Sábado passado fui assistir à Osesp, na sala São Paulo. Depois,
resolvi aproveitar a deixa para passear pela região da Santa
Ifigênia à noite – início da noite, é certo, mas deserticamente
desestimulante para andar despreocupadamente. O passeio durou umas
duas horas, tendo começado umas seis e meia. Aos que não conhecem
bem São Paulo, a região da Luz, da Santa Ifigênia, costuma ser
mais conhecida por Cracolândia – andou passando por uma certa
higienização social, mas ainda faz jus ao nome.
Saio da Sala São Paulo, na estação Julio Prestes, já noite
escura. Ainda que tivesse me organizado para subir a Duque de Caxias,
me perco, não sei como, e acabo na rua do Triunfo – daí a decisão
de levar a cabo o que até então era apenas plano, o do passeio pela
região. Não vou saber por quais ruas deambulei, sei que tratei logo
de achar a Avenida Rio Branco. Já havia circulado algumas vezes por
essa região – famosa pelos eletrônicos –, porém sempre em
momentos de movimento e de dia – salvo a primeira, quando ainda não
morava em São Paulo, que saí da Estação Pinacoteca e meio que me
perdi por ali, no início da noite.
Tenho plena consciência que não é um lugar muito tranqüilo, e sei
que pessoas de boa família ou que aspiram a ser bons intelectuais ou
acadêmicos brasileiros não deveriam dar esse tipo de rolê, em meio
ao povo, sempre perigoso e sujo, ainda mais quando se trata da
escória da escória. Desprezo essa brasilidade da nossa academia, e
torço para que nada me aconteça.
Próximo a uma delegacia de polícia, vejo dois homens que
aparentemente perseguem uma mulher. Ao mesmo tempo que parece
assustada, a mulher ri – como se estivessem brincando de pega-pega.
Defronte a delegacia, duas mulheres observam a cena. Ok, se está
acontecendo algo fora dos padrões de sociabilidade aceitos ali, as
mulheres tomarão alguma atitude, penso, e prefiro não olhar
para trás. Noto que destôo um pouco dos habitantes do local, e
resolvo usar o capuz do moletom que uso – ainda que isso me faça
passar a ter medo da polícia, aliviado um pouco pelo bilhete da
orquestra, para o caso de uma abordagem o que você está fazendo
aqui, playboy? Numa rua
escura, atravesso ao avistar à minha frente um grupo de pessoas
encostadas no muro. Na hora penso se não é preconceito da minha
parte, desviar das pessoas só porque estão em grupo. Sigo
caminhando, observando a paisagem urbana – prédios, nóias,
imigrantes, samba nos bares, ruas repentinamente desertas,
repentinamente povoadas e agitadas. Na rua Conselheiro Nébias
resolvo não atravessar ao ver um grupo sob uma marquise. Sou
nóia, mas sou sangue bão, diz
a mulher a dois homens que estão com ela. Não sei de onde surge,
mas noto um homem caminhando à minha frente: anda com um braço
flexionado, o pulso fechado, um sorriso estranho no rosto. Aponta
repetidamente para o braço. Finjo que não é comigo, sigo meu
caminho, ele na minha frente. Uma hora ele fecha o sorriso, se volta
e vem na minha direção, pronto pra desferir um golpe. Não chega a
finalizar o ato, não sei como me desvencilho, estou já na sua
frente. Ele aponta para um carro da polícia, na esquina atravessando
a rua, desconfio que foi por isso a tentativa de agressão. Estou
na minha, vou virar aqui, mano,
e dobro a esquina para a praça Júlio de Mesquita. Olho para trás,
ele corre atrás de mim. Não penso duas vezes e faço bom uso das
pernas que herdei. Me sinto um cachorro escorraçado. Duas vezes.
Talvez seja assim que ele também se sinta, e apenas esteja marcando
território.
Mesmo com as pernas bambas e o coração funcionando aceleradamente
pelo susto, resolvo prosseguir meu passeio. Depois de algumas voltas
a esmo, passo ao lado da praça da República e entro na rua do
Arouche. Nesta região, que passei já algumas outras vezes,
inclusive em horários mais tardios, volto a ter mais medo da polícia
do que dos seus usuários.
Me avisaram que o Largo do Arouche é
ponto de prostituição masculina. Um conhecido – acadêmico – me
disse que da vez que passou ali viu dois michês brigando por ponto,
todos ensanguentados. De minha parte, nunca vi nada anormal para o
local – e com as três vezes desse sábado, já foram uns cinco
vezes que passei pelo Largo. Me pergunto se ele teve “sorte” de
passar ali justo quando acontecia uma briga dessas, ou se foi seu
preconceito que permitiu ver muito além do que acontecia – talvez,
se muito, fosse uma discussão pelo ponto. Passo por um grupo de três
rapazes, inocentemente achando que só estão ali parados. Logo a
atrás de mim vem um homem, mais velho. Vamos transar
gostoso, perguntam ao homem.
Descubro que não é só no Largo que rola a prostituição. Na
esquina seguinte, um rapaz e duas mulheres – uma das quais
desconfiei que fosse travesti – entregam um panfleto a um michê.
Fico curioso em saber do que se trata, mas não peço um. Quando
passo por eles, ouço uma parte da conversa. Se a gente não
fosse tão conhecido depois da praça da República, dava pra ir pra
lá. Como não guardo nenhuma
visão idílica de pessoas de vida sofrida, não creio que sejam
anjos dotados de sexo, fico me questionando conhecidos por
quem, por o que? Disputa de
ponto, faxina social, marcados pela polícia por conta de uma
eventual ficha policial, grupo de extermínio? Há o dito que se não
há deus, tudo é permitido. Mesmo havendo deus, se o Estado é falho
– e muitas vezes ilegal, que crê que bandido bom é bandido morto
–, como o nosso, tudo é permitido, logo, todos devem ser temidos.
O trio me parece muito tranqüilo para que os tema, sigo meu trajeto
e logo me distancio, pois páram para entregar outro folheto.
Perambulo um pouco mais por ali. Dois dias antes, dezessete de maio,
havia sido dia de combate à homofobia, imaginei que fosse ter alguma
campanha do gênero: nada. Talvez o trio da rua do Arouche?
São oito horas, mais ou menos. Os
prostíbulos ainda esperam sua hora, botecos e pontos já estão
cheios de travestis – diferentemente dos michês, essas me chamam
para gozar gostoso –,
algumas põem o celular pra tocar, outras dançam com fones de ouvido
– e esse dançar aparentemente sem som dá um ar de loucura, de delírio onírico à
cena, por mais ritmada que seja a dança –; muitos carros passam,
alguns param, pessoas malham nas academias, mendigos dividem o fim da
pinga e vasculham o lixo, espectadores entram em um teatro: a noite
de sábado ainda está apenas começando.
São Paulo, 26 de maio de 2012.