terça-feira, 24 de dezembro de 2002

O tapa na mão e a propaganda de sabão em pó

O principal passatempo da minha mãe é o bordado em ponto-cruz. Por não ser uma atividade conhecida pela dinamicidade ou pelo acaso, dá-se que minha mãe não tem muitas histórias para contar, apenas mostrar os bordados que fez, que está fazendo ou que pretende fazer.
Ao mostrar um dos bordados por ela feito, ela gosta de contar uma história do meu irmão. Conta ela que estava em seu quarto, bordando, com meu irmão ao lado, e interrompeu o bordado para atender o telefone. Enquanto no telefone a conversa ia e vinha, meu irmão pegou o bordado dela e começou a espetar a linha. Ela pensou em “dar um tapa na mão dele”, mas não o fez, depois desmancharia o que ele estava fazendo, não havia qualquer problema. Qual não foi a sua surpresa, ao retomar o bordado, que meu irmão, apenas vendo a forma das linhas já bordadas, fez o ponto certo – ponto esse que minha mãe aprendera em um curso e não sem certa dificuldade o executava. E pensar que se minha mãe tivesse dado o “tapa” na mão do meu irmão – fosse o tapa físico, ou palavras –, ela nunca saberia dessa facilidade que ele tem para analisar a “lógica do bordado”
Trata-se, é claro, de um exemplo banal. Mas quantos e quantos tapas nós já não recebemos ou demos, no decorrer da nossa vida? Quantas potencialidades – nossas e alheias – não ficaram latentes porque temíamos perder um minuto a mais em certa atividade?
Não se trata de fazer a defesa da educação que os pais têm dado hoje aos filhos, permitindo que eles façam tudo, se ausentando da responsabilidade de pais com a desculpa de que eles devem aprender com os próprios erros. Trata-se de pensar duas vezes antes de impedir que alguém faça algo só para evitar um pouco de trabalho depois. Tal como uma propaganda de sabão em pó, veiculada há certo tempo, em que as crianças faziam uma pintura, uma escultura, não lembro bem, e sujavam a roupa toda. Dizia em seguida o locutor, que se a mãe não quisesse sujeira, também não haveria arte.
É isso que eu defendo: não ser uma roupa suja, um trabalhinho extra na arrumação da casa, “o que os outros vão pensar” que impeça as pessoas de agir, fazer novas atividades, buscar suas potencialidades, extrapolar seus limites. Não sejamos carrascos das potencialidades das pessoas – nossas e dos outros. Um elogio, ou mesmo uma crítica, quando feita de maneira construtiva, é sempre gratificante, estimulante.
Esta crônica dirige-se também aos velhos que acham que pensam não ter mais potencialidades escondidas. Conheço muitas pessoas que começaram a pintar, esculpir, tocar um instrumento somente depois de uma idade avançada. Pessoas assim esbanjam jovialidade – talvez porque a juventude seja justamente a busca pelas potencialidades escondidas que existirão enquanto estivermos dispostos a encontrá-las.
E da próxima vez que você for impedir alguém – ou a si mesmo – de inventar um novo prato, só porque depois vai ter uma panela a mais para limpar, pense duas vezes. Você pode estar matando um grande “gourmet”.

Pato Branco, 24 de dezembro de 2002

sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

Soma

Até certa época, me impressionava o tom premonitório que eu cria haver nos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, de George Orwell e Aldous Huxley, respectivamente. Hoje esses livros me parecem cada vez menos premonitórios, e o que me impressiona é a capacidade de discernimento dos autores, contrapondo à nossa cegueira, incapaz de perceber o elementar, mesmo quando ele já nos foi revelado.

A impressão que se tem hoje é que só é infeliz, só é triste quem quer. Psiquiatras e cientistas de todo o mundo comemoram os 45 tipos diferentes de medicamentos contra depressão. Anunciam esse arsenal químico como uma novidade e um grande bem para a humanidade.

Mais de 50 anos atrás, Lenina já tomava pílulas da felicidade. Não tinha o arsenal que temos hoje, contentava-se apenas com o Soma, e ele era eficiente, mais que qualquer uma das 45 pílulas atuais.

Quem leu Admirável Mundo Novo deve se lembrar que qualquer aborrecimento, qualquer coisa chata que acontece, qualquer problema que surgisse, era motivo para usar o Soma.

Numa entrevista para a revista Cláudia de outubro de 2002, o psicofarmacologista inglês Mike Briley, chefe da equipe que desenvolveu um dentre os 45 antidepressivos existentes (o mais recente, por isso chamado de última geração. Entretanto, sabemos que cada geração desses medicamentos para doenças dos ricos dura muito pouco tempo, por isso não podemos arriscar chamá-lo assim dois meses depois de lançado), só não citou a obra de Huxley para não deixar muito explícitas as fontes que norteiam o seu trabalho. Diz ele a certa altura da entrevista, quando perguntado se a depressão pode ser curada sem os medicamentos: “É possível superar uma crise sem remédios. Mas, por ser recorrente e acontecer em episódios, ela voltará e será cada vez mais séria e longa. Não há motivo para não se tratar quando há tantos recursos”, a não ser, talvez, que as vezes é preciso enfrentar o problema com a cara limpa, sem máscaras, sem remédios, sem pílulas da felicidade, para evitar esse ir e vir de crises depressivas. Solucionar as causas, e não simplesmente curar as conseqüências.

Se esses remédios resolvessem realmente o problema da depressão, não seria preciso usá-los por até cinco anos, como relata o entrevistado. Em cinco anos, num mundo cada vez mais dinâmico, como é o nosso, os problemas que levam uma pessoa à depressão já desapareceram há muito tempo. O que se fez foi fugir do problema e não enfrentá-lo. Provavelmente, se depois de cinco anos usando remédios a pessoa, ao se deparar com uma situação semelhante a que a levou à crise anterior, acabará voltando a se esconder atrás da máscara dos remédios. Vale lembrar que uma terapia – cuja morte é anunciada todo ano –, que segundo o entrevistado é um processo caro e longo, nesses cinco anos teria conseguido efeitos semelhantes, mas de duração muito mais efetiva, pois teria atacado a causa que levaram à depressão.

Apelar, logo de cara, para um remédio antidepressivo é típico de uma sociedade onde as pessoas fogem dos problemas, ao invés de tentar resolvê-los. É típico de uma sociedade infantilizada, igual à descrita por Huxley e por Orwell. É o Admirável Mundo Novo se desnudando sob nossos narizes, e nós insistindo em nossa cegueira.

Um brinde ao Prozac!


Pato Branco, 20 de dezembro de 2002

quarta-feira, 27 de novembro de 2002

Somos todos culpados

Como é fácil acusar os outros. Em tempos de ideologia liberal, em que se prega que todos são capazes e, conseqüentemente, responsáveis pelos próprios fracassos, essa gana inquisitória ganha contornos brutais.

Página C4 do caderno Folha Campinas, do jornal Folha de São Paulo, de 27 de novembro de 2002: "Tio e avô trancafiavam irmãos de 5 e 6 anos"; diz o subtítulo, intitulado "Perigo em casa": "Crianças estavam em um quarto escuro, entre ratos e baratas; vizinhos alertaram Conselho Tutelar de Belém".

Não sou muito chegado aos detalhes do show de horrores que é a vida. Procuro me manter informado à respeito, afinal, vivo neste mundo e se desejo que ele melhore é preciso que eu saiba em que condições ele está. Saber que ainda hoje ocorrem torturas no Brasil, por exemplo, para mim, é o suficiente; se a tortura é feita com madeira, ferro, cigarro ou pau-de-arara parece-me desnecessário para quem não lida diretamente com isso, e serve apenas para embrutecer ainda mais o ser humano.

Ao ler a manchete da referida notícia, a impressão que tive é que o tio e o avô, sem paciência para cuidar das crianças, mantinham-nas trancadas no quarto, para que não incomodassem. Eu teria me contentado em saber apenas a manchete não fosse a foto que acompanhava a reportagem: o conselheiro tutelar conversava com o tio das crianças, que estava deitado na cama com uma delas, para que a soltasse. Não havia violência na cena, o tio parecia assustado com o que se passava, a criança protegia os olhos da luz da equipe de reportagem que acompanhava o caso. Alguém mentia: a foto ou o título.

O início da reportagem pinta o tio das crianças, 27 anos, quase como um monstro desumano: as crianças viviam, desde que foram abandonadas pelos pais, há cinco anos, trancadas em um quarto escuro, sem banheiro, em meio a comida podre, ratos e baratas, dormindo em colchões sujos, furados e sem lençol; eram impedidas de brincar e estudar, estavam desnutridas, o menino apresentava febre alta e pneumonia. O tio talvez tivesse problemas mentais, e havia ameaçado matar as crianças e se suicidar depois, caso fosse denunciado.

Talvez a foto mentisse. O tio, como tudo mostrava era um monstro, na melhor das hipóteses, um louco. Mas o jornalista Maurício Simionato acabou escorregando no meio da reportagem: "As crianças são filhas da irmã dele, xxx, que desaparecera há cinco anos. Segundo o relato dos conselheiros, o tio foi encontrado abraçado com o menino e pedia para que não levassem as crianças. Ele chorou e alegou que também havia sido abandonado pela mãe". Mais a frente: "O avô das crianças declarou à polícia que o filho [tio das crianças] sofre de "problemas espirituais", que teriam sido agravados desde que mãe dele foi embora de casa há 14 anos. De acordo com o aposentado, a família se mantém apenas com um salário mínimo".

Que as crianças não podiam continuar com o tio, naquele estado, isso é certo, como a grande maioria das crianças das periferias pobres do Brasil também não podem continuar morando nas condições em que vivem atualmente. Mas daí para o tom acusatório-sensacionalista da reportagem é grande a distância. Apontar o tio como culpado, como responsável pela "situação degradante" das crianças é hipocrisia típica da classe média.

Três pontos chamam a atenção: primeiro é como ter lençol nas camas quando quatro pessoas sobrevivem com R$ 200,00, mais grave ainda: como conseguir comida para quatro pessoas com R$ 200,00, quando cesta básica, suficiente para apenas uma pessoa, custa mais que isso. Segundo é o dito "quarto escuro" onde estavam as crianças e o tio: na foto, há um beliche, e, ao lado, um fogão. Não se pode afirmar, mas são boas as chances de que o "quarto escuro" fosse o único cômodo da "casa" – quem sabe a "casa" tivesse mais um, no máximo. E eram as crianças que não tinham acesso ao banheiro ou eram todos os moradores da casa? Por fim, vale ressaltar a boa intenção do tio, que a escorregada do repórter deixou em aberto: tudo indica que o que ele queria, no fundo, era proteger as crianças, protegê-las do abandono que ele fora vítima, protegê-las desse mundo tão hostil.

Talvez não fizesse da melhor forma, é verdade. Mas quem somos nós, das classes média e alta, para dizer como se deve educar os filhos? Tivemos nas últimas semanas, dois casos de filhos de famílias abastadas que mataram pais, avós e quem mais estivesse na casa. É essa a educação que difundimos, e nos sentimos no direito de culpar aqueles que não a seguem. Mas não fiquemos apenas em casos extremos. Se não trancamos nossos filhos em quartos escuros, trancamos em condomínios fechados e shopping centers. Se nossos filhos não estão desnutridos, estão por outro lado subnutridos, por só comerem McDonald’s e Elma Chips. Se nossos filhos não sofrem de pneumonia e febre alta, sofrem de depressão, ansiedade, anorexia.

Pessoas como o tio dessas crianças, são doentes, loucos, verdadeiros monstros. Onde já se viu fazer algo como isso com duas crianças? O simples fato de sobreviverem com um salário mínimo mostra o quanto são incompetentes. O que esperar de alguém que foi abandonado pela mãe – que sabe-se lá por quem foi abandonada antes – e que agora resolve cuidar de dois sobrinhos cuja mãe abandonou? Já as nossas intenções são nobres. Queremos sempre o melhor para nossos filhos. Se não acertamos sempre, é porque não somos deuses. Nosso doutorado nas melhores universidades atesta nosso esforço pelos nossos filhos.

Erramos na educação de nossos filhos? Pouco importa, há pessoas que fizeram pior, e isso no redime. Encontrar alguém que fracassou mais do que nós serve para que, por um instante, esqueçamos que também somos perdedores. Ignoramos o fato de que tivemos condições muito melhores para estar apenas um pouco acima (será que estamos mesmo?) de pessoas como o tio das crianças. Nos esforçamos mais, fomos mais competentes, por isso somos melhores: os milhões de miseráveis do Brasil só não estão no nosso lugar porque são incompetentes. Pode não parecer, mas no fundo, há justiça no mundo.

Enquanto nós seguirmos buscando monstros que foram abandonados pela mãe e trancam seus sobrinhos em quartos escuros, nós encontraremos. Esse ciclo que se repete a cada geração só cessará o dia em que nós assumirmos que fracassamos – seja no nosso projeto de vida, seja na educação de nossos filhos – e sem falsos moralismos, sem auto-engano, sem "eu-sou-bom-porque-não-faço-tanto-mal-assim", passarmos a buscar um outro modo de vida, que não olhe apenas para nós próprios e quando muito para nossos filhos, mas que veja todo ser humano como irmão, que sinta a dor do próximo como a sua, e mais importante: que não aceitemos nenhuma pretensa paz enquanto houver pessoas que não tiverem o necessário para uma vida humanamente decente.

Campinas, 27 de novembro de 2002

segunda-feira, 4 de novembro de 2002

Embalagem Asséptica

Dias atrás fui assistir ao espetáculo "Sem Lugar", do Grupo de Dança 1º Ato, de Belo Horizonte. A coreografia era em comemoração do centenário de Drummond. Não sei se sou eu que filosofo demais, mas, assim como as outras apresentações de balé moderno que já assisti, achei a referida coreografia muito crítica (além de muito bonita!). Algumas vezes, poemas ou falas interrompiam o movimentar (e o estar) dos corpos.

Lembrei-me de uma dessas falas ao abrir o jornal hoje. Nela, uma dançarina tinha em mãos uma embalagem longa vida (dessas de leite), e falava das vantagens de tal invento. Não me recordo exatamente o que ela falava, mas era algo como o lemos nas referidas embalagens: "...e envasado nesta embalagem totalmente asséptica, que protege do ar e da luz, garantindo perfeita e longa conservação de suas qualidades nutritivas". Enquanto falava isso, a dançarina pedia (ou será melhor dizer rogava?) a quem quer que fosse um abraço, e não era atendida. Interpretei tal fala como uma sutil (mas pesada) crítica às pessoas de hoje: muito preocupadas em se preservar, acabam se fechando para o mundo, para as outras pessoas, e acabam, no fim, não aproveitando a vida.

Pois bem, tramita no congresso dos Estados Unidos um projeto de lei para cortar as verbas federais a instituições (universidades, ONGs) que defendam, entre os jovens, o uso de camisinha e pílulas anticoncepcionais ao invés da abstinência sexual. Não fosse sério, seria uma boa piada.

O argumento utilizado pelos defensores da abstinência sexual até o casamento (inclusive por um brasileiro, um vestibulando de 18 anos, entrevistado pela reportagem da Folhateen) é de que não há meio preventivo 100% seguro contra a gravidez e as DSTs, além de outras dificuldades sociais e pessoais que o sexo fora do casamento poderia gerar.

Especialistas brasileiros ouvidos pela reportagem criticam a idéia. Beth Gonçalves argumenta: "Pesquisas tem demonstrado a ineficiência de campanhas como essas de cunho moralista, normativo e autoritário, que afastam os adolescentes em vez de aproximá-los da prevenção, de aprender a cuidar da sua saúde sexual e de seu bem-estar". O médico infectologista Ricardo Tapajós completa: "Usar a abstinência como política governamental é irresponsabilidade, pois causa traumas e piora a saúde mental média da população".

Se como campanha governamental é condenável, a opção individual pela abstinência sexual até o casamento deve ser respeitada (o problema é apenas daqueles que estavam interessados no indivíduo). Entretanto, vale alguns comentários a respeito. Muitos fazem essa opção por questões religiosas ou por tradição; a esses é difícil argumentar. Já a entrevista do brasileiro, em que ele argumenta sua opção, permite levantar algumas perguntas.

A entrevista é um exemplo prático da fala do "Sem Lugar": "Ficar sem fazer sexo é a melhor opção para não se contaminar. Esse é um dos benefícios da castidade. Mas também há outros, que envolvem a parte emocional. Você fica com domínio de si". Assim como a embalagem do leite, o rapaz tem duas camadas para se proteger e se isolar: a primeira é o "não se contaminar", a segunda é o "domínio de si". Ele tem todo o direito de querer "se preservar" até o casamento, e inclusive está correto na sua argumentação: a camisinha é segura entre 82% e 97%, e a pílula anticoncepcional, 97% a 99,9%, e José Angelo Gaiarsa, em seu livro "A família de que se fala e a família de que se sofre" comenta que no orgasmo a pessoa deveras perde o controle de si. A questão é se vale a pena, por causa de 3%, deixar de aproveitar o que a vida oferece de bom. (Também não acho que se deve cair no outro extremo e escancarar tudo). O problema também é que essa excessiva preocupação em se preservar não se restringe apenas ao sexo, é comum pessoas que evitam um relacionamento mais sério, mesmo de amizade, para se poupar de desilusões e sofrimentos futuros.

Para fazer a vida durar mais, deixar de vivê-la. Como Clarice, em "Eu sei mas não devia": "A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.".


Campinas, 04 de novembro de 2002.

sábado, 2 de novembro de 2002

A transição mais democrática

A transição mais democrática dos últimos 42 anos. Amém. Finalmente um presidente eleito volta a entregar a faixa a outro presidente eleito. Amém.
Quem assiste ao noticiário da tv, ou mesmo lê os jornais, acaba se deparando com essa jogação de confete irritante e mentirosa.
Primeiro porque Fernando Henrique pode ser considerado antes golpista a democrático: foi eleito democraticamente as duas vezes, sim; mas a compra de votos para a emenda da reeleição foi um golpe branco contra a constituição (alternativa oferecida também a JK, mas que este se recusou a acatá-la).
Segundo que Itamar passando a faixa a FHC foi mais democrático que este a Lula: Itamar assumiu o posto em substituição a Fernando Collor, afastado pelo Congresso, o que, apesar da distorção que isso acarretou a noção de democracia – que passou a ser, então, pôr e tirar presidentes –, foi um ato democrático.
Terceiro: o que não houve nestas eleições foi a devida lisura na condução do processo por parte do TSE, como era de se esperar. A menos de um ano das eleições, a verticalização coligações. Durante a campanha, soa patético dizer que não houve favorecimento ao se contar quantos direitos de resposta foram dados ao Ciro Gomes, e quantos foram dados ao compadre do presidente do distinto tribunal. Afora a apreensão de urnas pouco antes do pleito. Ou do sistema de tais urnas ser fechado, o que impede uma fiscalização independente, e gera muitas suspeitas. Uma delas diz respeito ao fato dos institutos de pesquisa terem cometidos erros grosseiros nas suas pesquisas de boca-de-urna: acertaram o percentual de votos de Ciro e Garotinho e erraram o de Lula e Serra, indicando que o primeiro teria três pontos a mais do que realmente teve, e o segundo, três a menos o de Serra. Coincidência de erro que se repetiu – inclusive nos três pontos percentuais – no segundo turno. Outra suspeita foram os 41 mil votos subtraídos de Lula numa das parciais divulgadas, ainda no primeiro turno.
Lula foi eleito democraticamente. Houve o revezamento no poder (coisa que também havia no tempo da monarquia, mas isso pouco vem ao caso). Fez-se a vontade do povo, ao menos no conceito atual de democracia. Mas daí para dizer que esta é a transição mais democrática da história, a distância é grande.

Campinas, 02 de novembro de 2002

quarta-feira, 30 de outubro de 2002

A imagem do presidente

Esta foi a eleição dos publicitários. A eleição em que o que mais contava era a imagem, e os candidatos eram vendidos como sabonetes (ou como cerveja). Jornalista e a imprensa diziam isso como se se tratasse de uma grande novidade na política nacional

Entretanto é inegável que a influência dos publicitários foi enorme na campanha dos dois candidatos finalistas. Lula aparou a barba, passou a usar terno e falar da forma mais vaga possível, para não desagradar a setor algum da sociedade. Serra mudava de imagem a toda hora, tentando achar uma que agradasse ao eleitorado (antigamente chamado massas). Talvez tenha sido esse o seu grande erro: não ter começado com a eleição já com uma imagem consolidada.

Como eu disse, essa preocupação com a imagem não é nada nova. Collor foi vendido como "O Caçador de Marajás", o próprio FHC só conseguiu se eleger e reeleger graças a uma imagem, a do Plano Real e sua moeda forte, que ruiu em 1999. Outro exemplo emblemático e mais antigo é o de Jânio Quadros, que ia aos comícios com caspa e comia sanduíche de presunto. Impossível negar que o que ele fazia era criar uma imagem, vencedora, por sinal.

Mas se a criação de uma imagem artificial para que o candidato agrade às massas não é novidade, é novidade sim – ao compararmos Jânio e Lula – a imagem que as massas querem dos candidatos, ou melhor, do presidente.

Em 1960 Jânio, membro da elite, precisou construir a imagem de que era do povo. Em 2000, Lula, membro do povo, construiu a imagem de que é da elite. Isso não seria nada demais se Serra, membro da elite, tivesse transmitido a imagem de povo, o que não aconteceu, tendo Serra se esforçado por reforçar a sua imagem de elite, com algumas pitadas de povo.

Podemos deduzir disso que mudou muito a concepção de presidente para o povo. Na chamada república populista (1945-1964) o povo buscava o candidato com o qual se identificava, com o candidato do povo, aquele que conhecia de perto os seus problemas, pois cabia ao presidente resolve-los. Enfim, era papel do presidente governar para os brasileiros. Neste início de século XXI a imagem que se tem do presidente é outra: este deve ser sério, se vestir bem, falar nove línguas, ter diploma universitário, dado que diploma, para a massa ignara (na qual se incluem muitos mestres e doutores) é sinônimo de competência, pois o presidente é hoje, acima de tudo, um administrador de empresas, no caso a empresa República Federativa do Brasil SA, que deve ter uma boa imagem no exterior para conseguir empréstimos e financiamentos para a economia. Ou seja, o papel principal do presidente hoje é transmitir confiança ao investidor externo – reflexo do economês falado todo dia e pregado como verdade santa e inabalável, pelos meios de comunicação.

Mas nem por isso o povo deixou de buscar um governante com o qual se identificasse. A diferença é que em 1960 o povo buscava o governante parecido com ele naquele momento, enquanto em 2000, essa busca era por quem antigamente fora igual ao que ele é hoje. O migrante operário e o filho do vendedor de frutas. Vieram do povo, tiveram uma vida sofrida, muito se esforçaram, e hoje vestem ternos de grife e aspiram a presidência da república. A família que, sentada no sofá, assistia ao horário político enquanto esperava o início da novela, via no horário dos candidatos a própria novela. Lula e o seu publicitário souberam aproveitar melhor essa deixa: novela é, antes de tudo, emoção. O voto em Lula foi o final feliz, quase que num passe de mágica, como na novela: Lula não estudou tudo o que tinha que estudar, mas assim mesmo soube se adequar ao Sistema e vencer (no caso, se vestir bem) e, num passe de mágica, ele será, mesmo sem a necessária capacidade, presidente do Brasil. O voto em Lula foi a sublimação de nossos fracassos, o sonho de um futuro melhor, não para o Brasil, mas para o espectador, que hoje está como o Lula no início da sua vida e que quer, como ele, vencer na vida.

Lula, que de personagem passou a co-autor, se prepare, novela tem que ter final feliz.


Campinas, 30 de outubro de 2002

quinta-feira, 24 de outubro de 2002

A questão das cotas nas universidades I

Nestas eleições, em meio a discussões sobre PIB, empregos, metas de inflação, FMI, dólar, superávit primário, Alca, mentiras e diplomas, os atores da grande festa da democracia comentaram qualquer coisa acerca de cotas para negros nas universidade públicas.
Garotinho já havia instituído, quando governador do Rio. Ciro é contra. Lula, no debate da Globo, gaguejou ser a favor. O Serra parece ser contrário. O Zé Maria, eu não sei, e para o Rui Costa, nada de cotas, porque todos poderiam entrar na universidade.
Entretanto, pouco me interessa saber qual a posição desses ilustres demagogos, citei-os apenas por não achar jeito melhor de começar esta crônica. Não deixa de ser interessante, todavia, notar que essa questão chegou a ser mencionada numa campanha que quase só se falou de temas econômicos e de violência. Seja quem for o eleito, o tema é importante demais para ser decidido em gabinetes de tecnocratas; é necessário que seja discutido com a sociedade.
Quando se põe a questão das cotas para negros acaba surgindo, invariavelmente, outras duas: cotas para negros ou cotas para pobres? Se for para negros, como saber quem é negro no Brasil? É mais lenha na fogueira.
Os que defendem cotas para negros argumentam que se trata de corrigir, em parte, uma injustiça cometida com a abolição da escravidão (para não voltar muito na história) e perpetuada até o atual governo dos intelectualóides, que há quase oito anos brincam de governar Além dessas, muitas outras questões surgem, mas a solução entre aqueles que vêem a segregação na universidade pública um problema costuma ser unânime: melhorar o ensino fundamental e médio públicos e ampliar as vagas nas universidades públicas. As cotas seriam um paliativo, enquanto os alunos negros (ou os da rede pública em geral) não tiverem condições de competir com os da rede privada.
Sou contra as cotas, mas não sou inflexível nessa minha posição Defenderia-as caso soubesse que esse paliativo não viria a se tornar permanente, camuflando o problema dos ensino fundamental e médio. Claro que se trata de uma opinião de alguém branco, que sempre estudou em escola particular e que já está em uma universidade pública.
Ao meu ver, as cotas, por terem todo jeito de provisório permanente, acabam trazendo mais prejuízos que benefícios:
1) O estigma de cotista: entrou como cotista, logo é mais fraco que o não cotista. Não vai ser muito difícil chefes de empresas, pessoal de recursos humanos chegarem a conclusões semelhantes, desmerecendo, assim, o profissional que conseguiu entrar na universidade por tal meio, ou mesmo que apenas se encaixe no grupo dos cotistas, sem sê-lo. Se a cota for para negros, pouco importa que fulano tenha passado em primeiro no vestibular; é negro, é cotista, não é tão bom. O mesmo se a cota for para alunos da rede pública: na disputa por um emprego, ao serem analisados os currículos dos aspirantes, caso tenha sido o infeliz estudante de escola pública, não será muito difícil ser taxado de cotista, e se é cotista, não é tão bom. Resultado prático: aumento do preconceito e criação de uma classe universitária de segunda categoria, que terá de se contentar com salários mais baixos.
2) Queda na qualidade do ensino: um aluno sem uma base adequada, terá dificuldades para acompanhar o ritmo da faculdade. Será necessário desse aluno um esforço muito maior para conseguir se igualar àqueles que foram considerados capacitados pelo vestibular. Se não, restam dois caminhos: ou o professor diminui o ritmo das suas aulas, ou o aluno aceita atrasar na universidade, ou mesmo desistir. Nisto entra o problema de que esses alunos, muito provavelmente, tenham necessidade de trabalhar para se manter, e de entrar logo no mercado de trabalho; sobrando, portanto, ao professor, nivelar a turma por “baixo”, como é de praxe, mas no caso o baixo seria ainda mais baixo.
3) Menos oportunidade na universidade: na linha do raciocínio anterior, os professores tenderiam a dar preferência aos alunos que fujam do padrão dos cotistas, nas bolsas de iniciação científica, importante instrumento na formação da elite científica do Brasil.
4) Formação de uma elite entre os negros: no caso da cota ser para negros, a primeira leva que entrar na universidade se tornará uma elite dentre os negros, já que seus filhos terão condições de estudar em escolar particulares no primeiro e segundo graus, e competirão com negros que não tiveram tal oportunidade. No caso da cota ser para a rede pública, esse problema não há, mas há o de alunos despreparados entrarem na universidade.
5) Dificuldades ainda maiores para os brancos pobres: no caso das cotas serem para negros, os “brancos” pobres terão abolidos quaisquer chances de entrar numa universidade.
E por que toda essa minha preocupação em “manter o nível” da universidade? A resposta é um velho clichê: é com um ensino de qualidade e com produção científica, que um país constrói seu futuro. A universidade pública brasileira, grande (e praticamente única) produtora do conhecimento científico no país, já está sucateada, num nível alarmante (parte da culpa é dos próprios alunos, membros da nossa elite burra); se o nível dos alunos decair ainda mais (não se entra aqui no mérito do aluno, mas da escola que o formou) ela pode demorar para se reerguer – tal como ocorre hoje com o ensino fundamental e médio da rede pública –, e isso seria um duro golpe no sonho de construir uma nação decente.

Pato Branco, 24 de outubro de 2002

A questão das cotas nas universidades II

Para não dar trela às más línguas dos bons observadores, que dizem que eu apenas critico e nada proponho, tenho algumas sugestões para o problema, que vai no mesmo caminho das cotas, mas, ao invés de haver cotas para a universidade pública, proponho cotas para alunos pobres, da periferia, em escolas particulares. 10%, 20% de toda sala de aula de escola particular deveria ser preenchida por alunos carentes, os quais receberiam gratuitamente o material didático. Esses alunos seriam cadastrados pela prefeitura, de quem também receberiam transporte, uniforme e alimentação. A princípio pode parecer que seria a mesma coisa que as cotas na universidade, porém as diferenças são muitas:
1) Não haveria o estigma de cotista, dado que o aluno, apesar de cotista na escola, na universidade entraria apenas por méritos próprios, e teria condições de acompanhar as aulas.
2) Haveria o choque entre dois mundos: o dos ricos, sempre trancafiados em condomínios fechados e em shoping centers, e o dos pobres, onde, quando muito, há luz elétrica. Isso poderia criar uma certa rixa entre esses dois grupos, mas também despertaria para a realidade social aqueles das camadas mais abastadas.
3) A classe média, num primeiro momento, seria prejudicada, já que as escolas se veriam obrigadas a aumentar as mensalidades. Isso forçaria muitos alunos classe média a se transferirem para a escola pública, e como a classe média tem mais voz que a pobre, haveria um movimento sério e verdadeiro de reivindicação da melhoria do ensino público. Atendida essas reivindicações, com a escola pública perto do nível das particulares, muitos alunos destas transfeririam para a pública, aumentando a pressão para a sua melhoria, forçando um aumento de mensalidades nas particulares, e assim num círculo vicioso, até que a escola particular voltasse a ter a mesma conotação que tinha nos anos 50, 60: um ensino diferenciado, não em qualidade, mas em espécie (mais religioso, por exemplo).
Claro que o sistema de cotas, seja onde for, é um paliativo. No sistema que proponho há a vantagem de formar um aluno desde a sua base, e não apenas na fase final da sua educação tentar consertar o mal ensino que ele teve. Não sei se isso seria possível com a lei atual, mas isso não é problema, com vontade é possível fazer o que for preciso (não chegaram mesmo a mudar a constituição para permitir a reeleição?). O maior problema é que os primeiros calouros apareceriam somente daqui dez anos, e certos números no Brasil assustam, como o citado por Elio Gaspari, de que a proporção de negros nas universidades federais do Brasil é menor do que na África do Sul, na época do Apartheid; certas horas parece ser necessário o paliativo que for para tentar minorar, um pouco que seja, esse problema. Mas aquilo que é feito pensando apenas no curto prazo acaba, muitas vezes, sendo ainda mais prejudicial no médio e longo prazo.
Claro, como eu disse anteriormente, trata-se de uma opinião de um branco, que estudou sempre em escola particular e já está numa universidade. Se perguntar a um negro do terceiro ano do ensino médio há grandes chances da resposta ser diferente, e com argumentos melhores que os meus.

Pato Branco, 24 de outubro de 2002

segunda-feira, 14 de outubro de 2002

Corajosos

"Faltam 13 dias para o segundo turno". Fiquei impressionado ao ver, no programa eleitoral de hoje à noite, os dois candidatos à presidência remanescentes falarem isso com uma expressão feliz. Sinceramente, já me impressionou haver quatro postulantes a assumir esta canoa furada (excluo os outros dois candidatos por eles entrarem na eleição sabendo não terem qualquer chance de ganhar). Me pergunto o que leva alguém em sã consciência a almejar a presidência do Brasil no cenário atual. Projeto pessoal, inspiração divina, peso na consciência, miopia?

Não duvido que todos os candidatos querem construir um país melhor. Mas querer é uma coisa, fazer é outra; e para construir um país melhor é necessário que haja condições para isso.

Não conheço muito história, mas creio que o governo FHC deve entrar para a história nacional como um dos piores que já se viu nestes tristes trópicos. Sua única grande obra em oito anos foi uma estabilidade vagabunda que não está durando nem até o final do seu próprio mandato. Tão ruim foi seu governo que até o seu candidato canta e repete que quer mudança. Ah, sim! outra grande obra do sociólogo foi construir amarras que acabam fazendo com que ele governe, de certa forma, um ano a mais.

A vulnerabilidade externa já havia levado os quatro principais candidatos a se comprometerem com os acordos feitos por FHC. Entretanto o candidato vencedor devera optar por qual compromisso cumprir: os feitos pelo FHC com os grandes especuladores internacionais ou os feitos durante a campanha eleitoral, com o povo. Impossível conciliar os dois, eles são opostos, antagônicos, incompatíveis.

Não obstante, estão preparando para 2004 a segunda edição da maior festa da era FHC: o apagão. Animado com os ãos, FHC também preparou outra festa do gênero, que pode acontecer já na próxima safra, segundo especialistas: o paradão, a versão agrária do apagão. Enquanto a questão energética transformou-se no principal gargalo da produção industrial, o paradão pode se tornar o principal gargalo da produção agrícola. Trata-se do colapso do transporte de cargas agrícolas por causa das péssimas condições da malha de transporte e do número de portos do Brasil. Solução para os dois ãos: investimentos imediatos na construção de geradoras de energia e na extensão das hidrovias e ferrovias.

Gastos que o próximo governo se verá obrigado a fazer. Além de investimentos na educação, que está em estado calamitoso; em segurança, que hoje não existe; em saúde, que está agonizante; em urbanização, em programas de combate à fome, de combate à pobreza e outras mais. Mas o governo também precisa, segundo os compromissos assumidos por FHC para seu sucessor, economizar 3,8% do que arrecada, para pagar juros à banqueiros internacionais.

Sem dúvida o Brasil precisa de mudanças. Mudanças urgentes e radicais. Os dois candidatos sabem disso, e os dois prometem mudança. Mas fica aquela pulga atrás da orelha, de como que alguém que colaborou com o governo FHC por oito anos possa fazer todas as mudanças que o país precisa. Pouco importa se é verdade o que ele diz, de que foi crítico das ditas diretrizes do atual governo: muitos outros foram convidados para assumir ministérios e, para não ajudar um sistema o qual criticavam, recusaram.

Ainda não sei se querer presidir o Brasil hoje é patriotismo ou se é miopia. Sempre que os candidatos falam dos seus programas de governo eu sinto que nem eles acreditam no que falam. Se acreditam, socorro!, mais quatro anos de Mr. Magoo pela frente. Coragem, Brasil, você agüenta!


Pato Branco, 14 de outubro de 2002

segunda-feira, 7 de outubro de 2002

Em busca de ontem

O tempo passa, as coisas envelhecem, as pessoas mudam. Vidas que partem, vidas que chegam. Os adultos de ontem são os velhos de hoje, os adultos de hoje foram os jovens de ontem, as crianças de hoje serão os jovens de amanhã. Eis a vida desde os seus primórdios. O inexorável caminho que ela segue, sem se importar com guerras, filosofias ou avanços da medicina. A vida que tem sempre um princípio e um fim, e ainda assim é eterna.

Mas o homem, apesar de preso à vida e à sua lei, consegue em muitos aspectos impor o seu próprio ritmo. São os hábitos, os costumes, as tradições. Mas, ao mesmo tempo que o homem tenta preservar o seu entorno tal como ele hoje se encontra, ele o modifica. Entretanto o homem nunca quer preserva o que é, mas sempre o que foi, pois o homem nunca se dá conta do que tem, só do que perdeu. Tentar preservar alguma coisa é um sinal de que, pelo menos em parte, essa coisa já foi perdida.

E não é apenas o reacionário, o conservador que assim age. Quem garante que os chamados progressistas, os revolucionários não querem, no fundo, retornar ao mundo perfeito que aparentemente os rodeava quando crianças? E mesmo as revoluções, por mais radicais que tenham sido, não conseguiram – se é que realmente tentaram – destruir e apagar os hábitos, tradições e todo o simbólico que havia antes dela.

E será mesmo que o que foi é melhor do que é? Para o homem, animal movido pela insatisfação, a resposta é positiva. Aceitar o mundo, aceitar a vida tal como ela é hoje, não passa de uma forma de depressão. É aceitar que o hoje é igual ao ontem e o amanhã será igual. É uma depressão sem a amargura, mas que não deixa de ser a negação da vida, porque a vida é mudança, é querer mudar, nem que seja para manter as coisas como estão. E para mudar, é preciso estar insatisfeito.

É a vida, então, eterna insatisfação? De certa forma é, e até certo ponto é salutar. Insatisfação não é necessariamente sinônimo de infelicidade. A insatisfação que não te prostra, não te revolta e não te desanima é a afirmação da vida. A insatisfação com esse algo grande, onipresente, mas não opressor, que temos a convicção de poder resolver com as próprias mãos, sabe-se lá como, é a afirmação da vida, é a própria vida na sua vontade máxima. Já quando a insatisfação tem algo específico que a produz ou que promete resolvê-la (uma pessoa, um objeto, uma idéia), é uma insatisfação perniciosa, que ataca a vida e não a motiva. Não é uma insatisfação com a vida, mas com aspectos dela, é se perder em picuinhas e deixar passar o que é importante. Diz-se que quem ainda faz distinção entre o Reino dos Céus e este mundo é porque ainda vive neste mundo.

Campinas, 07 de outubro de 2002

sexta-feira, 4 de outubro de 2002

Elite nossa que estais em Miami seja ilusão a vossa ignorância

Se o futuro do Brasil está nas universidades públicas, o Brasil não tem futuro.

A elite brasileira é burra. É o que diz o estudo de Creso Franco, da PUC-RJ, baseado nos números do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Cursos), realizado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico): entre os 7% mais ricos estudantes do Brasil, 21% tem nível elevado de aprendizado, enquanto o nível de 17% dessa elite é muito baixo (no México, que está logo à nossa frente, os números são 27% e 9%, respectivamente). Trata-se de alunos que estudam em escolas particulares (escolas, na sua maioria, formadoras de robôs para vestibular), que têm acesso (e não fazem uso, diga-se de passagem) a bens culturais. Esses alunos, hoje no segundo grau, logo estarão nos bancos das universidades públicas brasileiras, e num futuro não tão distante, muitos se tornarão professores dessas universidades.

E o que esperar dessa elite que tem condições de viajar e visitar o Louvre, de assistir à Filarmônica de Nova Iorque, mas prefere visitar a Disney, fazer compras em Miami? Que leu todos os livros do Paulo Coelho, da série Harry Potter e chama de lixo Lima Barreto e Clarice Lispector? Que conhece todos os filmes do Spielberg e nenhum do Glauber Rocha? Que assistiu Titanic, Spider Man, Star Wars quatro vezes cada e nenhuma vez Janela da Alma? Que tem como única fonte de informação o Jornal Nacional?

Olhando ao redor, parece que vai ser realmente difícil o Brasil ter um futuro decente com essa elite burra, com essa intelectualidade ignorante que temos e que promete se perpetuar.

Se assim é a elite, que se gaba de ter dinheiro, de estudar em escola particular e em universidade pública, de ter em casa uma biblioteca abarrotada de livros capa dura com inscrições em dourado (não que tenham lido algum; livro, no Brasil, é peça decorativa), imagine como deve ser a ralé, que trabalha de dia, estuda à noite em escola pública de periferia, e não tem condições de comprar livros, de ir a teatros e cinemas.

Não fosse o belo trabalho de letargização da população, promovido pela Rede Globo, eu ousaria dizer que a ralé tem mais chance de estar na nossa frente: maiores seriam as possibilidades de notar seu estado de ignorância e tentar sair dele. Infelizmente "Coração de Estudante" não permite que se olhe para si, para o lado, e muito menos que se levante da poltrona para mudar alguma coisa.


Campinas, 04 de outubro de 2002

terça-feira, 10 de setembro de 2002

Fama inesperada

As vezes eu me surpreendo. Sequer eu sabia que minha fama ultrapassava fronteiras. E o que é mais surpreendente: não foi a fama que ruim que transbordou além mares! Tá, tudo bem, além mares é exagero, ela só foi até logo ali, na Argentina, e ainda muito de leve. Mas foi!

É certo também que o texto sequer era meu, eu apenas havia enviado sabe-se lá a quem que está na minha lista de e-mail, e chegou até o 'Boletim Electrónico de la Unión Latinoamericana Siglo XXI'. O mais impressionante, é que el compañero aqui, que deu a colaboración especial para a edição de abril de 2002, só ficou sabendo que era colaborador hoje, cinco meses depois.

Não obstante essa minha colaboración especial ao sítio argentino, colaborei também para o ‘Jornal da Ciência’. Esse, um pouco menos estranho, porque eles apenas reproduziram uma carta minha publicada na Folha de São Paulo (mas o interessante foi saberem que eu fazia psicologia, porque na carta isso não era mencionado).

Carta por carta, o pior mesmo foi um e-1/2, enviado no ido ano de 1996, ao Pato Fu, e que, ainda hoje, está na internet. Pior é o nível de tal e-1/2. Coisas que a gente se arrepende de ter mandado, ainda mais quando seis anos mais tarde, vem um amigo e recita tal e-1/2 para você (o jeito é fazer análise, tentar apagar esse trauma, agora ainda maior).

Minha fama indo além mares? Ou será minha intimidade não indo além da minha cama? Coisas da internet.

O Grande Irmão, ao que parece, zela por mim!

Campinas, 10 de setembro de 2002

sábado, 7 de setembro de 2002

João Bosco e o parque do século XXI

Esta semana fui assistir ao show do João Bosco, em um shoping aqui de Campinas. Saí na metade. Deplorável alguém do naipe de João Bosco fazer show em um local como aquele, sem acústica, nem conforto à maioria que o assistia. Entretanto o show não destoava do ambiente: tudo ali era deplorável.

Mais que deplorável, deprimente.

Ver todas aquelas pessoas se reunindo em um local privado, para um show que, caso fosse ao ar livre, seria melhor aproveitado (não apenas a acústica, como a temperatura também estava ruim esse dia), numa época em que Campinas repete bordões como "quero paz" e "quero viver", foi esclarecedor e desolador.

O se trancar em shopings mostra o quanto o campineiro está refém da violência, sem vontade de esboçar qualquer reação, e o pior: sem se incomodar realmente com ela – pelo menos enquanto seguranças engravatados dão a impressão de proteção. Falsa impressão, desmentida pelos 60 assaltos e dois seqüestros-relâmpagos (felizmente) ocorridos em dois meses. Sim, felizmente. Pois tenho a esperança de que, sendo tão perigoso em um shoping quanto em um parque, as pessoas voltem a freqüentar mais o segundo – onde podem, inclusive, sentar no chão para assistir a um show –, e assim passem a exigir segurança de forma enfática (apesar de segurança não ser apenas caso de polícia, mas, principalmente, caso de política).

Até lá seguem achando normal – e até bonito – que um shoping se chame Parque, e tenha a pretensão de substituir o original. Afinal, neste novo Parque, à prova de chuva, frio, calor, violência, podem deixar seus pimpolhos brincando em morros artificiais de grama artificial, enquanto buscam nas vitrinas algum produto que os faça esquecer, por um instante, que seja, da sua mediocridade.


Campinas 7 de setembro de 2002


sexta-feira, 30 de agosto de 2002

Brincadeira de criança ou realidade futura?

Pela manhã eu havia acompanhado alguns amigos que foram tirar fotos do Mercadão de Ribeirão Preto. Infelizmente, eles ficaram muito restritos aos produtos, e não ao seu conjunto local-produtos-pessoas. Perderam também a oportunidade de contrastar aquele shopping com o das elites, o qual estão habituados a freqüentar.

Constraste que não está em 'shopping dos pobres' e 'shopping dos ricos', mas no fato de um ser democrático, enquanto o outro é segregacionista. No primeiro, entra quem quer, como quiser, desde que mantenha um mínimo de civilidade; no segundo, dependendo da sua aparência, você pode ser 'convidado a se retirar', e o mínimo de civilidade não é mais suficiente, substituído por um sem número de regras de comportamento – excessivas e artificiais – tipicamente pequeno-burguesas.

Contraste entre um ambiente não muito bem iluminado, colorido, cuja temperatura varia conforme a estação, conforme o dia, e que cheira a fruta, a queijo, a fumo em rolo; e o ambiente bem ilunimado por lâmpadas frias, de vitrines de cores fortes, agressivas, temperatura sempre agradável, e cheiro de desinfetante lavanda e fumaça de cigarro.

Constraste entre o real e o falso, entre o espontâneo e o controlado, entre o mundo de verdade e a ilha da fantasia da classe média (como diz Clóvis Rossi), entre a vida e o simulacro dela.

Mas não era esse o assunto sobre o qual eu queria discorrer. Lembrei das fotos no Mercadão quando, à tarde, na rodoviária, vi uma cena que lamentei estar sem máquina: dois funcionários de uma empresa de ônibus, cujo uniforme lembra o da guarda-municipal, davam atenção à um piazinho. O garoto – que devia ter oito anos, talvez –, vestia apenas uma calça vermelha, rasgada e tão suja quanto ele, brincava com um revolvinho de espoleta. Ao fundo, um ônibus com as cores do Brasil.

O garoto, numa alegria ingênua, brincava com aquela 'pessoa importante' que lhe dava um pouco de atenção. Falava, gesticulava, dava tiro, tomava tiro, corria, parava, pulava. Lembrei da época em que era eu corria, pulava, dava e levava tiro, sujo de rolar na grama e na terra, durante as perseguições aos bandidos imaginários. Porém, notei que havia uma grande distância entre a minha brincadeira e a dele, quando ele apontou a arminha ao funcionário que não lhe dava muita bola e gritou 'Passa o relógio!'. Ele não brincava como eu brincara, numa fantasia que morreria com o término da brincadeira. A brincadeira dele era também um treino para a vida adulta. Era a fantasia daquilo que ele, talvez, queira ser quando crescer, assim como quando um punha a camisa de meu pai e sentava na escrivaninha.

O funcionário olhou para ele com uma cara de pouco caso. O piazinho mantinha um olhar firme, o braço esticado, a arma apontada. Ao fundo, as cores do Brasil. Aquele parecia o retrato do Brasil. Permaneceram assim certo tempo – tempo suficiente para ter pego a máquina e tirado a foto, caso tivesse uma –, até que o funcionário jogou fora a bituca e o piá, correndo, foi apanhá-la, quase queimando os dedos para dar umas tragadas. Pouco depois os três se afastaram. O menino, saltitante e sorridente, com seu revólver de espoleta.

Eu quis crer que ele apenas brincava, que o 'passa o relógio!' não passasse de brincadeira, que daqui dez anos ele estivesse no meu lugar, na U$P ou Unicamp, que suas únicas palavras de ordem fossem contra as injustiças que ele superar, contra o Sistema, em manifestações. Mas tem horas que eu me vejo velho demais para crer em melhoras.


Campinas, 30 de agosto de 2002


quinta-feira, 8 de agosto de 2002

Mangá humano (ou eua made in China)

Tem dias em que abrir os olhos para a manhã que nasce, simulando um renascimento que nunca ocorre, me desgasta. O mundo me amedronta, as pessoas me deprimem, a sociedade me enoja, a vida me cansa. Desculpem a fraqueza e, principalmente, a sinceridade do escriba. A sinceridade é uma desvio de conduta de presença considerável em nossa sociedade, que eu, a duras penas, tento corrigir. Quanto a fraqueza, não sei se é algo inato ou aprendido, e tampouco me interessa saber de quem é a culpa, se de Deus, minha ou dos meus pais; interessa que desde que me conheço por gente tenho essa nuvem pairando sobre minha cabeça, às vezes maior, às vezes menor, mas sempre grande o suficiente para inibir qualquer ação realmente útil de minha parte.

Chega de reclamar da vida, porque, dizem, vida é só uma. Dado que discordo, por ser um, um número catastrófico demais. Pelas minhas contas, o que chamamos de vida, cerca de 10% da população deve ter; os outros 90% têm apenas o que os biólogos chamam de vida.

Porém, esta crônica não tem por objetivo tais discussões existenciais, e sim fazer um comentário de um fato quotidiano, de uma notícia de jornal.

Nos séculos XV, XVI, enquanto muçulmanos impunham sua cultura através de "chantagem financeira", os europeus, os educados e civilizados europeus, impunham-na na base da pólvora. Os tempos mudaram, os métodos violentos e explícitos de impor uma cultura e um padrão de homem ficaram em segundo plano, superados pelas teses científicas e pelo uso da educação (ou seria da ignorância?) para inculcar essas teses e demais preconceitos na população.

Além de humanitários, esses novos métodos eram também muito mais eficientes. Tanto que, no início do século XX, no Brasil fadado ao fracasso por ser um país de negros e mestiços, os negros tinham vergonha de serem negros, e os índios de serem índios. A história mudou um pouco no final desse século: o número de pessoas desses grupos que tinham vergonha de sê-los diminui, os negros porque seguiram o conselho dos mais velhos e embranqueceram, os índios porque seguiram para o cemitério.

Para completar a imposição humanitária, no mesmo século XX ganhou força a propaganda, ainda mais eficiente que a educação, quando aliada à tv e ao cinema.

Se até o século XX impunha-se religião, vestes, língua, a partir dele passou a ser imposto também a forma de agir, de pensar e a forma do corpo.

Mas o mundo não estará completo enquanto não formos todos iguais (será que nos aproximamos da imagem de Deus?). Não basta a forma de olhar ser padrão, o olho também deve ser. Não falo em ter olhos azuis, falo da moda da cirurgia plástica, que chegou à China com um pequeno adendo, além do tradicional silicone: a operação para arredondar os olhos (negamos nosso corpo, nossa raça, nosso rosto, porque não negamos logo nossas vidas?).

Felizmente, ao contrário do que alguns idiotas afirmam, a história não chegou ao fim. Ela segue seu curso, como fez até hoje, e logo há de haver uma curva brusca nesse curso. Não fosse assim, no futuro as pessoas estariam agindo, olhando, se vestindo, falando, sorrindo, comendo, pensando, todas exatamente da mesma maneira. Poderíamos, enfim, afirmar, tão categóricos quanto Fukuyama afirmou o fim da história, dessa vez, porém com alguma (para não dizer total) propriedade, a vida é só uma.


Campinas, 08 de agosto de 2002

sexta-feira, 2 de agosto de 2002

A tv e o Mito da Caverna

Apesar do surgimento e difusão da internet, esta ainda está longe de exercer a mesma influência que a televisão e o cinema; pode ter mudado (ou estar mudando) alguns padrões de comportamento, mas não parece (a mim, pelo menos) apta a desbancar a "dupla dinâmica" num futuro próximo.

Apesar de ter papel decisivo, fundamental, desde a redemocratização, é na atual eleição, após o estouro da bolha pontocom e sua acomodação no devido lugar, que a televisão exerce sua maior influência – poder quase hegemônico. Isto talvez devido ao aumento, a cada eleição, de eleitores cuidados (e criados) pela babá electrônica; quem sabe daqui dez, quinze ano, quando a geração educada em wwws e arrobas for votante, a internet roube uma parcela do poder da tv.

Mas não é apenas nas eleições que se percebe as conseqüências da babá electrônica. A passividade dos jovens de hoje não destoa muito da de quem está escarrapachado no sofá, assistindo tv, que num ápice de atividade e vontade própria, estende o braço, pega o controle remoto, e troca de canal. A internet, por sua vez, traz um pouco mais de atividade, dado que sem decidir aonde se quer ir, não se vai a página alguma. Em compensação, a internet consegue ser ainda mais solitária e egoísta que a tv, mesmo havendo os bate-papos e afins. Resta saber se os programas "interativos" da tv, como big-brothers da vida e perguntas do futebol, são uma forma de tentar coagir internautas à tv ou a alegação de que a tv, em breve, quedará em segundo plano.

A "dupla dinâmica" tem mudado também nosso olhar. Perdemos o interesse e a capacidade de ver detalhes, minúcias: estamos habituados à rápida seqüência de imagens, que não nos dão tempo para observar nada além do necessário para a trama. Ao mesmo tempo que perdemos a visão para os detalhes, nos acostumamos à poluição visual. Simples e poluído, esse parece ser o padrão visual, estético atual; observável em capas de revista, logomarcas (ainda mais se comparadas às antigas), e mesmo na decoração de ambientes.

Apesar de ter sido evidenciados os aspectos negativos, claro que a tv tem aspectos positivos, tal como exigir da pessoa capacidade para concatenar imagens rápidas e distintas, compreendendo o todo (bem evidente nas estórias "contadas" nos vídeo-clipes), entre outros. Porém, o lado negativo parece prevalecer.

Contardo Calligaris, em seu artigo na Folha de São Paulo de 05 de julho de 2001, "Gorila entre nós", comenta que pessoas deprimidas tendem a enxergar detalhes que à maioria passam despercebidos. Talvez a depressão, mal deste início de século, seja porque a pessoa, acostumada à fantasia da tv, ao se deparar com algum detalhe incômodo do mundo, se veja sem ação e sem saída. Disso, passaria a enxergar outros pontos indesejáveis, que o deprimem mais, e assim num círculo vicioso, que cessaria quando este passasse a agir, quem sabe num trabalho voluntário, quem sabe matando colegas e professores, ou (mais comum), deixasse de enxergar o que o incomoda, com ajuda de um profissional, ou usando drogas.

De qualquer modo, influencie ou não, seja co-responsável ou não pela depressão, a tv revive o Mito da Caverna, de Platão: preferimos ver o pôr-do-sol pela telinha, a olhar para fora e contemplá-lo em toda sua amplidão.



Campinas, 02 de agosto de 2002


quinta-feira, 25 de julho de 2002

A criminalidade como piada no horário eleitoral

Está começando o Febeapá eleitoral! Se nas eleições passadas já havia políticos que gostavam de mostrar todos os perigos da criminalidade, para depois apresentar soluções, esta eleição é um prato cheio para eles: os perigos da criminalidade são apresentados exaustivamente pelos meios de comunicação, cabendo a eles entrar apenas com as soluções.
E que soluções, diga-se de passagem! Soluções estapafúrdias, risíveis umas, perigosas outras. A mais assustadora que vi até agora é a da redução da idade penal, com perigo extra agora que há o exemplo francês.
Por outro lado, duas outras idéias que têm sido bastante divulgadas são piadas: a pena de morte e o fim do limite de 30 anos de pena. A primeira é uma piada de mal-gosto, afinal pena de morte há muito tempo é praticada no Brasil, faz a polícia ou os próprios presos. Caso aprovada, creio que poucos crimes estatais seguirão os trâmites legais, a maioria deve ocorrer como hoje. Mas se o efeito para conter a criminalidade é nulo, a classe média gosta, e isso é o importante.
A segunda proposta, e os argumentos dos seus defensores, é uma anedota completa: o ladrão, se já condenado aos 30 anos, qualquer crime cometido depois será como “brinde para o bandido”. Uma curiosidade que me aflige: como é que alguém condenado a 30 anos de prisão tem a oportunidade de cometer outro crime? E será que depois de receber uma condenação de 30 anos eles vai hesitar ao cometer outro crime, com medo de ter sua pena esticada mais dez anos?
Descartamos dessas propostas o problema de onde empilhar esses presos todos, e o custo de cada um para o estado.
Acho que não devo estar certo, se é que não estou redondamente enganado, mas polícia e prisão estão longe de ser prioridade, são antes acessórios; a criminalidade se reduz com educação, lazer, emprego e salário. O resto é conversa para boi dormir (e para ludibriar eleitor).

Pato Branco, 25 de julho de 2002

segunda-feira, 15 de julho de 2002

Privatizam-se os lucros, socializam-se os prejuízos

Democracia: sistema político cujas ações atendem aos interesses populares.
Não, essa definição de democracia não foi tirada de nenhum livro de piadas, e sim do dicionário Houaiss. Me interessei pela definição do termo devido às disputas nas contas de luz.
Havia sido estabelecido que consumidores que gastam menos de 80kwh por mês seriam considerados de baixa renda, e por isso pagariam tarifas subsidiadas. As distribuidoras, não querendo ver seus lucros diminuírem, entraram na justiça contra a lei e ganharam. O governo, por sua vez, sabendo, mas não seguindo, a definição de democracia dada pelo Houaiss, preferiu enrolar até quando puder para recorrer: caso haja realmente o subsídio aos mais pobres, as distribuidoras pressionarão por mais um aumento (que deve variar entre três e 11%), o que o governo não quer, por ser 2002 um ano eleitoral.
O diretor da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) disse que o subsídio haverá, e sem reajustes. Por outro lado, o ministro de Minas e Energia disse que “ou paga o consumidor ou paga o contribuinte”. Não é de surpreender essa defesa do capital por parte de um governo que já defendeu a Monsanto no STJ, contra o próprio povo; mas vale a pergunta: se se recorre ao contribuinte para fechar o caixa das distribuidoras, por que foram privatizadas?
Eis os interesses populares atendidos com a privataria (como bem denomina Elio Gaspari, colunista da Folha de São Paulo e do Correio do Povo): aumentos (obscenos) nas tarifas (um exemplo que me vem à mente agora é o da telefonia: 20% de reajuste numa inflação de 6%), apagão, seguro anti-apagão, queda na qualidade dos serviços e, em caso das empresas privatizadas virem seus lucros diminuírem, recorre-se ao contribuinte (que já encara essa democracia como consumidor).
Mas para a classe-média não deixa de ser uma boa notícia a letargia governamental nesse caso: menos chances de haver mais um aumento. E o povo? O povo que se vire! que desligue a geladeira (caso tenha) para economizar luz!

Pato Branco, 15 de julho de 2002

quinta-feira, 27 de junho de 2002

A superioridade branca e a incompetência indígena

Foi essa idéia que passou a mesa-redonda que assisti segunda-feira, 24 de junho, na Unicamp, cujo tema era a situação do índio no Brasil hoje. Faço questão de esquecer quem a promoveu, assim como quem lá falou. Sei apenas que eram dois antropólogos: um era professor da Unicamp, o outro era da pastoral indigenista de algum lugar de São Paulo.

A platéia era formada principalmente por pós-graduandos em antropologia. Salvo uma exceção, as cerca de 25 pessoas lá presentes eram todas brancas. A exceção se tratava de um índio, sentado no fundo do auditório.

Começou falando o professor da Unicamp. Uma bela aula de discussão universitária: números, números e números. Não que os números não sejam importantes – e mesmo interessantes –, mas o professor poderia ter indicado, como leitura prévia, a página de onde os retirou, e falar coisas além.

Depois de uma enxurrada de números, chegou a vez do segundo palestrante. Como ele possuía (creio) um contanto mais direto com a situação vivida pelos indígenas, era grande a minha expectativa de que sua fala fosse, ao menos, melhor que a anterior. E o simpático senhor começou a recitar números e números de aldeias e tribos redescobertas Brasil afora por etnólogos que, pelo nome, não tinham qualquer ascendência indígena.

Excelente que hoje busca-se preservar a cultura e as populações indígenas, o contrário do que ocorria no princípio do século passado, quando um dos passatempos era “recolher nos hospitais as roupas infectadas das vítimas da varíola, para ir pendura-las junto com outros presentes ao longo das trilhas ainda freqüentadas pelas tribos” (Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, p. 47). Porém a uma hora de mesa-redonda que assisti (ela teve meia hora mais) foi suficiente para notar que visão que se tem do índio hoje é a mesma de 500 anos atrás: são incompetentes e incapazes, como as crianças, que precisam de tutores (brancos, é claro) para conseguirem qualquer coisa.

Ah! Os índios também são vistos como interessante tema de dissertações, dado os muitos números relacionados.


Campinas, 27 de junho de 2002

quarta-feira, 26 de junho de 2002

Os fatos falam por si porque a fome não tem voz

A notícia publicada na Folha de 25 de junho fala por si, não precisa interpretação nem comentário. “Fome ameaça 13 milhões no sul da África”. Só de pensar que o número 13 milhões se refere a pessoas, seres humanos como nós, já choca. Ao lembrar o fracasso – noticiado poucos dias antes – da Cúpula Mundial da Alimentação, em que a Inglaterra sequer se deu ao trabalho de enviar representante, é difícil precisar o sentimento que nos toma conta: raiva, indignação, asco, nojo, desalento; são todas palavras por demais sutis.
À notícia, enfim. Nas letras grandes ficamos sabendo que 51% da população de Angola passa fome!, e que três de cada quatro habitantes da Somália sofrem de desnutrição! Alguns !!! a mais surgem ao ler o artigo da Reuters. Os números são sempre frios, mas o ser humano consegue ser mais. Transcrevo alguns trechos:
“Milhões de pessoas podem morrer de fome no sul da África nos próximos meses a menos que países desenvolvidos aumentem drasticamente o auxílio a esses países (...). Os EUA foram o primeiro país a prometer auxílio à área atingida pela seca que inclui Maláui, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia. A iniciativa provocou fortes críticas por parte de agricultores americanos, que acusam o governo de prejudicar seu mercado (...). Em Maláui, o problema da escassez de comida foi agravado por uma decisão do governo de vender repentinamente todas as 167 mil toneladas de sua reserva estratégica de comida sem reter nem mesmo as 60 mil toneladas que sua própria política determinava. O governo diz que foi instruído a vender o estoque pelo FMI (Fundo Monetário Internacional).”
Um anarquista do século XIX, desse mesmo Estados Unidos da América, dizia que numa guerra entre homens e ursos, ele lutaria do lado dos ursos. Alguma dúvida?

Campinas, 26 de junho de 2002

quinta-feira, 20 de junho de 2002

Asneiras Futebol Clube

Tenho acompanhado com certa distância esta copa. A seleção canarinho não me empolga, o Galvão Bueno me dá azia, os horário não ajudam, a Argentina está fora, e estou torcendo por Coréia e Senegal na final. Se assisto pouco, menos ainda converso sobre o assunto; mas é o suficiente para escutar uma infinidade de asneiras. Deve ser o espírito da copa e do seu locutor oficial, o amigo Galvão (que costuma fazer comentários de extrema importância, de detalhes que passariam em branco, como “36 minutos!!, vamos para 37!!!!!!!!). infelizmente as besteiras que tenho escutado não são obras da ignorância, como as dos três patetas da Globo, antes são de preconceito. Comento três que mais me chamaram a atenção, proferidas todas no Bandejão.

A primeira. Conversavam dois camaradas, ao meu lado, sobre a copa que estava prestes a começar. Concordavam que a copa estava errada: onde já se viu deixar de fora grandes seleções, como a Holanda, e ter um monte de seleção da Ásia e da África, que não jogavam nada, só faziam número? Ou seja, para que dar chances aos pequenos, aos mais fracos? Eles provavelmente não deveriam ter esse raciocínio apenas para o futebol. Imagino que agora que teremos pelo menos uma seleção que só faz número entre os quatro primeiros da copa, eles nem lembre do que disseram, e que na próxima copa repetirão a mesma sentença.

A segunda é já tradicional. Comentei sobre a “vitória” gloriosa do Brasil contra a Turquia (vale lembrar, pênalti que existiu não marcado contra o Brasil, e pênalti que não houve marcado a favor do Brasil), que ganhar assim era uma vergonha, que não deveria nem ser comemorada. A resposta, óbvia, foi a de que faz parte do jogo e azar dos turcos se eles não tinham a malandragem dos brasileiros. Moral da história: o que importa não é competir, é ganhar, e não importa como. Quase certeza que se a injustiça fosse contra o Brasil, essas mesmas pessoas estariam proferindo inflamados discursos, promovendo abaixo-assinados pela moralização das arbitragens no futebol, uso de VT, ponto eletrônico e o que mais fosse para evitar novos erros do juiz. Como foi a “nosso” (eu não me incluo nesse nosso) favor, tudo bem; melhor até.

A terceira pérola é uma síntese das duas primeiras. Ainda falando do primeiro jogo do Brasil, eu disse que tinha torcido para o Brasil sequer ir à copa. Impossível, me responderam, a Fifa iria fazer quantas repescagens fossem necessárias, iria arranjar um jeito de pôr o Brasil na copa. Preferi não prosseguir nesse assunto, não adiantaria dizer que a Fifa não é como a CBF ou como o Brasil, que França e Inglaterra ficaram da copa de 94 e a Fifa não fez um jogo extra, não pôs nenhuma a mais. Como brasileiro é caridoso!: para os grandes, que tem condições de conseguir o que querem, mais uma chance (principalmente se eu for o grande), aos pequenos, azar deles, cresçam e apareçam.

Campinas, 20 de junho de 2002

sábado, 15 de junho de 2002

O MST revive Canudos

Assisti, dia 12 de junho, à uma palestra sobre mídia e a criminalização dos movimentos sociais, que fazia parte da programação do II Amigos do MST. Uma grande aula por parte dos palestrantes: o jornalista da Caros Amigos, José Arbex Jr., e o chefe de departamento de jornalismo da PUC-SP, cujo apenas o primeiro nome – Hamilton – foi anunciado.
Quando na vez de Arbex falar, ele comentou de um movimento social do início do século XX. No sertão nordestino, marcado pelo latifúndio, pelo coronelismo, pela fome, surgiu uma "comunidade alternativa". Não havia abundância – mas tampouco fome – nessa comunidade formada por miseráveis, excluídos que ali nutriam mais que o corpo, nutriam a esperança de um porvir melhor. Sem qualquer apoio oficial essa comunidade cresceu; tinha até sistema de irrigação quando foi arrasada por tropas do governo – o mesmo governo que ignorava essa pessoas até antes de se organizarem. A imprensa da época tratava o assunto com certa parcialidade: aquela comunidade era formada por criminosos, perturbadores da ordem (baderneiros, diria-se hoje), cujo líder era um lunático monarquista. Tratava-se, é óbvio, de canudos e seu líder, Antônio Conselheiro, que o governo e a elite satanizaram na época, mas que a história, graças e Euclides da Cunha, reservou uma imagem mais justa.
No final do mesmo século XX, num país marcado pelo latifúndio, pelo coronelismo, pela violência, pela fome, surge um movimento organizado que quer a reforma agrária e um país mais justo. Porém, como esse movimento não se localiza em apenas um local, como Canudos, o governo e as elites não conseguiram matar a todos, por mais que tenham tentado – vide o massacre de Eldorado dos Carajás, com seus 19 mortos (muitos à queima-roupa), os relatos de sobreviventes sendo obrigados a comer o cérebro de seus companheiros e as mais de 120 absolvições. Por sua vez, a mídia faz bem feito a sua parte: a quadrilha MST, formada por criminosos, baderneiros, perturbadores da ordem, quem já não ouviu falar? E da prisão de um de seus líderes, José Rainha, por porte ilegal de arma? Talvez não se tenha conhecimento da prisão de outros 25 líderes, só no último mês, por formação de quadrilha e perturbação à ordem pública. Denúncias de desvio de dinheiro por parte do MST sempre aparecem, e do prêmio de educação que o movimento ganhou da UNESCO, alguém viu algo a respeito na mídia? E das duas "universidades" do MST, que forma, entre outros, técnicos em administração fora dos padrões capitalistas?
Quando visitei um acampamento, cerca de um mês atrás, conversei com alguns acampados. Depois de uma vida de dificuldades, morando sempre nos subúrbios, mudando sempre de cidade, em busca de emprego, não conseguindo, muitas vezes, arranjar um novo emprego; aquelas pessoas, muitos já com mais de 50 anos, contavam dos seus planos de como iriam "ajudar o país a crescer". E não se tratavam de uma vaga esperança, de um sonho distante, mas de planos que logo começariam a serem postos em prática. Aquelas pessoas sentiam-se – quem sabe pela primeira vez na vida – humanos. A Globo, a Veja, a Folha, não publicam entrevistas assim, por que será?
Arbex disse que as elites não gostavam do MST porque ele dava voz e vez a pessoas marginalizadas. Eu vou além. O MST dá a elas auto-estima, confiança em si, o sentimento de coletividade, de companheirismo, dá a elas uma dose de independência do governo.
Todos os que chegaram à universidade estudaram sobre Canudos nas aulas de história do segundo grau, mas poucos conseguem notar esse Canudos que se repete nos dias de hoje. Porque Canudos foi ensinado como coisa do passado, numa aula que ensina apenas fatos do passado. A história ensinada sem consciência tem pouco ou nenhum valor. O MST revive Canudos.

Campinas, 15 de junho de 2002

sexta-feira, 14 de junho de 2002

Carta pra folha: USP

O sr. Adolpho José Melfi, reitor da USP, criticou, em artigo publicado em "Tendências/Debates" (pág. A3, 9/6), o colunista Gilberto Dimenstein por ter utilizado a FFLCH como "linha condutora do artigo". Ele cita, para contrabalançar, os bons resultados da instituição nos campos da genética e das engenharias. Isso serve apenas para ressaltar ainda mais o que os alunos da FFLCH reclamam: o tratamento desigual dentro da universidade. Por que Dimenstein não deveria escolher a FFLCH, que possui 20% do corpo discente da USP, para o artigo? Será que é porque se trata de cursos da área de humanidades, nos quais costumam estar os alunos mais carentes? Se a FFLCH não é um bom exemplo, talvez o sejam os cursos de pedagogia, de música, de terapia ocupacional ou até mesmo o de psicologia da USP de Ribeirão Preto, que também sofrem com a falta de professores. Vale ressaltar que todas as áreas citadas como exemplos pelo sr. Melfi têm forte apoio privado através, principalmente, das fundações. Por que não foi citado nenhum grande feito ligado às ciências humanas? Impossível que não haja nenhum -por mais sucateada que esteja a faculdade, por mais que cursos de sânscrito ou de filosofia não interessem à iniciativa privada nem ao governo. O mito da USP tem sido abalado, sim. O mito da USP formadora de intelectuais perde cada vez mais espaço à realidade da USP formadora de técnicos bem qualificados.

Daniel Dalmoro
Campinas, 14 de junho de 2002

domingo, 2 de junho de 2002

Este não é um país sério

Antes que os sarcásticos e sarcásticas de plantão comecem a avacalhar comigo, sei que minha constatação que dá título a esta crônica não é nada original, e minhas chances de ganhar o Nobel com ela são nulas.
Então porque repetir essa frase que, caso você esteja acordado há três horas, já deve ter lido, escutado ou falado pelo menos cinqüenta vezes? É para não esquecer. Masoquismo, talvez. Mas vamos lá!
Que seriedade tem um país em que a entrevista com o publicitário (colonial-modernamente chamados de "marqueteiros") do candidato é mais importante do que a com o próprio? E que seriedade tem um país em que o candidato não faz nada além do que o seu publicitário mandou?
Que seriedade tem um país cujo debate político se faz de bichinhos de pelúcia, criancinhas, choro, artistas, orações e camisas de futebol?
Que seriedade tem um país que comemora um pequeno "crescimento negativo" da economia? Que seriedade tem um país que inventa e repete essa idiotice de primeira grande de "crescimento negativo"?
Que seriedade tem um país cuja principal revista semanal primeiro acusa a oposição de imatura, e quando esta "amadurece", acusa-a de falta de coerência? Ao mesmo tempo que a vice do candidato que apóia vira, num passe de mágica, governo, depois de oito anos sendo oposição? Sem contar que o governo que ajudou a eleger disse certa feita "esqueçam o que escrevi"? Isso sim é coerência!
Que seriedade tem um país que produz besteiras do tamanho: "Que Nossa Senhora inspire o Brasil cristão a discernir e rechaçar o lobo com pelo de ovelha", quando fala do Lula? Que seriedade tem um país que tem um movimento, uma organização (sei lá que m**** é isso), chamada Tradição, Família e Propriedade (TFP), que produz a besteira acima e deve ver o perigo vermelho em toda esquina?
Que seriedade tem um país cujo principal jornal televisivo passa 90% do tempo falando de copa do mundo e seleção?
Que seriedade tem um país em que pessoas morrem de dengue, diarréia, fome, ao mesmo tempo que o governo torra US$ 700 milhões para comprar aviões de combates e mais não sei quanto em publicidade?
Que seriedade tem um país que contesta os relatórios das mais prestigiadas instituições (como a FGV) e da ONU, porque são contra o governo?
Que seriedade tem um país que é o sexto maior consumidor de canetas Mont Blanc e que na outra ponta possui 49 milhões de pessoas miseráveis?
Que seriedade tem um país em que pessoas são mortas por terem dinheiro? Que seriedade tem um país em que pessoas são mortas por não terem dinheiro?
Que seriedade tem um país que conta seus desempregados pelo número de pessoas esperançosas em encontrar um emprego?
Que seriedade tem um país cujo químico cotado ao Nobel três vezes (Otto Richard Gottlieb) busca emprego?
Que seriedade tem um país que a gente pára de falar de suas "palhaças" por que cansou e não porque elas acabaram?

Campinas, 02 de junho de 2002.

sábado, 1 de junho de 2002

Democracia, direitos humanos e os contos da carochinha

Louvemos à democracia, o grande bem da humanidade! Louvemos também aos direitos humanos!
Louvemos aos Estados Unidos da América, a nação mais democrática e humanitária do planeta! Tão democrática que por muito tempo o Partido Comunista foi proibido, cujo candidato mais votado na última eleição não foi eleito presidente. Humanitário a ponto de mandar inocentes à cadeira elétrica, amordaçar prisioneiros de guerra em gaiolas, distribuir carne de porco aos muçulmanos famintos e abandonados durante a Guerra da Bósnia e fazer "intervenções humanitárias" com alguns "danos colaterais". País ávido por estereotipar a tudo e a todos e que ainda assim se diz tolerante – e o é, em parte, com aqueles que lhe são servis.
Felizmente nós moramos no Brasil e não nos EUA. E o Brasil faz parte do Mercosul, que contém uma cláusula que obriga todos os países membro a serem democráticos. Nenhum comentário à respeito de respeito aos direitos humanos, quem dirá sobre pobreza. E como manda o Mercosul, o Brasil é democrático. Aqui o presidente é o candidato mais votado, não importa que a eleição tenha sido a base de fraude – ops, desculpe – à base de intensivo e não muito imparcial apoio por parte dos empresários e da mídia. A Argentina também é democrática, tem eleições. Pouco importa se os últimos presidentes eram golpistas – perdão, outro lapso –, se os últimos presidentes não foram eleitos pelo povo. O Uruguai também, pelo menos enquanto a aristocracia que se reveza no poder com Blancos e Colorados, rivais históricos, antagônicos (assim como fascismo e comunismo) e que buscam o mesmo fim: o poder. Se necessário, se unem, para evitar que outro partido assuma o governo. O Paraguai é uma boa democracia texana (pistoleiros, assassinatos e tudo mais que os filmes do Django podem exigir). A Venezuela não faz parte do Mercosul. Isso provavelmente devido ao fato de ter um governo ditatorial e autoritário (azar que tenha sido eleito pelo povo, não é democrático e ponto). Cuba não tem um presidente, tem um ditador, o que autoriza os EUA de o acusarem de tudo quanto quiserem, de magnata a terrorista. O Brasil nunca teve ditadura, apenas presidentes militares eleitos por sufrágio indireto. Hitler, o 666, o inimigo da paz e da humanidade foi eleito democraticamente ao governo alemão. Louvemos à democracia!
Cuba, com suas prisões arbitrárias, seu elevado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), e seu ditador comunista é um dos maiores violadores dos direitos humanos que a história já conheceu. Dizem que o Brasil, com as torturas que ocorrem em suas prisões e delegacias (será?), também viola tais direitos. O governo nega. E no meio dessa acalorada discussão se há tortura ou apenas métodos medievais de extorsão de depoimentos, 49 milhões de indigentes. 49 milhões de pessoas à beira de morrerem de fome não é violação dos direitos humanos! Penso que para a África, os direitos humanos não devam valer, afinal, lá só tem quase preto e pobre, gente que pé bom, muito pouco. Louvemos aos direitos humanos!
Por que escrevi tudo isso? Me inspirei com o artigo do ex-presidente estadunidense, Jimmy Carter, na Folha de São Paulo de Sexta, 31 de maio, que dizia da necessidade dos cubanos verem as vantagens de uma verdadeira sociedade democrática e de Fidel permitir a entrada de inspetores de direitos humanos. Ora! Democracia verdadeira não é governo do povo para o povo? Fidel está mais próximo disso do que o Bush, que não é do povo, não foi eleito pelo povo e muito menos que ele governe para o povo. E quanto a inspetores, por que os EUA não dão o exemplo e permite os da Opaq?
De qualquer forma, louvável a atitude de Carter visitar Cuba (não é ironia).

Campinas, 01 de junho de 2002