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quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Do outro lado do mar, as sobras da Europa [Diálogos com o cinema]

Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme, ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir apresentações e "papérs" para seminários e congressos marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do outro lado do mar é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte, mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações. Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois de parte da população perder o pouco que tinha, devido à bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa estão na própria Europa - são a própria Europa.
A honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro retratado por Abril Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo - dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.

15 de junho de 2016