segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Casa vazia - retorno melancólico a São Paulo

Volto para São Paulo, para tomar a dose extra da vacina - não que Pato Branco não tenha, mas é tão organizado e bem divulgado que é quase como se não tivesse -, encontrar alguns amigos e pegar algumas coisas úteis que deixei para trás em minha saída às pressas, há quatro meses, com dez dias para organizar o que foi possível e ir acompanhar minha mãe em seu tratamento de saúde. 

Abro a porta do apartamento e sou tomado pelo familiar, pelo aroma característico de minhas casas - que uma ex-namorada certa feita definiu como misto de tênis pé com naftalina, talvez este cheiro vindo de tantas memórias guardadas, já que o antitraça mesmo, não tenho. O segundo momento é de estranhamentos. Primeiro, da ausência de meus gatos (que ficaram em Pato): chegar sem tê-los para me receber fez eu sentir a casa vazia como nunca sentira antes. Depois, das pequenas mudanças na ordem dos móveis: por um mês uma amiga ficou em minha casa (o plano era que ficasse enquanto eu estivesse fora), e também saiu às pressas, devido a questões pessoais. São pequenas alterações, nenhuma significativa, mas o suficiente para me lembrar: estive um tempo ausente, muita coisa aconteceu lá fora, e mesmo aqui dentro as coisas não são como antes.

Passo praticamente uma hora apenas respirando essas mudanças. Algumas dou conta de saber onde estavam antes, outras, simplesmente não consigo achar onde era seu lugar. O sofá da sala está mais para o centro, o arranhador dos gatos virado 90°, a mesinha de centro no centro da sala - mas encostada em que parede ela ficava antes? -, a espada de São Jorge longe da janela, a rede, recolhida. A cômoda do quarto em outra parede, o boneco para desenho de observação longe dos quadrinhos que ganhei da Dani e do Felipe. O banheiro sem os apetrechos dos gatos parece descomunalmente amplo - e demoro para me dar conta do que causava essa impressão. Na área de serviço estão os tapetes da casa (vários deles deixados pela antiga dona), não sei se limpos ou por lavar - seu cheiro é o mesmo de todo o resto da casa -, e uma profusão de caixas de papelão que deixo para os gatos: só então noto que a casa está limpa de todos esses cacarecos para os bichanos. Minha kombucha ainda está viva, um pacote de macarrão aberto fez uma prateleira se infestar de carunchos. Penso em Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Por ora a comparação é desmedida: a urgência se deu por motivos pessoais, mas se e quando toda essa guerra que se arma pelos fascistas de variados matizes estourar, meu regresso ao lar de São Paulo será apenas para uma casa vazia e com carunchos? Terei ainda uma casa? Ou terão queimados meus livros em praça pública, juntos com de tantos "comunistas", como fizeram com os 30 mil exemplares de Álvaro Linero, vice-presidente da Bolívia, em 2019?

Preparo um chimarrão. A cuia que uso é a mesma que aprendi a tomar mate - argentino -, em 1997, e ganhei de presente do Celestino quando me mudei de Pato Branco. As aulas no colégio em frente voltaram - trocaram o sinal, puseram o hino nacional no lugar de O Barbeiro de Sevilha -, mas as galinhas do pátio da escola, não. Coloco uma música para me acompanhar na solidão que me toma - a sequência mantém o clima nostálgico: Mogwai, Clap Your Hands Say Yeah, Songs: Ohia, Verve, Galaxie 500, Blick Bassi, Cícero - recordo que quem mo apresentou foi a Misson. 

Noto a ausência do cinzeiro que ela comprara para quando fumasse em minha casa - depois da sua partida utilizado como vaso para meu cacto, e após ele morrer também (tinha 19 anos), apenas uma recordação de enfeite enquanto espera novo uso. Encontro-o no armário dos pratos - e me questiono como terá sido sua ressignificação pela minha amiga. Na pia, uma caneca da Rosa Luxemburgo esperando ser lavada: "quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem". Eu complemento: quem se movimenta apenas no espaço que lhe é autorizado, também não. Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos - que me prendem, os três. A mochila que deixei no sofá e uma sacola preta largada na porta do banheiro mais de uma vez fizeram com que eu visse Guile dormindo e Libertad à espreita. Mas estou sozinho. Será que eles também sentem essa ausência toda quando estou fora? Apresso minha saída para tomar a vacina - saberei logo mais, no caminho, que, apesar do bonito céu plúmbeo, será uma caminhada melancólica e ressentida por entre recordações, desejos e questões mal resolvidas.

13 de dezembro de 2021.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A reeleição do projeto liberal-fascista prescinde do nome de quem o aplique

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do "outsider" seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito. 

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo - Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos - e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura - aprovando, inclusive, a "PEC da Bengala" para evitar o "aparelhamento" do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável - ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora). 

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito - mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República - sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país - assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em "segundo governo de extrema-direita" e não "segundo governo Bolsonaro", justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais). 

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: "Eu vejo uma coisa só". E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo - e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média. 

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência - dos famélicos que "roubam" comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ). 

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel - apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia. 

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja - Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos - e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição - o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a "terceira via" com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites. 


23 de novembro de 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou "fracassados") na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as "desviantes" no gênero ou na orientação sexual... e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso - e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti - mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos). 

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas - e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de "má fama" (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas - e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos - sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja - quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol). 

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio "de resultados", voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado. 

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a "brincadeira" e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro - e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha "se perdido", que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: "você é louco, por isso tá assim", ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: "não fala assim com seu irmão...", enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja - por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um "deus é mano" antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram "bugre", "do mato", "caipira" - e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco. 

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de "homossexualismo" - justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda - foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo - e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda "running for the lord" (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, "porque no Brasil não se valoriza o médico", argumentou. 

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas - deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro - creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas. 

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de "não precisava ser assim". Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores - da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente. 

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance - as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos - tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado - a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.


10 de novembro de 2021

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Acolher os fracassados da sociedade

Luis Nassif costuma comentar que Olavo de Carvalho tem o dom de convencer fracassados a acreditarem que seu não-sucesso é detalhe e o culpado são os outros - daí o exército de ressentidos que o seguem e estão dispostos a destruir tudo o que foi identificado pelo guru como fator de seu fracasso, menos aquilo que de fato o é: uma sociedade calcada na concorrência desmedida e que divide as pessoas entre as de sucesso (curiosamente as capitalistas ou que estão próximas desse núcleo) e as fracassadas (que se subdivide entre as que já notaram seu fracasso e as que ainda se iludem esperando o bilhete premiado da meritocracia que cai sempre no colo dos mesmos) - usando como régua para sucesso ou fracasso capital monetário e social.

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo. 

Há, porém, todo um espectro de evangélicos que não são das classes baixas, e que ainda não aparecem o tanto quanto deveriam nas análises. A existência desse perfil é extremamente importante para completar o discurso do "aqui se faz, aqui se ganha": se evangélicos se restringissem apenas a pobres e periféricos, não haveria como sustentar que deus ajuda já nesta vida. Ao mesmo tempo, eles não precisam de uma educação ascética, pois já possuem algum capital, nem me parece que a justificativa moral de que sua pretensa riqueza é uma benção divina seja suficiente para a conversão: uma vez com dinheiro, ainda mais se for ganho de modo "legal" (as aspas porque nem sempre o que é legal é moral), essas pessoas não deveriam se dar ao trabalho de prestar contas a quem quer que fosse - exceção feita à receita.

Talvez o discurso de louvor da pobreza da igreja católica seja  uma explicativa para a conversão de remediados para a crença evangélica: tendo aprendido nas aulas de catequese que cobiça é pecado e a riqueza seria sua materialização, a teologia da prosperidade e afins livraria tais pessoas de assumirem a dimensão política de suas escolhas e atos, entregando os ônus que delas decorrem a um ser (pretensamente) onipotente, que aparece como fiador do que possa ter feito de mal na sua escalada social.

Há também o elemento de acolher o fracassado na sociedade e fazê-lo de algum modo um vencedor. Nas classes baixas, é fácil identificar o fracassado e fácil dar um "banho de loja" (literalmente) que faz com que ele construa para si próprio uma manjada autonarrativa do mito do herói que galgou graças a deus. Nas classes médias isso é mais difícil, já que desde o berço a herança está posta e as oportunidades, abertas. Ainda assim, é visível um perfil de fracassado a esses que a miséria financeira não aflige: são os desajustados, que não conseguem se enturmar, por não serem "normais", e não raro acabam por sofrer bullying.

A igreja surge, então, como o lugar acolhedor, onde ele é aceito com menos violência que em outros grupos, que o estimula a se moldar ao "jeito certo", com paciência com seus deslizes, e que perdoa seu passado - ainda que faça questão se sempre rememorá-lo caso questione o caminho "sugerido". Esse processo não deixa de ser violento, de acarretar sofrimento - uma vez que não é uma aceitação de fato da pessoa, mas apenas na medida em que ela cede aos padrões impostos pela moral do grupo -, mas apresenta uma alternativa bem delineada de onde se vai chegar: a felicidade compartilhada (haja visto que a felicidade individualista do consumo já mostrou a essa classe ser uma miragem, ao menos se tida isoladamente).

É também esse tipo de pessoa que as esquerdas tem perdido na "guerra cultural" travada pelo neofascismo atual. E vai seguir perdendo, se em nome de uma pluralidade abstrata e que preza por uma pureza irreal seguir execrando quem não se encaixa no "jeito certo" de ser dissidência. A tal "cultura do cancelamento" sempre houve, mas ganhou outra dimensão com a internet, e tem servido muito mais para empurrar os desajustados para o discurso daqueles que num primeiro momento se mostram abertos a acolher os "tortos" e incompreendidos, do que para gerar uma autorreflexão em quem quer que seja (compare-se os efeitos dos muitos cancelamentos que tem ocorrido com o da chamada de atenção que Ana Maria Braga levou após falar em "racismo reverso" [https://bit.ly/30a2gxO]). 

Ou nos lembramos que todos os excluídos da sociedade - independente se por questão de classe ou por questões existenciais - foram forjados nela, e não tem por obrigação nascer sabendo e conseguindo enxergar diferente do que sempre lhes foi ensinado - na família, na igreja, na escola, na televisão, na internet -, e aprendemos a escutá-la realmente, para acolhê-las de fato, com o que é possível potencializar sua dissidência em prol de um devir que não seja um fluxograma de consumo e destruição do ambiente; ou seguiremos tentando convencer as paredes do quarto que fizemos tudo o que podíamos, enquanto lamentando impotentes o avanço do ultraliberalismo neofascista sobre todas as esferas da vida.

08 de novembro de 2021.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma tarde preguiçosa

A tarde é preguiçosa. Há um ar de feriado na casa, apesar de lá fora estar estipulado que é dia de trabalho, com as máquinas das construções em volta a abafar o som dos pássaros - ainda assim, há pouco escutei uma revoada de quero-queros. Com a internet fora do ar, meu irmão está a jogar computador - já foi fiscalizar se suas galinhas seguem todas no quintal: seguem. Minha mãe tira a sesta habitual - vai acordar daqui a pouco para a hora da fruta, três da tarde, tal qual meu avô fazia. Esqueceu a porta  do quarto aberta e Guile, meu gato, se abancou ao seu lado, guardando prudente distância para não acordá-la e ser posto para fora da cama. Minha outra gata, Libertad, dorme no sofá ao meu lado, na sala de visitas - que apesar do nome, poucas vezes foi utilizada para esse fim -, enquanto eu me espicho no sofá mais velho da casa, com mais de trinta anos, e o mais confortável também - e lembro ainda indignado que minha mãe deu as outras duas poltronas que compunham o jogo, assim como indignado fico quando lembro que meu pai deu o rádio três-em-um da National, de 1976, em perfeito estado. Na impossibilidade de assistir às aulas online, me deixo levar pela Isabel Allende, e seu A casa dos espíritos. A escrita doce da chilena me inspira a escrever também - ainda não cheguei na parte de decadência que se anuncia para o último terço. Diferentemente da do romance, a casa de minha mãe não fica na esquina, mas bem no meio da quadra, e nunca foi lugar para serões nem encontros sociais. O mais próximo disso deu-se por obra dos filhos, na infância, a trazer os amiguinhos (dos quais hoje não me resta nenhum), e das visitas de parentes (boa parte uma classe média a prestações e incompente que age como se fosse Esteban Trueba), também coisa de um outro tempo, de um outro mundo - vários dos quais ainda seguem vivos, infelizmente, e assombram feito almas infernais com ameaças de visitas cheias de ódios e nesciedades, que repilo com menos violência que, calado por anos, presenciei em suas palavras contra nordestinos, negros, pobres, gays, presidiários, maconheiros, políticos, comunistas, petistas (como meu pai, que preferia ficar quieto a se rebaixar a discutir com "panacas", como ele qualificava, numa sonoridade de tapa no PAnaca). Bem que Clara havia dito à Blanca que são os vivos, não os mortos, que devemos temer. Por mais que a casa tampouco tenha tido espaço para o sobrenatural, pergunto que espíritos poderiam estar a povoá-la agora. Meu pai, meu avô, os bichos de estimação que tivemos. Meu eu criança também vaga por aqui, creio. Desconfio que esteja lendo o livro por sobre meu ombro, pensando que achava mais legal quando em uma tarde assim eu passava vendo desenhos animados ou brincando lá fora: um tempo em que ao olhar pela janela eu tinha uma ampla visão do céu, entrecortada apenas por árvores, e não esse céu esquadrinhado por prédios de gosto de duvidoso e necessidade contestável - salvo a necessidade de enriquecer os ricos empreiteiros deste sertão latinazi de futuro estéril. Lembro que durante minha infância, da janela da cozinha, antes dos prédios brotarem como formigueiros, se as árvores não estivessem muito grandes, víamos o relógio da igreja matriz - assim como ouvíamos seu badalar a cada quinze minutos. Hoje não é possível vê-lo nem escutá-lo - mas se fosse possível, seria sem utilidade, já que está parado na hora errada desde que Frei Policarpo morreu.

27 de outubro de 2021


PS: Foto tirada três horas depois da crônica.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A mídia já prepara o novo round da luta contra o SUS e os serviços públicos

Desde o início dos anos 1990 há uma pesada campanha de desqualificação de tudo o que é público - dos funcionários aos serviços - e de louvor a tudo o que é privado e segue a (pretensa e extremamente ilusória) eficiência do mercado - mineração, telefonia, cadeia de gás e petróleo, educação, saúde (parênteses: trinta anos de bombardeio ideológico cerrado e não conseguimos estabelecer uma contra-narrativa eficiente; sim, há o oligopólio da mídia, que cala toda voz dissonante aos seus interesses (e isso explica porquê um certo deputado tinha espaço, dez anos atrás, para falar atrocidades e babar antipetismo), mas há também falha na estratégia de comunicação das esquerdas. fecha parênteses). 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de complicações a esse discurso ideológico - repetido mesmo por quem vivencia seu negar na realidade. Primeiro, salientou a importância do SUS, a qualidade de seus serviços, apesar do subfinanciamento histórico e agravado desde o golpe de 2016 (ponto nunca tratado pela mídia corporativa). O Sistema Único de Saúde está longe da excelência de um hospital de elite, mas 98% da população está igualmente longe de um hospital desse nível. Junto com o SUS, reabilitou-se em alguma medida o funcionarismo público. Isso é preparar o discurso não só contra o ultraliberalismo defendido pelos donos do dinheiro e das empresas de mídia nas discussões eleitorais de 2022, como mesmo para o PT, que teve como uma de suas marcas certa recomposição dos serviços públicos (bem problemática, mas não é meu foco aqui).

Com a CPI do Covid e as denúncias contra a Prevent Senior, uma dose a mais de reforço no discurso da saúde pública e contra a rede privada. Neste caso, sigo a linha do Luis Nassif e não entro nessa comunhão nacional que pede a fogueira para a empresa: por mais que haja indícios de desvios graves de conduta por parte do plano de saúde, ainda não há provas robustas de que houve decisão deliberada de matar pacientes (por isso a necessidade de maiores investigações antes de um veredicto e da queima da bruxa em praça pública). Ao que tudo indica, uma das principais acusações que se tem contra a empresa é de ordem moral: atuar como uma empresa privada que visa o lucro (quem esperaria isso de uma empresa capitalista, não é? O fato de ela lucrar em cima da saúde de pessoas, e não com salsichas ou comunicações, é mero detalhe insignificante ao Mercado), e ter agido de maneira idêntica ao que fizeram suas concorrentes, inclusive na prescrição de cloroquina como tratamento, no início da pandemia - agora, por que a imprensa corporativa não fala dos outros planos de saúde, Nassif traz bons argumentos, e nenhum deles é fruto de preocupação com a saúde (ao menos não a dos pacientes) [https://bit.ly/3lScomZ].

No UOL, do grupo Folha, Thiago Herdy parece tentar fazer uma moral com os patrões ao soltar a matéria "Idosos morreram mais de covid na rede pública do que na rede privada de SP" [https://bit.ly/3pfbNh2]. O colunista ainda tem o mínimo de decência jornalística (cada vez mais rara na mídia corporativa) de pôr o lado dos críticos da sua análise simplista: está no fim do longo artigo, para os poucos que chegarem até lá - e sem que merecesse rever o temerário título da reportagem. 

E porque insisto em chamar de simplista a avaliação do repórter, por mais que os dados apontem, de fato, que na rede pública de SP houve mais óbitos que na rede particular? Pelo simples motivo que, por tudo o que se sabe do novo coronavírus até agora, há uma série de agravantes na infecção devido às condições prévias de saúde das pessoas, ao passo que o título da notícia atribui a diferença de letalidade estritamente à pretensa diferença no tratamento dos pacientes infectados - ou, em outras palavras, à ineficiência do serviço público, do SUS.

Se os dados indicam que há mais mortes na rede pública, que atende preferencialmente pessoas mais pobres e moradoras das periferias da cidade, será que as condições socioeconômicas dessas pessoas não afeta no sucesso ou insucesso do tratamento? Para Herdy, não. Covid é covid, e uma pessoa chegar aos sessenta anos sem saber que era diabética (e portanto, sem cuidar) em nada influencia suas chances de sucumbir ao novo coronavírus (exemplo esse de uma pessoa que conheço, catadora de recicláveis, que felizmente sobreviveu, depois de 27 dias de internação). Um idoso branco de classe média, com plano de saúde, com amplo acesso a informação e cuidados preventivos, dinheiro para uma dieta rica e academia, teria a mesma chance de uma pessoa pobre, que mora na periferia, que muito provavelmente em algum momento da vida já passou por insegurança alimentar e que não possui uma cultura de cuidados preventivos, com exames periódicos e visitas ao médico sem ser em casos graves, quando se apelava ao pronto socorro - provavelmente habituadas que estavam a ter que chegar às três da manhã para conseguir marcar uma consulta para dali seis meses no posto de saúde do bairro.

Há quem prefira ver a manchete de Herdy para o UOL/Folha apenas como deslize, falta de cuidado, desatenção. Com o histórico da mídia corporativa e a continuação de seu padrão de desinformação - principalmente quando está em jogo mercados altamente lucrativos -, eu não consigo ver na matéria que não o preparo para uma nova bateria de ataques contra o SUS e os serviços públicos, tentar destruir a imagem legitimamente construída durante a pandemia de que é no Estado, que serve o público, e nas empresas privadas, que visam o lucro, onde está realmente a preocupação com a saúde.

18 de outubro de 2021

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Prévias do PSDB: incapaz de se atualizar e sem projeto, o partido tenta sobreviver ao que ele próprio criou.

A elite financeira do país busca desesperadamente uma tal "terceira via", algum candidato que rompa com a pretensa polarização entre Lula (ou qualquer nome do PT) e Bolsonaro e garanta não somente seus lucros - que isso o PT fez -, mas o abismo social que impede qualquer questionamento ao status quo

Tirando Ciro Gomes - um coronel esclarecido que parece ter decidido seguir os rumos de José Serra e quer ser presidente a qualquer custo -, são nomes pífios, artificiais, sem nenhum apelo fora das bolhas endinheiradas e de seus asseclas iludidos da classe média. 

O PSDB seria o partido mais consagrado para fazer esse papel - desde que foi deslocado do polo antipetista, que ocupava desde 1994, pelo candidato da terceira via em 2018, Bolsonaro. Contudo, se os anos no poder não ensinaram muita coisa ao partido, os anos na oposição, menos ainda. No máximo - segundo alguns analistas - poderia ter aprendido algo nos anos como coadjuvante ou linha auxiliar em governos militarizados (Temer e Bolsonaro): se acaso o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, aparecesse como viável eleitoralmente para a terceira via, seria de bom tom estar em um partido consolidado (de uma "massa limpinha e cheirosa", como disse certa feita uma publicitária do partido, digo, uma jornalista de um jornal tradicional) para dar o verniz democrático necessário para apresentá-lo ao mundo globalizado. Parece que nem isso o PSDB aprendeu.

Dos nomes que se apresentaram como pré-candidatos, Arthur Virgílio e Tasso Jereissati entraram para marcar posição e tentar evitar que aconteça a nível federal o racha fratricida que houve em São Paulo. 

Eduardo Leite, que enquanto governador do Rio Grande do Sul pratica um neoliberalismo duro, de cartilha, antissocial e incapaz de pensar a curto, médio ou longo prazo, no lançamento de sua pré candidatura ficou entre clichês motivacionais e a incrível tese da grande mídia (que Maria Inês Nassif, há mais de uma década avisava que havia se transformado no verdadeiro partido de oposição) de que foi o PT, principalmente Lula, quem elegeu Bolsonaro - ou seja, está preparando o discurso da derrota. Talvez o mais interessante posto por ele foi uma postura menos personalista - algo que Haddad mostrou ser complicado na tradição política brasileira, mesmo em um partido com uma militância ativa e aguerrida [https://bit.ly/3EPYysv].

Doria Jr., por ser governador do principal estado do país, seria o nome mais natural. Contudo, sua aprovação como "gestor" do estado já mostra suas credenciais. Além disso, vale frisar que suas vitórias nas eleições de 2016 e 2018 se deram muito mais por uma confluência de fatores - bem aproveitados por seus publicitários -, que sincronizavam com seu discurso de ódio há anos exercitado (falei, quando Doria Jr. foi escolhido para ser candidato a prefeito, que isso desabilitava o PSDB do campo democrático [bit.ly/cG160201], e se ainda insistimos no partido como aliado da democracia é porque os padrões de comparação se rebaixaram excessivamente). Por mais que sua equipe de publicidade tenha tentado repaginar seu perfil de fascista que joga golfe para democrata que dialoga e defende a ciência - chegando a enganar alguns incautos muito predispostos a acreditar em qualquer coisa -, o tucano mostra que é o que sempre foi: um bom representante da elite de rapina nacional. Até aí, nenhuma novidade: esperar algo de uma classe que hesitou só de faz-de-conta na hora de apoiar um fascista com ligações com milícias, só para garantir o saque do estado e dos trabalhadores do país mostra qual o caráter dessa classe. Mais: ao fazer um discurso centrado no antipetismo (que é a encarnação de qualquer coisa que cheire a direitos sociais para o povo), sem alusão ao atual mandatário do país, Doria Jr. mostra que o fascismo nunca foi um problema e é, sim, uma opção válida para se atingir o poder.

Fora do discurso antipetista, Doria Jr. não foi além de platitudes de baixa intensidade que ele e seu partido sequer são capazes de seguir - não que isso seja problema eleitoral: a grande mídia vai fazer seu trabalho para que nada disso apareça. Inclusive, não deixa de ser irônico ele falar em pôr uma mulher como vice, quando foi quem articulou para que fosse Ricardo Nunes e não uma mulher, a vice na chapa de Bruno Covas, em 2020 [https://bit.ly/2ZyMBrn].

Do que foi apresentado pelo PSDB, notamos que o partido tenta se viabilizar eleitoralmente, mas não tem mais qualquer projeto de país, mesmo que em linhas gerais - quando muito segue a cartilha neoliberal dos anos 1990 que fracassou em toda a América Latina. 

Desde que Alckmin, em 2006, ao se ver obrigado a apresentar propostas concretas e perder votos do primeiro para o segundo turno com isso, o partido teve que assumir que seu projeto neoliberal não tinha chances de vencer as eleições - e o PT havia achado um flanco por onde vencer sempre -; ao mesmo tempo, seu caráter classista impediu que o partido revisse suas propostas econômicas, mesmo que em detalhes. Se falar de economia era derrota certa, Serra achou a solução em 2010: sua plataforma foi baseada em antipetismo e pautas morais reacionárias. Com isso começou a dinamitar qualquer veleidade do PSDB seguir como um partido sério e, pior, começou a esgarçar a própria democracia liberal do país (análises da Alemanha sob Merkel tem me interessado por permitir ver paralelos com o governo Lula e a forma como o status quo reagiu em cada país), esgarçamento concretizado por Aécio Neves, em 2014 (o que veio depois foi só consequência de uma democracia desacreditada, praticamente de fachada, pois não era respeitada pela oposição nem no básico de reconhecer o resultado eleitoral). 

O partido até largou das pautas morais, mas não consegue ir além do antipetismo e do neoliberalismo - todas essas três pautas apropriadas por Bolsonaro, a última de maneira velada no seu discurso ao grande público. Agora, com Doria Jr. e Leite, mostra que deve tentar se reinventar nas pautas morais, porém sem mexer no essencial da economia política e da exclusão social. Pior, mostra que vai seguir com o processo de fuga da discussão política, com o trato do adversário como inimigo - hesitei em chamar de "satanização do inimigo", mais afim aos tempos necroteopolíticos atuais -, e uso de um bode expiatório que só convence os convertidos - mas prepara terreno para a aceitação de um futuro golpe que termine de enterrar nossa moribunda democracia.


23 de setembro de 2021

domingo, 19 de setembro de 2021

O ponto onde estou

Por estes dias, na casa de minha mãe - que foi a casa de minha infância e adolescência e ainda hoje chamo de "minha casa", ainda que "minha casa" também seja a casa de São Paulo -, fiquei a me questionar onde eu imaginava que estaria beirando os quarenta anos, quando ainda residia aqui. Que planos tinha aquele adolescente? Que esperava ele do futuro, essa matéria-vácuo da qual é feita a nossa vida, o nada que nos anima a permanecer vivos? Ainda que o corpo preso ao presente, tributário do passado, suportaríamos a existência sem a perspetiva do devir? Uma questão que a necropolítica que toma nossa sociedade nos impõe cada vez mais. 

Penso em Mathieu, do romance A idade da razão, de Sartre. Nunca sonhei ser livre - provavelmente porque nunca tivesse parado até então para refletir o quanto estou preso, não só na própria dureza da matéria que nos compõe e nos cerca, como nesse bem intricado jogo de espelhos sociais que oculta de nós nossa verdadeira condição. Talvez porque também nunca tenha estado preso forte o bastante para achar incômodo: e aqui não por ter tido uma falsa consciência de que seria livre, mas por ter tido pais que me autorizavam a experimentar bastante (ainda que menos do que, no fundo, eu gostaria), por ter tido a sorte de estudar a primeira infância numa escola que não me tolhia até o último broto, até me tornar um bruto reprodutor de uma cartilha, de uma cantinela do poder (ainda que toda educação, todo processo civilizatório, implique em renúncias e limitações), por ter sempre voado em pensamentos, esse rincão onde as limitações chegam muito mitigadas (eu nunca soube o que é tédio).

Ao pensar nas minhas aspirações de infância e adolescência, noto que havia uma ingênua crença numa liberdade classe média: de que meu futuro quem faz sou eu - ainda que desde cedo meus pais tenham me ensinado que há limitações, como não ter sido piloto de fórmula 1, porque meu pai não quis comprar um kart (deixa de lado o fato de que ele não tinha condições), ou jogador de futebol, porque meu pai não me autorizou a uma viagem de oito horas sem condições de segurança. Por sorte, trinta anos depois, ao menos eu não corro mais atrás dessa ilusão perversa. 

A criança de cinco anos que tiraniza Mathieu, cobrando dele a realização de suas esperanças, em mim fica restrita ao passado - ainda que o processo de isolá-la sem presentificá-la tenha levado árduos anos no divã, um trabalho complexo para superar a sensação de ser um fracassado a cada renúncia, desistência ou a cada... fracasso. E é por isso que posso repassar os sonhos daquele adolescente que fazia as tarefas de casa nos intervalos entre as aulas para poder passar a tarde jogando video-game, assistindo à MTV Latina, e indo jogar futebol às cinco e meia no Patão - depois substituído pelo "café com jornal" com os pais -, sem dor ao afirmar: para o Daniel de 1996, o daniel de 2021 é um grande fracasso. Uma retubante coleção de erros que não levaram a nenhuma grandeza (eu mesmo preferi passar a grafar meu nome todo em minúscula, como forma de não me pôr acima de nada), que desembocaram num grande nada a espera do amanhã.

Quando decidira por cursar psicologia, depois de um leque considerável de carreiras que me interessavam - arquitetura e urbanismo, nutrição, estatística, filosofia -, e optara por ser na USP de Ribeirão Preto, tinha posto para mim que minha meta era me tornar um intelectual - que então eu confundia, por ignorância, com a área acadêmica e de escrita. Talvez eu ainda persista com essa meta. Como meu objetivo na psicologia era pesquisa e ensino, e eu fazia questão de ser em algo que eu gostava, desisti do curso para fazer filosofia - dessa vez na Unicamp, por medo de morar em São Paulo, a cidade pela qual hoje sou apaixonado. 

E a vida foi se entortando: participei de projetos de extensão social, da rádio livre dos alunos (a Rádio Muda, e até hoje meu e-mail é o do programa que eu apresentava), fui dar aula de alfabetização para adultos e em cursinho popular. Descobri que leitura vai muito além dos livros, que títulos acadêmicos não tem uma ligação necessária com conhecimento, e que o diálogo com o outro, principalmente o vindo de outra realidade social, é um manancial de conhecimento que nenhum curso consegue suprir. Não só perdi meu preconceito uspiano (e unicamper também) com professor de ensino fundamental ("professor é professor porque não teve capacidade para ser pesquisador", como disse certa feita um ex-presidente da república que pouco investiu seja em ensino, seja em pesquisa), como vi que a burocracia na academia deixa pouco espaço para o que eu entendia como intelectual: uma pessoa com conhecimentos aprofundados e ao mesmo tempo uma razoável visão de mundo, engajado de alguma forma socialmente - que não na linha neoliberal "fazendo meu melhor estarei contribuindo para a sociedade". 

Sim, há quem consiga conciliar (como o Vladimir Safatle, Peter Pál Pelbart, Miguel Nicolelis, entre outros), mas são exceções: de meus colegas de faculdade, não sei se algum conseguiu; da minha parte, há tempos reconheci que sou uma pessoa bem mediana (e lenta de raciocínio), sem capacidade de conciliar, e fiz minha escolha - que é mais uma tentativa, já que não há posto a ser alcançado. A escrita virou um hábito, uma forma de eu organizar para mim mesmo meus pensamentos - e pô-los à prova, caso alguém queira ler (além de meus pais). E confesso: tirando os quatro livros que publiquei até agora ([memórias feitas de saudades], Trezenhum. Humor sem graça., Passageiro e Linha de Produção/Linha de Descartes), e alguns poucos textos (a maioria dos quais pretendo lançar em livros), dificilmente encontro algo que escrevi que me agrade. Os próprios livros foram lançados para uma satisfação pessoal, já que suas vendas não vão além de poucos amigos - inquestionáveis fracassos de vendas e crítica.

Me ponho a perguntar: e se o daniel tivesse realizado os sonhos grandiosos do Daniel, onde estaria eu hoje? Provavelmente "casado, fútil, quotidiano e tributável". Professor universitário em uma cidade média, em um relacionamento monogâmico estável (ou em busca de um), sem filhos, preocupado com burocracias, escrevendo artigos técnicos que só pareceristas leriam, conversando com pessoas sempre muito parecidas, e mal vendo a hora de chegar as férias para fugir do dia a dia (lembro agora que minha primeira namorada uma vez disse que me via no futuro em roupão, lendo jornal pela manhã, indignado com os desvarios do mundo, sem conseguir ir além da sala da minha casa com minha indignação; ela estava certa, se eu tivesse seguido "em linha reta").

Ter sido um fracassado, um traidor de meus sonhos infantis e adolescentes, me permitiu ser coerente àquela visão de mundo crítica e empática que aprendi com meus pais; me deu oportunidade de fugir de amarras sociais bem camufladas e tentar, sim, uma certa liberdade que aos quinze anos eu nem sonhava existir; me fez ir além da indignação impotente e tentar construir ações efetivas de transformação social em prol de uma sociedade mais justa e igualitária - que o diga cinco anos trabalhando junto à Pastoral dos Migrantes, mesmo sendo ateu; e meu atual trabalho junto a cooperativas de catadores de recicláveis. Me tornei um escritor de domingo (para usar outra expressão de Sartre) que sonha um dia em conseguir redigir uma obra-prima, mas não se cobra por ela - se não vier, não é por ela que estou vivendo -, enquanto planeja qual o próximo curso que vai fazer (corte e costura? palhaço? mais outra graduação ou mestrado?). 

"Só quero saber/ Do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder", diz uma música de uma banda de sucesso. Por sorte, a condição de classe média me permitiu perder tempo, fazer coisas aleatórias e sem utilidade prática imediata - ou mesmo quando tinham, não consegui seguir na profissão e isso não foi problemático (como iluminador cênico ou marceneiro) -, e pude, em meu trajeto de vida, aproveitar o caminho e a caminhada, sem ter o olhar fixo unicamente no destino. Melhor: pude, a partir de certa altura, sequer me impor destino a ser alcançado que não fossem pequenas vitórias, como a publicação de um livro ou uma apresentação de dança. Daí eu preferir a letra amargurada de um banda de menos sucesso: "Tudo o que eu sempre sonhei/ Tanto que eu consegui/ É tão bom estar aqui/ Quanto ainda está por vir?".

Não cheguei onde eu queria, e sim onde nunca imaginara. Tenho várias frustrações, nenhuma delas por ter abandonado os objetivos planejados e as rotas traçadas quando era mais jovem.


19 de setembro de 2021.


* Apenas para salientar: tenho plena consciência de que toda liberdade é limitada e condicionada.

** Para ser mais preciso quanto à frase de FHC que representa o pensamento de muitos acadêmicos: "Se a pessoa não consegue produzir, coitado, vai ser professor. Então fica a angústia: se ele vai ter um nome na praça ou se ele vai dar aula a vida inteira e repetir o que os outros fazem" (Folha, 27/11/2001)

*** Tudo o que sempre sonhei, do Pullovers:



**** O trecho do Sartre que fui atrás para complementar este texto, em tradução lusitana:

"«Uma vida», pensou Mathieu, «é feita com o futuro, como os corpos são feitos com o vácuo». Baixou a cabeça. Pensava na própria vida. O futuro penetrara‑a até à medula. Tudo nela estava em suspenso. Os dias mais recuados da sua infância, o dia em que dissera «Serei livre», o dia em que dissera «Serei grande», apareciam‑lhe, ainda agora, com o futuro particular, como um pequenino céu pessoal e bem redondo em cima deles, e esse futuro era ele, ele tal qual era agora, cansado e amadurecido. Tinham direitos sobre ele e através de todo aquele tempo decorrido mantinham as suas exigências e ele tinha amiúde remorsos esmagadores porque o seu presente negligente e céptico era o velho futuro dos dias do passado. Era ele que tinham esperado vinte anos, era dele, desse homem cansado, que uma criança dura exigira a realização de suas esperanças; dependia dele que os juramentos infantis permanecessem infantis para sempre, ou se tornassem os primeiros sinais de um destino. O seu passado sofria sem cessar os retoques do presente; cada dia vivido destruía um

pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo dia tinha novo futuro; de espera em espera, de futuro em futuro, a vida de Mathieu deslizava docemente... em direcção a quê? Em direcção a nada."

domingo, 12 de setembro de 2021

12 de setembro: o fiasco da tentativa de uma nova onda antipetista

Se o 7 de setembro bolsonarista foi um fiasco, o 12 de setembro da tal terceira via é até difícil de classificar. Houve forte discussão se a esquerda estaria sendo sectária ao não participar do ato convocado pelo MBL - assim como muito se debateu se o Grito dos Excluídos, que acontece há 27 anos no dia 7 de setembro, deveria ser mantido ou a esquerda e os movimentos sociais deveriam fugir e deixar a rua para os fascistas. 

Modestos mas não esvaziados, os Gritos dos Excluídos aconteceram em todo o país - e tive a impressão de terem sido maiores que em anos anteriores (quando eu participava, ainda que discretamente, da sua organização). O 12 de setembro, mesmo com convocações na grande mídia e sem o temor de "conflito nas ruas", foi um fiasco digno de nota.

Contudo, as notas tem sido postas sempre no MBL, responsável pela convocação e, portanto, pelo fracasso. Nada mais falso. MBL nunca teve organicidade nem relevância, se não for a reboque de outros movimentos - sempre de tendências fascistas, fascistóides ou fascistizantes.

Muitos temiam que o 12 de setembro tivesse considerável adesão e a esquerda ficasse escamoteada num pretenso movimento de impeachment, com a pauta capturada pela extrema-direita - tal qual aconteceu em 2013, pelo próprio MBL (surgido para confundir os incautos com o MPL que puxava os protestos) e afins. Parte da esquerda já tinha ajudado a preparar o terreno para o putsch mblista da pauta, ao focar demasiadamente na figura do presidente da República, com o #ForaBolsonaro se sobressaindo a temas mais importantes de quem o conduz (e que, sabemos, serão mantidos por um eventual governo Mourão). Era limitar todo o movimento a tirar o presidente (seja da cadeira presidencial, seja da corrida de 20220) e deixar a boiada seguir passando - tal qual explicitara o ex-secretário de Geraldo Alckmin, então ministro de Bolsonaro.

Não houve fracasso do MBL nos pífios atos de 12 de setembro. O que fracassou foi toda uma estratégia de parte das elites de repetir o movimento de impeachment de Dilma, derrota de Haddad em São Paulo e eleição de Bolsonaro: o ato deveria ter sido um fato político novo, ele marcaria uma nova grande comunhão nacional dos que não estão fechados com nem o fascismo bolsonarista nem com a social-democracia e entulhos do estado de direito (como foi o impeachment de Dilma). Não estar junto com os fascistas de sapatênis do tucanato, com a #TurmaBoa do coronel esclarecido do Ceará ou com empreendedores do movimento bolsonarista light (como bem classificou Pablo Villaça) seria pactuar com setores minoritários e radicalizados da sociedade, com os corruptos, com os autoritários. 

Com a meia dúzia que conseguiram aglutinar, apesar de toda mobilização, fica evidente quem são os minoritários, mas ainda assim devem insistir no discurso de que são eles os democratas - as análises de certos jornalistas porta-vozes do capital já apontam essa tentativa, ao culpar o PT pelo fracasso, por se recusar ao participar do ato contra o partido e contra Bolsonaro.

O ponto agora para essas elites é como conseguir derrubar Lula e o PT, para não serem obrigados a fazer uma escolha muito difícil em 2022. Devem fazer mais algumas tentativas com uma terceira via civil, enquanto aumentam os ataques às esquerdas e analisam se o enquadro de Gilmar Mendes e Temer a Bolsonaro de fato colocou o mandatário na linha que eles gostariam - ou se Mourão teria alguma viabilidade política, ou Santos Cruz. Lula, por seu turno, deve fazer também acenos, já que, em tese, sai ainda mais forte desses dois fracassos seguidos dos movimentos anti-lulistas.

Esquerdas e movimentos sociais marcaram suas mobilizações para o dia 02 de outubro. Será um teste vital para ver sua capacidade de mobilização e, principalmente, sua capacidade de articular pautas importantes para o conjunto da sociedade - desemprego, inflação, educação, saúde, comida, vacina -, e sair da armadilha de encarnar todos os males em Bolsonaro (seria interessante que conseguisse furar a cortina de ferro posta pela mídia corporativa, mas isso é mais complicado). Uma mobilização que consiga pautar o debate de temas e não de nomes.


12 de setembro de 2021

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Apetrechos que nos permitem poupar tempo e atrofiar a atenção

Logo que saí da cidade de meus pais para estudar, eles compraram os móveis para minha nova casa, e dentre eles estava uma máquina de lavar roupas - meus amigos geralmente tinham tanquinhos, ou levavam no fim de semana para a mãe lavar (impossível para mim e as vinte horas que me afastavam da minha cidade natal). Como a máquina faz tudo, é pôr sabão e amaciante nos devidos compartimentos, ligar e ir fazer outra coisa: nunca tive necessidade de esfregar uma roupa, para decepção da minha mãe, que se queixa do que ela chama de "encardido" nas minhas camisetas brancas - que eu prefiro chamar de "cor adquirida naturalmente com o tempo e com o uso e que não a desabona". Por muito tempo acho que esse foi o único facilitador das atividades corriqueiras que tive.

Já morando na capital, comprei uma máquina de fazer pão (em Campinas eu preparava na mão): era pôr os ingredientes, decidir a hora pra ficar pronto (geralmente pela manhã, logo quando eu acordo) e não me preocupar mais. Tempos depois, influenciado por uma ex-companheira, adquiri uma panela de arroz: ainda que seja algo fácil de fazer, a referida panela evita que o arroz queime (e também que fique bom como quando preparado com temperos e tudo o mais no fogo). Outra aquisição foi uma chaleira elétrica: ao invés de ter que ficar cuidando para ver a hora certa de desligar o fogão para a água do chimarrão, correndo o risco de ora desligar muito fria, ora muito quente, é marcar os 80ºC e atender os insistentes pedidos de carinho que Guile, meu gato, sempre faz quando me ponho diante da pia da cozinha ou do fogão. Faz um tempo também que me muni de um robô de limpeza, um modelo recomendado, ainda que antigo, por não ser controlado por aplicativo, e que parece ter um sensor que identifica onde há focos de maior sujeira e se desvia deles.

Ou seja, enquanto escrevo esta crônica, é possível que "eu esteja" também lavando a roupa, limpando a casa, preparando pão, arroz e esquentando a água do chimarrão (além de ouvindo música, claro). 

Mais provável, contudo, que esse tempo que ganho com as quinquilharias que tenho em minha casa sirvam para eu perder uma hora a mais na internet com desnecessariedades supérfluas e redes sociais. Guy Debord, na tese 153 de seu livro de 1967, comentava que os avanços no ganho de tempo das atividades e deslocamentos ordinários das pessoas era revertido em tempo defronte a televisão: no século XXI, o avanço tecnológico nos permitiu ganhar ainda mais tempo e nos oferece como contrapartida um verdadeiro ralo de tempo, um meio de perder ainda mais tempo de modo demi-produtivo - produtivo para o sistema capitalista, não para nós.

Contudo, há algo mais que esses facilitadores da nossa rotina alteram, que é a nossa percepção e a própria relação com tudo o que nos rodeia: o pão que fica pronto na hora definida é diferente daquele que você decidiu pôr mais ou menos farinha na hora da sova, e que a depender da fome, preferiu não deixar crescer tanto; o robô que faz a faxina mudou drasticamente minha relação com minha própria casa: que sempre limpei por conta, e desde uma residência artística em dança com Edu Fukushima e Bia Sano, em 2016, passei a passar pano na mão e não mais com rodo (https://bit.ly/cG170107), era uma forma de me irmanar de meandros invisíveis dos entre-móveis - experiência hoje cada vez mais rara. 

Notei isso recentemente, quando comprei uma máquina de café expresso - com pandemia, não vinha mais tomando café fora de casa, e sentia falta do expresso. Como acho máquinas de cápsulas uma produção cretina de lixo - e ainda por cima cada café fica caro como beber fora -, optei por uma máquina "comum", dessas que se põe o café no cachimbo, aciona o botão e desliga quando julga que há líquido suficiente. Cada vez mais desacostumado a ter atenção a esse tipo de tarefa, num de seus primeiros uso, liguei a máquina e fui fazer outra coisa, resultando em café transbordando da xícara. 

Então é isso? Não posso ter trinta segundos de atenção ao que está sendo preparado por mim e para mim, porque preciso otimizar meu tempo e curtir mais seis ou sete fotos que aparecerem no Instagram? E questiono: se não conseguimos mais ter atenção e dedicação em tarefas simples e rápidas do dia a dia que nos afetam direta e imediatamente, na hora que precisamos estar presentes e concentrados em tarefas mais complexas, teremos mesmo capacidade para tanto? Ou vamos picotar nossa atenção a cada apito do celular, para ver qual é a notificação e para não nos entendiarmos em fazermos a mesma coisa por uma hora (ou dez minutos) sem interrupção?


30 de agosto de 2021.

 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Periferias e carências

São Miguel Paulista, periferia de São Paulo. Para além de todo um quê muito específico de periferia, o vento frio que corta o céu azul de inverno me traz à memória a periferia que eu muito frequentei quando criança: a casa de meus avós, em Ponta Grossa. Passando em revista essas lembranças, noto que há toque da ingenuidade que não me permite enxergar como o bairro de fato era: não consigo ver ali uma periferia pobre, apesar de saber que era e ainda é. Talvez as boas recordações dos meus avós, talvez pelas casas terem quintais, não serem uma colada na outra, talvez efeito da comparação com a periferia ainda mais pobre que às vezes passava de carro com meus pais, em Pato Branco - o "bairro" do Rasga Diabo, uma pirambeira com casas de madeira sem pintar, algumas de lona, onde moravam pessoas de carne e osso (muitos anos depois me veio o estranhamento desses passeios e questionei à minha mãe o porquê deles: me disse que era para eu e meu irmão termos alguma noção do mundo, que não se resumia à nossa agradável vida de classe média moradora do centro). Em São Miguel, como costumo ver não só nas periferias de cidades grandes e médias de São Paulo, as casas são grudadas uma nas outras, em terrenos estreitos e sem recuo; algumas só possuem o reboco, outras nem isso; algumas pintura recente, outras pinturas descascando. No meu trabalho, faço o que me cabe, pergunto questões práticas, faço algumas orientações. O novo normal já está instituído: como eu temia, é o mesmo do velho normal, só que com máscara no rosto e nas prateleiras produtos mais caros - mais pobreza, mais escassez, mais carências. Eu observo o material no chão, os restos de uma sociedade que há muito se especializou em produzir lixo - em vários sentidos. Aqui, falo no literal. Sempre me questiono se numa dessas visitas não vou me deparar com minhas próprias sobras, ali prontas para serem manipuladas por pessoas invisíveis para a maioria da sociedade. Terminada minha obrigação, tento, como de costume, puxar algum assunto. Pergunto se alguém tem outro trabalho. Todos sinalizam, com grande desconfiança, que não - o que o "fiscal" está querendo com uma pergunta dessas? Comento então: "quer dizer que é sair daqui, ir pra casa, ligar a tevê e descansar?". O olhar de alguns - das mulheres, em especial - sinalizam um sorriso amarelo por trás das máscaras, como a questionar "o que esse branquelo que deve ganhar o todinho na cama de manhã entende da vida?", eu prossigo: "invejo vocês, porque eu moro sozinho, e depois do trabalho preciso limpar a casa, pôr roupa pra lavar, preparar o almoço do dia seguinte...". O suspiro é uníssono: "Ah, sim, isso eu também tenho que fazer". Reitero que perguntei se tinham outro trabalho e não outra fonte de renda. Um homem se empolga em contar da rotina, sair das oito horas de labuta pesada para lavar louça, dar um jeito na casa, preparar janta e almoço, usar o fim de semana para a faxina pesada e lavar a roupa. Alguém tira sarro: "cadê a mulher? Virou gay que tem que fazer isso?". O homem desconversa, eu sem conseguir esboçar uma boa reação (reconheço que não tenho raciocínio rápido, e nessas situações isso faz muita diferença), o máximo que consigo falar é "está certo ele, mulherada de hoje quer homem parceiro, não um cara folgado". As mulheres, como é comum nessa cooperativa, ficam em silêncio. Uma se arrisca a falar - baixinho - que usa o sábado para afazeres, e que à noite ou no domingo se reúne com a família, para se divertir - e ressalta, como se cometesse pecado: "mas é só de vez em quando". Um outro rapaz também vem me contar da sua rotina, que ele não precisa trabalhar em casa: sua mãe e seu irmão dão conta, e ele então usa as noites para ir ao culto e os fins de semana para curso de informática. Noto a empolgação em contar para alguém "importante" sua rotina, mesmo eu repetindo em quase todas as visitas que sou um "zé ruela" sem poder nenhum - o que também é mentira da minha parte: sou branco, classe média, falo difícil, representante oficial do Estado; a polícia nunca me parou na rua para averiguação. No caminho da volta, lembro que ir para meus avós era uma das raras ocasiões em que eu pegava táxi - o ônibus vindo de Pato Branco chegava às três da manhã, não era o caso de esperar até às seis para pegar o ônibus urbano e encarar mais uma hora de viagem. Junto com a nostalgia de meus avós, me bate também uma melancolia. Penso no Haiti, penso em carências. O valor do material reciclado, por mais que tenha tido uma baixa, ainda está bom, e permite a essas pessoas ganharem mais do que em muitos empregos "visíveis"; ainda assim, no silêncio da maioria daquelas mulheres, no falar baixo das poucas que se arriscam a dizer algo, no contar da rotina de homens que em outra ocasião já me justificaram que seu emprego é um "emprego normal", como a se defender de antemão de qualquer juízo de valor que eu pudesse fazer, são gritantes as carências ali presentes: de serem vistos, de serem ouvidos, de serem reconhecidos não só como cidadãos, também como pessoas.

21 de julho de 2021


segunda-feira, 5 de julho de 2021

Neorrefugiados

O frio que faz na cidade de São Paulo não é extremo, mas torna mais difícil minha tarefa de sair da cama, às seis da manhã – é um fator a mais nessa dificuldade de acordar na República Federativa-Fascista do Brasil, em que vivemos desde 2016. Conseguindo me desvencilhar das cobertas, resta comer algo, cuidar dos gatos, ler alguma notícia (ou o último “xadrez”) enquanto tomo chimarrão para esquentar, até dar a hora de pegar o metrô e descer na estação Tietê. 

No espaço ao lado da rodoviária (pode-se chamá-lo de praça?), há cerca de três semanas um pequeno “campo de refugiados” voltou a se formar – havia um antes, que deve ter sido devidamente higienizado por algum programa da prefeitura, que levou essa visão triste para fora da vista, porque para uma parte da nossas elites e seus lacaios de classe média a prestações, pobreza não existe se não é visível. 

Refugiados pode soar estranho a brasileiros que estão simplesmente morando na rua – até porque um refugiado costuma ser alguém que se vê obrigado a sair de sua terra, por conta de uma situação em que corre risco de vida, para um lugar onde se sinta seguro. De que terra saíram os brasileiros que hoje habitam essa praça? Que ameaças sofreram para ir morar na rua? Que segurança há ali, em barracas sob o relento, o frio, o intenso trânsito de carros? Quem os persegue? 

Sem perguntar, deduzo respostas, e por isso insisto que ali estão refugiados - ou neorrefugiados, para marcar a distância de quem veio de outras paisagens, ainda que sua situação não seja nova na história do país - , saídos de sua casa para a rua, para uma praça onde julgam mais protegidos do que em uma viela escura, perseguidos por entidades desencarnadas e sem um rosto único, mas que cobram sacrifícios de gente como essas, vistas como semi-gente, semi-animais sacrificiais. São todas “pessoas marrons”, que uma vez Eliane Brum comentou em crônica, falam um bárbaro português em que não há espaço no seu mindset para fazer uma call de job do home-office após o brunch, talvez nem para bater uma bad por conta de seu freela ou de seu home estar um tanto down.

Os que ali estão, fica claro, não queriam estar. Há uma meia dúzia de barracas, algumas montadas com esmero, simulam casas, evocam desejo de um lar. Uma das “casas” em especial me chama a atenção: a maior e a mais à vista dos passantes, bem montada com suas paredes de lona forradas internamente com “cobertores de doação” (ou “cobertor de mudança”), dentro há uma outra barraca, essa de camping, onde há algo mais fofo que faz a vez de colchão. Nunca vi os moradores da casa, mas desconfio que seja ao menos um casal – me pergunto se alguma das muitas crianças que correm e brincam pela praça também mora ali. Semana passada notei que havia um caixote com duas garrafas de corote e cigarros – deviam vender a seus colegas de campo. Hoje havia uma bicicleta – sinal de possível trabalho de seus moradores, entregador de aplicativo –, estoque de cobertores de doação e um caixote de engraxate – quem engraxa sapatos hoje, ainda mais do lado de fora do terminal Tietê? Havia também um detalhe extra na “casa”: em uma das “paredes” foi feito um puxadinho com mais um cobertor de doação, bem precária, se tomada a “casa” principal como parâmetro – ainda que ela também seja bem precária. Está mais para uma casinha de cachorro, mas dentro dormia uma pessoa. 

Atravessando a rua, na alça da marginal Tietê com a ponte com a avenida Cruzeiro do Sul, outra meia dúzia de barracas – todas montadas num ar mais de prestes a levantar o acampamento. São também pessoas com mais posses, ao menos três das famílias ali instaladas: há um Fiesta de quarta geração, um Monza e um Monza modelo antigo (sendo que o carro foi parado de produzir em 1996). Quando eu tinha meus oito anos, lembro de em alguns domingos frios acordarmos cedo, eu e meu irmão, e levarmos cobertores para montar barraca dentro do Santana azul de meu pai, com gibis, papeis e lápis de cor – ligávamos o rádio do carro e ficávamos ali, brincando, a meia luz, já que a porta da garagem estava fechada. 

Evoco essa lembrança pelo ano dos carros, porque não há nenhuma similaridade entre a brincadeira de crianças de classe média em alguns domingos com a situação das crianças que ali vivem com suas famílias, domingo a domingo, sob interpéries e com o futuro mutilado de um país em frangalhos.

05 de julho de 2021.