terça-feira, 22 de outubro de 2019

Venezuela: um país em colapso.

Por falta de remédios, hospitais vazios -
como se as pessoas tivessem desistido de ficar doentes.
No início de setembro, Gilberto Maringoni, graças a um crowdfunding do DCM, foi até Caracas, conferir in loco a situação da Venezuela [http://bit.ly/31GZf2J]. O que ele descreve em seus artigos é um país em crise. "Se em Caracas está bem, o resto do país pode estar explodindo, que eles não ligam": ouvi isso de um grupo de venezuelanos, e me lembrei ao ler os textos do professor da UFABC. Relativamente ao resto do país, a crise em Caracas é “estar bem”.
Estive na Venezuela no mesmo período que ele. Fui pelo projeto Caminhos de Solidariedade, da CNBB, por trabalhar no Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Estive em Ciudad Guayana e Ciudad Bolívar, no estado de Bolívar; e em Tucupita, no estado de Delta Amacuro. O que presenciei não foi um país em crise, foi um país em colapso.
No trajeto entre a fronteira com o Brasil, em Pacaraima, e Ciudad Guayana, quinze postos de fiscalização. Em alguns pedem documentos, em outros perguntam de onde viemos, para onde vamos; outros apenas observam atentamente dentro do carro. Na grande maioria das barreiras os agentes estatais usam fuzil AK-47, em poucos se restringem a pistolas. Isso reforça a impressão que tenho das leituras que faço: é guerra.
O país está em guerra - e não é civil. E é a população, claro, quem mais sofre as consequências dessa situação. Onde estive falta tudo, falta o básico.
O país detém as maiores reservas petrolíferas do mundo, mas falta gasolina em várias regiões - no caminho, estado de Amazonas, várias pessoas vem para o Brasil encher o tanque a R$ 5,00 o litro, valor que compraria 25.000 litros na Venezuela (1 bolívar o litro, 5.000 bolívares o real). Papel higiênico ou guardanapo, são raros os lugares que tem - sequer no palácio episcopal ou em shopping center -; e quando há, é porque alguém trouxe do exterior (admito, na casa paroquial de um padre estadunidense, roubei umas seis folhas de guardanapo, que me foram de grande utilidade na viagem). Parece anedótico, mas é grave. Não há papel para se limpar, haverá nas escolas? Não fomos conferir, por ser período de férias, porém o fato do último ano letivo ter tido apenas 50 dias efetivos de aula sinaliza o tamanho do caos - e as consequências para o futuro do país: é um projeto de destruição de longo prazo. Pior ainda quando ficamos sabemos que muitos pais vêem isso como positivo em alguma medida: sem aula, não precisam acordar cedo, e criança dormindo não reclama de fome o tempo todo (ouvir relatos como esse chocam, angustiam, comovem; deparar frente a frente com uma criança moribunda de fome é algo que ainda não consegui elaborar: adjetivos não fazem sentido). Esse foi um dos casos que me fez lembrar do romance Meio sol amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Sim, estive em uma área de guerra.
O salário mínimo é de dois dólares (quarenta mil bolívares), uma cartela com trinta ovos custa quatro dólares. O quilo de carne, cinco. Não vi mercados nas cidades que visitamos: grandes lojas fecharam e a venda de comida é feita em feiras, nas ruas ou improvisado na portas das casas - geralmente farinha para arepa e artigos importados do Brasil, farinha, óleo, bolacha. Mesmo nos locais "abastados" onde fomos recebidos rala-se os frios para fazer renderem mais. Economia de guerra.
Logo no primeiro dia, precisei de um relaxante muscular, por conta da viagem, e a guia que nos levava por Ciudad Guayana fazia mil ligações para conseguir um, sabe-se lá a que preço, em um esquema com uma enfermeira de uma clínica particular - por sorte, ainda que avisado tarde, uma das pessoas que viajou comigo avisou que tinha um. Num hospital oncológico que visitamos o médico comenta: a Venezuela tem 60 a 70% do medicamento para câncer de que necessita. O que faz com que os médicos tenham que escolher que paciente tentarão curar - é perverso com os pacientes tanto quanto com os médicos. Num hospital geral, médicos há - geralmente recém formados ou velhos -, contudo, não há remédios ou alimentação: o acompanhante recebe a receita e parte em busca do dinheiro para comprar comida e remédio, há dias que têm de escolher qual comprarão. Assim, casos simples, em que a internação duraria três dias, levam dez - quando não levam óbito. Diante desse quadro, muitas pessoas preferem morrer em casa: menos risco de contrair uma infecção - quem sabe um milagre não os cure? Um padre comenta: em sua paróquia as exéquias ocorriam uma vez por semana, passaram a ser diárias e já chegaram a vinte numa semana. "As pessoas estão fracas, desnutridas, qualquer infecção pode ser mortal". Biafra é aqui.
Os subsídios do governo - um dólar por semana, um arremedo de cesta básica e energia elétrica e água de graça (onde não há crise hídrica, o outro grupo do projeto, que visitou outras cidades, tomava banho com água do ar condicionado) - não são suficientes para garantir a sobrevivência - nem a permanência da população. Decorre disso que cerca de quatro milhões de venezuelanos, aproximadamente treze por cento da população, ter saído do país em três anos (seria como se a região sul do Brasil tivesse emigrado desde o golpe na Dilma, contra a democracia), e outro tanto ter ido para a região de Las Claritas, a região das minas de ouro, que um padre definiu como o "inferno na Terra", onde as pessoas vão na esperança de conseguirem fazer uma reserva para retomar a vida e acabam desumanizadas - e pobres. Nas cidades outrora pujantes, como Ciudad Guayana, muitas casas na periferia com a inscrição “CVD” - Se vende. Se vende, mas ninguém compra. Falta dinheiro, mas faltam também compradores. Nas residências em que ainda tem gente morando, é comum estarem habitadas apenas por idosos, ou por idosos e crianças, uma vez que os adultos em idade laboral saíram tentar a sobrevivência. Inclusive, essa a principal fonte de renda dos venezuelanos que conversamos, inclusive médicos: algum parente que mora fora e envia dinheiro. Um dos resultados mais imediatos e menos comentados: a depressão é uma constante - para quem fica como para quem parte.
Diante de tal estado de calamidade, não surpreende que Maduro seja praticamente uma unanimidade - ouvi apenas um homem, um chavista convicto, defender o presidente. Que não lhe botem a culpa - não toda - pela situação que estão vivenciando, a ele fica o ônus de não estar conseguindo dar nenhuma solução satisfatória - afinal, é ele quem ocupa o Palácio Miraflores. Pior, tentando mimetizar o estilo personalista de Chávez, porém sem o mesmo carisma e sem o mesmo contexto, o excesso de propaganda com seu rosto estampado, várias em locais inapropriados - como numa praça de pedágio ou no corredor de um hospital decrépito -, ajudam a criar uma antipatia extra. O que chama a atenção é que ele ainda tem legitimidade por ser o presidente da República, ninguém o questiona quanto a isso. Guaidó, tão alardeado por nosso presidente e por nossa mídia, é um nada: ouvi seu nome uma vez, de um taxista anti chavista radical, que disse que tudo na Venezuela piorou desde que Chávez assumiu, não houve nada de bom em vinte anos; posso creditar ter sido citado indiretamente outras duas vezes, por pessoas que falaram que tiveram esperança no início do ano. Fora isso, é um zero. José de Abreu teve mais respaldo interno quando se autodeclarou presidente do Brasil.
E se Maduro é tido por inepto, a oposição não suscita qualquer ânimo, mesmo entre os ferrenhos opositores do atual presidente: as críticas mais elaboradas dizem que não tem nenhum projeto de país, apenas desejo de poder. Em geral, as pessoas apenas lamentam que é mais do mesmo, são todos corruptos. A única vez que ouvi uma menção positiva (ou próximo a isso) a um grupo opositor, foi em uma rádio católica, acerca de uma dissidência de esquerda do chavismo, o Marea Socialista, ainda assim, muito rapidamente, e sem grande ânimo. Diante desse quadro, Maduro acaba sendo tolerado por completa falta de opção.
Ao cabo, à população resta o desalento, disfarçado com uma esperança vaga, uma esperança rasa, sem qualquer ancoragem na realidade: um desejo de dias melhores, porque como está não é possível suportar muito tempo mais; uma esperança posta num futuro indefinido, que evita criar expectativas ou prazos minimamente palpáveis, para não se deparar com mais uma decepção. No quotidiano de fome e carências, a vida que se arrasta em ritmo de morte, buscando uma precária sobreviência em uma guerra não declarada - mas não por isso menos devastadora.


22 de outubro de 2019



quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019