segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Casa vazia - retorno melancólico a São Paulo

Volto para São Paulo, para tomar a dose extra da vacina - não que Pato Branco não tenha, mas é tão organizado e bem divulgado que é quase como se não tivesse -, encontrar alguns amigos e pegar algumas coisas úteis que deixei para trás em minha saída às pressas, há quatro meses, com dez dias para organizar o que foi possível e ir acompanhar minha mãe em seu tratamento de saúde. 

Abro a porta do apartamento e sou tomado pelo familiar, pelo aroma característico de minhas casas - que uma ex-namorada certa feita definiu como misto de tênis pé com naftalina, talvez este cheiro vindo de tantas memórias guardadas, já que o antitraça mesmo, não tenho. O segundo momento é de estranhamentos. Primeiro, da ausência de meus gatos (que ficaram em Pato): chegar sem tê-los para me receber fez eu sentir a casa vazia como nunca sentira antes. Depois, das pequenas mudanças na ordem dos móveis: por um mês uma amiga ficou em minha casa (o plano era que ficasse enquanto eu estivesse fora), e também saiu às pressas, devido a questões pessoais. São pequenas alterações, nenhuma significativa, mas o suficiente para me lembrar: estive um tempo ausente, muita coisa aconteceu lá fora, e mesmo aqui dentro as coisas não são como antes.

Passo praticamente uma hora apenas respirando essas mudanças. Algumas dou conta de saber onde estavam antes, outras, simplesmente não consigo achar onde era seu lugar. O sofá da sala está mais para o centro, o arranhador dos gatos virado 90°, a mesinha de centro no centro da sala - mas encostada em que parede ela ficava antes? -, a espada de São Jorge longe da janela, a rede, recolhida. A cômoda do quarto em outra parede, o boneco para desenho de observação longe dos quadrinhos que ganhei da Dani e do Felipe. O banheiro sem os apetrechos dos gatos parece descomunalmente amplo - e demoro para me dar conta do que causava essa impressão. Na área de serviço estão os tapetes da casa (vários deles deixados pela antiga dona), não sei se limpos ou por lavar - seu cheiro é o mesmo de todo o resto da casa -, e uma profusão de caixas de papelão que deixo para os gatos: só então noto que a casa está limpa de todos esses cacarecos para os bichanos. Minha kombucha ainda está viva, um pacote de macarrão aberto fez uma prateleira se infestar de carunchos. Penso em Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Por ora a comparação é desmedida: a urgência se deu por motivos pessoais, mas se e quando toda essa guerra que se arma pelos fascistas de variados matizes estourar, meu regresso ao lar de São Paulo será apenas para uma casa vazia e com carunchos? Terei ainda uma casa? Ou terão queimados meus livros em praça pública, juntos com de tantos "comunistas", como fizeram com os 30 mil exemplares de Álvaro Linero, vice-presidente da Bolívia, em 2019?

Preparo um chimarrão. A cuia que uso é a mesma que aprendi a tomar mate - argentino -, em 1997, e ganhei de presente do Celestino quando me mudei de Pato Branco. As aulas no colégio em frente voltaram - trocaram o sinal, puseram o hino nacional no lugar de O Barbeiro de Sevilha -, mas as galinhas do pátio da escola, não. Coloco uma música para me acompanhar na solidão que me toma - a sequência mantém o clima nostálgico: Mogwai, Clap Your Hands Say Yeah, Songs: Ohia, Verve, Galaxie 500, Blick Bassi, Cícero - recordo que quem mo apresentou foi a Misson. 

Noto a ausência do cinzeiro que ela comprara para quando fumasse em minha casa - depois da sua partida utilizado como vaso para meu cacto, e após ele morrer também (tinha 19 anos), apenas uma recordação de enfeite enquanto espera novo uso. Encontro-o no armário dos pratos - e me questiono como terá sido sua ressignificação pela minha amiga. Na pia, uma caneca da Rosa Luxemburgo esperando ser lavada: "quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem". Eu complemento: quem se movimenta apenas no espaço que lhe é autorizado, também não. Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos - que me prendem, os três. A mochila que deixei no sofá e uma sacola preta largada na porta do banheiro mais de uma vez fizeram com que eu visse Guile dormindo e Libertad à espreita. Mas estou sozinho. Será que eles também sentem essa ausência toda quando estou fora? Apresso minha saída para tomar a vacina - saberei logo mais, no caminho, que, apesar do bonito céu plúmbeo, será uma caminhada melancólica e ressentida por entre recordações, desejos e questões mal resolvidas.

13 de dezembro de 2021.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/