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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Nem cara metade, nem inteiro: a incompletude.

Na tentativa de desfazer as armadilhas do amor romântico é senso comum em postagens "good vibes" da internet - e mesmo materiais mais sérios - criticar a ideia da cara metade argumentando que seríamos inteiros, completos, não precisaríamos de ninguém para nos completar. 

A intenção pode até ser boa - diminuir essa dependência emocional de uma única pessoa. Contudo a tentativa é tão ruim quanto o original, a não ser que entendamos por sermos inteiros sê-lo na nossa incompletude. E se somos inteiros na incompletude, o clichê da metade da laranja volta a ser plenamente válido nessa argumentação. 

O que subjaz a tal raciocínio da inteireza do sujeito é a lógica ultraliberal dos tempos atuais (um dos combustíveis para o neofascismo que assola o mundo), de que um ser humano seria auto-suficiente, (quase que) plenamente independente dos demais, que "adicionaríamos" como complemento (ou  mesmo suplemento) em nossas vidas, mas longe de serem essenciais. 

A ideia de cara metade, fruto de uma leitura um tanto literal d’O Banquete reatualizada permanentemente pela indústria cultural, sem dúvida é bastante precária em várias dimensões. Em meio a sete bilhões de pessoas que habitam este rochedo que gira ao redor de uma pequena estrela haveria aquela única que nos completaria. Mesmo que insiramos o tempo nessa equação, acreditar que uma única pessoa naquele momento seria capaz de nos completar é também uma responsabilidade e tanto. Não só isso, acreditar que uma única coisa (pessoa, objeto, sensação, experiência, crença) seja capaz de nos completar, independente de todo resto é diminuir o humano a algo muito pequeno. 

Acreditar na completude do ser humano (no sentido de que nada lhe falta) é pobre. E aqui, a antítese pós-moderna de internet entra na mesma lógica que pretensamente critica: o ser humano completo sozinho é só uma versão ainda mais diminuída daquele que precisa da sua cara-metade para ser completo. Quem vai querer se relacionar se é inteiro, se é completo? Isso é o nirvana, e no nirvana não há desejo, nem interação - e não me parece que alguém que alcançou o nirvana estará buscando visualizações no youtube ou likes nas redes sociais com auto-ajuda rasteira (mesmo que embasado em títulos de doutor). Há algo errado nessa pretensa inteireza. E, como diz Álvaro de Campos, que reiteradamente cito em meus textos:

“E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...”

O ponto que escapa a essa crítica ao “cara-metadismo” - talvez fruto de uma crença iluminista? - é que somos incompletos, somos seres em permanente falta - para si e para os outros. E é essa falta que nos mobiliza. Como todos os seres vivos, somos dependentes do nosso entorno (daí a questão das mudanças climáticas), dependentes dos outros seres vivos, nos fazemos e refazemos permanentemente em nossas interações (e vale lembrar que em várias cosmologias indígenas a ideia de ser vivo é ampliada para muito além do nosso olhar viciado pela modernidade - e que o misticismo de classe média branca não rompe com essa lógica). Como seres inseridos no simbólico, dotados de uma “segunda natureza”, nossa dependência dos outros e das nossas interações é elevada à enésima potência - Robinson Crusoé, mesmo isolado numa ilha deserta, não consegue deixar de seguir os ritos da sociedade, como uma âncora mínima para lembrar da própria humanidade que o constitui (enquanto homem branco europeu). Quando não reconhecemos nossa incompletude, nossa falta, alguém vai mobilizá-las por nós - daí, por exemplo, a compulsão pelo consumo, como forma de dourar a pobreza a que aceitamos nos reduzir ao aderir à ideia de que seríamos inteiros. 

Há quem leve essa pretensa crítica (com a consequente defesa da autonomia absoluta do sujeito) a uma questão mais ampla, para além do amor romântico. Dia desses vi uma postagem, um desenho de quatro homens e uma mulher de quatro, na coleira, levados por bebida, cigarro, celular, jogos e remédios; na legenda: “Você é escravo de tudo aquilo que não consegue abrir mão”. O moralismo aqui explícito não é, no fundo, diferente de quem se opõe ao cara-metadismo com a ideia de completude. Somos escravos das outras pessoas, do amor, do sexo, do trabalho dos outros (ou então a sociedade colapsa), do dinheiro, da natureza, da Bíblia, da água, dos escravos que nos servem, dos senhores que servimos sem ver. Se algum grau de dependência ou necessidade é escravidão, não temos nenhuma possibilidade de fuga.

E é curioso como nessa busca iniciada no Iluminismo por superar deus, não tenhamos sido capazes de criticar um dos pontos principais do que fundamenta as religiões judaico-cristãs: a existência do completo, do que não falta. Nós, sujeitos da modernidade, incorporamos da ideia de deus (seja na sua versão laica, seja na religiosa) não no que ele teria de libertador, de potência criativa (que pressupõe alguma falta, algum desejo, ou não teria razão da criação), mas na prepotência castradora de quem saberia tudo - e vale recordar que o próprio deus não sabia bem o que fazia ao criar ao mundo, fazendo tudo aos poucos e sempre precisando se certificar de que o que acabara de criar era bom. 

O amor posto como um dado - e não como algo construído na relação, a cada relação, a cada dia -, o sujeito como completo e que prescinde dos outros. O que está em jogo é nossa relação com o mundo, é nosso envolvimento político com pessoas próximas e distantes: vai muito além de algo pessoal e menor.

14 de outubro 20222

domingo, 11 de setembro de 2022

Amores, idealizações e devires [Diálogos com o cinema]


Entrar num relacionamento amoroso íntimo é, em boa medida, se perder: daí que amar não seja um mar de rosas e traga sempre uma dose de angústia. "Dar o que não se tem a quem não o quer", nos diz Lacan: nos entregar em nossa incompletude a um outro que vai não nos completar, mas ressaltar essa falta. Aceitar o outro fora das nossas idealizações e nos enxergar fora das nossas idealizações - com o medo do outro não nos aceitar, isso quando não somos nós mesmos não nos aceitamos sem nossas fantasias. Como nos versos de Álvares de Campos:

“O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”


Retomo os dois filmes de que falei em minha última crônica [bit.ly/cG220902], Uma relação pornográfica, de Frédéric Fonteyne (1999); e The Lunchbox, de Ritesh Batra (2013).

Como sustentar o desejo e a relação com o outro, quando a idealização cai? É o hábito que sustenta? Que desejo é esse que se torna mera rotina? O quanto conseguimos ter relação com alguém humano, demasiadamente humano - ou "em linha reta", para seguir com Campos/Pessoa? Caída a idealização do apaixonamento inicial, não raro criamos novas e novas idealizações, para esconder os defeitos que emergem - como se nossa fantasia fosse incapaz de lidar com o real.

Em Uma relação pornográfica, há uma passagem que vai nesse ponto da queda da idealização do outro, e como sustentar o desejo depois disso. Quando o entrevistador pergunta se não se cansava dos encontros sempre iguais, ele responde que nunca iria cansar, porque era bom. E arremeda: estava se habituando a ela. Temos aqui o amor romântico apresentado ao mesmo tempo como hábito e como extraordinário. Contudo, quanto tempo sustentamos o fora do ordinário, sem incluí-lo no banal, sem contaminá-lo com nossas pequenas insignificâncias - a dor de cabeça, o dia ruim no trabalho, a notícia que abala?

Mais interessante, contudo, é a forma como a queda da idealização que ele tinha dela foi compensada com uma abstração da mulher: “No início a achava bonita. Depois comecei a ver os defeitos. Aí seus defeitos desapareceram, sua beleza desapareceu”. E isso enquanto, diz ele, estava se habituando a ela. A pessoa amada que desponta como figura do fundo, de repente volta a ser fundo - uma primeira questão: esse tipo de amor permite que novas figuras emerjam desse novo fundo? 

E quem é esse outro que não possui defeitos, que se for preciso, apagamos a beleza, em nome da recusa das pretensas feiuras? Para mim, a construção mais bonita desse trecho é reconhecer os defeitos e ver neles parte da beleza, talvez a própria condição para que esta exista - é nisso que o outro foge do padrão, que deixa de ser genérico, que deixa de ser ideal e passa a ser real. O que teme descobrir o homem nessa sua recusa da mulher real? Teme o que vai encontrar nela ou em si?


Em The Lunchbox, a idealização que o homem não sustenta é a de si próprio (diante, é claro, da idealização que faz da mulher): ao ver Ila no restaurante, Isaajan se reconhece como alguém mais velho, sem atrativos, a ponto de abdicar até mesmo cumprimentá-la pessoalmente, de correr o risco de se ver idealizado por ela e incapaz de sustentar essa imagem. O desejo pelo outro não chega a morrer com essa desidealização de si (como parece temer que aconteça o homem de Uma relação pornográfica), mas sua realização é impossibilitada por isso - a relação se torna impossível de seguir. E que desejo de ideal é esse?

Há ainda, no filme indiano, um outro trecho sobre a perda de si (ou seria a descoberta de si, ou ao menos de que não se era quem sustentava ser?) nesse espelho que pode ser o amor.

Na hora em que ficam sabendo da notícia do suicídio da mulher, junto com a filha, Ila se pergunta o que a mulher teria pensado, com teria agido, e se imagina nessa ação. Tira suas jóias, pulseiras, brincos, cordão de casamento, inventa uma resposta à pergunta da filha do que vão brincar, enquanto a leva para o alto do prédio. No fim de sua carta a Fernandez, pergunta se não deveríamos ter coragem de pular também. 

Quando, numa das últimas cenas do filme, depois de ir atrás de Isaajan em seu serviço - que havia se mudado para Nasik tão logo se aposentara -, ela repete os atos que imaginara da suicida: tira as jóias, brincos, pulseiras, cordão de casamento. Porém acorda de manhã como se fosse um dia normal, escreve a carta a Fernandez - que não terá como, a quem enviar -, conta que vendeu suas jóias e no retorno da filha da escola vai com ela não se jogar do telhado, mas pegar o trem para o Butão.

Há uma espécie de morte aí, de suicídio - a morte, talvez, tivesse acontecido há muito tempo, mas o hábito impedia de enxergar o que de fato acontecia. Seu apaixonamento por Isaajan e a impossibilidade de realizar a faz decidir abandonar a vida, porém não a vida real, e sim a simbólica: aquela que ela sustentava para a sociedade, em nome de sabe-se lá o que - uma promessa de felicidade que se algum dia aconteceu, há muito não se realizava mais -; e agora decide buscá-la no país que se utiliza da "Felicidade Interna Bruta" para medir suas ações políticas. 

Esse amor traz uma perda de sentido de muito do que se vivenciava até então. Isso não quer dizer que a vida até então vivida não tivesse sentido, ainda que, geralmente, quando o sentido se desfaz, parece nunca ter feito - nossa corrida vã atrás dessa crença de que haveria um sentido superior, que daria conta da totalidade da vida e da existência (resquícios de uma promessa de deus nunca efetivado).

Aquele ideal romântico de amor como algo que faria o sujeito se opôr à sociedade aqui se mostra mais pedestre e mais real: se opõe a esse círculo em que se vivia, mobiliza a ir em busca de outras paragens, desfaz sentidos sem necessariamente que os novos sejam mais amplos ou firmes - ou mesmo conhecidos. E a se pensar, com Camus, que os sentidos da vida somos nós quem os criamos, a cada momento, amar seria esse nos atirar na angústia da criação de devires. E é sintomático que Ila não vá atrás de Fernandez: o amor entre eles abriu novas possibilidades, porém não as encerra.


E aqui termino dialogando novamente com meu último texto: que amor é esse que tanto se apregoa e tantas pessoas buscam? É de fato esse amor que faz questionar a si e ao seu entorno, ou é antes um amor que se fecha num narcisismo míope, que acha que atravessar o que passar pela frente em nome de seu ego teria qualquer coisa de revolucionário? Estamos vivenciando, experimentando e defendendo um amor que abre devires e amplia horizontes?


11 de setembro de 2022

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dois filmes sobre amor [Diálogos com o cinema]

De quantas e quantas camadas são feitas cada uma de nossas relações? Qual a abrangência das linhas com as quais entretecemos nossos afetos? Como decidimos a profundidade com que cerzimos no outro, e a abertura que daremos para o outro penetrar em nosso íntimo? Temos esse poder de escolha? Por que há aquelas relações que de cara se aprofundam e aparentam ser de anos, apesar de novas - e que vão manter o ar de novidade, apesar de terem se passado anos? Quem somos nós fora das relações? O que somos fora delas? Quanto dessas relações não perduram, mesmo finda a presença física? Quanto de nós não frutifica no outro já distante no espaço e no tempo, sem que façamos ideia? 

Relações próximas e profundas de todo tipo são capazes de nos instigar questionamentos como esses, que permitem desdobrá-las em detalhes pela infinitude do real, com cada relação oferecendo um novo caminho por onde seguir. As relações ditas "amorosas" (não sei por que não haveria amor numa relação de amizade, ou porque haveria vários modelos de amor, como produtos no mercado), contudo, são um campo privilegiado, uma vez que abrem uma dimensão existencial a mais na relação com o outro.

Decido rever dois filmes a que havia assistido ainda no cinema: Uma relação pornográfica, do francês Frédéric Fonteyne; e The Lunchbox, do indiano Ritesh Batra. Assisti ao primeiro há vinte e um anos, o segundo, pela primeira vez há oito. Os revi como quem se vê no espelho e leva um susto consigo próprio, não apenas por ter envelhecido, como por nunca ter reparado em algo óbvio da própria feição - um Vitangelo Moscarda, de Um nenhum e cem mil, do Pirandello, ou mesmo, mais melancólico, um Álvares de Campos e sua Tabacaria. Me surpreendo o quanto mudei. E o quanto sigo mudando, às vezes muito em pouco tempo - em tempestade tal qual em meu auge de jovialidade, quinze anos atrás. E o quanto sigo o mesmo, com as mesmas inquietações no que toca às relações humanas e toda Ercília (d'As cidades invisíveis, de Calvino) que povoamos e nos povoam.

O mote dos dois filmes é similar: duas pessoas sem um elo comum, que se conhecem ao acaso (não havia Tinder para catalisar esse tipo de acaso e torná-lo quase que a regra), estabelecem uma relação de amor e afeto intensa e profunda - e breve -, se afastando com os sentimentos ainda pulsantes: renunciam ao seu desejo de estar com o outro justo em nome desse amor que sentem. 


The Lunchbox é sobre afetos do dia a dia, o tecer aos poucos as relações, o ressignificar a si e ao mundo no contato com os outros. Pessoas com suas vidas banais e pequenas angústias. 

Num casamento reduzido ao mais pobre do contrato estabelecido nesse tipo de relação, no qual o marido não se faz presente de fato, Ila tenta ressuscitar alguma paixão antiga dele através do estômago, caprichando na marmita que envia pelo serviço de entrega Mumbai Dabbawallahs. Contudo, a marmita é entregue por engano para Isaajan Fernandez, um apático burocrata prestes a se aposentar, fechado a qualquer relação que tenha algum afeto, desde que sua esposa faleceu - que o diga Shaikh, o novato recém contratado pela empresa para em breve assumir seu lugar. 

À decepção do marido chegar indiferente como todos os dias e ao perceber que seu esforço havia sido entregue a outra pessoa, no dia seguinte decide enviar uma carta junto com a marmita, contando de seu casamento insatisfatório e sua estratégia. Fernandez responde com a frieza e distanciamento de quem não quer nenhum tipo de envolvimento com ninguém - reclama da comida estar muito salgada. Ila se vinga enviando a comida apimentada; a resposta vem ainda distante, falando das pessoas em geral, que almoçam uma ou duas bananas. Ila insiste em achar um interlocutor estranho para suas dores tão ordinárias, e ao mesmo tempo marcantes - dela e de sua tia e vizinha, que cuida do marido em coma -, Fernandez responde ainda dentro do senso comum, mas já se expondo minimamente - falando da falecida esposa. 

Em um dos dias, o suicídio de uma mãe e sua filha - Ila possui uma filha - abala a ambos, que passam a conversar sobre os sentidos da vida - e da morte. 

A troca de cartas passa, então, a ter outra qualidade - um evento ao mesmo tempo ordinário e extraordinário. Falam do comum do dia a dia, de medos, de angústias, de lembranças e de esperanças, de tristezas e alegrias, do banal e do existencial. Um acolhe o outro na sua solidão e outro tipo de afeto passa a circular naquelas linhas, muito mais profundo. 

Com a guarda baixa, Fernandez acaba se deixando afetar também por Shaikh - um “solitário de nascença”, por ser órfão. É num jantar na casa de Shaikh e sua noiva que Fernandez reconhece o que sente por Ila, a ponto de dizer que possui uma namorada - mesmo eles nunca tendo se visto e ela sendo casada. Os afetos tecidos numa malha mais ampla que a do casal, a amplificação (e amplidão) de afetos necessária até para se dar conta do que sente pela pessoa amada.

Ila e Fernandez marcam, então, um encontro em um restaurante, mas o homem prefere ficar a observá-la de longe: seu realismo-amargo faz crer que as convenções sociais serão mais importantes que os sentimentos que um nutre pelo outro - a começar pela convenção monogâmica, que forçaria um exclusivismo. No dia seguinte, em sua carta na marmita, explica que havia ido ao encontro, mas ela era jovem e bonita, ele um velho prestes a se aposentar; e agradece a acolhida. Ela decide tomar a iniciativa, consegue o endereço do serviço dele, mas ele já havia se aposentado - me lembrei de Todos os nomes, de Saramago, senhor José chegando atrasado à amada, restando apenas o amor...


Uma relação pornográfica trabalha em cima da ideia de solidão a dois, de que o amor se bastaria por si, independente de todo o contexto - inclusive da vida de cada um.

O filme tem uma montagem interessante, porque se trata das duas pessoas do casal contando em entrevista do breve relacionamento que tiveram anos antes. Foi marcante para ambos, mas as versões são bastante diferentes. Por exemplo: ele diz que se conheceram por anúncio em revista; ela, por Minitel - de qualquer modo, eram pessoas sem círculos sociais comuns.

O encontro era para ser apenas sexual, para realizar os fetiches dela. Contudo, após a segunda vez que se viram, um convite pra jantar, com a questão sexual já resolvida, fez com que se sentissem à vontade de outro modo - sem que isso afetasse o mais visível de seus encontros futuros, que seguirão acontecendo uma vez por semana, no mesmo café, para se encaminharem ao mesmo quarto de hotel. Não falam de suas vidas pessoais - no que trabalham, se tem filhos, se são ou foram casados -, e ela faz questão de sempre garantir uma distância - como recusar que a leve para casa. 

O filme acaba desenhando a relação deles como um evento fora da vida banal dos dois, algo extraordinário, somente dos dois: talvez justo por isso, por ser algo tão enclausurado, que haja várias idas e vindas nos sentimentos dos personagens, o que de fato querem, desejam, o que sentem um pelo outro - falta-lhes um círculo maior de afetos, por onde possam serem estranhados e reconhecidos, se estranhar e se reconhecer. 

Depois de ela se declarar a ele no café - e ele de início não ter a reação que ela esperava -, combinam de conversar melhor na semana seguinte, decidir se continuam ou não, e confessam estarem com medo: esse se expôr que apresenta todo um flanco existencial frágil aberto ao outro. 

Nesse último encontro, ele conta ao entrevistador que queria continuar, mas notou que ela não, só não possuía coragem para assumir. Decidiu tomar essa iniciativa: argumentou que acabariam se odiando e o que restaria seriam as boas lembranças do tempo que estavam vivendo naquele momento, não havia razão de irem por essa senda. Ela, por seu turno, relata que queria ele para o resto da vida e estava disposta a fazer tudo por isso, mas ao notar que ele não queria, acha que não tinha porque insistir, preferiu apenas concordar em se afastarem. Em nome do amor de um pelo outro, preferiram preservar o sentimento a acabar desrespeitando o desejo do outro.


Além dessa renúncia ao outro por conta do amor que sente, há outros dois pontos interessantes que ambos os filmes tocam. O primeiro, a questão do se expressar pela palavra e, por consequência, dos subentendidos. 

Em Uma relação pornográfica, o falar ganha um sentido de corte e diversão, porém não de sentimentos, o que dá espaços muitos para subentendidos - e “incompreendimentos” -, desde o início. Ela vendo nele o mesmo desejo que ela nutre, enquanto ele hesita sobre o que sente, por exemplo. Precisaria ser tudo explicitado? Não creio. Porém esse guiar-se muito em função do outro parece exigir uma postura mais aberta - que só será tomada no penúltimo encontro, e sem levar às últimas consequências. Ao cabo, esses subentendidos mal entendidos vão minando a relação até culminar no afastamento indesejado pelos dois - assumido com o argumento covarde de evitar o mal futuro.

Já em The Lunchbox, o subentendido entra mais na questão das convenções sociais: o sentimento de ambos está claro, ainda que não explicitado. E são as muitas convenções sociais que reforçam o subentendido de Fernandez, na sua crença de que elas são predominantes e o único amor que existe é o romântico: logo, ela não se interessaria por ele - afinal, no restaurante ela não suspeitou que ele seria seu missivista -; ou que se interessasse, ele não seria uma boa “opção” para ela, que era jovem.


O outro ponto é a crítica ao casamento monogâmico, que desponta em outros casais que aparecem pontualmente nos filmes - e nos dois casos, com a morte do marido a dar a deixa.

No filme francês, os protagonistas são interrompidos pelo barulho de um velho que tem um mal no corredor do hotel. Correm para acudi-lo: ele está tentando se matar. Diz que há 40 anos se mata, que não suporta a mulher. No hospital, na conversa com a esposa do senhor, ela conta o quanto suporta as infidelidades do marido, desde que ele regresse à casa, e que não sabe o que fazer sem ele: sacrificou sua vida pelo outro e sua ausência implicaria o fim de tudo, a evidência do nada - no dia seguinte à morte do velho, irá se matar. A dependência emocional de ambos fazendo da vida deles um inferno, e sem capacidade de se resolverem, que não pela morte.

No indiano, quem morre é o pai de Ila, que já vinha enfermo há muito tempo. A mãe conta que temia como ficaria quando ele partisse, e tudo o que sente é fome e aborrecimento: é só agora que se permite ver o quanto dedicou os últimos anos de sua vida quase que exclusivamente a cuidar dele - há um cansaço nessa sua constatação, que não é do esforço, e sim do tempo que passou. 

Não vou interrogar se e o quanto haveria de amor nesse abdicar de si para cuidar do outro, o que cabe questionar é se isso precisava ser um sacrifício, um estreitar dos horizontes - presentes e futuros - dessa mulher.


Ainda que transitem dentro de certa lógica da monogamia - mesmo fazendo a crítica -, os dois filmes apontam um rompimento com a ideia do amor romântico - egocentrado e egoísta -, em favor de um amor que é dádiva. Há uma renúncia em nome do amor, que não se confunde com o apagamento de si na intenção de satisfazer o outro - que vai gerar uma dívida futura -, típico do amor romântico, e sim com um reconhecer a própria incompletude e, sem arroubos narcísicos, aceitar que a pessoa amada estará melhor em outras paisagens - e por isso a mostra do amor é respeitar a si e o próximo, deixando-o partir.

Nestes tempos em que tanto falamos em combater o ódio, e no qual o amor aparece como contraponto óbvio, vale mais do que nunca voltar a refletir sobre todas as facetas do amor e as formas de amar, para que esse sentimento possa ser libertador e ampliador de horizontes, e não clausura e sofrimento.


02 de setembro de 2022

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022