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quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Petróleo, China e a hegemonia dos EUA em risco [Zeitgeist 2033]

Diante da visível desagregação da ordem liberal - econômica, democrática, das relações
internacionais -, os donos do poder, ao invés de tentarem reverter a situação, alterando algumas de suas bases, preferem acreditar que a ruína não será completa e preferem antes montar o tabuleiro para lucrar com as próximas ações - mesmo que isso implique em uma guerra e toda destruição que ela implica. Compreensível: ao invés de ceder os anéis para não perder os dedos, seguram tudo e a esperança é que na grande fogueira a queimar os escombros da civilização possam derreter os anéis e transformá-los em um colar.
Talvez eu esteja sendo alarmista, mas me parece haver sinais de que a terceirização da desgraça está batendo em seus limites, ou seja, adentrando os países centrais: se governos conseguiram socorrer os mercados e evitar um grande crash em 2008, salvar as empresas e a economia financeira não tem implicado em salvar (bons) empregos e permitir uma vida digna às pessoas.
Enquanto as economias centrais - EUA, Alemanha, Reino Unido, Japão e China - se encontram em situação de pleno emprego, o desemprego e o subemprego são uma constante nas franjas do mundo (nos países "em desenvolvimento", até 75% dos empregos são considerados precários, segundo a OIT [http://bit.ly/2Xa2SNy]). O esgotamento do modelo neoliberal chegou à Europa com a crise de 2008, porém o grosso de seus efeitos só se fez sentir recentemente, e pode ser posto na conta dos imigrantes que chegavam ao Velho Mundo, fugidos das chagas abertas pelos europeus em suas terras pátrias - transformada em terras párias.
Na política, o perigo do crescimento da extrema-direita tem sido minorado pela pretensa "estabilidade das instituições", enquanto a democracia liberal - nunca plenamente realizada -, é substituída por um simulacro de - que Rubens Casara denominou pós-democracia. Macron foi a mais recente tentativa de dar uma nova cara às velhas práticas e manter tudo como está - discurso cosmopolita, de respeito identitário às minorias e favorecimento econômico dos ricos e dos "empreendedores" em detrimento dos trabalhadores assalariados. Os coletes amarelos são a demonstração do fracasso dessa política "centrista", e seu pacote de endurecimento das leis, visando conter futuros tumultos do gênero [https://on.ft.com/2tkaIGL], é a máscara liberal que cai aterrorizada diante das pressões populares por dignidade - sequer exigem os ideais liberais que Macron diz almejar. Renzi anunciá-lo como timoneiro da Europa renovada é prova do descolamento da classe política da realidade [https://on.ft.com/2E7eTuF]. Na Alemanha, Annegret Kramp-Karrenbauer (conhecida como AKK), sucessora de Merkel no Partido Democrata Cristão, parece uma última tentativa de contornar a situação antes de ter que escolher entre a extrema-direita ou o "populismo" de centro-esquerda (toda política que não favoreça primeiramente os detentores do capital é tida como populista pelos neoliberais): AKK venceu Friedrich Merz na luta interna do partido com um discurso cosmopolita que flerta com bandeiras mais comuns à esquerda, como aumento do salário mínimo, fim da energia nuclear, aumento de impostos e quotas para mulheres (ainda que tenha cedido na questão da imigração, prometendo endurecer as regras de asilo); enquanto seu adversário falava em "lei e ordem", "identidade nacional", "valores tradicionais" e "reformas liberais". Vale lembrar que a social democracia europeia, desde que tropeçou na busca de uma terceira via entre a direita e a direita, é um espectro que ronda a Europa - mas espectro no sentido diferente do dito por Marx, no século XIX -, e cabe geralmente a alguma personalidade que desponta, como Corbyn ou Melechon, a construção de alguma alternativa de esquerda, ainda por se realizar. A geringonça lusitana é rara (e feliz) exceção.
Até aqui tentei entender a dinâmica do poder das "instituições estão funcionamento normalmente", em que ameaças como da extrema-direita soam como problema de discurso agressivo e não de encaminhamento para um conflito armado real. A questão ganha uma dimensão mais dramática quando se analisa os aspectos geopolíticos do derretimento liberal. O fim da história apregoado por Fukuyama parecia incontestável: uma superpotência a dominar o globo, com duas forças auxiliares - Japão e Europa ocidental -, e algumas lideranças locais subordinas ao Império, o qual expandia e garantia seu poder via "reformas estruturais" ditadas por organismos "internacionais" pretensamente neutros e apolíticos, como Banco Mundial e FMI. As crises podiam quebrar países periféricos importantes, mas não afetavam o coração da acumulação nos países centrais, suas grandes empresas. Os "neobobos" podiam espernear, mas a ordem estava dada e acabada, e nada sinalizava mudanças.
Mas as pessoas seguiam vivas, e com elas, a história.

A ordem neoliberal e a derrocada soviética
Guy Debord, em 1967, ao analisar o "capitalismo de estado" soviético vaticinara: qualquer abertura do sistema levaria ao seu colapso. Diante da crise econômica na Rússia soviética, a glasnost e perestroika abriram a cova na qual a experiência do (mal denominado) "socialismo real" se enterrou. Como crise geral do capitalismo, concomitante à crise soviética, havia a crise do capitalismo de mercado ocidental, e foi como resposta a esta que surgiram as reformas neoliberais, importantes não apenas para salvar as taxas de lucro, como para reforçar a ordem geopolítica de dominação estadunidense - feito na surdina, sem necessidade de ostentar a dominação de um Estado sobre os demais. A pretensa liberdade de mercados e capitais levou ao rearranjo produtivo no globo e à concentração de capitais, formando megaempresas, via de regra de países centrais - reafirmando a tese de David Harvey, de que o capitalismo tende ao monopólio ou oligopólio, se deixado às "forças do mercado", alterando apenas o território de abrangência desses monopólios, conforme avançam os transportes e as comunicações.

Hugo Chávez, independência frente os EUA, e o preço do petróleo
O mundo ia tranquilo: crise aqui, crise acolá, mas não se cogitava um 11 de setembro, e se repetia diuturnamente que a vida agora, diante do fim da história, se resumiria a (se) consumir até o fim da vida. É quando começam a despontar novos estrategistas no tabuleiro internacional.
O primeiro foi Hugo Chávez, na Venezuela: soube desarticular os arranjos das elites locais, atacando inclusive seu braço midiático, e soube aproveitar da principal riqueza do país, o petróleo - não soube fugir da dependência do ouro negro. Ao assumir, em 1999, a cotação do petróleo estava no seu nível mais baixo, cerca de dez dólares o barril. Chávez foi um dos responsáveis pela rearticulação da OPEP, quando esteve na sua presidência, inclusive foi o primeiro chefe de Estado a visitar Saddam Hussein desde a guerra do Iraque, em 2000 [https://bbc.in/2DWiVae]. O preço do barril passou a ficar sempre acima dos US$ 25, salvo nos seis meses seguintes ao 11 de setembro - valor que, desde o fim da segunda crise do petróleo, havia sido alcançado apenas na guerra no Iraque. Em 2008 chega a US$ 130. O preço cai com a crise desencadeada pelas subprimes, se recupera até próximo dos US$ 120 em 2012 [http://bit.ly/2BotcdL]. Ao compartilhar os dividendos do petróleo com a população e não apenas com os acionistas, Chávez diminui a pobreza e melhora significativamente os indicadores sociais da porção mais pobre do país. Com isso, se garante no poder, não dando chances para a vitória das elites tradicionais, pró-EUA. Não que o governo bolivariano em algum momento tenha deixado de fazer negócios com os EUA (até 2018), contudo, sua não subserviência aos interesses do grande irmão do norte sempre foram tratados como uma afronta pelo Tio Sam, que tenta retomar o controle do país por via direta ou indireta, desde 2002, ao menos - golpes de Estado, locautes, greves, atentados com drones bombas.

BRICS e o grupo dos independentes
A princípio era um acrônimo econômico, as possíveis potências do futuro. Levado a sério pelos países, o BRICS, apesar das diferenças entre seus membros, ao se articular, desde 2006 (formalizado oficialmente em 2009), se tornou um grupo geopolítico relevante, independente da influência imediata dos EUA e de suas forças auxiliares. Se Índia e África do Sul marcavam posição como potências regionais com grande potencial econômico futuro, a Rússia de Putin, a China de Hu Jintao e o Brasil de Lula-Amorim-Mantega aliavam potencial econômico com protagonismo mundial - quase uma versão mais pragmática do terceiro mundismo da década de 1960. Noam Chomsky, por exemplo, citava, em 2014, o Brasil como país mais apto a mediar uma solução verdadeira para o conflito árabe-israelense. A crise de 2008, acelerando a integração do BRICS e a derrocada do ocidente, fez acender o sinal de alerta nos EUA, que passaram a se dedicar intensamente à desarticulação do bloco.

Avanço da OTAN no leste europeu e a reação russa
O fim do fim da história, com os ataques ao World Trade Center, em 2001, teve como uma de suas principais consequências a "doutrina Bush", a guerra preventiva, a autoautorização do Império para atacar e invadir todo país que julgue uma potencial ameaça em algum futuro - sem requisitar para tanto o aval da ONU. A confiança no cumprimento dos acordos e tratados, que garantia a ordem internacional, começa a fazer água pela ação dos EUA. As relações do Ocidente com a Rússia começam a azedar aí, e a OTAN passa a avançar célere para os países do leste europeu - a reanexação da Crimeia pela Rússia é apenas a reação mais visível aos descumprimentos do pacto firmado em 1997. Putin é um político nacionalista de direita, extrema-direita, mas guarda uma grande diferença para seus colegas de campo no ocidente: é inteligente e capaz de pensar estratégias para o Estado, e não apenas para as eleições. Ganhando também com a alta dos combustíveis, investiu inicialmente na política interna, paulatinamente avançando na política externa, via indústria militar (nunca abandonada) e parcerias estratégicas, como o BRICS; a seguir, com a crise advinda da queda dos preços do petróleo, em 2014, e uma política mais agressiva por parte dos EUA, reagiu atuando de forma mais aberta na política externa - a aliança com a China, em especial com a Nova Rota de Seda, talvez seja esse ponto de inflexão, em que começa a se articular de maneira mais orgânica um polo de resistência à hegemonia estadunidense. As atuações militares, mesmo com o cerco econômico recente, fez o país assumir novamente papel de relevo no cenário mundial - em especial após a reanexação da Crimeia e a intervenção na Síria -, inclusive fazendo renascer o mesmo discurso de "perigo russo" da época da União Soviética. As acusações dos EUA de interferência nas suas eleições de 2016, sinalizam que o ataque à Rússia é real, e tal interferência do país eslavo seria uma reação "natural" aos movimentos de Tio Sam no país e seus arredores. O recado dado aos EUA quanto a uma possível interferência na Venezuela de Maduro mostra que pretende expandir sua área de influência - em parceria com a China - muito além das suas vizinhanças.

China, a nova potência mundial
Enquanto potência regional ascendente, com mão de obra intensiva barata e grande mercado consumidor potencial, a China, ainda que com ressalvas, era bem vinda ao sistema de produção internacional. Os avanços geopolíticos e a mudança da forma de inserção na ordem econômica mundial fizeram com que os EUA se preocupassem com seu avanço. No pós crise de 2008, a China foi responsável por manter a demanda econômica em níveis que evitassem maiores danos à economia do planeta. O problema foi que isso fez com que despontasse como potência e começasse a fazer frente aos EUA e suas forças auxiliares, em especial a Europa - com pesados investimentos em infra-estrutura na América Latina e na África. A ascensão chinesa não é de apenas um novo player global, é uma nova forma de organizar a economia e as relações mundiais, uma vez que seu modelo tem a participação evidente do estado na economia - e não apenas disfarçada, como no modelo de "livre mercado" apregoado por EUA e seus asseclas. A preocupação passou a crescer quando o Império do Meio, consolidado como principal parceiro comercial de muitos países-satélites das potências, passou a investir abertamente nos EUA e Europa, com aquisições de empresas dos mais variados ramos - informática, veículos, robótica, química, energia, etc -, afim à sua estratégica "Made in China 2025".

Tentativa de desarticulação dos países independentes produtores de petróleo (iniciada em 2011 e concluída em 2014)
Com a economia mundial se recuperando da crise de 2008, os preços do petróleo voltam a subir vertiginosamente, de US$ 40 para cerca de US$ 80, em 2010. Por coincidência, no meio desse trote para o alto, começam as primaveras árabes, em 2011; em 2012 haveria eleição presidencial na Venezuela; e um acordo nuclear com o Irã era costurado, prometendo acabar com o embargo ao país xiita. A turbulência no Oriente Médio acaba fazendo o preço do ouro negro disparar, chegando a US$ 116. Curiosamente, os principais aliados dos EUA na região, Arábia Saudita e Emirados Árabes, passaram incólume às manifestações. É somente com o apaziguamento do Iraque, em 2014, que o preço do petróleo passa a ficar entre US$ 40 e US$ 50. A baixa na cotação torna economicamente inviável o gás de xisto, que vinha ganhando impulso nos EUA - o que é bom para a Arábia Saudita. Também coincide com quando os EUA estão prontos para assinar o acordo nuclear com o Irã - rival da Arábia Saudita e também produtor de petróleo -, em 2015, levantando o embargo econômico ao país (acordo esse basicamente igual ao proposto por Brasil e Turquia em 2010, e aceito pelo Irã). É quando a Rússia, outra produtora de petróleo, dá um basta ao avanço da OTAN, com a reanexação da Crimeia. E é quando a Venezuela está sem seu estrategista, e Maduro se mostra bastante aquém do que seu cargo exige. É quando, na esteira de um movimento popular, começa uma mui suspeita investigação judiciária sobre corrupção no Brasil (após os EUA espionarem a Petrobrás e a presidenta da República o que, ao que tudo indica, municiou a primeira fase da operação [https://bbc.in/2Smuuva]), e a queda do preço do petróleo, aliada à Operação Lava Jato, acarretam numa óbvia perda de valor das ações, e permitem a construção da narrativa de que Dilma quebrou a Petrobrás, depois ampliada para Dilma quebrou o país com as pedaladas fiscais (remanejamento de incríveis 0,008% do orçamento). A estratégia de golpe parlamentar já havia sido ensaiado pela embaixatriz Liliana Ayalde em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012 - e o juiz "responsável" por desarticular a cadeia de óleo e gás do Brasil, devidamente treinado nos órgãos de segurança dos EUA [http://bit.ly/2HYDCX3]. O novo governo brasileiro, assumido pelo "vice-caução" [http://bit.ly/cG180509], de alinhamento automático com os EUA, ajudou a desarticular em alguma medida o BRICS - contudo, ao que tudo indica, o Brasil precisa mais da China que a China do Brasil.
Com esse movimento, a ordem liberal capitaneada pelos EUA abate alguns dos países que ameaçavam esboçar voos solos - como Venezuela, Síria e Irã - e, principalmente, atinge dois dos países do BRICS - Brasil e Rússia.
(Parênteses: a derrubada do Brasil petista pode ter sido um tiro no pé no projeto de hegemonia americana: ainda que tenha "recuperado" o petróleo e, pelo que se sinaliza, imposto uma agenda favorável aos seus interesses - privatizações e bloqueio chinês -, o Brasil já depende o suficiente da China para não poder barrá-la, sem mais; mas principalmente porque, ainda que de maneira independente, priorizando relações sul-sul, a diplomacia petista - principalmente Lula-Amorim -, era de reforço à lógica favorável aos EUA, de livre mercado - por mais que fosse minorado por políticas de Estado - e defesa de um mundo "multipolar" existente apenas enquanto desejo e ideologia).

Os tratados de livre comércio
O segundo ponto de ação dos EUA para retomar a hegemonia foi costurar novos tratados de livre comércio, de modo a isolar a China e garantir que os governos não participassem de maneira evidente do mercado. Tratados amplos que cercavam o Império do Meio: a Parceria Transpacífica e o Parceria Transatlântica. Sobrariam fora deles, grosso modo, além da China, Rússia, algumas repúblicas asiáticas, Oriente Médio, África, Brasil e Argentina.
Rússia é um calo no projeto americano - ou a justificativa para suas arbitrariedades, para ser mais exato -, as repúblicas asiáticas estariam "naturalmente" na órbita de China e Rússia, o Oriente Médio é em parte controlado pelos EUA, em parte é o caos; na África, os países mais importantes economicamente seguem colônicas de fato da Europa - eis a preocupação com a democracia no Congo, na Nigéria e o silêncio com a tentativa frustrada de golpe no Gabão -; Argentina teve a vitória do candidato "certo", graças ao golpe branco da mídia; e o Brasil com alguma dificuldade - um impeachment, um lawfare, uma ameça de golpe militar e a ameaça de mamadeira de piroca comunista - aprendeu a votar "certo". A China estaria, portanto, isolada, e começaria a definhar caso não aceitasse se adequar à boa governança - as reformas estruturais que Trump tem exigido abertamente.
Ao mesmo tempo, cria uma legislação que permite julgar quem usou moeda americana em transações suspeitas ou criminosas, se tornando, de fato, juiz do mundo, com um sistema judiciário totalmente enviesado para a defesa de seus interesses.

Trump e a mudança de estratégia
A vitória da extrema-direita nos EUA - uma extrema-direita boa de estratégia eleitoral (se jogam sujo é outra história), mas fraca (ao que tem demonstrado até aqui) de estratégia de estado, de poder, de geopolítica -, com Donald Trump, fez com que o Império do Norte abandonasse a estratégia de isolamento da China e partisse para a guerra aberta. Por ora ela é denominada de "guerra comercial", mas o guerra não é uma metáfora, e pode-se dizer que há prisioneiros de guerra, negociados em busca de acordos vantajosos - Meng Wanzhou é apenas a prisioneira mais importante. Aparentemente, a estratégia de Trump era de uma espécie de blietzkrieg, porém sem a eficiência alemã - e correndo sério risco de perder e ter que recuar. Isolamento chinês não mais por tratados comerciais, e sim por tarifas comerciais dos EUA, aliado a vetos abertos dos países aliados a empresas chinesas, sob a justificativa de ameaça à segurança nacional. Ocorre que há um limite do quanto os países aceitam perder dinheiro para se vincular a um lado. Se o "Brasil livre de ideologia" aceita entrar alegremente nessa guerra contra a China, na Argentina já se discute um downgrade na qualidade das exportações de soja, para ganhar a fatia americana no mercado chinês. Se o banimento da Huawei da internet 5G se justifica por conta da segurança, o UK National Cyber Security Centre apresenta relatório [https://on.ft.com/2tuHWTW] apontando a falácia do argumento, sendo possível o uso de equipamentos Huawei sem pôr em risco a segurança nacional - a questão de segurança despertada pela Huawei é, na verdade, de segurança geopolítica.

A Europa tenta se salvar
Em meio a esse conflito, com aliados fazendo jogo duplo e ameaçando desertar, a Europa aproveita que tem um pouco mais de margem de manobra e toma lado - da potência hegemônica -, na esperança de lucrar com a manutenção da ordem atual - sob o risco de se tornar toda ela uma grande Grécia, como único valor positivo a lembrança de ter sido (pretensamente) o berço da civilização ocidental.
A Alemanha é o caso a ser observado, por ser o país mais forte do bloco e por estar dando sinais claros da sua movimentação. De um lado, a tentativa de aprofundar o sistema global em curso, favorável ao capitalismo estadunidense e das potências auxiliares, com a criação de "campeões continentais", eufemismo para permissão de monopólios. O principal caso é a tentativa de união da Alston com a Siemens, no ramo de transporte sobre trilhos. Isso seria um passo a mais na "integração" europeia (integração econômica, azar das pessoas), dificultando separatismos posteriores - como no caso do Brexit -, permitiria ganho de escala para disputar com mais vantagens mercados (e azar das pessoas/consumidores) e, principalmente, permitiria evitar o avanço da chinesa CRRC - até então não se tinha alegado necessidade de conter empresa de um país em especial para mudar as regras de concorrência da União Europeia [https://on.ft.com/2EjfEC8]. A criação de competidores globais, que Altmaier (como Le Maire) defende, é a manutenção da ordem mundial atual, sob os auspícios estadunidenses, de exploração das periferias - inclusive as próximas, como os países do leste europeu - para garantir as taxas de lucro e os dividendos dos acionistas. É um caminho que mantem o status quo, pressupõe que as regras do jogo do mercado mundial seguirão - e, portanto, irá lucrar com isso -, e ainda consegue manter algo do discurso liberal, uma vez que o protecionismo não se faz em base nacional, mas continental, com objetivo explícito de barrar o adversário oriental.
O outro exemplo, também vindo da Alemanha, diz respeito à criação de um fundo para conter compras de empresas nacionais por estrangeiras [https://on.ft.com/2SOl2pG]. Houve quem visse nessa atitude do ministro da economia Peter Altmaier uma defesa da indústria nacional, um caminho que deveria ser seguido pelo Brasil. Vista rapidamente, a atitude é válida. Vista em detalhes, se mostra uma questão mais complexa. Primeiro porque salvar empresas alemãs não implica em salvar empregos na Alemanha. O protecionismo alemão não encontrou críticas a oeste porque, apesar de regra geral, seu alvo é bem específico: barrar as compras de chinesas, cujo modelo "economia dominada pelo estado" acarreta uma competição desigual com modelo de "competição aberta" alemão - em alerta desde a compra da empresa de robótica Kuka, em 2016. A recente compra da alemã Sonnen, do ramo de energia renovável, pela Shell não gerou nenhuma manifestação de preocupação ou crítica quanto a sua aquisição por estrangeiros [https://on.ft.com/2XkVZJB]. A proposta alemã não é nada muito diferente do que explicitado pelo governo Bolsonaro, apenas mais bem elaborado, e com outras significações, dada a importância relativa de ambos os países: barrar o avanço Chinês, custe o que custar. É uma aposta de alto risco, em especial para o Brasil. E o pior: caso ganhe a aposta, não há nenhuma evidência de que isso resultará em ganhos para estes Tristes Trópicos e sua população mais sofrida.

22 de fevereiro de 2019

terça-feira, 13 de junho de 2017

Lava Jato em dois tempos: há listras e estrelas - e há as nossas elites ineptas.

Fernando Horta sugere que sigamos devagar com o andor em apontar o dedo para o Tio Sam na orquestração do golpe e do colapso político (e econômico) brasileiro [http://bit.ly/2rWS8EJ]. Ainda que não ache que os Estados Unidos sejam os grande protagonistas do que vivemos atualmente, não consigo não vê-los em papel de destaque; e se nos faltam provas da participação estadunidense - afinal, ainda não foram disponibilizados os documentos dos EUA sobre este passado tão recente -, há uma série de elementos que reforçam a hipótese de influência externa.
Influência não quer dizer determinismo: sem nossas elites interessadas na defesa de seus privilégios e ávidas em reafirmar seu poderio frente os trabalhadores e os descamisados, não haveria golpe algum, participasse os EUA ou não. Como Horta comenta, os EUA não são exatamente um primor de eficiência quando buscam garantir seus interesses pelo globo - e cita o exemplo da Baía dos Porcos e do Afeganistão. Contudo, os EUA ainda são eficientes em desestabilizar o mundo, como no caso do próprio Afeganistão ou nos diversos conflitos que eclodiram após a chamada primavera árabe. Horta também fala de empresas e interesses capazes de ações internacionais por cima do governo - a questão é o quanto é possível fazer uma distinção drástica entre os interesses desses atores e do governo estadunidense, sempre em parcerias muito próximas, por mais que não possam ser tratados como uma coisa só.
Dado o papel principal às nossas elites, questiono a extensão da participação dos EUA. A Lava Jato possui claramente duas fases, dois momentos bem distintos. No primeiro deles (2014-2015), ações precisas, com provas e não convicções, acertam em cheio os pontos estruturantes do relativo protagonismo que o Brasil vinha ganhando com os governos petistas: empreiteiras, segurança nacional, com o submarino atômico, e, principalmente, petróleo. Dos grampos telefônicos da NSA à presidenta Dilma, além de uma série de outros grampos que é de se imaginar que correram solto no país, passando pelo treinamento de Moro e outros nos EUA, tudo leva a crer que se sabia onde estavam os pontos que poderiam ser "descobertos" e provados rapidamente. A novidade no uso das prisões preventivas como forma de tortura evitou questionamentos mais enfáticos à legalidade do método das "delações premiadas", assim como acusações de seletividade política eram caladas na medida em que o recorte era preciso em determinadas ilegalidades - sem, até então, a predominância do discurso messiânico-religioso de salvar o país da corrupção (atéia e comunista?) do pato Dallagnol. Pode-se definir essa fase como uma "operação asséptica", uma blietzkrieg econômica-geopolítica. E precisava ser rápida, porque seu fôlego era curto e logo seria tripudiada em seus métodos. Os resultados favoráveis aos EUA não demoraram para aparecer, não só com o enfraquecimento da Petrobrás, assim como na abertura do pré-sal às petroleiras internacionais, ainda no governo Dilma [http://bit.ly/2sk5sn9].
Ainda mais quando comparado ao segundo momento da Lava Jato, fica a forte impressão de que Moro e a república de Curitiba foram inicialmente atores de uma peça escrita alhures, e cumpriram bem seu papel. No segundo momento, os atores resolveram assumir a condição de autores e descambamos para o estado de exceção ao melhor estilo do III Reich. Prisões arbitrárias infinitas (ou até uma delação premiada falando em PT e Lula), delações sem provas, violação explícita da constituição, power points toscos, convicções como condição de prova de crime. A esbórnia tomou conta de Curitiba e da nação a partir de 2015. É quando, ao que tudo indica, nossa elite tomou as rédeas da situação. A perseguição política de Moro e pato Dallagnol ao PT e a Lula passaram a ser evidentes, e a falta de qualquer decoro do judiciário foi além de Coronel Mendes e seu pupilo D.T. e se tornou carne de vaca - não me refiro aqui à Operação Carne Fraca ou à delação da JBS. Em São Paulo, a PM foi usada como milícia tucana [http://bit.ly/2rrQ3gs], um oficial do exército agiu à revelia da Comandante em Chefe, espionando movimentos sociais por mais de um ano até forjar um ridículo flagrante contra adolescentes [http://bit.ly/2sYkwF5], e em Brasília, bem, em Brasília todos os piores estereótipos sobre políticos subiram o Planalto com Temer e sua camarilha, para melhor destruir a Constituição, os direitos sociais e qualquer possibilidade de vida minimamente digna a milhões de brasileiros.
Ainda que tenha participado de golpes similares anteriormente, em Honduras e no Paraguai - vale lembrar o nome da embaixatriz Liliana Ayalde -, não me parece que esse segundo momento fosse do interesse dos EUA, não só por permitir a eventual ascensão de um político progressista (Lula, no caso) ou destemperado (ninguém aqui, por enquanto), como por não ser nada positivo aos seus interesses geopolíticos ter a grande potência regional à deriva, sem poder contribuir para garantir a estabilidade na região.
Em resumo: sem nossas elites, não teria Lava Jato, não teria golpe, não teria o colapso político e caos econômico que vivenciamos. Concordo com Horta que buscar um inimigo interno é fugir das próprias responsabilidades e, mais, é deixar passar o principal - a conclusão de sua análise é precisa. Porém, até pelo primarismo de nossas elites, é difícil não acreditar na colaboração efetiva dos EUA - se governo, CIA, Departamento de Estado, think tanks, empresas, universidades ou o que for, não importa - como fator fundamental do sucesso inicial da Lava Jato - mentores e capitães da operação de desmonte do parco protagonismo brasileiro - e do caos que nos impusemos a seguir.

13 de junho de 2017