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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Farinha com açúcar: Palestina tropical [Diálogos com o teatro] [Diálogos com a literatura] [Diálogos com a música]

Recentemente reli Contos da Palestina, do escritor palestino Ghassan Kanafani (morto em um atentado em 1972). Como na primeira leitura, dez anos antes, me veio a imagem de que os contos de Kanafani são como passar uma lâmina afiada por toda a extensão do braço - várias vezes. Não é a lâmina que crava fundo, força o grito e abre o braço em dois, inviabilizando-o. É ferida feita na profundidade suficiente para que doa, sangre, marque, mas não interrompa o quotidiano - pior, renovar essa ferida e essa dor é o próprio quotidiano. Como diz uma das personagens de "Os desertores e outros":
"Outra vez, ela me mostrou suas mãos. As feridas eram bem visíveis, como rios secos. Delas emanava algo de extraordinário, alguma coisa parecida com a certeza, a segurança da resistência que é parte integrante do próprio corpo.
- Não se preocupe - eu disse -, essas feridas não são graves.
- Isto? Não vai demorar a desaparecer. Elas vão ser cobertas pelo pó, pela ferrugem das coisas que eu limpo, pela sujeira dos assoalhos que esfrego, a cinza dos cinzeiros que esvazio, por tudo aquilo que suja a água que eu uso todo dia... Estas feridas, meu primo, vão ser apagadas pelo cansaço, pelo suor. Elas vão desaparecer nas rugas de minha pele e ninguém mais vai poder vê-las. Mas eu, meu primo, eu sempre vou saber que elas vão continuar aqui".
Kanafani contava de uma guerra em que havia um exército só - "guerra", eufemismo para massacre, uma vez que no campo de batalha estavam de um lado militares, do outro, civis, com baixas quase que exclusivamente destes. Os exércitos de resistência pouco têm de exército e muito de resistência. "Crime de guerra" seria uma qualificação mais apropriada - para não falar em crime contra a humanidade -, se a Kanafani e seu povo fosse dado o direito à voz. Não era, não é. O pouco que conseguiram, foi com sangue e mobilização. Resta também o grito pelas artes - mais difícil de ser calado pelas armas. Grito que Kanafani grita com sutileza e poesia, em que não se foca no horror da guerra e suas escatologias, como em Lobo Antunes ou Kourouma, e sim na dor de resistir quando não se tem o direito a ser. "O gato", na minha opinião, é o conto mais escatológico, um conto em que a vítima (física) sequer é um humano. Kanafani mais que da guerra fala dos marginalizados, dos condenados da terra, como bem sintetizou Frantz Fanon.
Esta semana me veio que talvez eu sinta Kanafani como lâmina que fere o braço porque não sou palestino. Pensei isso porque fui tomado de igual sensação ao assistir ao espetáculo "Farinha com açúcar: ou sobre a sustância de meninos e homens", de Jé Oliveira e Coletivo Negro, inspirado nos Racionais MC's e em histórias de vida de homens negros da periferia. 
Não sou palestino, tampouco sou negro, sequer de periferia. Se minha avó me oferecia farinha com açúcar de lanche, era por ser uma opção a mais, além de pão, bolachas e outros quitutes, não por ser a única opção (talvez por questão regional, era farinha de milho e não de mandioca). Não sou negro e nunca me perguntaram aonde eu ia ao entrar num shopping center, a única vez que fui barrado de entrar num Sesc foi porque era segunda e ele estava fechado; nunca tive uma arma contra minha cabeça apontada por segurança à paisana de um colégio particular, enquanto esperava ônibus na avenida 23 de maio, e a vez que fui interpelado pela polícia, numa blitz da Polícia Rodoviária Federal ao ônibus em que eu estava, respondi seco e firme às perguntas cretinas do policial, que por fim baixou a cabeça, quase a pedir desculpas, seguiu ajudar seus colegas a revistar dois jovens negros e a humilhar, diante dos demais passageiros, um homem humilde e negro (os únicos negros daquela viagem que vinha do interior do Paraná [http://bit.ly/cG100506]). Não sou negro, não convivo com mortes matadas dos próximos, no máximo com repentinos acidentes automobilísticos, impensáveis enfartos e esperados suicídios; na doença, quando a morte chega, encontra um enfermo a quem se tentou de tudo - corredor de hospital é lugar aonde se vai para arejar do peso do quarto, talvez chorar escondido do doente. Morrer todos vamos, mas a forma com que a morte chega tem cor, gênero, classe social. Meus mortos foram todos velados (nenhum teve tiro no rosto à queima roupa) e enterrados sob lápides com seus nomes (é certo que não vivi a democratização dessas práticas à classe média, na ditadura militar, e uma grande interrogação paira sobre o que nos espera para o futuro breve).
Etnogenocídio. Farinha com açúcar fala sem eufemismo o que a tal guerra (contra o crime? contra os traficantes? contra as drogas? contra os drogados? contra os pobres? contra os trabalhadores? contra os periféricos? contra os marginalizados? contra os negros?) anunciada e louvada nas redes de televisão de fato é. Como no contexto descrito por Kanafani, são militares contra civis - não há guerra em tal assimetria, há massacre, baixas quase exclusivamente de um lado. Os tais "soldados do tráfico" não justificam a barbárie - até porque jovens sem esperança com uma arma na mão sem qualquer treinamento estão longe de compôr um exército militarizado.
Cento e onze tiros para cinco homens pretos em um carro. Cento e onze, o mesmo número de mortos pelo Estado que se responsabilizara em zelar pela sua integridade e reintegrá-los - integrar pessoas que desde o início estão em desvantagem, que nas prisões são tratadas pior que animais, em uma sociedade que as recusa enquanto cidadãos com plenos direitos. Se nosso sistema prisional fosse modelo, seria igual fracasso: nossas prisões só refletem sem camuflagens nossa sociedade medieva e longe de qualquer sopro de civilização. Em "Vida é desafio", os Racionais MC's cantam: "Desde cedo a mãe da gente fala assim:/'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.'/Aí, passado alguns anos eu pensei:/Como fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?". É esta a base da disputa meritocrática brasileira - talvez seja coincidência que os vencedores sejam 99% das vezes brancos (uma foto dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo assusta pela meia dúzia de mulheres e ofusca por não ter um negro ou moreno, acho que na Finlândia deve ter, em números absolutos, mais negros em cargos equivalentes [http://bit.ly/2vfl3pL]).
No Le Monde Diplomatique Brasil 119, Alain Gresh fala da nakba palestina ("A Palestina, sempre recomeçando", p. 27). Comenta do sentimento de pertencimento dos palestinos, sua ligação com sua cidade, sua vila, sua terra natal - mesmo que tenham nascido já longe e a cidade sequer exista mais: a resistência do povo de Kanafani é reforçada pela provisoriedade de onde foram obrigados a parar. Para eles há um lugar (territorial) aonde se quer chegar, onde um palestinos tem direito de ser, exercer sua identidade com plenos direitos. Farinha com açúcar traz dessa ligação com a terra dos antigos, essas raízes, contudo, não tem a mesma força dos palestinos: enquanto estes foram abertamente expulsos por um exército ostensivo e opressor, os brasileiros que imigraram de algum sertão seco ou violento, fugidos da miséria e da fome, o fizeram por "livre iniciativa" - e ainda que a memória prefira se ater às boas lembranças, muitas dessas marcas são fortes o suficiente para que a volta não seja uma opção desejada.
A terra onde estão é o que lhes resta como destino - construir ali, na periferia de uma grande cidade, seu ser e seu estar. Porém, como fazê-lo, diante de todo estigma com que serão marcados por nossas ilustradas elites brancas e seus porta-vozes na televisão? Alguns se iludem em mudar para não-lugares de consumo onde, endinheirados, imaginam que ganhariam direito à cidadania branca. Ilusão: o dinheiro "não pode arrancar de dentro dele[s] a favela", suas peles seguirão negras, os acessos, se não bloqueados, seguirão dificultados. 
É na condição de negros e periféricos que deve surgir esse ser e estar - afirmativamente contra todo o estigma que tentam impingi-los, do judiciário à mídia, passando pelas igrejas e escolas, até chegar ao Estado, omisso e ausente em tudo menos na violência. Como fala a peça, as mortes de tantos negros, vidas tidas por descartáveis, não devem ser vingadas, muito menos esquecidas (se é que há como esquecê-las de fato, como as feridas da personagem de Kanafani): a dor dessas perdas - bruscas, brutas, injustas - seguirá, e dela deve vir a resistência para se construir um novo estar no mundo, um mundo que autorize esse estar sem estigmas e preconceitos - e há urgência nessa construção, precisa ser aqui e agora. Como a música dos Racionais, como os contos de Kanafani, Farinha com açúcar é um grito feito arte em uma sociedade que recusa humanidade - ao menos cidadania - a negros, periféricos e tantas minorias marginalizadas. Necessário ouvir esse grito, e dele apurar os ouvidos para tantos outros do gênero, mais crus, porém não menos pungente.

21 de julho de 2017


domingo, 26 de maio de 2013

A sombria cor-vazio do branco.

Foto de Luis Felipe Labaki [j.mp/10Ykne6]
Subindo as escadas, primeira porta à esquerda, entra-se em um grande salão, circular no extremo oposto. À direita da entrada, uma sala anexa, retangular, sem separação. Em todo ambiente, o chão é de cimento (reparo algumas manchas coloridas, ou ao menos que rompem com o monocórdio cinza), o teto é preto, as paredes, brancas. Não há janelas. As luzes do grande salão estão apagadas – apenas um abajur sobre um mesa, mais ou menos no centro. As da sala contígua estão acesas: luzes brancas em uma sala branca – e vazia. No salão há cadeiras, dispostas aleatoriamente quanto ao lugar e direção – mas tendendo para o centro, para o abajur. Há pessoas nesse salão, muitas – eu chutaria perto de cem. Estão em silêncio, o olhar perdido, sem saber para onde mirar. A maioria está sentada nas cadeiras. Há pessoas sentadas no chão – algumas deitadas. Outras poucas caminham – em geral logo páram e se sentam (ou deitam) novamente. Há músicas que ocupam todo o espaço – feitas para isso. É o concerto NME13, de música eletroacústica, em uma das salas de exposição do Instituto Tomie Ohtake. Um rapaz se levanta, transita pelo salão, adentra a sala adjacente, até então vazia. Ele vai até próximo da parede oposta, se senta defronte a ela, de costas para o salão. De onde o vejo, ele perde a sombra. A sala é branca, a luz é branca, a música que é executada no instante, “Cor”, de Clayton Mamedes, tem um clima sombrio. No salão, na penumbra, a música a transitar pelas caixas, preenchendo de diversas maneiras o espaço, o olhar faz as vezes geralmente reservada aos braços: o que fazer com eles? Não há instrumentista a executar a peça, não há vídeo a ilustrá-la, não há foco – a não ser o estático o abajur ao centro, a iluminar timidamente o computador e a mesa de som. Olhar para baixo, fechar os olhos? (São alguns dos momentos em que vi manchas coloridas). Pode-se flanar o olhar por entre os colegas de público, até se deparar com outra pessoa a fazer o mesmo e baixar os olhos, um pouco constrangido. O rapaz resolveu esse problema: pode olhar para frente, não se deparará com ninguém, com nada além do branco e da música sombria nomeada cor. Mas o que ele vê diante do branco? Lembro de uma tira do André Dahmer: um homem defronte um grande aparelho de tevê, comentando que algo está deixando sua alma pequena. Eu não conseguiria ter esse tipo de reflexão diante de um televisor.
Mas envolto por três paredes brancas, sentiria minha alma de que tamanho? O branco, tão vinculado à idéia de paz, de pureza cristã. O quanto não fujo do branco? Paz que pode ser a ausência de vida – a vida sempre tão conflitiva, não necessariamente uma guerra. Pureza que pode significar a falta de marcas, de sombras, da exata noção da profundidade, o raso. O vazio. Lembro da música do Marilyn Manson: um grande mundo branco, que suga nossas cores. Também poderia ser o inverso: um grande mundo colorido que mancha nossa brancura. Ou então apenas um mundo que não respeita nossas cores. As cores, elas vêm para preencher esse vazio ou disfarçá-lo? De início penso nas cores da publicidade, das cores que vazam brilhantes da tevê, e me parecem enganadoras. Mas e as cores sombrias da obra que escuto aquele momento? Por que só estas seriam as verdadeiras? A pop-art desbotada de Arthur Bispo do Rosário é colorida. A primeira obra do concerto, “Impulso e impacto n° 3”, de Caio Kenji, é colorida – colorida e sinestésica, a ponto de ver traços coloridos a la Malevich sendo desenhados pelo som no espaço escuro. Música para exposição. Cores, e não preto no branco. A publicidade engana e encobre? Até que ponto? E os pontos coloridos que resistem em meio ao cinza? E a flor de Drummond a desabrochar em meio à náusea? Mais tarde, durante a última peça da noite, “Pato Rei I”, de Tiago de Mello, eu andaria sozinho por aquele espaço branco. Algum pensamento sobre minha relação com o Outro brilharia e eu sentiria leve angústia, que me faria retornar logo ao breu. Estar diante do branco, revela ou apaga?

São Paulo, 26 de maio de 2013.