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sábado, 4 de novembro de 2023

Imprensa, ética e a formação do público para o jornalismo

No jornalismo de manchetes, de impacto imediatista, em um tempo de necessidade constante de novidades de hora em hora, a busca por furos jornalísticos se tornou a tônica de muitos jornalistas na grande imprensa - os sem escrúpulos, ansiosos por crescer na carreira a qualquer custa, sejam eles novatos ou experientes. O importante é dar sempre a notícia antes de todos os demais, na expectativa de que uma dessas seja uma grande notícia - o autor de um Watergate tupiniquim, só que sem todo o trabalho jornalístico de Woodward e Bernstein. Ao invés de investigações detalhadas, checagem dos fatos, dar voz ao outro lado, solta-se a notícia, simplesmente. 

Alguns profissionais da imprensa sabem segurar o andor, não por cuidado jornalístico, mas por terem noção do que é ou não relevante e pode se tornar uma reportagem de causar impacto. Mais que isso, porque costumam ter acesso a fontes de atores políticos importantes (políticos eleitos ou nomeados ou aqueles disfarçados de agentes estatais que atuam como poder à parte), que são quem lhes dão a perspectiva de em algum momento dar o famigerado furo, os primeiros a dar o ato consumado ou escancarar os bastidores desse ato.

O ponto é que para ter acesso a essas fontes, é preciso mais que algum renome e bom relacionamento: é preciso ter a simpatia desses atores. E para ter essa simpatia, esse acesso facilitado a fontes importantes, é preciso fazer o jogo deles até (quem sabe) surgir o grande momento. Ou seja, atuar como quinta coluna na imprensa: ser um amigo desse poder, mandar às favas o jornalismo, atuar como relações públicas ou assessor de comunicação extra-oficial, à espera de um momento em que possa se destacar por uma grande reportagem, que vai apagar esse seu passado “eticamente livre orientado” (para usar expressão do Overman, da Laerte). 

O que sobra é um jornalismo de notas de personagens em off, de denúncias surgidas do nada ao gosto de políticos, promotores ou juízes; de ouvi-dizeres, de ameaças dadas via imprensa, de balões de ensaio. Sim, estou falando dos muitos jornalistas que trabalharam para a Lava Jato (e que agora renegam o passado, não por conta do erro cometido na profissão, mas por terem apostado no cavalo errado - na verdade por terem tomado um cavalo por enxadrista), como estou falando das recentes famigeradas ASCOM de milicos, mas também de quem projetou Demóstenes Torres como paladino da ética (bem documentado no último livro do Nassif), dos mil balões de ensaio de ministros para o STF - ou mesmo Alckmin para vice de Lula. Um desses jornalistas que eventualmente soltou uma balão de ensaio que deu certo, no futuro vai cobrar dessa personalidade por esse serviço prestado.

Alguém mais ingênuo poderia perguntar como as empresas jornalísticas admitem esse tipo de profissional em suas fileiras. A resposta é simples: essas empresas têm o jornalismo como meio, não como fim; sua finalidade é aumento de lucro e poder dos patrões - e isso nem é novidade ou exclusividade brasileira, Orson Welles já denunciava no início da década de 1940 em seu clássico Cidadão Kane. Do apoio nem à ditadura militar (ou seria ditabranda?) ao bolso-guedismo; do golpe branco no Lula, em 1989, ao golpe efetivo na Dilma, em 2016, a imprensa brasileira nunca disfarçou que o Brasil só lhe interessa enquanto lhe der lucros privados - seu projeto de país é o projeto das elites que cá aportaram desde Cabral: saque e fuga para o exterior. 

Daí a importância da imprensa alternativa, que com a internet permitiu que jornalistas reconhecidos e de carreira sólida, forjados na grande imprensa, mas sem negar seus princípios, em especial os de ética e da profissão, pudessem ganhar projeção - ainda que reduzida, frente o poderio das cinco famílias e seus tentáculos na internet, sem falar na imprensa de internet que pratica o mesmo que a imprensa corporativa, publicidade “orgânica” disfarçada de jornalismo. Vale lembrar que essa imprensa alternativa desde sempre existiu, ligada ao contexto de resistência, como a imprensa operária.

Esses jornalistas, aferrados ao fazer correto da profissão, acabam por ter uma dupla tarefa: não apenas noticiar os fatos de maneira justa e fiel aos ocorridos como capitanear um processo de educação, de mostrar o que é notícia e como se faz jornalismo, um processo de formação de público à notícia enquanto bem público e não enquanto mercadoria para negociar com quem paga mais - isso a um povo forjado há gerações nesse ambiente de “empresa de comunicação” e “showrnalismo” (na expressão do Arbex). Não é tarefa pouca, mas é tarefa capital de quem ainda pensa em uma sociedade democrática e mais justa.

04 de novembro de 2023

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Um cavalo de Troia no Le Monde Diplomatique - Comentário sobre o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança"

Os fascismos do século XX, assim como suas versões repaginadas neste início de século XXI, não são apenas formas de gestão do estado e da economia, não atuam apenas na macropolítica, como penetram profundamente no tecido social, nas relações micropolíticas, influenciando a sociabilidade como um todo - quantas histórias não conhecemos de famílias que se afastaram desde a emergência dos fenômenos de extrema-direita no Brasil, como o lava-jatismo e o bolsonarismo?

Tem sido comum estudiosos e analistas inserirem as técnicas neofascistas de comunicação e manipulação no seio da guerra híbrida[1]. Uma dessas estratégias consiste em forçar os limites do aceitável no debate público, de pouco em pouco, por aproximações sucessivas, de modo que parece desproporcional recorrer à justiça, e quando se nota, absurdos passam a ser ditos ostensivamente nas mídias e nas casas legislativas - desde da defesa da desigualdade de gênero e de raça, à defesa da tortura ou da criação de um partido nazista -, e nesse ponto, como tudo até então era tolerado, ações (tardias) no sentido de refrear esse avanço contra pactos civilizatórios elementares são apontados como pretensa censura à liberdade de expressão.

Assim como os fascismos do século XX souberam se utilizar das ferramentas de comunicação então emergentes, o rádio e o cinema, os neofascismos deste século XXI também souberam instrumentalizar com eficiência as novas tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais - Debord dizia que o “fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado”[2]. Esta afinidade entre novas tecnologias de comunicação e extrema-direita não me parece ser por acaso: o desenvolvimento da ciência - e as novas tecnologias dela derivada - não é neutro. A ciência faz parte de um “sistema-mundo” capitalista, está inserido dentro de uma lógica, de um momento histórico específico, e ainda que haja espaço para dissidências e questionamentos, o vetor principal é o de reforço da lógica do capital, do status quo.

Na esteira do ativista português João Bernardo[3], advogo a tese de que o fascismo não é um desvio que se aproveita de fragilidades do liberalismo em momentos de crise, e sim o contrário: quando o disfarce liberal mostra seus limites em conter a rebelião das massas e garantir as taxas de lucro, o capitalismo se vê forçado a se apresentar em sua essência, retomando suas raízes ocidentais de submissão, colonização e dilapidação do mundo e de povos tidos por inferiores; o sistema europeu de produção de hierarquias e produção de desigualdades, mundializado desde o século XV, ao menos; ou seja, a necropolítica identificada com o fascismo é iminente à expansão europeia/Ocidental e ao desenvolvimento capitalismo. Por conta disso - da essência destrutiva do capitalismo e da afinidade entre o capitalismo e o desenvolvimento da técnica sob sua égide -, as formas fascistas e neofascistas de socialização, de debate, de enfrentamento agonizante (e não agonístico) na ágora, vão sendo disseminados de um modo que soa natural - por aproximações sucessivas, como disse - até que, sem que se perceba, estamos reproduzindo essas formas de sociabilidade e de visão do mundo - como o punitivismo, por exemplo -, e o debate vai sendo rebaixado a dicotomias simplórias e soluções mágicas, que temos dificuldade para complexificar e reverter. Não por acaso, “costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror”[4]. Isso nos exige atenção e autocrítica permanentes, de modo a garantir que não acabemos, na ânsia de tentar estabelecer algum debate e desmascarar ações mais evidentes do fascismo, por reproduzir os pressupostos daquilo que combatemos - uma coisa é buscar instrumentalizar as técnicas de comunicação já desenvolvidas pela extrema-direita, outra é utilizar suas técnicas de manipulação.

Digo isso porque foi com assombro que li na edição de abril do Le Monde Diplomatique Brasil o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", da jornalista Ariane Denoyel.

Pelo livro que a autora do artigo escreveu - Geração Zumbi, investigação sobre o escândalo dos antidepressivos -, percebe-se que é alguém que tem familiaridade com o tema da produção de doenças para venda de remédios. Contudo, uma coisa é uma “epidemia” de depressão, cujo diagnóstico é bastante impreciso e manipulável[5], outra um caso em que o diagnóstico da doença depende de um teste preciso - uma amostra coletada reagir positivamente ao COVID-19 -, e que matou milhões de pessoas em todo o mundo, em um curto espaço de tempo (ainda que o número exato possa ser questionado, como a autora faz).

O artigo em questão me pareceu muito estranho na sua estrutura e recursos retóricos, por se utilizar de muitos elementos de fake news. Isso já seria problemático, mas o fato de ir de encontro com muito do que a extrema-direita mundial propagou desde 2020, me fez parecer um cavalo de Tróia que conseguiram pôr dentro da revista.

É evidente que ao texto subjaz um viés de confirmação da sua tese. Tese que tem como um de seus pressupostos o de que as grandes corporações não possuem restrições éticas na sua busca pelo lucro. Pressuposto compartilhado por muitos leitores do Diplô (este escriba incluído), e que se lerem o artigo sem a devida atenção podem ser “capturados” pelo raciocínio lacunar mas de fácil entendimento, induzidos a concordar com premissas falhas (por aproximações sucessivas?), até se chegar a uma conclusão que até agora não possui lastro na realidade empírica, ao menos não na forma radical como foi posto pela autora: de que as vacinas foram aprovadas apenas para lucro rápido das empresas farmacêuticas, que se utilizaram com sucesso de todo tipo de fraude e suborno dos órgãos de controle estatais e mundiais para impor seus interesses, à custa da segurança da população e calando todo e qualquer questionamento sobre sua eficácia e mesmo sobre sua necessidade.

É basicamente a mesma tese das teorias das conspirações dos antivax da extrema-direita, mudando apenas o beneficiado da fraude - sai a dominação chinesa, entra a das grandes corporações. Inclusive propõe a mesma saída: se vacina quem quer, ignorando que saúde pública deve ser feita de modo público e não como compras num site de e-commerce com a liberdade absoluta sobre si do homo-oeconomicus; que vacinação só tem efetividade se feita coletivamente, dentro de uma política ampla, para além de (pretensas) escolhas individuais.

A forma como é construído o texto, cheio de nomes de indivíduos solitários lutando contra a OMS, a FDA, a NIH, a ANSM, as grandes corporações capitalistas e sei lá quem mais, é outro ponto que reforça a suspeita de estratégia de manipulação. As citações de artigos científicos sem apresentar uma contestação a eles feitos dão um verniz de sério, mas não sustentam nenhuma delas: todas essas contestações teriam sido validadas pelas revistas e ninguém, nem um mísero cientista foi capaz de as contestar, pôr em dúvida, refutar?! Assim sendo, por que esses gênios não ganharam o Nobel, então? Ah, talvez porque foram “contra o Sistema”, em que ONU, OMS, governos, mídia, todo mundo está na mesma conspiração para vender vacinas e ficar rico destruindo a saúde da população[6]... A própria jornalista não se deu ao trabalho de plantar um “cientista”, que fosse, fazendo o outro lado das acusações - isso não seria o básico do jornalismo, mesmo de opinião, ao tratar de um caso dessa gravidade?

É muito estranho que o artigo levante suspeitas sobre o cuidado em divulgar casos adversos da vacina, ignorando com uma solenidade gritante todo o contexto da época, das campanhas massivas em nível mundial dos antivacinas e anticiência. Se o Brasil foi um caso modelo desse tipo de desinformação, com respaldo presidencial, a França da autora, onde protestos contra a vacina reuniram mais de 200 mil pessoas[7], não estava imune a esse tipo de ação de guerra híbrida. Este trecho aqui, por exemplo, parece ter saído direto de uma live do Bolsonaro: "O órgão também descarta sistematicamente efeitos que não aparecem na literatura científica, mas nós não temos distanciamento suficiente dessas vacinas para excluir qualquer causalidade"[8]. Basicamente um "‘Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz’. Não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem"[9] de alguém que sabe manejar o vocabulário com algum refinamento - só faltou defender a cloroquina, porque o discurso negando a ciência está ali presente, apresentando o método científico como regras forjadas para descartar aquilo que não é do interesse dos poderosos, por mais que as evidências fossem visíveis no “mundo real”.

Que haja contestações às vacinas contra a Covid e à forma como foram desenvolvidas dentro do meio científico, não duvido - afinal, estamos falando de ciência, não de religião. Contudo, esse tipo de debate é muito mais complexo e profundo do que foi apresentado pela autora - constrangedoramente rasa em todo artigo, como sói a todo texto de manipulação.

Por fim, o artigo termina falando da "autocensura dos jornalistas"[10] sobre os efeitos adversos das vacinas. Esse é o recurso básico elementar de qualquer fake news. Sim, artigos sérios também podem apontar esse ponto (e há vários no Diplô, que não coloco em suspeita), mas toda a construção da Ariane Denoyel é arquetípica de fake news, neste ponto ela apenas alterou a ordem do chamariz, tirando do início e colocando no final, para coroar toda a linha de raciocínio que construiu anteriormente - um exercício retórico bem reconhecível.

Não sou da área, logo, pode ser que a autora tenha razão em sua tese; entretanto, a estrutura do texto o desqualifica para um debate sério, dada toda sua construção falha, como assinalei acima. O pior, contudo, é esse reforço à forma neofascista de se relacionar com notícias (e com a ciência) e como, muitas vezes, acabamos por ser capturados por ela.

Estejamos atentos e vigilantes, sempre!


25 de maio de 2023


[1] LEIRNER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas e Política em uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2]DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[3]BERNARDO, João. Labirintos do fascismo (cinco volumes). São Paulo: Hedra, 2022.

[4]GORTE-DALMORO, D. “O Fascismo se enfia pelas frestas”. Jornal GGN, 03 de junho de 2017. https://bit.ly/3OeItUo

[5]Com isto não nego a existência da depressão ou outras doenças psiquiátricas, mas o quanto são tratados como casos clínicos necessário de intervenção farmacológica casos que definitivamente não o são, e poderiam ser resolvidos de modo mais efetivo e menos custoso de outras formas, com outras técnicas.

[6]Confesso que senti falta do Foro de São Paulo no artigo.

[7]“215.000 franceses protestam contra a vacinação obrigatória e o certificado covid-19 pela quinta semana seguida”. El País, 14 de agosto de 2021. https://bit.ly/434myUk

[8]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", grifo meu.

[9]“Bolsonaro se embaralha ao defender uso da hidroxicloroquina contra covid-19”. Poder 360, 16 de julho de 2020. https://bit.ly/3WdLp5F

[10]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança


PS: Texto escrito para a pedido da revista (após um e-mail mais sucinto), mas que não foi publicado.