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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Dumbo e a importância do bullying na formação do caráter e do sucesso [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

É sabido que gosto de crianças - guardada razoável distância. Acho elas fofas, lindas, espertas, interessantes. Isso tudo desde que não ultrapassem 40 decibéis, mantenham o dobro da distância social defendida na pandemia, e tenham a energia de uma pilha falsificada Eveready do gatinho. Se não for assim, se a criança me estressar, é bom os pais saberem que retribuirei com um trauma ou uma fobia nova. De qualquer modo, preciso ampliar meus critérios, que estou muito bonzinho. Afinal, mesmo assim, decidiram enviar para passar os embalos de sexta à noite comigo meu sobrinho de oito ou nove ou dez anos. Ou sete, não sei e não creio que um ou três anos faça muita diferença. 

Cá estamos, eu na poltrona, ele no canto oposto do sofá, respeitando o distanciamento social; ele olha para mim ou para o nada, sem fazer nada (e sem sono, tampouco, parece que a bateria estava não necessariamente fraca, antes mal regulada); e responde laconicamente às minhas perguntas, num tom quase inaudível.

A situação me agonia. Ele está com um celular, mas não se interessa; trouxe um livro, mas não se interessa (e não sei se cabe oferecer algum outro, do Donaltien Alphonse François, talvez? Sei que não é para sua idade atual, mas um dia será, e é bastante vívido!), e eu constrangido de seguir minhas buscas de moteis com ele ao lado. Óbvio que não vou tentar animar a criança: vai que ela está em stand by e quando for ligada sai em correria ensandecida pelo meu apartamento, roe meus chinelos, mija no pé da minha mesa... sei que tais atos costumam ser hábitos mais caninos que humanos, mas vai saber se as crianças brancas não estão se organizando mundialmente para receber menos brinquedos e mais atenção e carinho, e para tal, não estão agindo como “pets” para conseguirem lograr esse seu objetivo?

Enfim, com a situação parecendo uma guerra de trincheiras estagnada, decido que a partir daquele momento “minha casa, minhas regras”, e resolvo pegar um desenho animado para assistir, queira ele ou não, ou melhor, possa ele ou não: porque seus pais querem ser descolados mas elitistas ao mesmo tempo, e colocaram o menino numa escola Woldemorf, e não sei se ele já pode ver tevê ou o que - ainda que tenha celular...

Ele me olha assustado quando ligo a tevê, como se estivesse fazendo algo proibido. Decido por um desenho clássico e instrutivo: Dumbo. Pergunto se já tinha assistido, faz que não com a cabeça (talvez tenha falado também, mas não ouço) e falo isso que acabei de contar a você, desatenta leitora, desatento leitor, que é um desenho clássico e instrutivo.

A história é conhecida dos mais antigos, que já adentram a idade que poucos superam, a dos “enta”. Uma mãe elefanta, cujo sonho de vida é ter uma cria, demora para parir (talvez por toda a adrenalina liberada, que não permitia a bolsa romper), e esse atraso faz que dê a luz a um elefantinho com fimose nas orelhas, Jumbo.

Jumbo sofre bullying desde que nasceu, sendo ridicularizado pelos outros elefantes - que o chamam de Dumbo (e eu não entendi o jogo de palavras) -, e pelas crianças que visitam o circo antes do espetáculo para poder ajudar a torturar os animais. 

Mamãe elefanta, que dá muita importância à opinião dos outros, parte pra porradaria para proteger o filhote e acaba indo para a solitária circense, apartada de todos os demais - Dumbo, inclusive, que sequer mamou desde que nasceu, mas já marretou prego.

Sozinho e repelido por seus pares, Dumbo é rebaixado a palhaço e com isso é excluído de vez do grupo dos elefantes - pelos próprios -, e passa a ter como único amigo um rato, que é também seu coach e empresário (ou seja, de se questionar se é mesmo seu amigo). Os palhaços é que ganham notoriedade com esse reforço no espetáculo, cuja função é pular de trapézios cada vez mais altos numa piscina de chantily. Num desses pulos, já devidamente treinado por corvos para usar suas orelhas para voar - graças ao rato-coach -, Dumbo sai voando e planando, e se torna a grande atração, o grande astro do circo, de modo que ele e a mãe ganham um vagão especial só pra eles, enquanto o dono do circo enche as burras de dinheiro e todos os demais animais seguem explorados e mal pagos (só para constar, Dumbo é explorado também, ele não virou o dono dos meios de produção porque produziu conteúdo de sucesso no circo). Destaque para a importãncia de encher a cara desde criança, como forma de liberar os potenciais artísticos de qualquer ser.

Como sei que nas escolas Woldemorf é importante sempre conversar para aprimorar o conhecimento da criança, e é preciso mostrar o mundo sempre bonito, sempre o lado bom das coisas, findo o filme, consigo, finalmente, engatar uma conversa - é sobre a moral do desenho. Moralismo sempre dá muita conversa, não adianta.

A conversa é longa, cheia de rodeios e umas horas carente de senso de realidade, mas ao cabo conseguimos chegar a uma posição de consenso e edificante: foi graças ao bullying, às humilhações, à exclusão que os outros elefantes fizeram com Jumbo que ele pode descobrir e vivenciar seu potencial, e desse modo ganhar vários confortos que seus iguais não tinham, justo porque ninguém ali se destacou, conseguiu virar um astro, um influenciador. Ou seja, só o sofrimento traz recompensas ao trabalhador e o sucesso ou fracasso depende exclusivamente de cada pessoa, de como cada uma reage ao que a vida lhe dá - no máximo cabe ser bem assessorado. Tivesse ele sido tratado bem desde sempre, com suas orelhas diferentes do comum sendo ignoradas por serem algo sem relevância - como é o caso -, ele não teria sido mais que um elefante, fazendo o trabalho pesado de empurrar jaulas na chuva, para depois voltar para a sua, e no palco sendo só mais uma atração anônima entre tantas. Meu sobrinho hesita sobre essa conclusão, mas quando pergunto o nome de outro elefante da história, ele não sabe responder e precisa dar razão aos meus argumentos.

Ele se mostra contente com nossa conversa filosófica e a conclusão positiva que conseguimos chegar do bullying e sua importância. Sequer começamos a discorrer sobre as implicações práticas, como na escola, onde poderá estimular o sucesso dos coleguinhas ao ridicularizar seus pontos destoantes e/ou vexatórios - mas tenho certeza que ele as alcançará por si. Nessa hora seu celular toca, alguns de seus estimados progenitores avisa para ele ir se aprontando, que logo chegarão para pegá-lo. Olho para o aparelho, pergunto se tem o jogo da cobrinha.

Tem, mas meu pai não me deixa jogar, é só para ligação mesmo.

Vai sobrinho, vai ser Dumbo na vida.


12 de janeiro de 2024.

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Banheiro interditado, 2 - o desvelar de um mistério [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Nos anos 90, as pessoas mais antigas vão se lembrar (não que eu tenha como me lembrar disso! Foi uma dessas que me contou, me falha a memória se foi o nobre colega Carnegie ou a nobre colega Meireles), havia uma propaganda de refrigerante em que, num primeiro momento, um líquido verde insinuantemente refrescante era despejado num copo; no momento seguinte a câmera abria o plano e no vasilhame do qual tal líquido saía e lia-se “óleo de fígado de bacalhau”; a seguir a voz em off recitava o slogan: “imagem não é nada, sede é tudo. Respeite sua sede”. Moral da propaganda: podemos ter sede do que for, inclusive de óleo de fígado de bacalhau, e isso merece ser respeitado por todos. Havia também quem interpretasse a mensagem como um alerta de que as imagens enganam, mas não acho que uma propaganda teria interesse em ludibriar alguém.

De qualquer modo, vou utilizar essa segunda interpretação para falar de criança: aparências enganam. Crianças bem comportadas, ou costumam ser pobres crianças reprimidas e infelizes; ou não são tão bem comportadas assim. Falo por experiência própria: sempre fui essa criança exemplo para professores e pais de amigos: artes fazia algumas, claro, mas eram coisas simples e não mereciam nem uma bronca de verdade. As artes mais espoletas, que mereciam ir para direção, tomar bronca, chamar os pais, quando não faziam a coordenação quase ter um chilique, essas eu nunca fiz - apenas era o mentor intelectual para meus coleguinhas com menos tino (e menos ideias).

Uma das grandes estratégias que criei quando criança foi sugerir que dois colegas arranjassem qualquer pretexto para serem levados pela professora para a coordenação, deixando livre até sua volta ou a chegada do bedel para outro colega aprontar alguma, como esvaziar o extintor de pó no corredor (outra ideia minha). Deu muito certo! O problema foi que meu colegas adoraram a estratégia e depois de três vezes ficou evidente o estratagema. Houve outros casos, mas não me lembro agora - nem depois, e se alguém lembrar, não é verdade!

Em meu último texto acerca do ambiente laboral no qual me encontro, comentei do banheiro, o aviso de interditado numa das cabines, ainda antes dos efeitos se fazerem sentir pelas vias olfativas, a estranheza de tal aviso estar escrito em giz de cera, e as marcas na porta da outra cabine - não sabíamos se de um rato (ou outro animal) ou de alguém com prisão de ventre violenta. Terminava as referidas linhas com um serviço de utilidade pública, sugerindo ao dono do intestino com sérios problemas de tráfego que comesse mais fibras. 

Se essa sugestão foi útil, não sei - creio que não -, porém o texto não deixou de ter suas utilidades. Duas, para ser mais específico.

Isso graças à colega Nudd (sim, tenho uma colega a uma letra de ser uma Ludd, e nem isso a sensibilizou a se tornar uma ludista). Ela leu meu texto e o pavor do rato no banheiro se espalhou agora também entre a ala feminina do setor. A tese de Macedo, o nobre colega, das marcas serem de alguém com prisão de ventre, não convenceu - também ninguém se apresentou como sendo o autor daquelas marcas de unhas na porta da cabine. 

Eis a primeira utilidade pública: agora temos todo um setor com medo de se sentar no trono durante o expediente. Provavelmente os chefes, se ficarem sabendo da minha existência e destas mal traçadas linhas, vão me agradecer, pois isso significa menos tempo ocioso. Claro, como bons liberais que são, tem suas limitações cognitivas, e nenhum momento em seus MBA de gestão de pessoas e negócios eles devem ter se questionando se uma pessoa com vontade de ir ao banheiro renderá mais que uma pessoa com suas funções fisiológicas elementares satisfeitas - o importante para eles é que seus subordinados fiquem o maior tempo possível na posição de trabalho, mesmo que não estejam trabalhando (para um liberal, imagem é tudo; e sede dos outros, ou qualquer outra necessidade que não lhe renda lucro, não é nada).

A segunda utilidade pública foi saber que nosso estranhamento com o cartaz não era sem motivo - a começar pelo fato de que a cabine não parecia estar com problemas naqueles dias. Estamos em julho, ou seja, férias escolares. Consequência lógica: volta e meia algum colega traz seu pimpolho para passar oito horas aqui, por falta de para onde despachá-los e não terem ainda idade para ficarem sozinhos em casa. A colega Nudd foi uma que trouxe a filha algumas vezes - uma garota de uns dez anos, muito bem comportada, ainda que faladeira, se lhe derem atenção. Pois ao se deparar com a foto que ilustrava o texto anterior, com o aviso de banheiro interditado escrito em giz de cera azul, de pronto a colega Nudd reconheceu a letra da filha - ou seja, não havia interdição alguma na cabine. 

Sim, uma criança bem comportada - como eu era.


21 de julho de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.