sábado, 27 de junho de 2015

Boechat contra Malafaia: por que o jornalista não falou tudo?

Alguns dias atrás, o jornalista Ricardo Boechat, em seu programa radiofônico matinal, mandou o pastor Silas Malafaia buscar rola, causando razoável frisson nas redes sociais, e proporcionando certo regozijo entre aqueles que abominam as posições defendidas pelos Arautos do Ódio, como o pastor. Contudo, para além desse pequeno gozo de vingança, de que serviu, qual a profundidade do desabafo de Boechat?
Escuto-o com alguma freqüência no rádio, visto que os comentaristas da rádio concorrente são intragáveis (ouvir Sardenberg, Jabor, Leitão, Madureira logo de manhã acaba com qualquer dia, e nem cito a excrescência que ocupa uma faixa do dial do rádio). Com tempo de sobra e liberdade além do que dá conta, Boechat seletivamente abusa de uma indignação moralista - bem ao gosto da classe-média diplomada e burra. Sua resposta a Malafaia é apenas estardalhaço muito com questão pouca - para não ter que cutucar onde realmente importa. Boechat abusa de adjetivos indelicados - "otário", "pilantra", "idiota" -, de chavões que não fazem ninguém repensar sua posição - "você é um charlatão, cara, que usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fieis" -, e de um quê de valentão que chama o bandido pra briga. Isso acrescentou algo ao debate? Alguns memes daqueles que repudiam as posições do pastor, desconfio que palavras de indignação contra o jornalista entre aqueles que seguem e aplaudem o referido Arauto do Ódio. E o que mais? Mais nada. Boechat poderia mais - quero crer.
Primeiro, Boechat poderia mostrar que para discutir com um troglodita não é preciso se equiparar a um - assim como para combater a violência não é preciso apelar para a violência (ou então estaremos fazendo como o governador de São Paulo, e legitimando assassinatos extra-judiciais). Ao simplesmente recusar "palanque" ao pastor, Boechat dá a ele o argumento de fugir do debate, de recusa do contraditório, de intolerância. E é aqui que o jornalista poderia bater não só no pastor, mas em quem o dá guarida.
Pois Boechat poderia argumentar que não dará espaço para Malafaia porque ele, assim como a corja dos Arautos do Ódio, já possui espaço (e tempo) mais que suficiente para suas pregações, tempo e espaço que vão muito além do púlpito. Tomemos como exemplo aleatório o Grupo Bandeirantes de Comunicação. Trata-se do grupo que comanda tanto a rádio que Boechat é empregado, quanto a emissora de televisão na qual ele apresenta o telejornal noturno. É do Grupo Bandeirantes a concessão pública de um outro canal, chamado Rede 21. Diz o Código Brasileiro de Telecomunicações que uma detentora desse tipo de concessão pública não pode ter mais que 25% do seu horário negociado - seis horas, portanto. Não é o que faz o chefe de Boechat, que aluga quase que a integralidade da grade da Rede 21 para igreja evangélica - atualmente a Igreja Universal, do bispo Macedo.
Mas fiquemos na emissora principal do grupo, a Band. Confiro a grade de programação de sábado [http://naofo.de/5dhl]. Há nela uma hora - do meio-dia à uma - reservada para um programa chamado "Vitória em Cristo", comandado pelo pastor Silas Malafaia - vejam só, que coincidência! (Há ainda duas horas para outras religiões, além de duas horas de "infomerciais"). Aqui, penso, fica claro o quanto Boechat ladra conforme manda o dono. Por que, junto com a crítica de que Malafaia "usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fiéis", ele não criticou também os Saad, que tomam dinheiro de quem usa o nome de deus para tomar dinheiro dos fiéis? Por que ele - assim como a vinheta da Rádio Bandeirantes contra rádios piratas - não defende a prisão de seus chefes, por serem contraventores penais? Talvez Boechat acredite no provérbio de que "ladrão que rouba ladrão" não é ladrão, mesmo agindo em desacordo com a lei (em vários aspectos) - o bom e velho "dois pesos, duas medidas". De onde Boechat acha que vem o dinheiro que paga seu salário, com o qual ele adquire seus bens, seu patrimônio? Se não chega diretamente das mãos dos fiéis, como no caso do pastor Malafaia e congêneres, sai das mesmas mãos, desses fiéis incautos, passa pelas mãos dos exploradores da fé alheia, das mãos destes vai para as da família Saad, e da dos chefes chega até sua conta. Mas dos donos Boechat não fala - nem ele nem qualquer outro jornalista da Grande Imprensa. Seria ele uma versão modernex do explorador da fé alheia?
Mandar Malafaia buscar rola é diversionismo para ocultar as verdadeiras questões, aquelas que geram Malafaias, Boechats, Saads e uma massa de crentes - da igreja ou da imprensa - que aceitam e acreditam passivamente em tudo o que os pastores, os jornalistas, os "formadores de opinião", os donos da Grande Imprensa falam.
27 de junho de 2015.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Uma semana fora

Tendo passado uma semana fora, imaginava uma recepção mais festiva de meus gatos ao adentrar novamente em casa. Que nada! Faltou pouco para eu achar que eles sequer me reconheciam. Imaginava que ao menos Mafalda ficaria miando com a cara de quem sofreu todas as dores do mundo, como sói fazer quando volto para casa, no fim do dia, ou me tranco no quarto, de madrugada, e deixo "somente" a sala para os dois. Miou um pouco, assim como o Guile, quase como a dizer "ah, é você", e foram brincar. Tratei de ver pelo lado bom: sinal de que não passaram necessidades - como atestavam os potes de comida e de água ainda cheios -, e que Djalma, escalado para cuidar dos peludos, tratou-os bem - se eu fosse ciumento, talvez achasse que havia tratado bem até demais. Ao dar uma vistoriada no lar, ver se estava em devida ordem, notei que os dois se aproveitaram de minha ausência: não apenas subiram no armário que tento mantê-los longe, como se seviram do papel toalha que estava nele; as plantas fora do lugar que eu havia deixado denunciavam que também tinham caído vítimas da dupla, lascas de um candelabro de pedra-sabão mineiro se misturavam aos brinquedos que eu havia oferecido antes de partir, como luvas e potes de remédios e de balas; algumas pilhas de livros estavam desfeitas; no banheiro, um bom tanto do rolo de papel higiênico estava espalhado pelo chão, pela lavadora, pela caixa de areia; outro tanto ainda estava no rolo, mas devidamente desfiado. Ou seja, tocaram o terror no lar. Ao menos não se rebelaram contra a caixa de areia - fiz questão de olhar pelo lado positivo. Mais tarde me surpreenderia com o fato de os adesivos da parede estarem todos lá - todos os que eles haviam poupado antes de eu partir. Com o passar do dia, fomos nos enturmando novamente, e antes do anoitecer estávamos nas nossas já conhecidas disputas e dança das cadeiras - somos três irriquietos, quando dois parecem sossegar, o terceiro quer se levantar ou quer se ajuntar ou qualquer coisa que impeça que fiquemos mais que quinze minutos parados. À noite, a forma como se achegaram em minha cama, reclamando um canto junto à cabeceira, fingindo não reparar que eu os punha ou nos pés, ou fora da cama, mostrou que, por despeito pelo meu abandono ou esquecimento rápido, não respeitariam tão tranqüilamente os limites impostos. Para piorar: Guile, que sempre se deitava nos pés da cama, sem me incomodar, passou a imitar Mafalda, e querer dormir no meu peito - isso, claro, depois de longo vai e vem dos dois, sempre passando por cima de mim. Sem o hábito de dividir cama, não consegui dormir (se levo mais que dez minutos considero insônia). Com preguiça de pôr a caixa de areia na sala, dou o braço a torcer, pego um cobertor e o travesseiro, e vou dormir na sala. Em pouco tempo sinto estar me irmanando de Hipnos. É quando ouço um chamado não de Morfeu, mas de Mafalda, enquanto Guile, sem cerimônias, tenta achar um canto no travesseiro. Viro pro outro lado, ele reclama, eu também.

25 de junho de 2015


sexta-feira, 19 de junho de 2015

Bola fora, bola dentro

Sem nunca ter feito uma enquete entre conhecidos, nem lido alguma pesquisa pseudo-científica no site de tranqueiras do Dimenstein, acredito que a maioria das pessoas dê mais bolas-fora do que bolas-dentro, pela razão simples de que é mais fácil desagradar e falar mal que o inverso. Assim sendo, imagino ser parte da maioria – inclusive um pouco acima da média, por ser um tagarela. E com toda essa prática, fui me escolando na arte de bolas-fora, ou melhor, de como não piorar a situação: aprendi a nunca tentar desconversar, “não era bem isso que eu queria dizer”. Ah, não? Então por que disse? “É... veja bem...”. Veja bem nada! Prefiro reafirmar e tentar suavizar a frase mais impactante recém-dita. Lembro de quando conversava com uma amiga, início do século, sobre as negociações iniciadas pelo Brizola, para fundir o PDT com o PTB: "Mas antes tem que limpar o PTB daquela catrefada", ao que minha amiga me lembrou que seu pai era do PTB. Ui! Não foi isso que eu quis dizer? Foi sim, por isso disse! E agora, José? Pensei rápido: "Pois, então, você sabe melhor do que eu que o PTB tem muita gente que não vale", "sim, mas isso qualquer partido tem", "sim... mas o PTB tem uns de um nível que não se encontra no PDT", "é... verdade", deu ela o braço a torcer, talvez não de toda convencida, mas não de toda ofendida, pelo menos.
E me dou conta enquanto escrevo esta crônica: pelo tanto que sou tagarela, também deveria dar mais bolas-dentro que a maioria das pessoas. Isso, contudo, não me sói acontecer. Talvez porque antes de bola-fora ou bola-dentro, eu tenho a impressionante capacidade de errar o pé da bola – nestas questões até mais que no futebol (por sinal, aceito convite para jogar bola, se for algo mais suave, em que pernas-de-pau são aceitos e correm o risco de ser um dos melhores em campo). É... talvez pior que bolas-fora é errar a bola. Tenho exemplos que só não me deprimem porque levo pro anedótico – principalmente em bolas levantadas por mulheres. Enfim. Contava a uma amiga, depois de assistirmos à peça Oe, do Eduardo Okamoto (recomendo muito!), da vez que voltava de São Paulo, onde fazia o mestrado, para Campinas, onde morava, de carona com uma aluna de ciências sociais, a Dani – que, apesar de colega de curso, eu desconhecia. O papo fluía bem, interessante, ela, super gente fina. Em algum momento, encetamos uma conversa amarga sobre a Unicamp - a essa altura eu já estava super saturado daquela Terra do Nunca. Ela contou de como se desiludira do movimento estudantil tão logo entrara, ao dizer que não iria comparecer a uma assembléia por ter que trabalhar (afinal, precisava ajudar a fechar as contas de casa), e foi chamada de “burguesinha” por um desses alunos que ganham tranqüila mesada dos pais (nada contra), são "de esquerda" (nada contra ou incompatível) e, mais que isso, se crêem proletários marxistas porque leram o Manifesto Comunista (ou estão lendo), porque os amigos (também marxistas) os chamam assim e porque sonham com um mundo mais justo, onde haja playstation e sucrilhos para todos. Logo adentramos (eu adentrei) no assunto Instituto de Artes, e falei com minha tradicional ênfase da profunda indignação com a qualidade das montagens que os alunos apresentavam - via de regra rasas e apelativas, ou adaptações muito mal feitas de grandes obras (por não conseguirem montar um Beckett, um Pirandello, um Tchekov “quadradinho” e aí apelarem para invencionices?). Eu segui com minha verborragia contra o curso, questionando como tinha acontecido de sair coisa boa daquilo, como a Boa Cia ou o Eduardo Okamoto. Sobre este, eu havia visto duas peças, Agora e na hora de nossa hora e Eldorado, e ficado impressionado com o trabalho de corpo (e de olhos) do ator. Fui falando, ela foi deixando eu falar. Foi só perto do fim da viagem que ela soltou um "que legal que você gostou!", e contou que era produtora e companheira dele (vulgo esposa). Fiquei um pouco encabulado, mas aliviado de ter pego carona com ela e não com alguém próximo, por exemplo, da professora do IA que montou As Rãs, do Aristófanes, como se fosse uma tragédia grega (merecedora, na época, de raivosa crítica deste escriba). Apesar de ter dado um bola-dentro, acostumado com bolas-fora, ainda tentei me justificar – é capaz de, pego despreparado, tenha até começado com “veja bem, não foi exatamente isso que eu quis dizer...”

19 de junho de 2015

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cinco seguranças do Metrô de São Paulo

Pouco depois da esquina da Albuquerque Lins com a praça Marechal Deodoro, cinco seguranças do Metrô cercam um homem. Um deles o segura pela blusa, como se fosse para deixá-lo pendurado; parece um gesto de desenho animado, mas não tem graça nenhuma - não para mim. Pessoas assistem à cena - bem próximo, um homem grava com o celular. Penso que a câmera evitará excessos de excessos - porque há claramente um excesso na abordagem, que não é assim encarado por eles, conforme a tranqüilidade que deixam transparecer. É pouco depois das dez e meia da noite. Estranho a abordagem na rua. Vejo tênis celular cigarro e outras pequenas coisas no chão - imagino ser um pequeno delinqüente. Mais próximo, reparo que há apenas um par de tênis e o homem está descalço, apenas um celular, uma carteira de cigarro - são seu objetos pessoais. Ele segue esvaziando sua mochila, um segurança segurando, os outros ao redor. Ao passar por eles, ouço um dos cinco dizer: "se você tem bilhete, então tem que estar em algum lugar". "Eu tenho, deixa eu achar", gagueja o homem. Tenho vontade de intervir e perguntar o que está acontecendo para aquela cena deplorável. Desisto: não sei quais meus direitos de cidadão (a plena publicidade de direitos e deveres como condição necessária para a democracia ainda é piada de mau gosto nestes Tristes Trópicos), não sei quem são os seguranças e não tenho mais meu contato quente dentro da companhia, que poderia descobrir quem eram eles na manhã do dia seguinte. Em compensação, sei de seguranças que cospem em moradores de rua, de segurança que agride colega no vestiário com o profundo argumento do agredido ser um "esquerdinha de merda", de segurança que lamenta não poder descer borrachada indiscriminadamente, como antigamente - até por medo de perder o emprego ao ser pego por uma câmera de segurança -, e agora se restringe a rezar para que algum careca dê uma lição nos homossexuais que se beijam no Metrô. Sim, sei que não são todos assim, espero que sejam uma minoria - mas os cinco que vejo me fazem lembrar desses exemplos nefastos (até dois mil e treze eu tinha histórias quase que diariamente dos meandros do Metrô - chefes, funcionários, seguranças, usuários). Os cinco seguranças do Metrô de São Paulo que humilham o homem na Lins de Albuquerque aparentam ter a minha idade, se tanto. Seriam meus colegas, se tudo tivesse corrido bem em agosto de dois mil e treze - talvez um deles tenha entrado justo na vaga aberta pela minha desistência. São cinco adultos jovens - minha geração -, brancos - talvez, como eu e muitos dos meus amigos branquelos, nunca tenham tomado uma geral da polícia militar por estar andando na rua à noite -, são meros seguranças de Metrô - não são policiais militares, não são seguranças particulares armados, como os que ficam nas redondezas Praça Toronto; não são seguranças de igreja evangélica, de quem não se espera outra atitude (ainda que haja). Eles estão, se escutei a verdadeira razão da cena, humilhando uma pessoa porque ela passou a catraca sem pagar - como se um, dez ou mil passageiros a menos por dia fosse fazer qualquer diferença no orçamento da empresa, que arrecada majoritariamente com publicidade. Certo, é seu emprego, e podem achar que é o correto cumprir seu dever com total diligência: mas eu questiono sé é preciso mesmo esse pretenso rigor - tolerância zero - contra alguém que não pagou o passe, enquanto nos subterrâneos eletrificados da cidade há homens que abusam de mulheres, pessoas que cometem pequenos furtos (um passe não faz diferença ao Metrô de São Paulo, mas cinqüenta reais podem ser a quebra do orçamento do mês de um trabalhador precarizado), assaltos a mão armada (um padre foi baleado na linha azul na semana da parada gay), grupos intolerantes que agridem pessoas por serem diferentes (já que os seguranças não podem mais)? "Pretenso rigor" porque ali não há rigor, porque rigor significa intransigência, e os cinco seguranças do Metrô de São Paulo transigem, transgridem todas as suas atribuições ao humilhar uma pessoa, dez e meia da noite, na rua - seria medo das câmeras de segurança? E ao humilharem uma pessoa, pouco importa o motivo: do quase nada que sei dos meus direitos, sei que o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988 garante "a dignidade da pessoa humana", sem condicionantes. Em tempo, não sei se era preciso comentar: o humilhado tinha dois antecedentes criminais: era preto e pobre.


18 de junho de 2015

Não custa lembrar que o exemplo e a legitimidade vêm de cima.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A transexual crucificada, os arautos do ódio e a disputa pela palavra cristã

Viviany Beleboni cutucou com vara curta os arautos do ódio - Viviany é a transexual que apareceu crucificada na décima nona parada GLBTS de São Paulo, no domingo, dia sete. A reação foi a esperada: “São pessoas que não tem respeito a ninguém; são pessoas que são preconceituosas, sim; são pessoas que são intolerantes, sim (...). Estou indignado aqui com o que aconteceu na Parada Gay de São Paulo. Estou indignado por terem pegado os símbolos da minha fé, que é a fé cristã, e exposto publicamente num ato de completa falta de respeito. Estou falando aqui de pessoas que acham que seu direito é maior do que o meu direito”, disse, em vídeo na internet, o pastor e deputado Marco Feliciano. Ele ainda pede a união dos arautos do ódio travestidos de pastores cristãos, sugere o boicote às empresas que patrocinam a Parada Gay - assim como um colega seu já havia pregado o boicote às marcas que tentam se associar a atos de amor e afeto entre pessoas -, e afirma que há um movimento de "cristofobia", e que deve ser combatido.
Os arautos do ódio não podem estar mais errados: o ato de Viviany foi de extremo reconhecimento de Cristo. Ninguém se põe em uma situação semelhante à de Cristo, humilhado na cruz, se não reconhece o poder dessa imagem, se não assume a profundidade da mensagem, se não compartilha dos princípios. Mesmo que não seja cristã - e tenho séria desconfiança de que seja -, Viviany assumiu que o cristianismo é importante, tem uma mensagem que não está sendo ouvida - muito menos seguida. Não há ali deboche nem provocação com os símbolos cristãos, Viviany encarna a si própria, e sua crucificação representa (e acusa) a violência que ela e as outras travestis e transexuais sofrem diariamente - muitas delas cristãs, tal qual Marco Feliciano se diz. Se Feliciano acha realmente um desrespeito o ato de Viviany, pode devolver na mesma moeda: se fantasiar de transex para desfilar na próxima Marcha pra Jesus. Por que ele não vai fazer isso? Porque seria reconhecer a importância dessa questão, desse discurso - e o que ele quer é a sua supressão total.
O que realmente perturba os arautos do ódio é que o grito-feito-imagem de Viviany desafia a palavra deles. Uma transexual crucificada é a afirmação de que a palavra de Cristo não se restringe ao que é dito por Malafaias, Felicianos, Hernandez (se é que Cristo em algum canto disse o que eles pregam): é um grito de intolerância e de despeito a toda palavra dogmática, a todos os que se pretendem donos da verdade. Um grito de não me calo diante de quem manda calar, de não baixo a cabeça diante de quem não me respeita, de não reconheço nesse seu Cristo o Cristo que é amor e morreu na cruz pela humanidade. Um grito de revolta contra as injustiças, como o de Cristo, na sua época, contra os romanos.
Nada mais ultrajante a um pastor que uma transexual - que ele recusaria como sujeito com direito à existência, se pudesse - dizer que a palavra dela tem tanto valor quanto a dele, que o direito dela é igual ao direito dele. Sim, Viviany-feita-à-imagem-e-semelhança-de-Cristo (como todos, conforme o princípio cristão) contesta a pretensa superioridade - civil, moral, intelectual, espiritual - que Feliciano e sua trupe se adjudicam, e essa igualdade soa como um desrespeito aos seus privilégios por serem brancos, cristãos, heterossexuais (sic).
Porém, melhor que um ateu falar é dar a palavra a um cristão que não pode ser posto em dúvida quanto à sua fé: “Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBTs que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abusos, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos de igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue, fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado” - eis o comentário do padre Julio Lancellotti sobre a polêmica da crucificação na Parada Gay.
O Cristo de Julio Lancellotti e Viviany Beleboni me representa!

12 de junho de 2015.
Verônica Bolina, outra vítima da intolerância dos cristofóbicos?
ps: sobre a "cristofobia", concordo que existe e acho que deve, sim, ser combatida: já é mais que a hora da Igreja Universal mandar sua milícia paramilitar lutar contra o Estado Islâmico, que já matou vários cristãos pelo simples fato de serem cristãos. Que levem seus líderes juntos - afinal, um verdadeiro líder deve estar à frente do seu exército.

ps2: ainda sobre "cristofobia", achei outra colocação do padre Julio Lancellotti: "A meu ver, sujeito a erro, Cristofobia é medo de amar os irmãos e irmãs, amar os inimigos como pediu Jesus Cristo, defender os pequenos, proscritos e evitados, amar os o que ninguém quer. Jesus caminhou no meio dos pobres e pecadores, os defendeu e nunca os condenou. Em Mt 25,31-46 Jesus identifica-se com os que sofrem. Amá-LO é ser semelhante a ele, o resto é fobia!"

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Copa, bancarrota e papagaios hidrófobos

Enquanto espero pelo meu horário, a secretária do médico reclama da Dilma. O argumento é razoável, e ela seria razoável se tivesse chegado a ele por sua própria conta - se não fosse um raciocínio heterônomo, de ocasião, apenas uma envólucro para justificar uma raiva sem sentido do PT. Reclama dos cortes da Dilma, que ela diminuiu o orçamento da educação. Sem querer entrar em polêmica, mas sem querer ficar quieto e sorrindo, digo que educação, saúde e bolsa-família foram três áreas poupadas da sanha do Joaquim Levy e seus porta-vozes na Grande Imprensa. "Que nada, ela cortou o Fies pela metade, agora aluno não pode mais estudar". É... essa questão do financiamento é complicada, porque é dinheiro que poderia ir para universidade pública, uma questão de escolha bastante controversa - tento contornar. "Pois é, o governo deveria investir em educação pública, mas se não tem universidade pública pra todos, se pobre não consegue entrar nela, se o governo preferiu pagar universidade particular - esse monte de universidade de segunda linha -, agora não dê para trás", retruca. Como disse, ainda que não seja o despertar de uma profunda consciência política, reivindicar que não se dê passo atrás não deixaria de ser um avanço - se fosse realmente esse o motivo pelo qual ela critica o governo. Lembro que o festival de faculdades de fundo de quintal foi obra do FHC, que se furtou de investir em universidade pública. Ela nega, eu reitero. Ela, então, revela que educação, saúde, inflação ou gol da Alemanha são desculpas quaisquer que ela papagueia dos nossos formadores (sic) de opinião: "não sou politizada pra discutir isso, o que eu sei é que ela está levando o país à bancarrota". Se ela sabe, quem sou eu para contestá-la? Desconfio que para ela qualquer pessoa minimamente informada saiba disso - assim como para mim qualquer pessoa informada além do mínimo sabe que as coisas não são exatamente como o JN diz. Penso em responder indiretamente: "imagina na copa", mas desconfio que ela antes vai me chamar de petista - o que, definitivamente, não é o caso - do que entender minha mensagem. Opto por apenas sorrir, na esperança de encerrarmos por ali nossa conversa. Por sorte, logo o médico me salva, digo, me chama. E eu fico a me questionar: não aprendemos nada com a copa? Nenhuma auto-crítica?


11 de junho de 2015.

ps: reconheço que o título não é muito convidativo a encetar um debate

terça-feira, 2 de junho de 2015

O centro degradado e sem vida de São Paulo

Estou no centro de São Paulo, na região tida por "degradada" (conforme o Houaiss: "1 destituído de graus, títulos, funções etc. 2 rebaixado em sua condição moral; corrompido, degenerado"), alvo de reiterados projetos de "revitalização" (já que - dizem - a vida que há ali não é de muito valor - se é que é de algum). Região degradada é toda aquela em que as classes média e alta evitam ao máximo freqüentar (quanto mais morar), seja por medo da violência (afinal, deu no JN), seja por medo da insalubridade do local (e dos locais). Parênteses: ao falar em insalubridade, me veio à memória a doutoranda em saúde pública na Faculdade de Medicina da Unicamp que uma vez tive o desprazer de conhecer. Ela dizia - sem nenhum tom de ironia, sarcasmo ou provocação - que pobre era igual a rato: só servia para se reproduzir e transmitir doenças [http://j.mp/cG200908udsp]. Noto agora que, por ser formada em educação física e não em medicina ou farmácia, a tal doutoranda era incompetente também na compreensão do modus operandi das ciências médicas atuais: tal qual rato, pobre também é usado como animal de laboratório. Ainda que não com o mesmo preconceito indecoroso, o discurso do medo não difere em essência. Fecha parênteses. Entro em um restaurante árabe que conheço há tempos - o melhor que já comi, além de custar menos da metade que o similar da Augusta. A dona, uma libanesa, há tempos que não a vejo - talvez fique durante o dia, eu tenho ido sempre à noite. O relógio que anda ao contrário marca seis e vinte e cinco. Um dos donos fala ao celular - em árabe. Certos momentos fala baixo, como se não quisesse que o ouvissem. Só entendo seu receio quando o outro dono vai até uma mesa e enceta uma conversa com outros quatro conterrâneos - ao menos falam em algum língua que desconheço. Na minha frente, fazem o pedido três portugueses. O garçom é um andino, na cozinha, dois brasileiros. Mudança radical diante de três anos atrás, em que trabalhava a família toda (e tenho a impressão de que uma mocinha, nem quinze anos, tentava me paquerar), e havia apenas um funcionário, que era garçom e entregador - e buscava cerveja no bar ao lado, porque ali não vendem, por serem muçulmanos. Enquanto espero meu lanche entra um negro (africano? haitiano?) vendendo relógios, bijuterias e carregadores de celular. Cumprimenta o dono com um sorriso, ele responde. Como não há ninguém interessado, logo sai. Entra uma garota cheia de piercings, cabeça raspada - à exceção do moicano-dread -, que tão-logo chega no balcão um dos rapazes já avisa que vai preparar. Entra um outro homem, que fala "frango", e recebe um sinal de positivo do rapaz responsável pelos lanches. O dono que estava ao celular já encerrou sua conversa e agora explica ao entregador o endereço - noto que estou cansado ao não conseguir distinguir que idioma eles falam - se português ou árabe. Pego e pago meu shawarma de sugôg (fala-se sujô) e vou até o metrô. Futuras kitnets chics (ou quase) são anunciadas como studios hype. Se for para nelas morar uma classe média disposta a agregar diversidade a essa babilônia paulistana, que sejam bem vindos. Se for para "revitalizar" a Luz, querer impor uma nova vida, a homogeneidade e o deserto dos bairros tidos por bem freqüentados, onde prédios e residências tem suas fachadas hostis à rua, e na qual a presença de pessoa é sinônimo de suspeito, que deixem o centro de São Paulo seguir degradado e desvitalizado dessa vida estéril preenchida com dinheiro.




São Paulo, 02 de junho de 2015.