Mostrar mensagens com a etiqueta [saudades feitas de afetos]. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta [saudades feitas de afetos]. Mostrar todas as mensagens

domingo, 13 de novembro de 2016

Um ano [saudades feitas de afetos]

Hoje fez um ano. Era para ter sido ontem, talvez anteontem. Adiamos, não por esperança de um milagre impossível, ou por uma moral cristã-iluminista que preserva a vida a qualquer custo - da própria humanidade, inclusive. Sofria, pedimos sedativos, mas o médico não havia prescrito: só se autorizássemos a UTI. Depois de três dias em que deparei com meu maior pesadelo - não ser reconhecido pelo meu pai, carente de razão - o medo daquele sofrimento inútil se arrastar por sabe-se lá quantos dias. Durou dois, quinta e sexta, quando era pouco mais que um corpo sustentado por uma sinfonia mecânica, incapaz de sentir dor ou o que fosse - melhor assim. Lembro de sexta à tarde, eu vestia camiseta do MST por baixo do paramento todo da UTI, e pouco via por conta das lágrimas, enquanto eu e mãe pedíamos para que partisse - eu me perguntava: por que toda essa merda? Pouco antes da meia noite, eu e Phah assistíamos apáticos ao jogo entre Brasil e Argentina, enquanto pipocavam notícias sobre ataques terroristas na França - mãe já havia ido dormir -, quando ligaram no seu celular - único telefone que registrado em sua ficha. Estranhamos. Atendi na segunda vez que ligaram. Acabava. Numa sexta, para não atrapalhar a semana útil - ele, que teimava em nunca parar. Um mês antes havia, no hospital, finalmente, entendido que férias eram importantes - não pôde aproveitar da sua descoberta. Não como gostaríamos que aproveitasse. Não foi ontem, nem anteontem. Eu gostaria que ainda não fosse, mas reconheço que poderia ter sido há mais tempo, se ele não tivesse sido um exemplo de afirmação da vida, se tivesse sucumbido ao medo quando soube do diagnóstico. Foi hoje, treze de novembro, que fez um ano. Em Pato fazia sol e calor. Em Sampa, chuva e frio. Mãe mexeu no jardim. Phah fez concurso. Eu pouco fiz - muito lembrei, da piada do pintinho aos elogios um pouco sem jeitos no Trezenhum e na Muda. Era dia de GP de Interlagos. Daqui quatro meses fará vinte anos de nossa primeira viagem de avião, na volta do GP de Interlagos de 1997. Saímos antes, para fugir do trânsito e da chuva, a tempo de chegar no aeroporto - eram as águas de março. Não pude conversar com você sobre a prova, depois - ou mesmo antes, para avisar que aqui chovia e a corrida poderia ser caótica. Natália mexe em minha barbicha, cultivada desde o dia onze de novembro do ano passado - foi onde você fez seu último agrado. Barbudão, disse dia oito, ao ser questionado pela mãe se me reconhecia. Nesses dois dias havia alegria no seu olhar ao me ver. Não sei no meu o que você viu. Choque no dia oito, tímida alegria no dia onze - talvez. Isto que escrevo, você não vai ler, para comentar depois, ao telefone - Dani, andei lendo sua última crônica... Em certas situações, não faz sentido medir o ano conforme as rotações dos dias e das estações. Não fez um ano hoje.

13 de novembro de 2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Percursos transitórios, tempos percorridos [Diálogos com a dança] [saudades feitas de afetos]

"Que demora pra começar", reclama a mulher atrás de mim, que demora para perceber que o espetáculo Percursos Transitórios, com Zélia Monteiro, já havia começado. Talvez a espectadora não fosse acostumada à dança contemporânea; contudo, antes disso, penso que todos nós andamos com dificuldades para perceber o começo e o fim dos eventos, quando eles não se dão por alguma convenção bem arraigada ou por alguma descarga espetacular de choque. Isso implica em muitas vezes não percebermos sequer o evento. Temos pressa - para tudo. E parafraseando Caiero: o mundo não se fez para apressarmos nele (apressar é estar doente dos olhos). O fruir da arte, muitas vezes, exige o abandono dessa pressa - para que possamos nos irmanar do seu fluir. Percursos transitórios tem seu tempo, feito de sutilezas e paciências. É um tempo estranho, que não é lento, mas é vagaroso. Seu discurso também é tecido vagarosamente, por trás do tule transparente que torna a luz e seus movimentos visíveis - às vezes mais que a própria artista. Melhor: luz que permite que o espetáculo seja visto e que algumas vezes toma toda a visibilidade da cena, impedindo que se veja qualquer coisa além da própria luz: a mesma fonte que revela, re-vela. 
No fluir e no meu fruir da apresentação, havia já desistido de tentar estabelecer qualquer diálogo mais racional com a obra, quando ela transitou para outro registro, numa simples mudança de luz. Notei então que, a exemplo da minha colega de platéia, eu tinha pressa - "que demora para eu entender", eu poderia ter reclamado. Por sorte, há muito sei que uma obra, um espetáculo pode ser aproveitado mesmo que não se compreenda - ainda que isso possa implicar num empobrecimento com aquilo que tal obra carrega (minha relação com a música de concerto vai nessa linha). Nessa variância da luz, o corpo de Zélia ganhou outra textura, rugosidades da pele despontaram, contornos dos músculos se destacaram, tornaram visíveis os efeitos dos anos - e dos treinos. É então que noto o quanto o percurso ali apresentado fala não só de um trajeto como também do tempo, essa coisa que não cabe nos relógios e nos calendários, que corpos denunciam, mas não contam tudo. Na sala está uma professora da PUC - eu fazia uma disciplina dela como ouvinte, ano passado, quando tive que largar as aulas. Isso faz mais seis meses, e eu juro que foi semana passada. Me dou conta que os amigos de quem sinto falta de notícias estão há seis meses eles também esperando resposta às últimas mensagens que me enviaram. Está na sala também minha professora de dança - faz dois anos e meio que tenho aulas com ela, e não seis meses, como sinto. Faz sete meses que não sei mais para quem escrevo - desde que perdi meu pai. Por um ano e meio escrevi à espera de uma resposta impossível da minha melhor amiga. Isso é muito ou pouco tempo? Eu deveria dizer que muito, afinal, é o que aponta o calendário, é o que cobra a sociedade. Não é, entretanto, como sinto - apesar das recriminações que já sofri por ser tão lento e paquidérmico. No palco, Zélia segue na apresentação de seu percurso transitório, provisório, fugaz - feito de referências muitas em muitos anos como artista -, que ocupa dilatados cinqüenta minutos que passam rápidos em meio a gestos lentos. Fico a me perguntar como Zélia não sente o tempo de cada um desses trajetos - o da sua vida, o dessa obra, o dessa apresentação -, qual deles terá durado mais?

23 de junho de 2016

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Duas perdas, um livro, Joaquim [memórias feitas de saudades] [saudades feitas de afetos]

Sonhei alguma coisa hoje, não sei o que. Lembrava quando acordei para ir ao banheiro, sete da manhã - esqueci ao voltar a dormir. (Talvez devesse ter escrito). Não sei sequer se foi um sonho bom ou ruim - não havia esse retrogosto do inconsciente, que não raro é tudo o que me sobra dos embalos de Morfeu. Acordei indiferente - no embotamento dos dias que a vida tem me imposto, como recurso para viver sem capitular. Não lamento, sei que é passageiro, sei que é da vida, mas dói ausências tamanhas: quando finalmente conseguia recompor as cores perdidas com a sua partida, uma nova perda - ainda maior - empalidece tudo ao meu redor. Não tenho mais duas das pessoas mais queridas - e além do mais, meus maiores leitores, você e meu pai. (E escrever, desde então, se parece ainda mais à condenação de Sísifo, que cumpro não só por ser obrigado, mas por não vislumbrar outra alternativa para seguir vivo). Cheguei a pensar que havia sonhado contigo, por estar hoje pensando em você mais que de costume. Logo vi que era besteira: penso em você todos os dias, ainda mais nestes em que me vejo em pontos críticos da vida. Faz falta sua presença, um abraço seu; faz falta também as muitas conversas com meu pai, sobre política e sobre a vida - hoje vi que a forma como às vezes chamo Mafalda e Guile é tal qual meu pai chamava as cachorras de casa (sua Pitocuda, dado o pitoco de rabo que deixaram na Tandi). O que me faz pensar mais em você hoje não foi sonho algum, é o amanhã - dia 25 de fevereiro de 2016, uma data sem maiores significados até 2015. Amanhã talvez eu conheça, finalmente, Joaquim. Joaquim era seu colega-amigo que você lamentava ter nascido uma geração depois, pois queria ele para seu marido. Joaquim foi também o protagonista do primeiro sonho em que sonhei sua ausência - numa mistura de personagens que povoavam suas histórias e minha imaginação -, dez dias depois daquele dia em que permaneço esperando seu retorno à casa 128, na Penha. Era o fim de um mundo tal como eu conhecia (e eu não me sentia bem) - como tampouco me senti bem com o fim de toda uma via láctea da minha existência, em novembro. (E me pergunto agora: quem vai ler isto tão logo eu publique e fazer eventuais correções de português ou apontar trechos confusos num email direto e carinhoso?). Entretanto, o fim do mundo, descubro, não é a extinção de tudo, o nada - é um renascer confuso, que é acompanhado de outras perdas e novidades insondáveis até então. Conhecer Joaquim de carne e osso, nunca tinha me passado pela cabeça - ele era um personagem seu, que coloria seus dias e animava os meus por tabela. Pelo Fake, ele falou que tentaria aparecer no lançamento do livro com minhas crônicas em diálogo com você. Meu primeiro livro, por conta da minha procrastinação crônica não será Passageiro. Diário de João, e sim [memórias feitas de saudades]. De algum modo estou contente em lançá-lo, de iniciar esta nova fase com uma homenagem à você - por mais que a matéria com que foi feito ainda faça doer meu peito. Olho para aquele mundo que não existe mais, percebo o quanto ainda respiro dele (e, sim, me sinto bem). Amanhã conhecerei Joaquim e este texto não entrará no livro: porque nele não coube tudo o que você significou para mim.
(Que meu pai tenha te dado o abraço que pedi).

24 de fevereiro de 2016.


PS: sobre o lançamento: http://j.mp/livromfs

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 de dezembro de 2015, no hospital [saudades feitas de afetos]

Sinto o choro ganhar força. Começo a pensar nesta crônica para afogar as lágrimas - funciona. A dor que me traz ao hospital não é para tanto - mas a dor que o hospital me traz, essa, sim, é enorme. Cogito pedir pedaço de papel e caneta à atendente, mas desisto: sou o próximo. Foi enquanto esperava ser chamado, olhando pela porta para o pronto-socorro deixada aberta: vi um homem ser levado numa maca por uma porta, devia ser uma sala; dela saía o pi pi pi pi de alguma máquina - talvez de uma "bomba". O barulho me fez voltar cinqüenta dias no tempo, numa sala do pronto-socorro do outro hospital da cidade, na qual meu pai esperava por uma vaga na uti. Eram várias máquinas a apitar, em ritmos, alturas e intensidades diferentes. Numa das telas que circundavam-no, gráficos estranhos se repetiam a intervalos regulares - para minha ignorância aquilo poderia ser o sinal emitido da estrela Vega, no livro Contato, do Carl Sagan (lembro do meu pai chegar esfuziante do cinema, agradecendo por eu ter indicado o filme, isso no século passado). O que mais me marcou (e machucou), entretanto, foi aquela estranha sinfonia dos aparelhos - algo meio Tarkovski, meio Fritz Lange. Talvez para muitos aquilo seja um último ribombar da esperança, o som o que antecipa a cura inesperada. Para mim, foi a continuação de uma vida que não mais se sustentava, de uma situação que só um verdadeiro (e impossível) milagre - como o nascer espontaneamente um braço num maneta, como o exemplo-desafio que tantas vezes ouvi - reverteria. Meu pai. Tinha planos para quando retomasse a vida normal. Junto com o otimismo quanto a sua recuperação, eu temia que nosso ano novo fosse no hospital, esperando pela reação do seu organismo. Apesar da demora, acreditava que se recuperaria, como recuperado ficou nas outras duas vezes, operado nesse hospital que agora eu esperava resolver um problema ridículo (e me recordo da virada para 2013, quando pouco antes da meia-noite eu havia matado um aranha marrom em meu braço, sem saber se havia me picado ou não. De madrugada acordo com meu pai em meu quarto, iluminando meu braço com uma lanterna, "só para conferir se a aranha não te picou mesmo"). Nas duas vezes saiu cansado, fraco fisicamente, mas revigorado na vida - por que não foi assim desta vez? O futuro do pretérito me toma: e se ele tivesse feito a terceira cirurgia aqui, ou a segunda no outro hospital? No futuro do pretérito tudo é possível; no presente, o que tenho são lembranças, a sensação dos móveis de minha casa de Pato estarem todos com três pernas, ao invés de quatro, e uma unha encravada na mão direita. O som pára, pouco depois a enfermeira me chama. Diante do meu problema, sequer chega a medir minha pressão. Faltam menos de doze horas para 2015 acabar. A comemoração será como sempre: em casa, de pijama, estourando um espumante e indo dormir assim que os fogueteiros permitam. Falta, entretanto, a quarta pessoa das viradas anteriores. Minha mãe reclama que meu pai não deveria ter ido tão cedo. Concordo. Desconfio que ele também. Mas quando notou que estava em suas últimas horas de vida, se despediu sereno: sabia que a hora de partir não é nem cedo nem tarde, é tão-somente a hora. 2015 termina, mas deixa uma marca indelével feita de vazio.


31 de dezembro de 2015

domingo, 29 de novembro de 2015

E agora, escrever para quem? [saudades feitas de afetos]

Como acontece muitas vezes, não precisei pensar na crônica: ela quem surgiu espontaneamente (era sobre a entrevista do secretário de educação de São Paulo). Tendo identificado os pontos de ancoragem da argumentação, abri o Open Office e, diante do branco da tela, meu trabalho era conseguir que os pensamentos mantivessem a velocidade dos dedos, que passeavam rápida e familiarmente pelo teclado. Findo o primeiro parágrado, como se estivesse em uma encruzilhada, precisei decidir a ordem da exposição, o impacto e os desdobramentos de cada argumento. Foi então que estanquei: ao pensar no meu interlocutor ideal, me veio a constatação de que eu já não possuía meu principal leitor - ele, que seguidamente usava minhas crônicas de gancho nas conversas, seja para complementar, para acrescentar ou para contestar pontos específicos. Nosso espectro de concordância era grande, e o respeito nos pontos dissonantes também: ele devia me achar muito moderado, eu o achava muito radical, pouco atento às forças envolvidas nos embates políticos. De qualquer forma, estávamos numa esquerda bem longe do centro e a prudente distância de extremismos apedeutas. Ali, diante do primeiro parágrafo escrito e com o resto da análise apenas precisando de meus dedos, me perguntei por que eu escrevia, para quem eu escrevia. Dos porquês, dois deles eu tenho muito claro desde longa data: porque gosto e porque me ajuda a organizar e entender o mundo que me cerca - social como interno e afetivo. O para quem me soou uma pergunta que eu nunca havia me posto. Não era para mim, que os textos escritos para mim eu nunca publico. Me lembrei de uma conversa com uma antiga terapeuta. Eu apanhava para conseguir escrever o texto de qualificação do mestrado, basicamente por conta de preocupações formais excessivas: eu fazia uma leitura quase estruturalista d'A Sociedade do Espetáculo; e tinha como objetivo escrever a dissertação o mais rigorosa possível, mas numa linguagem que meu pai fosse capaz de ler e entender (e não se entediar). A terapeuta não entendeu por quê meu pai, achou que era qualquer coisa psicanalítica, de filho dependendo da aprovação do pai. Precisei me explicar: meu pai não possuía curso superior, não tinha um conhecimento especializado (academicamente falando), mas muita leitura, vasto campo de interesse, e uma cultura geral bem acima da média (academicamente falando também). Eu poderia escrever uma dissertação hermética difícil árida que a banca (Peter Pal Pélbart, Jeanne Marie Gagnebin e Vladimir Safatle) compreenderia sem qualquer dificuldade; mas preferia alcançar um público mais amplo, ainda que qualificado, que não necessitasse de simplificações dos conceitos, apenas um texto minimamente aprazível à leitura, talvez uma ou outra explicação mais detalhada de pontos mais complexos. Meu pai foi o representante imaginário desse público - para minha dissertação e para a grande maioria das minhas crônicas. Isso não quer dizer que eu escrevia para ele, escrevia para o mundo - mas um mundo ideal feito de Dejanirs. Não apenas isso: ele era de fato meu leitor e interlocutor privilegiado - ou talvez eu fosse o escritor e interlocutor privilegiado dele. E agora, o que fazer? Eu sabia como seguir com a crônica, mas ao pé daquele primeiro parágrafo, a ausência dele fez com que perdesse o sentido continuar a escrever. Escrever para quem? Lembrei que todo meu interesse por política era clara influência dele - assim como minha vontade de saber sobre tudo (ou quase) e meu apetite por livros. Na ausência de quem, achei um novo quê para justificar minha crônica - e as vindouras. Como homenagem: não tenho mais sua interlocução, porém ainda posso mostrar ao mundo parte da herança que ele me deixou.


29 de novembro de 2015.