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terça-feira, 5 de março de 2019

Cabeças que sangram (é carnaval)

Me aproximando de uma das entradas da estação Ana Rosa do Metrô, vejo um homem no chão e outro sobre ele. Há um grupo de pessoas que recém saiu do ônibus que dificulta minha visão. Imagino que o homem deitado no chão tentou algum furto e está imobilizado, enquanto esperam as forças da "ordem". Assim que o ônibus parte, reparo que há um carro da polícia e dois militares assistem impassíveis aos dois homens. O homem no chão tem a cabeça sangrando, uma poça de sangue ao seu redor, está bastante agitado e é amparado pelo que está sobre ele. Cabeças que sangram. A imagem me traz a lembrança de cena vista rapidamente do carro, em Florianópolis, em janeiro. Voltávamos do Pântano do Sul, próximo ao meio dia do dia mais quente dos últimos noventa e oito anos (segundo noticiou a imprensa). No acostamento da estrada, no meio do nada, um carro da polícia - dois militares conversam com um homem que sangra pela cabeça. Pode ser que o homem, diante daquele calor e daquele sol, tenha caído, batido a cabeça e os policiais estejam ali a auxiliá-lo. Igualmente possível é que o ferimento tenha sido causado pelos policiais. Cabeças que sangram. Uma polícia de confiança. Certa feita, passava em frente o Edifício Wilton Paes de Almeida (o que desabou em maio do ano passado), e um homem alcoolizado tinha um ferimento na cabeça que vertia sangue. Em desespero se esforçava para afugentar os conhecidos que tentavam facilitar a vida de um bombeiro que chegara para ajudar - "calma, não é a polícia", diziam, sem serem ouvidos. Cabeças que sangram. A polícia que mais mata e mais morre. E os policiais militares, presos em suas viseiras de guerra, não veem ligação alguma entre matar e morrer - e acreditam piamente que a paz dos cemitérios trará uma vida de paz, apenas não atentam que então estaremos todos mortos. Assim como creem que pôr medo é ter autoridade - tal qual fazem os "bandidos" que dizem combater. Com a sensível diferença que se os "bandidos" usam da força para se impor inicialmente, não raro ganham o respeito dos que vivem em seus territórios não por medo, mas por autoridade mesmo - a PM, em compensação, só consegue se impor pelo medo, pelo autoritário, nunca pela autoridade, nunca pelo respeito. Cabeças que sangram. Um Estado que exclui parte de sua população, tida como inimiga. As elites - políticas, judiciárias, midiáticas, econômicas - hipocritamente ignoram que uma polícia que mata é uma polícia que pede também para ser morta - PMs são bucha de canhão para proteger seu patrimônio e seus privilégios, e a violência dificilmente os atinge diretamente para terem com o que se preocupar. Quem não reagiu está vivo. Mirar na cabecinha... e fogo! Cabeças que sangram. Quase sempre as pretas pobres periféricas. Às vezes, mais recentemente, também sangram cabeças brancas - junto com braços que quebram (mas há punição para policiais que são pegos pela imprensa agindo tal qual bandidos: afastamento para funções administrativas; alguns preferem virar motoristas de deputados). É carnaval e é proibido Lula Livre. É proibido Lula. É proibido. Máscaras e Black Blocs no passado, fantasias e blocos carnavalescos no futuro? Mas seguimos livres para festejar a morte, com ou sem sangue, inclusive de crianças, seja de Arthur, seja de Marcos Vinícius - necrossociedade fascista (e ainda assim Marielle Franco vive e resiste!). Cabeças que sangram. Polícia que observa. Porque nossos militares são tão confiáveis no trato com a pessoa, no respeito à vida, que há lei que impede a PM de socorrer vítimas. Polícia sempre suspeita. Um dos militares se aproxima de uma mulher que acompanha a cena e pergunta se ela presenciou algo. São cinco da tarde, pela hora e local, descarto que o sangramento na cabeça do homem tenha sido causado pela polícia: pode ser que tenha sofrido algum ataque homofóbico ou mesmo de algum grupelho neofascista "empoderado" pelo "mito", atacando aleatoriamente quem encontrasse na rua - afinal, é neofascismo -, pode ter sido simplesmente que, muito bêbado, tenha caído e se machucado - afinal, é carnaval em tempos de neofascismo. O homem agita a cabeça como meu gato quando foi atropelado - a cena me perturba, eu sigo meu caminho. Nunca vi PM fantasiado de palhaço assassino portando machado para abordagem nos Jardins*. Cabeças que sangram. 


05 de março de 2019

PS: fiquei sabendo após ter publicado a crônica, mais um exemplo dramático de "cabeças que sangram" neste país do neofascismo bolsonarista-evangélico http://bit.ly/2EOWQKY

terça-feira, 6 de junho de 2017

Cena banal - 06 de junho

Três da tarde. Em um dos calçadões do centro de São Paulo, sob um céu plúmbeo escondido pela marquise de uma loja fechada pela crise, enrolado em um cobertor cinza, dorme uma pessoa. Perto dela está parado um homem, moreno, negro - tenho dificuldade com nossa sutil paleta de cores humanas, útil para disfarçar nosso preconceito racial. Ao desviar a vista deles e olhar para meu caminho, me assusto ao me deparar com três militares vindo em minha direção. Rapidamente noto meu engano. Ao notar os três PMs se aproximando, o homem se vira e põe as mãos na parede - o outro seguirá dormindo até o momento que acompanho a cena. Não sei o que se passa dentro dele, mas a cena é um conformismo pavloviano: o cão que sempre apanhava depois do sino, passado um tempo começa a chorar só de ouvir o sino; passado outro tempo, não chora mais nem quando apanha. Um dos PMs já tirou a arma do coldre, carrega-a na mão. A subserviência daquela pessoa de nada serve: os policiais militares são rudes (afinal, olha a cor, olha a roupa, olha os modos): as mãos são cabeça, não na parede. Fica evidente que não há ali respeito à lei: o homem não teme um processo, a prisão, a pena por algum crime; o que teme é a arma na mão daquele que se diz garantidor da lei e da ordem: ele sabe, por ser preto pobre periférico, que se não baixar a cabeça e se mostrar temeroso e servil pode apanhar (como o aluno na escola pública de Alagoas [http://bit.ly/2rIEJhU]), ser preso por desacato (quem sabe por tráfico, se for muito arrogante [http://bit.ly/2sPcEEP]), ou morrer num auto de resistência, mesmo que nunca tenha encostado em uma arma de fogo e em um baseado. A exemplo de tantas abordagens dos militares a pessoas negras, humildes e periféricas que tenho presenciado ultimamente, provavelmente nada encontrarão com aquela pessoa, que será dispensada depois de toda a humilhação, mas a abordagem contará pontos no índice de produtividade dos PMs, no seu duro combate ao crime. Pouco adiante, vejo outra cena corriqueira: um homem corre atrás de outro gritando "pega ladrão". Não pegaram: a PM estava ocupada combatendo os pobres.

06 de junho de 2017


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O espelho - a pequena farsa entre policiais militares e ambulantes

Vejo algo de um patético respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo registro do médico que desfila de branco (quando não com estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão (apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular, massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos, teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem: estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê (semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência). O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro, pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.


São Paulo, 06 de agosto de 2014