apenas pelo conteúdo, mas pela forma, o Enem marca uma forte posição de resistência. 
Fiz o exame: foi uma prova pesada, cansativa, muito texto e grande exigência de interpretação - não se tratavam de pegadinhas, mas de pegar filigranas do texto. Não sei se em anos recentes era assim (o último Enem que fiz foi em 2011), mas cada questão se referia a um ou dois textos (no meu tempo, a ordem era inversa: duas ou três questões se referindo a um texto). Textos curtos mas densos, com questões pedindo interpretação fina do que estava exposto. Se a atual geração está acostumada a ler no tapa, passar o olho e achar que entendeu, o Enem foi um tapa na cara. Não eram questões difíceis, mas exigiam olhar atento e preparação de maratonista - ou os alunos reaprendem a ler com atenção ou falharão no Enem.
O conteúdo das questões também foi para não deixar dúvidas sobre se houve golpe ou movimento em 1964, se existe ou não gays no mundo, se feminismo é coisa de esquerdopata ou mobilização em favor de direitos sociais, que o racismo está presente na vida de milhões de pessoas e não é vitimismo (o poema "Quebranto", do poeta Cuti, foi uma porrada poética no meio da prova).
A redação me fez lembrar de Jânio de Freitas, e da Folha de São Paulo, numa época em que o jornal valia a pena, com a divulgação velada e antecipada dos vencedores dos leilões ferroviários no governo Sarney. Talvez a banca que elaborou a redação não imaginasse o vitorioso, porém já sabia dos métodos que seriam utilizados pelo candidato fascista.
Não sei como funcionam os contratos de quem faz o Enem, é certo que se a banca não puder ser substituída ou não forem usados meios pouco ortodoxos de pressão, o exame desponta como resistência ativa ao Escola sem partido, e põe as escolas que já aderem ao programa - por medo de represálias dos pais, má repercussão na mídia ou adesão ao fascismo, mesmo [https://bbc.in/2JEkQBo] -, em aporia: se aderirem ao revisionismo fascista, muitos de seus alunos fracassarão retumbantemente. O Liceu Jardim, de Santo André, por exemplo, que se orgulha de ser a 16ª escola no ranking nacional do Enem: se tivesse aderido no início do ano ao fascismo, teria despencado nesse ranking (furado, entretanto esse é outro assunto), com os pais revoltados por terem gasto dinheiro numa educação de segunda, que sequer prepara para o Enem. Para sua sorte, aderiu ao Escola sem partido e demitiu a professora de história que salvou seus alunos apenas neste fim de ano [http://bit.ly/2RCW6fL], na semana do Enem. É de se questionar como fará ano que vem, para não perder alunos nem a fama, talvez crie uma disciplina extra, "fake news para Enem", poderia ser EaD apresentada pelo próprio presidente da república bananeira.
É esse o xeque dado pelo Enem 2018: ou se modifica drasticamente o exame, e transforma numa prova de conhecimento de whatsapp e youtubers, ou as escolas (em especial as de classe média, média alta) se verão obrigadas a comprar a briga de professores e da parcela democrática da sociedade em defesa de uma educação plural e de qualidade.

05 de novembro de 2018


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eleições 2018: Balanço prévio de perdedores e vencedores.

Reitero o que disse ao fim do primeiro turno: esta eleição é uma grande perda para todo o Brasil - e seria mesmo com vitória de Haddad. Porém, vou dar uma analisada em mais detalhes diante do resultado das urnas (não fraudadas, apesar do processo eleitoral fraudulento). 
Há quem veja alarmismo naqueles que dizem que a eleição de Bolsonaro é o fim do nosso breve interregno democrático (de baixa intensidade, mas ainda assim, algum respiro democrático). As instituições estão funcionando, dizem, e sou obrigado a concordar com essa constatação e por isso digo com mais segurança ainda: a democracia caminha célere para a tumba. Porém, como padeço de otimismo inveterado, creio que não é uma marcha inexorável. Se as forças democráticas (progressistas em especial, mas não só) souberem se organizar e agir com inteligência, a dominação neofascista-neoliberal, em alta atualmente, pode não conseguir se firmar: a experiência histórica, aliada às novas tecnologias, os novos meios de comunicação, permitem novas formas de articulação e resistência, em que comunidades solidárias micro podem caminhar juntas com articulações macro - a onda espontânea de escuta e diálogo que tomou os últimos dez dias de campanha me parece ser um ponto de partida importantíssimo: deixar uma parte da população sob aviso de que há pessoas dispostas a ouvir e acolher, para quando a decepção com Bolsonaro começar (e ela começará em breve, a não ser que haja uma guinada fascista na economia também, por ora descartada). Agir sorrateiramente, menos passeatas e mais "passeios": a possibilidade de construção de uma narrativa - ou das bases para uma narrativa - pró democracia é grande.
O PSDB, como eu já anunciara em 2016, acabou enquanto opção democrática. O murismo de FHC, o vai e volta de Huck, e a vitória do fascista de cashmere em São Paulo devem levar os tucanos a hastearem sem peias a bandeira fascista e à debanda de figuras históricas, mesmo as mais à direita. Doria Jr. se apresenta como o fascismo de bom gosto (sic), para desfilar no exterior, e tem tudo para ser a oposição a Bolsonaro dentro do mesmo campo.
Ciro Gomes caiu na armadilha que engoliu vários expoentes nacionais: a política baseada no ressentimento. Cristóvão Buarque, Marina Silva, Marta ex-Suplicy são alguns exemplos de políticos que abdicaram da personalidade pública pelo próprio ego e desapareceram. Ciro talvez consiga contornar essa sina - afinal, é um coronel -, mas terá dificuldade em recuperar sua imagem nacionalmente: se se apresenta como alguém bem preparado, ganhou também a pecha de fugir no momento decisivo, e deixar o orgulho se sobrepor ao espírito público - seu passeio pela Europa não vai poder ser vendido como estratégico (juro que de início tentei acreditar que articulasse algum apoio internacional, para um retorno triunfal).
Uma pena, Ciro poderia vocalizar parte importante do antifascismo, um público reformista, que sabe que as instituições faliram, mas creem que um "coronel esclarecido" saberia encaminhar uma reforma sem maiores traumas. Por ora temos Boulos, com ativismo mais de base; Haddad, com penetração em meios mais ilustrados e "moderados", "habermasianos", com possibilidade de se firmar como expoente do "pós-petismo", apesar de ser do PT; e Lula e o PT, em um universo mais popular e menos organizado - e um dos papeis do lulo-petismo atual seria marcar uma clivagem social "identitária", de modo a forçar novos termos do debate (para além de nordestinos, ou assistidos, e também mais complexa que questões de gênero). Há espaço, portanto, para um antifascismo mais estridente que Haddad mas menos chão de fábrica que Boulos (Requião, se tivesse sido reeleito, talvez; não sei qual seu apelo longe da tribuna). Nesta luta contra o fascismo, parte da esquerda vai ter que aprender que vencer vale mais que "vitória moral" (Freixo ganhar a prefeitura do Rio com apoio da Rede Globo, em 2016, teria sido muito melhor que permanecer imaculado mas deixar a cidade para o bispo da Universal). Identificar coronéis dispostos a resistir junto, e abraçá-los criticamente, mas abraçá-los (não que sejam confiáveis, mas pelas últimas movimentações, Renan Calheiros e Gilmar Mendes seriam duas dessas figuras importantes neste início de luta contra o fascismo).
Quem perde também é a igreja católica e a Rede Globo. Provavelmente a igreja será posta em aporia: ou extirpa seus ramos pastorais sociais, ou sofrerá perseguições. Se aceitar a chantagem, deixa a avenida livre para evangélicos assumirem a hegemonia religiosa; se resiste, tende a definhar mais lentamente (Juliana Cunha alertou que a educação básica à distância é um ótimo negócio não apenas para conglomerados educacionais, como para as igrejas evangélicas, que poderão abrir seus salões para os pais deixarem as crianças, doutrinando-as enquanto têm "aula"); talvez sua maior chance seja dobrar a aposta e incentivar o trabalho de base, mas a cúpula brasileira é conservadora demais, e prefere seguir o bispo Macedo ao Papa Francisco, como deixou claro o bispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta (que alega não ter declarado apoio ao candidato, mas os gestos de seus funcionários mostra bem o espírito que animou a visita de Bolsonaro), além de tantos padres de paróquias.
Já os irmãos Marinho tem tudo para seguir o destino de seu precursor, Assis Chateubriand, defenestrado pela ditadura cujo golpe apoiou. Não basta a perda de importância da mídia tradicional, o que já diminui seu poder, a Globo deixará de ser a rede oficial do poder - enquanto Lula deu sua primeira entrevista aos Marinho, Bolsonaro deu a Macedo. Tentarão ser mais realistas que o rei, na expectativa de não serem liquidados, porém é óbvio que a Record será a nova porta voz oficial, com consequente aumento nas receitas. É esperar para ver os próximos capítulos (inclusive o quanto suas novelas ganharão um ar mais recatado, do lar e evangelizador). Para agora, não consigo vislumbrar saídas à emissora, muito menos de ela caminhar para a oposição, uma vez que Guedes encampa todo seu ideário.
Quem perde também com a eleição são as forças armadas. Ainda que reassumam a ribalta por meio democrático, quem estará à frente da nação é um capitão obscuro, sem controle da tropa. Nomear uma série de ministros generais é a tentativa de ter alguma autoridade no exército. E mesmo que consiga essa autoridade, seu estímulo às milícias sem qualquer controle levarão ao caos, e não à ordem. Se, como disse Marcos Nobre, Bolsonaro cresceu e só sobrevive no caos social, isso acabará por respingar nas forças armadas, que serão vistas como incapazes de restabelecer a ordem - se restabelecerem, Bolsonaro será incapaz de se manter no poder. Ademais, os tempos são outros: assim como a resistência se faz mais firme e fluida que em 64, as novas mídias não permitirão que os casos de corrupção sejam escondidos. Haverá sempre o argumento de fake news, reforçado pela mídia tradicional - e é aqui que o trabalho de base, de corpo a corpo fará a diferença, e uma hora esse discurso não dará mais conta de desmentir a realidade mais óbvia no dia a dia de uma pessoa comum.
Quem realmente ganha? Talvez o 1%, ou uma parte dele, parte do exército, alguns grupos internacionais. Mineradoras, agronegócio, petrolíferas internacionais, bancos, evangélicos, alguns grupos do crime organizado, redes privadas de ensino, mercado de bens e serviços (como saúde, educação e segurança) de luxo. O Brasil deve perder ainda mais relevância internacional, e se os artistas internacionais (como Madonna, Bono, Cher, Waters e outros) começarem a vincular marcas ao regime de Bolsonaro, é bem provável que empresas abarquem a campanha antifascista, ao menos abdiquem de lucros em nome da imagem, já que o mercado brasileiro vai minguar com as políticas econômicas prometidas (vincular a Nike à CBF e o uniforme da seleção aos fascistas poderia ser um primeiro teste).
Disse que sou otimista? Sim, sem deixar de ser realista. É a oportunidade, aproveitando a onda "micro-ativista" do fim das eleições, de começar desde já a construir contranarrativas, a desmantelar a ditadura que se aproxima e, espero, não se firme.

29 de outubro de 2018.

domingo, 14 de outubro de 2018

Fábricas de desajustados (texto atrasado para o dia das crianças)

Passo o domingo preguiçosamente. Me propus não entrar no Fakebook, para evitar maior desgaste (é preciso um dia de descanso na batalha), e aproveitei a rede na casa da namorada para responder ao e-mail de um ex-colega da faculdade, um dos meus grandes amigos até hoje, que reside na Colômbia, onde mora com o marido (e o namorado de ambos). Sim, estou sempre na antepenúltima moda comunicacional: quando todos trocavam e-mail, eu escrevia cartas (parei apenas em 2010 com esse hábito); agora que todos mandam mensagens breves por Fakebook ou Whatsapp, troco e-mails (com a temporalidade de cartas, ainda por cima). Enfim, no e-mail me sinto quase Chico Buarque em "Meu caro amigo", sem querer atiçar as saudades de meu amigo, ao menos não por esta terra, onde ele correria perigo, ainda mais, nos dias atuais - porque a saudade dele segue, e sei que a recíproca é verdadeira.
Enquanto escrevo, minha namorada e seu filho jogam o videogame que ele recém ganhou. O garoto tem oito anos, um pai que dá as caras (quando dá) a cada quinze dias, e serve apenas para prejudicar a educação filho, conforme queixa da mãe (e olha que ele sequer é dos piores, não só não aderiu ao fascismo como vota na esquerda), que eu mesmo já conferi - como o medo exagerado dele por certas situações, após ter assistido a um filme inapropriado para sua idade, para não falar do exemplo que o garoto acaba tendo. Não ajuda, e ainda atrapalha - como sói acontecer com tantos pais (ausentes ou presentes). Assim como outras mulheres, minha namorada ficou indignada ao ser acusada pelo general Mourão, candidato a vice presidente na chapa de Bolsonaro, de que, a despeito de todo seu esforço, dedicação e abnegação, estaria criando um desajustado. A indignação é justa, e a fala do general mostra bem a percepção que a chapa de Bolsonaro possui da presença feminina e seu papel na sociedade: a mulher, cuja função primordial seria a de criar os filhos e viver para a família, é de uma incompetência tamanha que nem isso sabe fazer, se não estiver sob a tutela de um homem. E pior que sei de mães solteiras de filhos negros que votam no fascista.
Mas ao ver a educação/formação que meu enteado recebe, e pensando também na de filhos de muitas amigas minhas (que os criam sozinhos ou com a presença ativa do pai, estejam casados ou não), alguém como general Mourão, como Bolsonaro dizer que fabricam desajustados não deixa de ser um elogio. O que seria uma pessoa ajustada, dentro da ótima desses neofascistas?
Ajustado seria aquela pessoa que não questiona, que não tem interesse real pelo mundo e pela vida; a pessoa adestrada feito um camundongo de laboratório, que aceita tudo, diz sempre sim; incapaz de refletir, incapaz de pensar, incapaz de sentir por conta própria - o mais profundo que alguém ajustado ao neofascismo conseguiria chegar seria um kitsch de segunda classe (conforme Kundera sintetizou o kitsch). Por isso o ajustado a Bolsonaro (como ele próprio) ama a morte: porque no fundo sabe, sente (mas precisa reprimir) que não vive de verdade, conforme seus desejos e seus anseios, que apenas segue a boiada, imita o que dizem que é bom, persegue objetivos que dizem que é bom, teme um deus que dizem que é bom (e nem nota a contradição), tenta ser alguém que dizem ser o bom - o cidadão de bem. O ajustado ao fascismo é alguém pobre de repertório, apto para acreditar em qualquer mentira, a seguir qualquer medíocre com o qual se identifique - Galvão Bueno ou Bolsonaro -, porque é alguém sem auto-estima, e reconhece o valor que essa sociedade ajustada de Bolsonaro e Mourão lhe dá: nenhum.
Às mulheres que criam seus filhos sozinhas, e aos pais que criam seus filhos em conjunto, minha sugestão, meu pedido: sejam fábricas de desajustados, de Mafaldas e Calvins (para usar meus heróis nos quadrinhos), de crianças que preferem aprender a pintar a atirar, que saibam amar e não odiar,  que toda forma de amor é válida, que tenham autonomia para dizer sim e não, e arcar com as consequências, se preciso, sem se esconderem covardemente sob a sombra de um líder de qualquer espécie; que se tornem independentes não porque pagarão suas contas, mas porque pensam (desde cedo) com a própria cabeça a partir de conhecimentos sólidos e experiências de vida ricas. Desajustados que experimentam, que vivem seus afetos sem preconceitos e com liberdade responsável. Desajustados que questionem tudo e todos, sem se apegarem desesperadamente a qualquer verdade pretensamente unificante e salvadora; que enfrentem com respeito as autoridades, os costumes, a moral e os costumes (em especial os bons), que respeitem as diferenças - mas sejam intolerantes diante do intolerável, a tortura, o racismo, o preconceito, o xenofobia, a misoginia, a miséria, a fome, o desrespeito aos direitos humanos. Desajustados que façam do Brasil um lugar onde ajustados com, ajustados como Bolsonaro, Mourão e seu séquito fascista sejam apenas fragmentos de um pesadelo que não se concretizou. Desajustados que façam o mundo todo caminhar para um lugar melhor - para si e para todos. 

14 de outubro de 2018


quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Eleições 2018: Guerrilha psíquica para tentar vencer no primeiro turno

Faço minha análise da subida de Bolsonaro nas pesquisas ao estilo do Nassif, ver se consigo ser menos prolixo.
Peça 1: Pesquisa não é eleição
Pesquisa é pesquisa, eleição é eleição, e vale lembrar que os institutos de pesquisa no Brasil são pródigos em erros grosseiros - Aécio que o diga, mas vale lembrar que o Ibope errou por uns 10 milhões os votos de Aloysio Nunes para o senado, e nem citava Young, que acabou em quarto, apenas exemplos de 2014. Pesquisas podem ser manipuladas e ajudam a dar ânimo ou tirar o ânimo de apoiadores de certo candidato.
Peça 2: Adesão ao fascista
Diante do retumbante fracasso tucano, a mídia, seus antipetismo visceral, aderiu à candidatura fascista, que tem em seu projeto a submissão nacional bem ao gosto da rede Globo. O mantra de "as instituições estão funcionando" talvez guarde a ilusão de que será possível controlar Bolsonaro uma vez no poder, sem atentar que sua retirada não implica em um governo mais previsível. [bit.ly/2DTgaZ8]
Peça 3: Golpe branco
A rede Globo (e toda a mídia) é especialista em tentar golpes brancos contra nossa incipiente e precária democracia. Em sete eleições presidenciais, fez uso do que há de mais abjeto para tentar emplacar seu candidato em seis, apenas em 1994 com o Plano Real posto em ação no tempo eleitoral perfeito, não precisou usar de tal expediente. Não tem porque não fazer uso novamente em 2018. Contudo, vale lembrar que suas tentativas de influenciar na eleição tiveram resultado efetivo apenas em 89 e 98 (levar 2006 para segundo turno e perder não conta). Curiosamente, o golpe branco deste ano retoma parte da retórica de 1989, com o antipetismo ganhando apoio por medo do "comunismo" (!?) - além dos motes principais dessa corrente, o falso moralismo contra a corrupção e o ódio a pobre e periférico que "não sabe seu lugar".
Peça 4: Facada da sorte
A facada em Bolsonaro, logo no início da campanha, provavelmente foi o que permitiu a ele se manter onde esteve e se garantir com a segunda vaga para o segundo turno (a primeira vaga, pouco importa se em primeiro ou segundo lugar, desde sempre foi do PT, partido em torno do qual orbita a disputa nacional desde 1989). Sem precisar se expôr, tanto em entrevistas quanto em debates, ganhou blindagem natural de tudo o que diria e tiraria seus votos (seu vice e seu economista deram mostras do que seria Bolsonaro em forma), além de não poder ficar com a pecha de covarde por ter fugido dos debates, como já anunciara. Sem poder ser atacado diretamente, pode reforçar seu discurso de antissistema com os ataques recebidos de todos os demais candidatos [bit.ly/2IA1cWI]. Que erraram na estratégia ao polarizar PT e Bolsonaro, garantindo que ele é o antipetista real, sem essa conversinha de terceira via, de centro.
Peça 5: Segundo turno é outra eleição
Ainda mais quando não há um candidato disparado na frente, 49% dos votos válidos, o segundo turno abre novas possibilidades - em 2006, vale lembrar, Alckmin perdeu três milhões de votos, com relação ao primeiro. Bolsonaro recuperado, se verá forçado a ir aos debates, até para não ficar com a fama de covarde. Exposto, seu discurso moralista e antissistema se desfaz, e é possível que muitos antipetistas menos radicais acabem por optar votar nulo. Por isso as sondagens de segundo turno pouco valem, antes do segundo turno começar para valer. Para Haddad e o PT, uma das questões é tomar as rédeas do discurso do comunismo, explicar o que é e que o partido nunca foi comunista.
Peça 6: A única chance de vitória de Bolsonaro é no primeiro turno
O fascista já dava por perdida a eleição, tanto que cantava golpe, falava em não admitir a derrota. A união da mídia, com apoio explícito de Edir Macedo, é a grande (se não única) chance de vencer o PT: com vitória em primeiro turno, sem exposição do candidato. Dias atrás havia lido a hashtag no Twitter, hoje ouvi conversas no metrô, e fui atrás de alguns vídeos da direita hidrófoba convocando para uma mobilização em busca da vitória em primeiro turno contra o "perigo comunista". Uma amiga me mostrou post de uma transexual, que dizia que queria ir de Marina, mas se via obrigada a votar logo no fascista, para não dar chance ao PT ("bicha burra nasce morta", diziam os gays nos anos 1980, quando sair do armário era sério risco de vida, mais que hoje).
Peça 7: Antecipar voto útil e forçar desistência dos eleitores do outro campo
Para vitória de Bolsonaro, foi montado uma estratégia de guerrilha psíquica, pela internet e pela mídia convencional. Primeiro, antecipou o voto útil contra o PT,  com o discurso de possibilidade de vitória em primeiro turno. Contribuiu a estratégia equivocada do PSDB (seguida por Ciro e Marina) de pintar o PT como antítese de esquerda do Bolsonaro - logo, Bolsonaro como o antipetista da gema [bit.ly/cG181001]. Com isso, enterra-se de vez as candidaturas antipetitas que não decolaram, e sequer vão saber qual sua real dimensão - Alckmin, Marina, Álvaro Dias. Ciro, ao sinalizar o abandono do pós-petismo (que dividia com Meirelles e Boulos) pelo antipetismo arrisca mergulhar na mesma vala. Ainda assim, apenas a migração de voto não parece ser suficiente, é preciso desestimular o voto que não de bolsonaristas. Eis o segundo momento da estratégia: forçar um aumento dos votos brancos, nulos e abstenções: o factoide político de Moro desta semana seria uma tentativa extra de deslegitimar o sistema como um todo, favorecendo não apenas voto no candidato antissistema mas, principalmente, descrédito e abstenção dos que votaram em candidatos do sistema. Em alguma medida foi a estratégia de 2016, e vale lembrar que vitória em São Paulo de Dória Jr, em primeiro turno, teve quase 10% menos votos que Haddad em 2012, mesmo com base maior de eleitores.
Peça 8: Como ler as recentes pesquisas
As pesquisas que sinalizam crescimento de Bolsonaro e estagnação de Haddad podem ser manipuladas ou não. Pode, de fato, que a estratégia de forçar eleitores antipetistas a antecipar o voto útil já seja palpável; como é possível que os institutos tenham forçado a situação desejada, para criar o factoide e forçar uma profecia auto-realizável. Tão importante quanto é como a mídia adentrou no discurso de "possível vitória em primeiro turno", "empate no segundo turno", "líderes de rejeição", contribuindo para desestimular os votos nos demais candidatos: o discurso subliminar é de que "se não for agora, Bolsonaro ganha no segundo turno". Então, melhor nem perder tempo. Sem falar no discurso de que Bolsonaro ou Haddad são a mesma coisa, então tanto faz quanto tanto fez.
Peça 9: A reação do campo democrático e antifascista
Como disse, em seis oportunidades de golpe branco (sete, se contarmos o caso Procunsult de 1982), a Globo teve sucesso apenas em dois, e nos primórdios da nossa democracia, sendo que o de 1998 por omitir informação (da eminente quebra do país) que por forçar um factoide. A estratégia não é garantia de vitória, mas não se deve descuidar, e é preciso reação das forças democráticas, populares e antifascistas. Ainda espero uma postura à altura do momento por parte de Ciro. Como assinalou Luis Costa Pinto em seu Fakebook, esperamos que Ciro não siga os passos de Marina e destrua toda sua história de vida pública por ressentimento. A ver como se comportará no último debate. Porém, o principal para evitar a vitória fascista é a mobilização das pessoas comuns, mobilização de base, das mulheres que foram às ruas, e de todos aqueles que se dão conta do que significa a vitória de Bolsonaro. Partir para a conversa, na internet e no boca a boca, com parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, tentando convencê-los a votar em algum candidato que não o do PSL. Algo na linha "não se precipite, marque qual sua real opção no primeiro turno, para dar força a esse projeto político para negociar no novo governo, e no segundo turno, ouça com atenção as propostas do Bolsonaro, para ver se ele é mesmo uma opção viável". Para o voto de protesto, cabe campanha para Cabo Daciolo. A questão é: manter a mobilização, partir para o corpo a corpo, em busca de votos para quem quer que seja, que não Bolsonaro. O segundo turno é outra eleição, e Haddad é favorito, até pela precariedade do fascista.

03 de outubro de 2018

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O fascista comum: um pobre coitado.

Tempos atrás, escrevi sobre o fascista comum, um zé ninguém como eu, como você, mas que diferentemente de mim (e, espero, de você que me lê agora), aderiu esfuziante ao cio da cadela fascista, desumanizando quem vê como diferente e achando que o mundo será bom o dia em que a harmonia será perfeita, graças à aniquilação de qualquer diferença - de posição política, opinião, cor de pele, gosto ou corte de cabelo [http://bit.ly/2xY2e9Y]. De início, cri que meus amigos e conhecidos que aderiram ao fascismo eram pessoas dotadas de má-fé e de burrice - não cabe falar em ignorância, porque são pessoas com ensino formal, acesso a livros e internet, não podem alegar desconhecimento, é má-fé na interpretação dos fatos ou falta de capacidade de cognitiva para tanto, certamente um misto dos dois. Ainda que o movimento dos patos batedores de panela tivesse fortes tintas fascistas, evitei taxar seus adeptos como tal, uma vez que a campanha da mídia goebbelsiana havia sido feroz contra o PT. Notei, no início do ano, que muitos dos meus amigos do Fakebook que bateram panela silenciavam sobre política, ou se diziam em decepção geral - haviam se tocado que foram feitos de pato, enganados feito crianças de quatro anos.
Com a campanha presidencial, discursos de ódio voltaram a ganhar legitimidade, e a postagem de um "amigo" do Fakebook me fez notar um outro aspecto do fascista comum que eu não atentara há seis meses: além de má-fé e burrice, o fascista comum é, no fundo, um pobre coitado, alguém com baixa auto-estima e sérias dificuldades em aceitar quem é, incapaz de se enxergar de fato no espelho, e que na ânsia de seguir acreditando na mentira que criou para si próprio, adere facilmente ao líder fascista, se autoenganando que essa identificação ao líder vai alterar quem ele é.
Tomo um exemplo muito específico, mas que creio significativo: um ex-professor que tive na SP Escola de Teatro. Em 2014 aderiu contente e caninamente a Aécio, questionou a legitimidade das eleições e chamou Dilma de estelionatária (por cumprir o programa que ele defendia); em 2015 bateu panela e não teve peias em chamar Dilma de vaca; em 2016 festejou que o Brasil havia sido devolvido para ele e torcia pela prisão de Luladrão, pouco importa que apenas por convicção; no início de 2018 estava silente, nada de política, sequer da prisão de Lula: só fotos em família. E continuava morando no Brasil, sinal que não soube aproveitar a oportunidade dada pelo golpe - ou não tinha dinheiro para tanto, de modo que precisa seguir camelando pelo pão de cada dia em terras tropicais.
Pelo visto, a campanha presidencial deste ano fez esquecer a vergonha que passou ao aderir sem pensar a líderes e pautas suspeitas, e permitiu a ele se libertar para assumir seus preconceitos - sem expressá-los claramente, como bom homem cordial. Em postagem precária de raciocínio, reduziu a política brasileira a PT e Bolsonaro para declarar voto no nazista. Como em texto que corre pela internet, há 11 opções entre PSL e PT, os debates apresentam boa parte desses candidatos, muitos deles possuem boa parte dos mesmos ideais do capitão, o que impede alegar ignorância: o voto fascista não é apenas por questão de antipetismo, mas de simpatia com suas bandeiras mesmo. 
Esse ex-professor é sintomático pela sua figura. Votar em Bolsonaro serve para negar a realidade mais bruta acerca de si próprio, até que um dia essa realidade seja brutalmente atirada contra seu rosto - e então ele, tardiamente, talvez perceba qual seu lugar na hierarquia fascista. Seu perfil na rede social é um desenho em que ele se apresenta como uma pessoa branca. Aqui no Brasil da cordialidade e do preconceito (mal) disfarçado, como temos um Pantone de cores para as pessoas, mil formas de alegar que alguém não é branco, ele pode ser identificado como "moreno"; nos EUA ou Europa, certamente seria "negro", sem necessidade de qualquer discussão. De volta ao Brasil, numa batida da polícia, certamente ele seria visado enquanto eu passaria tranquilamente - a depender da situação (como já me aconteceu), eu até poderia peitar o policial enquanto ele teria que ficar com as mãos na cabeça, humilhando perante os demais. Também seria algo pela cor de pele para uma milícia fascista paraestatal. Não apenas isso. Para meu primo, membro de gangues neonazistas de Curitiba há vinte anos (apesar de ele ser negro, ou melhor, moreno), esse professor tem cara de nordestino, e seria um dos alvos preferenciais dos seus ataques (me vem à lembrança nós assistindo ao jornal televisivo e ele xingando os "baianos", bando de "preto", "feio", "vagabundo", "fedido" que "não gosta de trabalhar" e "se deixar, fica na praia e faz carnaval o ano todo", tínhamos uns 17 anos na época; hoje ele vive basicamente de mesada dos pais, enquanto patina como professor de yoga bolsonarista). Outro "porém": ele é casado com mulher, tem filho, mas é um homem de gestos delicados, jeitosos, muito distante de um macho alfa, e pode facilmente ser confundido com um homossexual - creio que fascistas e homofóbicos de plantão pouco se importarão em questionar se ele de fato é gay antes de começar a golpeá-la. Seu porte físico tampouco permite acreditar possibilidade de defesa - apanharia até para uma gangue mirim que tentasse abusar de sua esposa, que é negra, e que ele não deve achá-la bonita, pois não teme que ela tenha "o direito" a ser estuprada - o elogio mais eloquente que uma mulher pode ganhar de um homem fascista, ser penetrada à força -, sem falar que deve ser bem submissa, para ser do seu agrado - se acreditarmos no que ele próprio fala.
Fico a imaginar o quanto ele não sofria quando trabalhava com teatro (pelo seu Fakebook, tenho a impressão que largou a área). No meu curso, cerca de metade dos alunos era composto por mulheres; 40% eram negros, e uns 70% homossexuais. Fora do curso, nos palcos e coxias, o número de pessoas negras, de homossexuais e de mulheres também é bem elevado. Como devia controlar o nojo de ter lidar com esse tipo de gente todos os dias? E ainda parecer simpático, atencioso e muitas vezes servil (porque ele era um zé ninguém da área, assim como um professor mediano, facilmente substituível, que nunca pode, portanto, dar pitis de estrela)? Quantos anos não teve que segurar esse ódio, em nome de ter uma aparência de pessoa legal. O que nele motiva esse ódio todo? 
O antipetismo é claramente um subterfúgio para não ter que encarar o desejo (interdito) que o consome por dentro, feito um câncer. Certamente o que ele odeia não é o outro, é a si próprio: o outro é um espantalho que o distrai daquilo que o perturba - e ele, como fascista comum, é um perturbado: muito mais fácil dizer que a culpa é do outro, inteiramente do outro, e ele, um inocente. E em alguma medida ele deve ser mesmo um inocente: conscientemente virgem daquilo que o oprime desde dentro e não o permite gozar a vida de modo leve e prazeroso. Não conheço nada da sua vida, o que me impede maiores conjecturas sobre seu caso particular, a não ser generalidades a partir daquilo que ele alardeia em suas postagens cheias de ódio: um pobre coitado que se gostaria de ser da elite, se nega a enxergar que não é elite, nem nunca será em um governo fascista: por ser negro, por parecer nordestino, por parecer homossexual, e por ser um classe média remediado, sem dinheiro suficiente para, quem sabe, tentar comprar seu atestado de legítimo homem branco do sul - espécie de carta alforria (falsa) destes tempos - ou uma quinta em terras lusitanas. Talvez, como é tão comum nestes Tristes Trópicos, tenha uma história de privação, de humilhações ao longo de toda a vida por causa da sua aparência e do seu jeito: mas nesse ponto, em que caberia entender que a culpa é, sim, do outro - ainda que um outro abstrato e imiscuído com o contexto e a história -, ele aceitaria que se trata de uma falha sua, e que a adesão aos valores que sempre o oprimiram, encarnado nestas eleições em Bolsonaro (com em 2014 foi em Aécio e em 2015 em Cunha) o limparia de seu pecado original: não ser branco, de ascendência europeia, classe média alta.

27 de setembro de 2018

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Eleições 2018: segundas impressões sobre o primeiro debate

Penso um pouco mais sobre o primeiro debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito, na Bandeirantes do golpe, dia 9. Talvez eu tenha me equivocado quanto à pretensa união do campo conservador: se as várias candidaturas serviriam para inflar o candidato do establishment mais bem posicionado ou decidido a sê-lo - Alckmin, por enquanto, até que mostre definitivamente que não consegue crescer -, a ausência de uma candidatura robusta nesse campo faz com que se torne um  salve-se quem puder num campo minado.
Bolsonaro, sem dúvida, foi o grande perdedor do debate, e isso ele sabia que seria desde o início, tanto que a princípio anunciara que não participaria de debate ou sabatinada alguma. Como fugir da luta queimaria parte do seu capital político, a construção do machão destemido, teve que ir para o sacrifício, correndo risco de definhar a cada vez que abre a boca, que não seja para falar de armas e porrada. Bolsonaro está onde está por completo acaso, não houve qualquer cálculo - diferentemente de Trump, que uniu seu estilo afim ao zeitgeist, o espírito do tempo, com uma equipe de marketing.
Cabo Daciolo foi, sem dúvida, uma surpresa. E para além da pecha de ridículo que ganhou entre a esquerda ilustrada - a URSAL é uma realidade entre grupos de whatsapp, ele pode ser visto como corajoso ao tratar em rede nacional o que a "mídia vendida e esquerdista" tenta esconder -, cabe ver que sua fala deve encontrar eco em parte do eleitorado: seu discurso firme, messiânico, de "eu sou diferente, e eu resolvo", um Bolsonaro que fala em "nação brasileira" e "amor", tende a tirar votos do destrambelhado do exército entre aqueles que o viam como voto de protesto ou candidato firme, ainda que um pouco exagerado - Daciolo encarna o pai severo e amoroso, Bolsonaro é apenas um sádico.
Outro ponto a ser percebido é como Boulos e Ciro confrontaram Bolsonaro: Boulos, ao enunciar as "qualidades" do candidato do PSL (sua base de apoio vê machismos e quetais como positivos ou como irrelevantes, não adianta repetir) e levantar a questão da funcionária fantasma, recebendo como resposta uma mentira e o desdém, não tirou um voto do fascista, e ainda pode ter feito ganhar votos como candidato antiesquerda, antibaderna. 
Ciro, em compensação, foi simplesmente genial ao questioná-lo sobre inadimplentes e prometer tirar o nome dos brasileiros do SPC: além de aproveitar para se vender como uma possibilidade razoável para 60 milhões de brasileiros - 40% da população adulta do país -, num momento de descrédito com o coletivo e desespero individual, aliando questão individual e coletiva (Luis Nassif salienta que a proposta, além de factível, é necessária: a elevada inadimplência mostra que se trata de uma questão política, e que credores, devedores e o país sairiam ganhando [bit.ly/2nBRoBW]), fez o capitão do exército deixar claro que não tem proposta nenhuma para os problemas comuns das pessoas comuns, além de fazê-lo chamar parte desses 60 milhões de "bandidos" - o que não afetará o ânimo dos bolsonaristas, mas aqueles que não são fanáticos porém cogitavam voto nele certamente pensarão um pouco mais antes de se decidir. Repenso: talvez ao reafirmar a defesa da democracia, sem falar diretamente em Lula, tenha sido acertado para ganhar o eleitorado antipetista light. A ver como seguem as campanhas, eu não descartaria um segundo turno entre PT e Ciro - e defendo que o PT feche logo um acordo de apoio mútuo no primeiro turno: dois candidatos antigolpe seria o fim de toda narrativa Globo-golpista, a prova por A+B que o golpe foi golpe e antipopular, contra o pretenso  anseio "das ruas".
A outra novidade que embaralhou o campo conservador foi o apoio do Inquisidor Moro ao candidato Álvaro Dias: ao dizer que não se manifestaria sobre a proposta de ser nomeado ministro da justiça [bit.ly/2OE24f1], pelo não-dito deixou dito que aprova o uso de seu nome como carro-chefe da campanha do paranaense - que se arrisca até a fazer conjecturas sobre futuros pensamentos e atitudes do juiz camicie nere. É bem provável que o movimento tenha sido combinado pela República de Curitiba, e seja utilizada como termômetro do fascismo lavajatista no país [bit.ly/2OBbpUM]. Sem dúvida poderiam ter escolhido alguém com um pouco mais de carisma, porém será interessante observar o resultado de Dias nas urnas, saber in loco onde a Lava-Jato reverbera forte, onde encontra resistência, talvez até para calibrar novas ações do avanço do estado de exceção no Brasil - e o candidato não poderá alegar que a Lava Jato que se utilizou dele, já que parte de um patamar baixo nas pesquisas e por si não iria além dos 3% que já tem. Será interessante observar também como o partido todo vai se utilizar do mote da Lava Jato para as eleições legislativas - e aqui novamente minha questão do quanto o campo progressista dormiu em berço esplêndido e ainda cochila gostosamente quando se trata do legislativo.
O segundo debate, já calibrado a partir do que se viu no primeiro, dará uma mostra melhor das estratégias (pensadas ou aleatórias) dos candidatos. Provavelmente Alckmin deve rever a sua, Boulos deve fazer pequenos ajustes - assim como Marina, se é que isso fará alguma diferença para ela -, e os demais seguirem pela toada do primeiro debate. 

14 de agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Eleições 2018: percepções sobre o primeiro debate

Teria sido uma noite de quinta-feira divertida, não fosse assunto sério o debate na rede Band - uma das estimuladoras do golpe, a reboque da Globo. O debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito esteve muito além de boa parte do humor tupiniquim (porém aquém do Choque de Cultura), e mais que memes, pode fornecer vários personagens de humor - seriam muitos dos candidatos humoristas disfarçados de presidenciáveis?
Há uma mania, não entendo o porquê, de tentar achar um vencedor para debates, como se fosse uma luta e valesse algo vencer debate. Salvo em debates na antevéspera do dia da votação, com calmante na água e edição malandra no jornal do dia seguinte, não se pode falar exatamente em vencedor e perdedor de um debate - ainda mais sendo o primeiro, onde serve mais para ver por onde cada candidato tentará se vender, ao menos num primeiro momento. Pesquiso na internet e vejo que os apoiadores de Bolsonaro anunciam como o capitão, mesmo murcho (eu diria brochado), venceu o debate. Apoiadores do Boulos também cantam vitória - se eu fosse ver o que dizem os eleitores dos demais, seria a mesma história.  Mas se é preciso declarar um vencedor, foi Cabo Daciolo. De ilustre "ninguém sabia quem ele era muito menos que estava concorrendo" despontou como terceiro mais pesquisado na internet durante do debate, segundo o Google. Se não confundisse palanque com púlpito poderia provocar uma sangria grave em Bolsonaro; mesmo assim, sua verborragia indignada extremista e sem noção, saída diretamente do MBL e grupos de whatsapp, aliado à tentativa do capitão de parecer um político sério, normal, podem custar ao candidato do PSL os votos de protesto - esses que elegem Tiriricas ou vereadores semianalfabetos de cidades pequenas. Se conseguir segurar a pregação, corre o risco de ganhar os votos dos extremistas anticomunistas.
Álvaro Dias parecia o Coringa disfarçado de tia carola bêbada em almoço de família. Mal articulado tentou surfar na lava-jato e no antipetismo, tentando colar ao seu o nome do inquisidor Moro, numa estratégia que é de se perguntar se durará um dia mais, ou será desautorizado pelo próprio camicie nere de Curitiba [PS: foi autorizado, e isso traz uma novidade importante ao cenário]. Tentou traçar seu caminho na extrema-direita entre Alckmin e Bolsonaro.
Alckmin deve tentar mudar radicalmente de estratégia. Sua insistência nos cinco dedinhos pra explicar como vai diminuir de cinco impostos para um só faltou ser completada com um "pra você que é burro e não entende nada". É de se questionar se o tempo de propaganda irá salvá-lo de si próprio, ou vai chafurdar na própria insipidez - nos momentos mais enfáticos soou pastoso e sem viço. Ainda tem contra si o fator "Hillary Clinton" de ser muito establishment - fato explorado por seus adversários -, e foi ousado (e não muito esperto) ao expôr em linhas gerais suas ideias - menos estado, privatização, menos impostos empresariais. É o discurso hegemônico, repetido como solução pela Grande Mídia - resta saber quanto do eleitorado ainda compra essa bravata.
Marina Silva é outra que compete na insipidez, tentando algo do discurso de Lula - de alguém que sofreu mas venceu na vida. Busca votos como um Alckmin mais centrista, evitando desagradar quem for - e de agradar quem for também. Fora isso, tão insossa que não há o que dizer, nem quando podia assumir enfaticamente uma postura - de contrária ao aborto - fica em cima do muro e diz preferir um plebiscito.
Meirelles eu não conseguia ficar sem rir nas suas aparições, seja pela sua expressividade morta, aquela voz de Maluf insosso, seja pelo seu gestual descolado da fala, seja pelo gestual em si - parece ter feito um curso rápido à distância de libras e se esqueceu de tudo mas tenta usar assim mesmo. Achou um bom discurso, o de alguém dedicado à vida pública à despeito de seus interesses e além de qual governo for, tentou se vincular ao Lula, porém sem dizê-lo explicitamente. De qualquer modo, não parece haver discurso que o salve.
Com esses candidatos, não é de se admirar o desespero do campo golpista/conservador/reacionário em cancelar ou postergar as eleições. Para um dos quatro nomes oficiais do sistema ganhar, só com fraude. Resta ainda Bolsonaro, patinho feio do campo, mas que deve ser ungido a principal muito em breve, se não houver reação de Alckmin ou de um dos azarões.
Bolsonaro têm um séquito de fieis que o vêem como O falo, a despeito da besteira que fale. É o que o mantém no patamar de votos há tanto tempo. Sua suavizada no discurso, tentando se apresentar como um político para ser levado a sério, com proposta "para o Brasil" (leia-se para os especuladores e donos do poder) é uma tentativa de ganhar simpatia dos donos do poder e os votos dos antipetistas que não chegaram ainda ao extremismo fora do tucanato. Ainda é uma ótima estratégia para se consolidar como o nome desse campo, porém Cabo Daciolo pode atrapalhar, ao falar com uma firmeza que o capitão não conseguiu demonstrar no debate - sua tibieza é outro possível ponto fraco para seus apoiadores: fora dos vídeos controlados e arroubos onde reage com pura testosterona, parece um aluno temeroso que gagueja a lição lembrada pela metade.
No campo progressista, Lula teria feito melhor presente que ausente, mas sua ausência se fez sentir e se for bem explorada pela campanha, pela militância, pode valer votos - o tal candidato antissistema não aventureiro.
Boulos escolheu bem o figurino: enquanto todos falam em mudança e contra todos os que estão aí, era não apenas o candidato virgem de eleição e de mandatos como aquele, dentre os homens, que não se apresentou de terno - preferiu uma camisa mais comum. No início da redemocratização o tal "igual a você" do Lula não deu certo - o eleitorado preferia alguém importante -; em 2018 quem sabe o significado não seja outro? Seu uso de ironias, contudo, pode ser encarado como esnobismo, não sendo bem visto por certo eleitorado. Como seu objetivo é marcar posição e não vencer, não fugiu de questões tidas por espinhosas, como o aborto. Talvez tenha errado ao começar atacando Bolsonaro, reforçando o capitão como candidato antiesquerda e perdendo oportunidade de se contrapôr no campo de propostas a Alckmin ou Meirelles, por exemplo.
A participação de Ciro mostra como o trabalho do PT para isolá-lo foi equivocado do ponto de vista de país e momento histórico, mas talvez acertado do ponto de vista eleitoral. Sem negar um posicionamento claro, nacional-desenvolvimentista, sacou uma proposta apelativa de limpar nomes no SPC/Serasa. Com o campo conservador sem qualquer nome que empolgue, tivesse tempo de tevê, correndo pela faixa do centro moderado mas firme, meio establishment, meio outsider, e poderia desbancar Bolsonaro na vaga para o segundo turno contra o PT - porque a impressão que deu foi que a disputa era quem confrontaria Lula ou Haddad no segundo turno. Ainda que no meio do debate tenha se posto contra não apenas Temer, mas contra o golpe, evitou falar explicitamente de Lula - como fez Boulos -, na ânsia de angariar um eleitorado antipetista; a estratégia me parece equivocada, e a perda pode ter sido maior que o ganho - uma sinalização de que Lula deveria estar participando do debate, por respeito à democracia e ao direito, teria sido mais inteligente.
No mais, o debate foi preparado para favorecer os "50 tons de Temer", afinal, quanto mais Boulos e Ciro forem expostos, mais fica evidente a fraqueza de todos os candidatos conservadores. Pela possibilidade de livre escolher quem responde, os dois pouco falaram. Na hora das perguntas dos jornalistas, era evidente a tentativa de catapultar os candidatos reacionários e complicar os progressistas: perguntar de segurança para Bolsonaro é levantar a bola para ele chutar, e de aborto para Boulos e Marina, é deixar evidente ao eleitorado conservador o perigo da esquerda ateia - Marina tão fraca que sequer conseguiu aproveitar essa bola levantada. Boechat foi a personificação lastimável do nível lastimável dos jornalistas da empresa, com destaque para seu jeito grosseiro e desrespeitoso com os candidatos da esquerda. Nada de novo nem de inesperado, portanto. 
Sem vencedores, mas com estratégias delimitadas e pontos fracos mais evidentes que pontos fortes de cada um. A ver o que nos espera nos debates seguintes. E a esperar se o judiciário vai mudar e passar a respeitar a lei ou seguir no casuísmo quanto à candidatura Lula.

10 de agosto de 2018

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Eleições 2018: análise dos candidatos antes de iniciada a campanha de fato

Meu texto anterior tinha como objetivo sublinhar que a eleição presidencial de 2018 nada tem de normal, que não se trata "apenas" de escolha entre projetos de país e de como lidar com a coisa pública, e sim entre dar um verniz democrático ao golpe em curso - com poder judiciário agindo como poder moderador extraconstitucional - ou tentar retomar um caminho de democracia efetiva, ainda que bastante limitada, a princípio [bit.ly/cG180807]. Entretanto, as movimentações que resultaram nas candidaturas por ora postas apontam numa aparente normalidade, com polarização entre PT e PSDB. Falta, contudo, combinar com os russos, ou melhor, os eleitores. Ainda que se consagre essa polarização, nada há de normal - eu já havia dito, quando no imbróglio tucano para o candidato à prefeitura paulistana, que a escolha por Doria Jr era o fim do PSDB enquanto opção democrática [bit.ly/cG160201], e a gestão do ex-prefeito confirmou o pouco apreço da legenda com princípios democráticos e republicanos básicos (corroborado pelo desejo de FHC de lançar Huck à presidÊncia, para não falar na não aceitação da derrota em 2014 por parte de Aécio Neves e o apoio ao golpe de estado de 2016). E por mais que julgue atual e pertinente a divisão do espectro político em esquerda e direita, por conta do contexto do golpe prefiro falar em campo progressista e campo conservador/reacionário/de extrema direita. Deixo de lado os candidatos do Patriotas, DC, PPL e PSTU. 
No campo conservador são seis candidatos. A aparente divisão é apenas aparente: efetivamente são dois candidatos - Alckmin e Bolsonaro -, dois azarões aguardando uma reviravolta de última hora para serem ungidos como eleitos do establishment - Marina Silva e Álvaro Dias - e dois candidatos de apoio - Meirelles e Amoêdo. Estes dois últimos devem ser candidatos propositivos de direita, deixando mais evidente as propostas gerais desse campo. Devem ir a combate contra a esquerda e levantar a bola para alguém da direita chutar.
Meirelles tem papel importantíssimo na eleição: servirá principalmente para que Alckmin tente se descolar de Temer - afinal é ele o candidato do MDB -, e poderá, ainda, tentar trazer o PT para algo próximo do Usurpador - para além de ter sido vice de Dilma -, por ter trabalhado em ambos governos. Com tempo de tevê, pode fazer deliberadamente o que Ulysses Guimarães fez por omissão em 1989, e contribuir decisivamente para um candidato conservador no segundo turno - certamente seu trabalho não será em vão. Parece pouco provável que aja com bom MDBista e troque de canoa no meio do caminho, ao notar que o PT avança inconteste, mas não cabe descartar essa possibilidade.
Marina Silva e Álvaro Dias tentam correr como azarões, ela mais pelo centro, ele mais pela extrema-direita. Se conseguirem emplacar seus discursos, Marina pode tirar votos tanto dos candidatos do campo conservador quanto do campo progressista, enquanto Dias tende antes a enfraquecer Bolsonaro. Se Alckmin não decolar, apesar de todo seu tempo de exposição, podem ganhar a vez de brigar com o capitão pela vaga num eventual segundo turno: seriam candidatos mais confiáveis ao establishment que o destrambelhado do exército. Devem tentar encarnar um discurso antipetista e antissistema light (se comparado à propaganda de ódio de Bolsonaro), de quem está dentro mas nunca compactuou com "tudo o que está aí", apelando principalmente para o discurso ético. São candidaturas em stand by, prejudicadas pela redução do tempo de campanha. 
Alckmin é o presidente do Brasil a partir de 2019, se os eleitores "votarem certo", de acordo com os donos do poder. Comentei em outro texto [bit.ly/cG180717] que Alckmin é muito "Hillary Clinton" em uma eleição na qual o eleitorado sinaliza saturação com o centro. Atraiu para sua aliança as forças do establishment (o que sinaliza um eventual presidente fraco, completamente  à mercê do tal centrão e das forças que o patrocinaram), mas eles sabem que não é garantido sequer sua ida ao segundo turno, daí provavelmente o alto preço que devem estar cobrando desde já, e a possibilidade de abandonarem o barco a qualquer momento. Uma das apostas de Alckmin deve ser no tempo de tevê e na brevidade da campanha, que permitiria a construção de uma blietzkrieg narrativa sem chance de desconstrução, que o catapulte como uma onda, como foi Doria Jr em 2016, ou mesmo Haddad em 2012 (e quase em 2016) - a questão é que Alckmin é suficientemente conhecido para ser construído do zero, a estratégia, portanto, não tende a ter grande efeito, sem falar que ele terá tempo demais para tentar falar o mínimo possível, uma vez que não pode expôr seu projeto de governo. A escolha de Ana Amélia, um Bolsonaro de saias e sem farda (mas com milícias), do agronegócio, depois de longo flerte com o ex-comunista Aldo Rebelo, que trocou de partido duas vezes para estar disponível a Alckmin, mostra que o tucano tem como preocupação primeira passar para o segundo turno. A aposta inicial em Rebelo daria o verniz de alguém aberto ao diálogo e com uma ponta na esquerda, tentativa de ganhar, no segundo turno, indecisos simpáticos à centro-esquerda porém desagradados com o PT. Ana Amélia é a sinalização do namoro sério com o neofascismo, o discurso aberto de ódio, e a queima de pontes com eleitores mais à esquerda. Pode, a depender das pesquisas, deixar Bolsonaro quieto e atacar fortemente - junto com as outras candidaturas de apoio do campo - o PT, para no segundo turno ganhar o voto do "mal menor". 
Bolsonaro, por enquanto, é um dos nomes desta eleição - junto com Lula. Seu parco tempo de tevê, se por um lado prejudica sua exposição, por outro é positivo ao evitar que fale muito - o que garante não desagradar os que não são fanáticos -, além de reforçar seu discurso de antissistema - que apresenta aliado ao discurso antipolítico e antipetista, de necessidade de ordem para garantir a segurança, e fim de democracia e direitos sociais, apresentados como favorecimentos, privilégios de vagabundos, ao custo para os "cidadãos de bem" (termo que deve ser usado à exaustão nesta breve campanha). Os absurdos que profere - frases racistas, misóginas, de incitação à violência - costumam ser relevados em favor desse discurso: na ânsia de pertencimento nesta modernidade líquida, muitos de seus eleitores preferem enxergar a si e aos seus próximos apenas como cidadãos de bem, a despeito de serem gays, mulheres ou negros, na crença de que sejam vistos assim também pelos seus futuros carrascos - a descoberta da realidade será amarga e inevitável. Encontrou um tal "ponto ótimo", que o deixa numa situação confortável, sendo seu principal desafio se mexer sem sair do lugar: deve ser atacado pela direita e - equivocadamente - pela esquerda, e isso tende a reforçar seu discurso "contra tudo o que está aí". Se não for atacado, pode crescer igual. A questão é que chegou onde está por acaso, não por cálculo, e um passo em falso é perigo eminente à sua candidatura. (Minha grande dúvida: em um segundo turno entre Bolsonaro e PT, o PSDB declará apoio a um dos candidatos? Meu palpite: entre alguns falando em apoiar o PT e muitos silentes, se declarará neutro). 
O campo progressista tem a faca e o queijo na mão - se não houver fraude ou novo golpe -, mas dá sinais de ser capaz de esfaquear a si mesmo. Parte da esquerda acha que unidade é candidato único - e não objetivo em comum -, e o narcisismo das pequenas diferenças dá sinais de ser mais forte que a necessidade histórica do momento. 
Boulos entra como candidato sem pretensões de vitória, mas com objetivo de marcar posição, pôr os movimentos sociais na vitrine política (e não policial, como tentam grande imprensa, PSDB e demais partidos do campo reacionário), e qualificar o debate. Se tiver oportunidade em debates e na grande mídia, pode fazer diferença, tirando votos, inclusive, de Bolsonaro, ao se apresentar como opção antissistema porém política. Pode significar uma mudança na forma como se vê movimentos sociais de reivindicação de direitos - uma candidatura desse tipo faz muita falta desde 1994, um candidato ainda em trabalho de base, sem se deixar levar pelo canto da sereia tecnocrática. Ademais, o PSOL pela primeira vez tenta ampliar sua base para além dos acadêmicos revolucionários de gabinete com teses impecáveis teoricamente exemplificadas em vocabulário parnasiano. 
Ciro Gomes, ao que tudo indica, é o grande perdedor das últimas movimentações, seja com a o apoio da direita fisiológica a Alckmin, seja com a "neutralidade" do PSB - e isso não é positivo para o campo progressista, assim como para o próprio PT. Não apenas pelo risco de Ciro despejar fogo amigo, como principalmente pela diminuição de seu tempo de ataque ao campo adversário. Com fama de falar sem medir as palavras - como Bolsonaro -, Ciro pode tirar votos do fascista ao mesmo tempo que fustiga Alckmin (ou Haddad...). A escolha de Kátia Abreu para vice, depois de flertar com o centro fisiológico do congresso, mostra que sua candidatura é a sério e propõe reviver o pacto lulista - expus em outro texto minha tese de "vice-caução" como condição de elegibilidade para candidatos de esquerda ou progressistas [bit.ly/cG180509]. Mais: Abreu abre Ciro para certo potencial eleitor tucano, afim ao agronegócio mas reticente com Ana Amélia e com o excesso sulista da chapa tucana - a senadora tocantinense pode ser apresentada como mais pragmática, "genuinamente ruralista", e mesmo como "empreendedora de sucesso". Muitos da esquerda criticam tal escolha, como prova de que Ciro não é da esquerda. Quanto a isso, dois pontos: talvez Ciro não seja mesmo de esquerda, seja apenas um progressista, um nacional-desenvolvimentista a la Dilma. Segundo: quem critica "alianças espúrias" ainda acha que política democrática real pode ser feita com selo de pureza: pureza em política só em congresso de anjos ou em ditaduras totalitárias; em democracia, vai ter abraço e acordo com adversários ou não vai ter espaço para nada. Pode-se dizer que é o azarão do campo progressista, à espera da eventualidade de Haddad não despontar como é esperado - tivesse mais tempo e poderia ser adversário de Haddad num eventual segundo turno, talvez o grande medo do PT. Me parece o nome mais apto para deslocar Bolsonaro do confortável ponto onde está; o risco de isso dar certo e ele crescer e vislumbrar chances de vitória é apelar para algum grau de antipetismo e ambos afundarem abraçados, quando o melhor para o campo progressista é que se afirme como um não-petismo, um pós-petismo, sem anti. 
Enfim, Haddad. Novamente prejudicado pela mudança na legislação eleitoral que diminuiu o tempo de campanha, ainda assim é o nome mais forte do campo progressista. Vai se apresentar como o emissário de Lula. Como disse alhures [bit.ly/cG180717], a perseguição a Lula e ao PT foi tão forte que teve "efeito rebote": em 2015, a rejeição ao ex-presidente era de 55% [bit.ly/2OTD8AU], o que tornava muito difícil uma vitória; em 2018 volta aos patamares normais do antipetismo: 31% [bit.ly/2KDpKxr]. Mais: a saturação com "tudo o que está aí" fez com que tal perseguição desse naturalmente ao PT o ar de partido antissistema light: que ao mesmo tempo incomoda os poderosos (por isso a perseguição), mas não é de aventureiros (vide os mandatos presidenciais). Haddad, curiosamente, é talvez o nome mais "Hillary Clinton" do PT - sua vantagem sobre Alckmin é essa marca imposta ao seu partido. Se conseguir marcar sua ligação com Lula, dificilmente não herda os 20% que este tem na espontânea - por isso deve haver da justiça (sic) eleitoral alguma proibição à vinculação de Lula nas propagandas e nas falas -, mais alguns pontos dos que simpatizam com sua figura, outro tanto dentre aqueles que querem fugir de "extremismos" (como a Grande Imprensa tentou marcar Lula e Bolsonaro), podendo tirar votos que seriam para o centrista tecnocrata convertido ao extremismo de direita, Alckmin. Assim como sua vice, é bem articulado e bem apessoado (soa tosco, mas isso conta), dificilmente perde as estribeiras e sabe revidar com delicadeza - resta saber se isso atrairá certo tipo de eleitores, seja pela delicadeza, seja pelo linguajar mais rebuscado, e neste ponto o enfraquecimento de Ciro é prejudicial a si, ao menos no primeiro turno. Vai sofrer ataques da Grande Imprensa sem cessar até outubro, e se não conseguirem acertar um bom golpe, a tendência é que cresça com tais ataques. A grande falha de sua candidatura foi a atuação nas alianças, ou melhor, nas não alianças, com o intuito de isolar Ciro. Nesse ponto o PT agiu como se estivéssemos numa eleição absolutamente normal, e não em um momento crítico e dramático para o país. O medo de perder a eleição para Ciro pode significar perder a eleição para Bolsonaro, Alckmin ou algum azarão conservador tutelado pela mídia e judiciário. Faltou ao PT o óbvio: reconhecer o contexto e se pautar por uma visão mais ampla que a eleitoral: ainda que difícil de acontecer, mesmo se tivesse o apoio do PSB, um segundo turno entre Ciro e Haddad poderia ser um banho de civilidade e a derrota cabal do golpe. Ao forçar uma polarização com os reacionários, o espectro do golpe e do lava-jatismo seguirá rondando o país.
Talvez uma "novidade" nesta eleição seja uma maior mobilização das bases desde 1989 - seja pela direita, seja pela esquerda. A esquerda ainda está mais tímida, intimidada: ser de esquerda ou ser petista virou praticamente uma ofensa, e as respostas de militantes da extrema-direita (que foi o que se tornou nossa direita, PSDB incluído, sem pôr nem tirar) tendem a ser intimidantes pela sua agressividade. Grupos de Whatsapp terão grande influência, mas não se deve achar que substitui o cara a cara. A diferença é que há um ponto aglutinador no campo conservador - o antipetismo -, enquanto a esquerda, se não se policiar, vai partir para a guerra fratricida - daí a necessidade do campo progressista se centrar numa militância positiva, de elogio aos seus candidatos, deixando a desconstrução do campo adversário para segundo plano. Ataques mútuos entre candidatos progressistas, ou mesmo ataques a Bolsonaro, me parecem o caminho mais equivocado.
Por fim, se a campanha presidencial no Brasil já costuma ser sempre de baixo nível, com golpes brancos ou tentativas de por parte da Globo e dos donos do poder (1989, 1998, 2002, 2006, 2010, 2012; 1994 o plano real prescindiu de jogo mais sujo), imagina agora que está sob ameaça a fina flor do entreguismo das elites, que por dois anos pode florescer sem amarras e sem lastro social. Por isso tenho repetido: uma fraude eleitoral não é algo remoto e absurdo, é possibilidade efetiva (e vale lembrar a Globo e o caso Procunsult de 1982). Também tenho repetido: é preciso também se mobilizar nas eleições legislativas: uma vitória progressista na eleição presidencial com um congresso como o atual vai praticamente inviabilizar o novo governo.

08 de agosto de 2018