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sábado, 6 de julho de 2019

João deixa a porta aberta

Sobre a partida de João Gilberto, dois comentários me chamaram a atenção, não exatamente sobre o mestre da bossa nova, mas sobre o que são estes tempos - e quem somos nós. 
Bob Fernandes comenta que sua partida neste 2019 inglório é um epitáfio para nosso país, nestes tempos em que vaia de bêbado - rico - vale; vaia transformada em panelas, patos, camisas da seleção brasileira, rezas de pastores endinheirados e editoriais sisudos de William Bonner ou entrevistas descontraídas com o Ratinho. A vaia que cala a arte, a política, o amor, o futuro.
Um dos meus bons amigo de São Paulo, restaurador de móveis, conta no seu Instagram [https://www.instagram.com/luizhansted/] quando, no início dos anos 1980, com seus seis, sete anos, ouviu pela primeira vez João Gilberto, e se encantou com "Falsa Baiana". Estava na casa da tia, que saíra para comprar cigarros e deixara o disco tocando: “Eu não mexia na vitrola de casa, imagine na da casa dos outros. Mas fui até ela e, com muito cuidado e medo de riscar o disco, voltei o braço para o início da faixa. Ouvi muitas vezes até minha tia voltar. É curioso e belo como as artes agem na nossa vida”. Eu vou além: é revelador como a arte é algo que exige e insufla coragem. 
Fazer, contemplar, desfrutar a arte é algo impossível de ser feito sem sair do lugar. Toda arte digna de ser chamada assim tem algo que incomoda, que perturba, que desloca - uma obra que deixa tudo como está é publicidade, usa elementos artísticos, não é arte. E o fascista, o reacionário, é um medroso, um pusilânime, alguém em pânico que se recusa a sair do lugar, a rever quaisquer das suas posições e atitudes. Para esconder essa covardia toda é que grita, se junta em grupos e milícias, ameaça, é por isso que é tão visceralmente contra a arte: porque a arte é para os corajosos. 
O artista, diante da grosseria, da barbárie, não se intimida, não pede desculpas, ele afronta, ele retruca: “vaia de bêbado não vale” - seco e direto, sem poesia, se o momento exige. A partida de João Gilberto talvez não seja um epitáfio, seja um aviso: não esperemos salvadores, sejamos artistas!

06 de julho de 2019

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Lost in Translation na Liberdade

Não sei por qual diabos, acordei com música dos Mamonas Assassinas na cabeça. Costumo brincar que tenho um DJ Interno que só toca podreira dos anos 80 e 90 - às vezes cantarolo para Natália a música que o DJ colocou e ela pergunta de onde foi que desenterrei aquilo, como se eu soubesse. Ela já até me fez assistir à animação Divertidamente para poder fazer piada com o tal DJ. Talvez Mamonas tenha sido vingança antecipada do DJ Interno por saber que o domingo prometia ser bom musicalmente - à noite iria à apresentação d'O Corpo (trilhas de Uakti e Metá Metá), e de dia, a um evento de Minyô, música folclórica japonesa, no qual cantariam Natália e Vinícius (além de outras 77 pessoas, as quais não vi todas, tendo perdido a parte principal, a do concurso que valia uma viagem para o Japão).
Ao chegar na Associação Kyôdo Minyô do Brasil, na Liberdade, me veio Legião Urbana à cabeça (por conta minha, não do DJ): “festa estranha com gente esquisita”, ainda que o destoante ali fosse eu, e sequer tenha sido a festa mais estranha que já fui na Liberdade - nada comparado a uma outra associação cultural japonesa, decorada para natal, onde serviam feijoada vegana em um evento indiano. Enfim. Num salão, o palco ao fundo tem uma discreta apresentadora à esquerda. Discreta quanto ao visual e ao local onde está, porque ela fala mais que apresentador de talk show empolgado com um assunto que gosta. Como só falava em japonês, não sei se o que ela falava era importante ser dito, ou seguia o padrão dos programas televisivos - só sei que falava e falava e falava. Num dos lados do salão, atrás de uma longa mesa, pessoas sisudas vestidas de terno com uma grande flor de origami na lapela, flores que me fizeram lembrar dos gibis da turma da Mônica, as medalhas de concursos nas histórias - desconfiei que eram os jurados da hora do concurso que perdi. As únicas coisas que eu realmente compreendia naquele salão eram a data, escrita em português, as bandeiras do Brasil e a do Brasil comunista que o PT queria impôr - conhecida no resto do mundo como bandeira do Japão. Nem mesmo o pavão ou fênix com cara de peru brincando um novelo de lã (símbolo do evento) me foram de clara compreensão. No início eu até tentei pescar algumas palavras, e achava que estava conseguindo: né, arigatô, uataxi, namastê - e sabendo que namastê é palavra indiana, passei a ter sérias dúvidas se eu entendera qualquer uma, além de Natária, quando chamaram Natália para o palco. Me senti Bill Murray no filme de Sofia Copolla, Encontros e desencontros ("tradução" medonha para Lost in Translation, só não pior que o nome dado em Portugal, O amor é um lugar estranho). As pessoas se levantaram e ficaram em silêncio, eu também; aplaudiam, eu também - inclusive os aplausos eram nos momentos mais aleatórios possíveis para minha compreensão ocidental. Como fiquei apenas na parte que não era concurso, foi interessante ver as reações do público, muito participativo e tolerante com falhas. Na primeira fila, duas senhoras marcavam com palmas o ritmo das músicas, para que nenhum dos amadores ali se perdessem. Alguns dos cantores esqueciam da letra - inclusive um que não parecia tão amador assim -, e a plateia cantava para ajudar. Outras horas acho que cantava junto só para cantar, mas pode ser que fosse outro lapso da letra ou do tom, não sei, estava bacana a festa, e estava boa a música. Na hora do almoço, quase todo mundo com seu isopor com o bentô - parecia recreio de escola infantil, cada criança com sua lancheira, com a diferença que eram um pouco mais velhos e não ficavam vendo e trocando o que cada um tinha, já que todos tinham o mesmo bentô (deixei para almoçar depois, já que Natália estava proibida de comer, pois iria cantar logo após o almoço). Enquanto almoçavam, homenagens a mais pessoas enternadas - uma tática esperta, deu pra cumprir essa formalidade sem incomodar a parte legal do evento. Após o almoço, os dois pontos principais a que vi: uma apresentação de taikô, a batucada japonesa, com um senhor que parecia o Henrique Meirelles cheio de vitalidade ao fundo (inclusive me fez pensar que uma cultura que não produz uma boa batucada deve ser olhada com certa suspeição); e uma senhora muito velha, de bengala e grandes óculos, cantando e dançando feito Liam Gallagher, ex-Oasis. 
E como quando assisti ao filme da Sofia Copolla, ao fim de duas horas pude sair de lá e tudo estava normal, pessoas falando português, a vida que segue, e o horário meio em cima para comer e ir assistir ao Corpo. Entretanto, por garantia, fomos a um restaurante onde todos os garçons falavam português. 

06 de agosto de 2018

PS: Aceito convite para algum evento de música folclórica e comidas gostosas da comunidade árabe (ainda que saiba que a imigração Argelina não é significativa para cá e não poderei desfrutar de música chaabi).

sábado, 10 de janeiro de 2015

Nem Charlie nem extremista

Ainda que repudie o ataque ao Charlie Hebdo, não entrei nessa comoção do "je suis Chalie". Je sui Dalmorô, e tento, no meu dia-a-dia, "je ser" do lado das minorias marginalizadas - que não é o caso do referido semanário. O que eu conhecia deles até então eram as polêmicas sobre charges contra o islã, as quais sempre me pareceram de profundo mau gosto, na melhor das hipóteses - e falo isso enquanto humorista, três anos à frente do Trezenhum. Humor sem graça, radicado na Unicamp entre 2007 e 2010 e de algum relativo sucesso [http://j.mp/trezenhum]. Li algumas coisas pela internet, posições sempre difíceis de concordar, em argumentações que pretendiam impôr a tomada de um lado: não concordo nem um pouco com os assassinatos, mas não é por isso que vou defender o Charlie Hebdo. Tampouco concordo com as execuções extra-judiciais da PM do senhor Alckmin, mas não é por isso que acho que criminosos não devam ser combatidos por uma força policial organizada pelo Estado e responsabilizados pelos seus crimes, tudo conforme as leis - ainda que estas devam ser sempre postas em questão nas esferas cabíveis, como legislativos e manifestações de rua.
É de um professor de Juiz de Fora, que atende pelo nome de El Rafo Saldanha, que li, enfim!, alguém capaz de se articular para além de dicotomias, sem a necessidade do Bem estar em um dos lados, sem dar razão a qualquer dos lados. É com esse texto que dialogo aqui, ressaltando um dos aspectos que mais me chamou a atenção - se estiver em dúvida se deve seguir meu texto ou ir para o de El Rafo, não hesite, vá para o dele: http://j.mp/17uDY0z.
O ataque ao Charlie Hebdo tem sido apresentado por muitos como um ataque contra a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França. Após o texto "Je ne suis pas Charlie", tendo a concordar com essa leitura. Ela, porém, conta só metade da história. A outra metade: a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França só foram atacadas porque não seguiram as diretrizes que com tanta pompa proclamam como conseqüência da evolução da sociabilidade humana e das quais se dizem os únicos portadores e os legítimos defensores. Se a França não tivesse fracassado como Estado Democrático de Direito, como sociedade justa e tolerante, dificilmente esse ataque aconteceria.
Entidades islâmicas acreditaram no Estado francês e tentaram pôr um limite ao que viam como ofensa contra sua religião e sua cultura - isso ainda em 2006 [http://j.mp/1y1m9lc]. A tal "liberdade de expressão" ganhou. Conforme El Rafo, foi um estímulo para que o Charlie Hebdo seguisse por essa senda - para não falar dos estímulos financeiros, com crescimento das vendas acima de cem por cento. Calados os que tentaram manter as relações dentro do razoável, ficou o caminho aberto para extremistas, fustigados pela publicação, acossados pelo preconceito, tudo isso com respaldo, mesmo que indireto, do Establishment francês.
"Qual é o objetivo disso [atacar o islã]? O próprio Charb falou: 'É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo'. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã". O ataque ao Charlie Hebdo foi um ataque não contra um semanário escroto, e sim contra um sistema falido - simbolizado por um veículo avalizado pelo governo e pela justiça. As irresponsabilidades do Charlie Hebdo sempre foram pagos pela França e pelos franceses (aqui incluídos os não-gauleses, inclusive os de ascendência árabe), não foi diferente desta vez - a direita mais reacionária e xenófoba só tem que agradecer a essa revista que se diz de esquerda. (Parênteses: vejo no jornal televiso que no dia seguinte ao "ataque terrorista" ao Charlie Hebdo houve um "ataque" a uma mesquita, que não foi terrorista, talvez porque não foi executado por árabes e sim por homens de bem?).
A França, a Europa, a liberdade de expressão, a democracia, a civilização ocidental podem tirar um grande ensinamento desse episódio se, ao invés de buscar no Outro o bode expiatório para se eximir de qualquer culpa, entenderem que precisam avançar naquilo que se julgam tão avançados. Império da lei, democracia, tolerância, e outras afins são palavras vazias na boca da maioria dos políticos do ocidente, que precários de razão se aferram à fé para defender suas posições: "estamos em um país onde a liberdade de expressão é sagrada", afirmou Bernard Cazeneuve, ministro de Assuntos Europeus da França, quando na polêmica do Charlie de 2012. Extremistas ocidentais ou extremistas islâmicos, na modernidade nenhum princípio sacro deveria estimular o ódio contra o Outro - se pondo, ainda que indiretamente, contra a vida. Direito de expressão não dá o direito a ofender ninguém gratuitamente, ainda mais as minorias, "falar que 'Com uma caneta eu não degolo ninguém', como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas".
Aos dicotômicos e maniqueus pós-modernos: não sou contra a liberdade de expressão nem defendo a censura prévia, mas há limites para tal liberdade, e ressarcimentos àqueles que se sentiram ofendidos são um bom parâmetro de até aonde se pode ir - nada que impeça uma causa que realmente valha a pena de desafiar a justiça. 
Numa disputa em que os dois lados carecem de razão, me abstenho de tomar posição favorável a qualquer um.


ps: e aos que recusam a cultura árabe sem conhecê-la, um vídeo de Boualem Rahma, de música chaabi, umas das músicas tradicionais que acho das melhores (aqueles que me lêem com freqüência talvez lembrem de eu já ter citado o estilo mais de uma vez). Um pouco além na provocação, divulgo cantos religiosos. Aos que se aventurarem pelo vídeo, se estancarem no estranhamento, tenham um mínimo de vontade e notarão que se trata de um som de qualidade estética bem acima das músicas cristãs de louvor que somos obrigados a ouvir no centro de São Paulo (ô gosto terrível tem esse deus!).

ps 2: O segredo do grão, fantástico filme do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche, de 2007, é uma boa mostra de como aceitamos sem notar o discurso preconceituoso da França gaulesa. Escrevi sobre o filme em: http://j.mp/cG080914




10 de janeiro de 2015.

domingo, 7 de dezembro de 2014

K-popers no CCSP

Passando pelo Centro Cultural São Paulo ouço gritos histéricos vindos da sala Adoniran Barbosa. Dão a impressão de haver ou um astro pop a la Michael Jackson, Beatles, ou uma gincana de colégio muito empolgante e disputada. Na entrada da sala, um cartaz me diz que é algo nesse meio termo: "K-Pop Tournament", torneio de danças cover de bandas e cantores e cantoras pop da Coréia do Sul. Não sei muito detalhes, se é monopólio como a brasileira, ou olipólio, sei que Coréia do Sul possui uma forte indústria cultural, com novelas com ótimo nível técnico exportadas para os países vizinhos, e uma série de boys e girls bands e artistas solos que cantam um pop super redondo, com clipes e coreografias que impressionam pelo rigor - e, a exemplo de Nova Iorque, essa indústria cultural forte acaba por criar uma cena independente interessante. O CCSP é um lugar que reúne pré-adolescentes e adolescentes empolgados com bandas de k-pop: diariamente é possível ver grupos ensaiando, e aos finais de semana é impossível não vê-los. Por mais que considere as danças (e as músicas, via de regra) do estilo antes ginástica hiper-coreografada e tenha torcido o nariz quando escutei, certa feita, uma discussão ao meu lado em que três rapazes já acima dos vinte anos se diziam artistas por dançar k-pop, acho interessante se reunirem para dançar - desde que não exagerem no volume da música. Nutro a esperança desses jovens serem menos homofóbicos (há muitos gays, alguns que tenho visto lentamente se montarem para dançar como mulheres) e num futuro se dedicarem a uma dança mais que técnica e bonitinha, mas significante e causadora de tensões no público.
Enfim, à competição, que acompanhei brevemente, cinco músicas incompletas. Coreografias (as coletivas) muito sincronizadas, de precisão coreana, a sucessão entre os competidores praticamente sem pausas - tempo para o anúncio (impossível de ouvir por causa dos gritos) da próxima atração e já está a música rolando, os adolescentes pulando, a platéia gritando. Mais interessante que os dançarinos é o público, que não apenas canta junto (em coreano), como acompanha a coreografia, sentados, com gestos contidos. Isso para não falar nos gritos histéricos, de homens e mulheres, nos momentos oportunos: notei que as músicas possuem uma ou duas pausas, em instantes propícios para os gritos dos fãs. E não é torcida: é quase todo mundo gritando para todas as apresentações (o que me leva a perguntar por que fazer uma competição, e não apenas um dia de apresentações). Às vezes alguns cartazes, feitos de canetinhas e folha de caderno, são levantadas. Quem se apresenta segue impassível a tudo isso, concentrados na coreografia. Um casal (piá e guria), ao que tudo indica, vai além da coreografia oficial e se beija ao fim da apresentação - o público alucina. Eu dou risada, volto para casa, além de já me dar por satisfeito, tenho coisas na mochila pra guardar na geladeira. Me pergunto como não deve ser um show de um astro do k-pop, como anunciado em uma mesa perto da saída da sala. Acho graça, mas ao mesmo tempo minha jugular crítica me faz ter um quê de profundo incômodo com tudo isso.

São Paulo, 07 de dezembro de 2014.

Ps: uma coisa que admito ser muito legal, mesmo estando nessa lógica de mercadoria é a t-girls band (isto é, transexuais), Lady (레이디)
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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Três bandas bastam

Três bandas bastam para fazer um bom festival - talvez não para trazer bons lucros. Três bons shows me parece um limite para todas serem bem aproveitadas. Radiohead, Kraftwerk e Los Hermanos, em 2010, por exemplo. Juana Molina, Yann Tiersen e Mogwai, no Music Wins, em 2014. O festival trazia outras bandas, que serviram só para cansar. Sim, havia quem gostasse de Pond, Tame Impala ou Erlend Øye and the Rainbows, mas eram públicos muito distintos.
Cheguei à Costanera Norte quando Pond tocava. Não me agradou, mas circular pela área, reparar no público, foi intetessante. Notei que uma das modas indie em festival argentino, ao menos para las chicas, é galocha ou coturno - muito práticas em caso de chuva e lama. Também que elas mentem na altura, ao usar all-star plataforma, por exemplo. Notei ainda - mas isso foi durante o show da Juana Molina - que argentinos são baixos, e ter um metro e noventa de altura te torna um dos mais altos da platéia, visão livre para o palco. Ponto negativo: você estar na direção da câmera e identificar sem sombra de dúvidas sua careca - e isso (a careca) é algo que me incomoda muito. Enfim, de volta ao festival. Após Pond, achei que viria Juana Molina, mas veio o tal de Øye, chatíssimo - de legal, só que parecia o Bill Gates recém saído da faculdade tentando ser pop. Oquei, eu estava entretido vendo las muchas chicas guapas - em especial uma bochechudinha nariguda, sardenta de olhos verde acizentados (sou daltônico, antes que me perguntem como não soube identificar a cor dos olhos da garota), encantadoramente apaixonante. Mas mesmo esse entretenimento passa a ser cansativo quando a banda não ajuda (porque também não vou ficar olhando fixamente, que seria deselegante, para dizer o mínimo, apesar da vontade de não tirar os olhos da referida guria). A banda seguinte era tão chata quanto. Anunciou uma nova música e tocou mais um The Smiths piorado. Segui a indicação de dois vizinhos de sombra, que saíram às pressas assistir a D.I.E.T.R.I.C.H., no palco para bandas menores. Banda interessante, um eletrônico com batidas meio indígenas, presença de palco marcante, principalmente por estarem todos com os rostros cobertos. Ainda assim, começava a me arrepender do festival.
Foi quando vieram as três apresentações que me interessavam, para tirar qualquer pensamento que soasse um "será?". Molina entrou no lugar de Beirut, e ornou muito bem com as duas seguintes. Conhecia apenas um disco e algumas músicas dela (e gostava), e vê-la trabalhando o som, com loops e distorções - numa delas com inusitadas palmas do público a se repetir com sua voz - foi muito interessante. Seu show acontecendo com o cair da tarde também ornou muito bem - deu um toque que as luzes de palco não dariam. Yann Tiersen fez outro bom show, tocou uma música da trilha da Amelie Poulain, algumas do disco novo, Infinity, e poucas do anterior, Dust Lane, meu favorito. A conclusão a que cheguei foi que o francês sempre faz um prelúdio um tanto etéreo antes de começar a música de verdade. Da estética de palco, luzes de descarga fazendo a frente - muitas vezes como únicas luzes, uma para cada músico - davam um clima interessante. Duro era o moving light (é o que dá ler crônica de estudante de iluminação) passando pela cara do público o tempo todo, cegando-o. Era bonito o efeito, visto pelo telão, daquelas silhuetas vermelhas de cabeças - não era legal a luz no seu rosto (na verdade, esse é um problema de ser alto em shows argentinos, quando me abaixei à altura média, a luz não incomodava tanto).
Enfim, o grande show da noite, para mim: Mogwai. O quinteto de Glasgow, assim como o de Oxford, superam o quarteto de Liverpool, na minha opinião - desconfio que polêmica, mas a mais acertada. O que me chama a atenção é como parece que a banda surgiu pronta: eles tocam músicas do primeiro ao último disco, percebe-se algumas diferenças, mas as antigas não soam datadas (diferentemente de Radiohead, por exemplo, em que Pablo Honey é praticamente dispensável) nem repetitivas. A forma como eles trabalham tensões e sua resolução (ou fim brusco) também impressiona: a música parece ocupar todo o espaço, mesmo em pianíssimos como New Paths to helicon pt 1 ou Mogwai Fear Satan. Por sinal, emendar 2 rights make 1 wrong com Fear Satan dava para ser o fecho do show, se eles não fizessem questão de encerrar com tudo, com Batcat (a exemplo do show no Sónar, em 2012) - até eu fui pra frente (quero dizer, mais para frente), fazer parte da roda de aloprados e alopradas que pulavam ensandecidos. Uma coisa muito legal de assistir a show na Argentina é a tradição de canto das torcidas, e poder acompanhar Rano Pano fazendo ôôô-ôôô-ô-ô-ôô e por aí vai (show do Iron Maiden deve ser um orgasmo geral). Talvez por ser festival, sem muito tempo para montar o palco, talvez por ser na América Latina, talvez porque seja assim mesmo, careceu um trabalho um pouco melhor com as luzes - algo que o show pede. Contras, fumaça e estrobo, por mim, poderiam ser a base.
Do festival, positiva a localização: perto do centro, longe de residências. Os aviões que partiam do Aeroparque, bem ao lado, até poderiam compor bem o cenário, não fosse o barulho (Juana Molina ora comentou o estranhamento de tantos aviões - ninguém deve tê-la avisado). Achei interessante o esquema de só ser autorizada a venda e consumo de cerveja em espaços reservados - em tese para restringir o consumo entre menores, mas só em tese. O negativo para o evento (não para o público) é que vende menos cerveja - ou os argentinos são menos desesperados para encher a cara. Péssima foi a organização: não havia panfleto, cartaz, aviso nos telões, nada, sobre que banda se apresentaria qual horas - fui pra frente do Øye esperando Molina, por exemplo. Houve também atrasos nos shows de Yann Tiersen e Mogwai (apesar de ter sido divertido ver os dois contra-regras como que diaputando quem levantava mais o público com Black Sabbath). E das coisas mais chatas, a passagem de som de um palco atrapalhar o show do outro, a ponto do público ter que pedir silêncio. Preciso admitir, em organização, o Brasil está bem melhor. Mas nenhum desses poréns fez eu me perguntar se valeu a pena ir para a Argentina encarar um festival - depois de já ter me dito várias vezes nunca mais ir a um. 

Buenos Aires, 25 de novembro de 2014.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Tonolec: de quando a cultura indígena não está morta

Uma coisa que aprendi logo que mudei para Sampa foi não me limitar ao consagrado - às vezes acabo por evitá-los por conta das filas ou dos valores -, e arriscar atrações desconhecidas, motivado pela descrição, pelo cartaz, ou por escolha aleatória. Às vezes - a minoria - me dou mal. Outras poucas, me dou muito bem. Foi este o caso nesta sexta, quando fiquei conhecendo a banda argentina Tonolec, dos músicos Charo Bogarín e Diego Pérez, que se apresentaram na Galeria Olido, na Avenida São João.
A proposta da Tonolec é arriscada: misturar música dos povos autóctones do norte argentino (toba, mbya guarani, etc) com música eletrônica. Calcados em mais de uma década de pesquisa e respeito não-museológico pela cultura indígena, o resultado é de alta qualidade: músicas envolventes - mesmo as mais diferentes do que estamos habituados pela indústria cultural -, cantadas pela bela voz de Charo - não só em castelhano, como nas línguas locais -, reforçadas pela presença de palco marcante dos músicos, principalmente de Charo.
Tonolec não se limita a trazer cultura exótica e música folclórica engessadas em alguma sacro-santa forma primeva para o consumo de turistas. À pesquisa da música tradicional segue-se o trabalho sobre esse material enquanto cultura viva - aberta, portanto, a mudanças, de onde a junção com a eletrônica. Cultura viva porque tampouco a mata ao encaixá-la em fórmulas prontas para pasteurizar o diferente em um produto para consumo rápido e descartável - a exemplo da Axé Music e Tchê Music, ou da música chaabi enformada (e deformada) em um dance-pop a la Festa no apê. (Parênteses: não sou grande entendido de música, mas numa puxada rápida pela memória, só me vem o disco Roots, da banda Sepultura, fazendo recentemente trabalho parecido, de incorporação e fusão com músicas indígenas).
Como Charo explica em certa altura do show, Tonolec é o nome em língua toba para uma ave local - a caburé -, famosa pelo seu canto hipnótico: não vejo nome mais apropriado! E tenho certeza que as pessoas presentes na Olido, sexta, assim como eu, esperam por um retorno breve por estas paragens.

São Paulo, 29 de agosto de 2014

Para saber mais: www.tonolec.com.ar ou no Fakebook

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Lob-Esponja e Canções dentro da noite escura.

Na virada do século, Lobão era o cara no rock brasileiro. Em um momento em que as grandes gravadoras ainda tinham enorme força, ao ser posto de lado pela máquina da indústria cultural, levantou a voz contra o jabá, criou seu próprio selo - o Universo Paralelo - e lançou um disco, A vida é doce (1999). Uma jogada de márquetim e tanto - que iludiu alguns ingênuos, como este escriba -, mas que serviu pra apresentar ao grande público um pouco do modus operandi dessa indústria que se diz movida a talento.
Foi a polêmica que permitiu vendas expressivas do A vida é doce, mas o disco fazia por merecer. Seu antecessor, Noite, de 1998, era excelente, e o rockeiro manteve a qualidade. Claramente Lobão era um artista no seu auge, arriscando experimentações que o mercado não aprova e fugindo de modismos - Nostalgia da modernidade (1995) ia de samba, Noite, de eletrônica, enquanto isso os Titãs lançavam em 1997 seu disco-bunda Acústico MTV, ideal para tocar em elevador ou em reuniões de família classe-média conservadora.
Ainda por seu selo, Lobão lançou um disco ao vivo, 2001: Uma odisséia no universo paralelo (2001), razoável, e outro disco de estúdio, Canções dentro da noite escura (2005), em que as quatro primeiras músicas são uma seqüência que já vale o disco. Aqui ele encerra a fase áurea da sua carreira.
Depois desse disco, disse ele que se frustrou em fazer o disco e não ter a vendagem merecida, achou mais digno fazer jabá (mesa no II Congresso de Jornalismo Cultural) e gravar o que a gravadora queria. Fazendo tudo o que a gravadora mandava, lançou com dez anos de atraso, quando o modelo já estava esgotado, o Acústico MTV, releituras pobres e clichês de músicas antigas (é só tirar as letras e fazer alguns poucos consertos nos arranjos e se tem o acústico do Charlie Brown, do Lulu Santos, dos Titãs, etc). Conforme a wikipedia, Acústico teve uma venda nem 10% acima de Canções, os vinte mil que compraram o primeiro pela sua qualidade, foram substituídos por vinte mil que compraram porque apareceu na tevê. Desde então, sua mais alta rebeldia foi sua camiseta "Peidei, mas não fui eu" - sem dúvida chocante para o clube das avós das viúvas da ditadura, seu novo público cativo. E toda vez que ele abriu a boca, foi pra mostrar que peidos era coisa pouca pra ele: no melhor dos casos falou merda.
E por que raios venho ressussitar zumbi? Admito, ouvia Canções dentro da noite escura e no fundo lamento que seu cérebro tenha virado algo um pouco abaixo de um porífero decrépito. Tinha um futuro promissor ainda, aquele rockeiro semi-gagá da virada do século.

São Paulo, 17 de julho de 2014

domingo, 26 de maio de 2013

A sombria cor-vazio do branco.

Foto de Luis Felipe Labaki [j.mp/10Ykne6]
Subindo as escadas, primeira porta à esquerda, entra-se em um grande salão, circular no extremo oposto. À direita da entrada, uma sala anexa, retangular, sem separação. Em todo ambiente, o chão é de cimento (reparo algumas manchas coloridas, ou ao menos que rompem com o monocórdio cinza), o teto é preto, as paredes, brancas. Não há janelas. As luzes do grande salão estão apagadas – apenas um abajur sobre um mesa, mais ou menos no centro. As da sala contígua estão acesas: luzes brancas em uma sala branca – e vazia. No salão há cadeiras, dispostas aleatoriamente quanto ao lugar e direção – mas tendendo para o centro, para o abajur. Há pessoas nesse salão, muitas – eu chutaria perto de cem. Estão em silêncio, o olhar perdido, sem saber para onde mirar. A maioria está sentada nas cadeiras. Há pessoas sentadas no chão – algumas deitadas. Outras poucas caminham – em geral logo páram e se sentam (ou deitam) novamente. Há músicas que ocupam todo o espaço – feitas para isso. É o concerto NME13, de música eletroacústica, em uma das salas de exposição do Instituto Tomie Ohtake. Um rapaz se levanta, transita pelo salão, adentra a sala adjacente, até então vazia. Ele vai até próximo da parede oposta, se senta defronte a ela, de costas para o salão. De onde o vejo, ele perde a sombra. A sala é branca, a luz é branca, a música que é executada no instante, “Cor”, de Clayton Mamedes, tem um clima sombrio. No salão, na penumbra, a música a transitar pelas caixas, preenchendo de diversas maneiras o espaço, o olhar faz as vezes geralmente reservada aos braços: o que fazer com eles? Não há instrumentista a executar a peça, não há vídeo a ilustrá-la, não há foco – a não ser o estático o abajur ao centro, a iluminar timidamente o computador e a mesa de som. Olhar para baixo, fechar os olhos? (São alguns dos momentos em que vi manchas coloridas). Pode-se flanar o olhar por entre os colegas de público, até se deparar com outra pessoa a fazer o mesmo e baixar os olhos, um pouco constrangido. O rapaz resolveu esse problema: pode olhar para frente, não se deparará com ninguém, com nada além do branco e da música sombria nomeada cor. Mas o que ele vê diante do branco? Lembro de uma tira do André Dahmer: um homem defronte um grande aparelho de tevê, comentando que algo está deixando sua alma pequena. Eu não conseguiria ter esse tipo de reflexão diante de um televisor.
Mas envolto por três paredes brancas, sentiria minha alma de que tamanho? O branco, tão vinculado à idéia de paz, de pureza cristã. O quanto não fujo do branco? Paz que pode ser a ausência de vida – a vida sempre tão conflitiva, não necessariamente uma guerra. Pureza que pode significar a falta de marcas, de sombras, da exata noção da profundidade, o raso. O vazio. Lembro da música do Marilyn Manson: um grande mundo branco, que suga nossas cores. Também poderia ser o inverso: um grande mundo colorido que mancha nossa brancura. Ou então apenas um mundo que não respeita nossas cores. As cores, elas vêm para preencher esse vazio ou disfarçá-lo? De início penso nas cores da publicidade, das cores que vazam brilhantes da tevê, e me parecem enganadoras. Mas e as cores sombrias da obra que escuto aquele momento? Por que só estas seriam as verdadeiras? A pop-art desbotada de Arthur Bispo do Rosário é colorida. A primeira obra do concerto, “Impulso e impacto n° 3”, de Caio Kenji, é colorida – colorida e sinestésica, a ponto de ver traços coloridos a la Malevich sendo desenhados pelo som no espaço escuro. Música para exposição. Cores, e não preto no branco. A publicidade engana e encobre? Até que ponto? E os pontos coloridos que resistem em meio ao cinza? E a flor de Drummond a desabrochar em meio à náusea? Mais tarde, durante a última peça da noite, “Pato Rei I”, de Tiago de Mello, eu andaria sozinho por aquele espaço branco. Algum pensamento sobre minha relação com o Outro brilharia e eu sentiria leve angústia, que me faria retornar logo ao breu. Estar diante do branco, revela ou apaga?

São Paulo, 26 de maio de 2013.