sábado, 26 de janeiro de 2019

Bolsonaro, Mourão e a disputa interna do fascismo no governo

Robert Paxton enuncia os estágios do fascismo em seu artigo "Five stage of fascism": começa como um movimento de revolta contra a democracia liberal em crise, se sedimenta em um partido político, alcança o poder em aliança com "forças exógenas" (como dirá João Bernardo), tem o exercício do poder (influenciado pela forma como e com quais apoios atingiu o poder, que influencia se se vai além de um mero autoritarismo) e, finalmente, radicalização ou entropia, com o consequente fim do regime. 
João Bernardo, por seu turno, apresenta esquematicamente dois polos nos quais o regime fascista se equilibra e os quais tenta equilibrar: de um lado, o polo endógeno: partido e milícias, sindicatos e milícias; do outro, o polo exógeno: exército e igrejas. Para o ativista lusitano, ainda que acabe por vingar o polo exógeno no poder - como Salazar em Portugal -, não é isso que o exclui de ser um regime fascista, e não um "autoritarismo comum".
Não se trata de transpor os fascismos do século XX para o século XXI e aplicar as mesmas análises. Contudo, há elementos que se repetem - daí porque chamar a extrema-direita de neofascista, e não por algum nome mais original.
Pensando nas experiências atuais, uma primeira mudança a ser notada é no "sindicato e milícias" da tipologia de Bernardo: com a desarticulação do movimento obreiro, graças às reformas neoliberais (ainda que a ênfase com que o capital siga lutando para desmantelar os sindicatos, seja em ataques diretos, seja no estímulo a movimentos identitários isolados, indica o quanto teme sua organização), o neofascismo passa a disputar não mais a representação junto às bases via sindicatos, mas via movimentos - MBL, surgido de afogadilho com o sucesso do MPL, em 2013; o Tea Party, nos EUA, os coletes amarelos na França, etc -, com os quais organiza suas milícias - reais e virtuais. Eu acrescentaria ainda três elementos, ausentes da análise histórica de Bernardo: a burocracia estatal, o capital internacional/transnacional, e o quarto poder, a mídia.
A burocracia estatal pode ser força suficiente para barrar ou acelerar dado movimento: em meu estágio na prefeitura municipal de Campinas pude ver como o corpo mole da burocracia, atuando em passo de tartaruga, é capaz, sem fazer alarde, de queimar o capital político de um secretário; a trinca Moro-TRF4-STF na farsesca condenação do Lula é uma mostra do quanto a burocracia azeitada com certos interesses trabalha feito trator e em tempo recorde.
O capital internacional, apesar de ainda ter país de origem e se apoiar em proteções desses governos, graças à desregulamentação financeira, está cada vez mais livre e forte para mudar de residência, conforme lhe for mais vantajoso - vide o caso do empresário James Dyson, um dos mais entusiastas patrocinadores do Brexit, que decidiu mudar sua empresa para Cingapura, diante do quadro desfavorável para seus negócios na terra da Rainha, por conta do... Brexit. Ao que tudo indica, há uma articulação global desse capital - pensada e organizada, e não apenas por influência do espírito da época -, de modo a enfraquecer ainda mais governos nacionais e garantir suas margens de lucro - por mais que posem de cosmopolitas e liberais, se a promessa de lucros for maior com a extrema-direita, adotam esse figurino sem qualquer titubeio.
A mídia talvez não entrasse nos polos de Bernardo por conta de que na primeira metade do século XX ela ainda estivesse se organizando, dependente do poder estatal e vinculada direta e claramente a ele. Nos tempos atuais, ainda que a dependência estatal exista, há um campo de "liberdade" para a mídia, utilizado como contrapoder a reivindicações sociais, que serve para pressionar governos a seguirem uma linha mais afim aos seus interesses - menos "populista": essa dissociação entre imprensa e Estado é falsa (salvo em governos de esquerda), uma cortina de fumaça para o estado seguir com sua gestão totalitária da sociedade em favor do modo capitalista de produção e especulação. A impressão que tente passar seja no sentido inverso, a mídia é a correia de transmissão do poder entre o líderes e as massas - antes disso, o veículo garantidor das massas enquanto massas.

Trazendo esses esquemas para a eleição de Bolsonaro. O neofascista se elegeu por um partido-milícia, escudado por movimentos-milícias (e por milícias-milícias, estamos nós, reles mortais de fora do Rio de Janeiro, sabendo agora) e financiado pelo capital internacional e considerável fração do capital nacional. Teve ainda forte respaldo de parte do exército (garantido por seu "vice-caução"), de parte da igreja (católica e, principalmente, das evangélicas), da mídia (foi adotado pela Record da Universal do Reino de Deus ainda no primeiro turno, num passo simples mas esperto do bispo Macedo) e por parte da burocracia estatal (evidenciado, por exemplo, nos casos de juízes proibindo manifestações antifascistas nas universidades, sob argumento de propaganda eleitoral contra seu candidato). Outra parcela da grande mídia também o apoiou, antes movido pelos sentimentos de antiesquerdismo e antinacional (e pelo vice-caução), sem grande entusiasmo, como a Globo e a Folha, que desde o início deixaram claro que cobrariam caro não necessariamente por apoio ao governo, mas por uma postura "neutra" (leia-se apagada, sem fazer jornalismo de verdade, coisa que raramente fazem, tampouco sem fazer a publicidade disfarçada a que estão habituados).
Do outro lado, se opuseram os partidos de esquerda (ou parte deles), movimentos sociais, políticos tradicionais (cientes das mudanças nas correlações de forças com a ascensão desse "movimento"), alas minoritárias das igrejas e da burocracia estatal, e parte da imprensa internacional.
Ainda que certamente não faça ideia de quem seja Lampedusa, a proposta de Bolsonaro ia na linha da explicitada pelo autor italiano n'O Leopardo: é preciso que tudo mude, para que (quase) tudo siga como está. O que seu governo prometeu entregar foi a aniquilação da esquerda, o silêncio dos movimentos sociais e as riquezas e empresas nacionais. O uso de ilusionismo para entreter as massas (que não é irrelevante, diga-se de passagem), como a guerra ao "marxismo cultural", à "ideologia de gênero", a adoção do Escola sem Partido, o fim da transparência do Estado, conforme lei assinada pelo Mourão, garantiria que na economia tudo andaria da melhor forma possível.
Alguns erros de planejamento, entretanto, ocorreram: o Febeapá para distrair a atenção das tenebrosas transações começou a prejudicar a sacrossanta economia - os direitos humanos ainda passam como nota de rodapé na mídia internacional, porém a preservação do meio ambiente é tema bastante sensível -; a ingenuidade na lida com os profissionais da política tem sinalizado dificuldades na aprovação de sua agenda; e ao avaliar mal o jogo de forças da comunicação - subestimou o poderio da Globo e superestimou o poder de mobilização permanente da internet aliado à Record, SBT e Rede TV -, comprando briga aberta com a Rede Globo na distribuição das verbas estatais, pode ter cavado a cova de seu governo (está cada vez mais difícil dizer que o envolvimento de Flávio Bolsonaro com milicianos é algo só de Flávio e não de todo Bolsonaro, além da carta na manga da facada fake durante a campanha). Ao mesmo tempo, o vice Mourão posa de estadista democrata, adepto ao neoliberalismo, e já esquenta o assento no Planalto - FHC logo deve vir a público dizer que é o homem público "melhor preparado" para o "Brazil".

Admito que não imaginava um governo tão incompetente, que não conseguiu sequer aproveitar os famigerados "cem dias de lua de mel": Bolsonaro está pior do que Dilma em seu segundo mandato (e segundo mandato já é um pouco mais crítico, ainda mais aliado à vergonhosa inaptidão política da burocrata/tecnocrata Dilma). O que de início seria uma tática de parte da imprensa e do capital nacional para manter o governo acuado, por inoperância de Bolsonaro e seus cupinchas, se tornou em tiroteio aberto atingindo as janelas do Palácio do Planalto a cada edição do Jornal Nacional. Que Bolsonaro seria uma vergonha internacional, isso era evidente (durante as eleições, eu já comentava que ele seria engolido por Cabo Daciolo, caso os dois tivessem participado de todos os debates). Surpreende que não saiba o mínimo de negociação parlamentar, depois de três décadas como deputado e, principalmente, que não tenha conseguido manter a mobilização de suas milícias nem mesmo três meses, finda a corrida eleitoral. Cumprir sua (única) promessa de campanha, de liberar a posse de arma, logo no primeiro mês, queima boa parte do capital político que teria junto a seus eleitores mais fiéis, pois o antipetismo qualquer um abraça. Não foi capaz sequer de imitar Trump, que preferiu tensionar seu muro até o último ano, e tenta agora atribuir seu fracasso aos democratas: Bolsonaro poderia ter tentado via congresso aprovar nova legislação para armas e culpar a "velha política" por não conseguir, só então apelando para um decreto presidencial.
Em suma, Bolsonaro fica na presidência enquanto conseguir entregar as reformas econômicas, não vão esperar uma segunda fraquejada para ejetá-lo. Para tentar fugir das cordas, poderia tentar uma guerra na Venezuela - uma guerra costuma ser um bom instrumento de união nacional e calaboca geral de toda oposição. Porém não apenas o movimento foi abortado pelos EUA, até segunda ordem, depois do recado de Rússia e China, como não encontra respaldo da maioria das forças armadas do Brasil, nem da diplomacia - e os pretensos "falcões" do seu governo não chegam a galinhos garnizés trocando a primeira penugem. Não há sequer clima para forçar um atentado terrorista fake, para mobilizar a opinião pública. Ou seja, as elites já tem o botão de ejetar pronto para ser usado, com um bilhetinho de obrigado pelos seus serviços ao ex-capitão.
Cai bem a dúvida: como é possível esgotar seu capital político tão rápido? Além dessa incompetência geral sua e dos seus com política (e história, e matemática, e economia, e forças armadas, e geografia, e português, e por aí vai...), a forma como esse movimento neofascista se fez foi muito rápido e pouco enraizado: se aproveitou de uma crise do capitalismo, uma crise social, uma descrença com a política e um ambiente antiesquerda fabricado pela grande mídia para, via redes sociais, entrar com seu discurso e inchar rapidamente - impulsionado por erro de estratégia da direita e da mídia, que o pintaram como o candidato oficial do antipetismo, o extremo oposto a essa besta fera da estrela vermelha. Bolsonaro nunca foi líder (que não, talvez, de sua família e de alguns auxiliares muito suspeitos), foi um cavalo de Tróia que apareceu sem querer e a extrema-direita embarcou primeiro, com a direita uspiana indo logo em seguida, quando viu que era isso ou PT.
Há um ambiente propício ao neofascismo - no contexto mundial e nacional -, contudo Bolsonaro não está estabelecido nele, apenas se aproveitou de certo vácuo de lideranças e uma avenida aberta. O MBL e seus desdobramentos no mundo real talvez venham a se constituir efetivamente numa milícia do polo endógeno do fascismo, algo um pouco mais "orgânico", mas eu não apostaria nisso: são marionetes muito fracas, incapazes de se adaptar conforme o contexto vir a exigir. Mais provável que o papel de milícia, caso chegue a se formar, caiba a agentes do próprio Estado. Essa talvez a grande falha do bolsonarismo, motivo para sua rápida queda: não conseguir manter as milícias ativas e, consequentemente, manter o caos (inclusive, é de se questionar os porquês de não conseguir manter sua base ativa). Como alertou Marcos Nobre: Bolsonaro cresceu no caos e só sobrevive no caos. Sem milícias e sem casos de violência aleatória, cometida por mascus se sentindo legitimados pelo presidente, e sem acobertamento de forças de segurança e do judiciário, a chance de um caos onde ele possa surfar diminui drasticamente.

Com Mourão, ascenderia ao poder o polo exógeno do fascismo, o exército. Bem relacionado com os poderes estabelecidos, é de se acreditar num governo menos errante, mais racional, previsível, que vai buscar mesmo a ordem, e não apenas discursar sobre sua necessidade - é de se acreditar que milícias amalucadas não tenham vez e as perseguições a opositores sejam organizadas: quem deve ser perseguido e com quais meios (judiciário, milícia, polícia). Será uma espécie de Alckmin de farda: verniz democrático, fala para ser bem recebido nos meios ingênuos e na mídia internacional, e porrada em opositor, tiro em quem eu não gosto (não convém esquecer que Alckmin foi o primeiro a autorizar e estimular execuções extra-judiciais por parte de seus subordinados com o "quem não reagiu está vivo", Doria Jr e Witzel são apenas a reedição grosseira desse absurdo), panos quentes para os amigos e familiares - corrupção? Só se for de petista! -; o mesmo plano econômico, boas relações com o status quo, bons contatos com os mercados, as elites nacionais e internacionais, e o antiesquerdismo mantido aceso, porém sem se envolver diretamente.
Se Bolsonaro traz risco de vida às pessoas identificadas com a esquerda e os movimentos sociais, Mourão pode ser o cara a abrir a rota para o desmantelamento efetivo dos partidos de esquerda e movimentos sociais, por sair da linha de frente de ataque, e permitir que outras instâncias ajam nessa tarefa, em consonância com as leis do país ou conforme qualquer rito jurídico formal (vale lembrar que Gilmar Mendes - que com Bolsonaro pode ser visto como um aliado, mas apenas nesse caso, e olhe lá - já propôs a cassação do registro do PT). As esquerdas precisam urgentemente de uma análise de conjuntura ampla (para além de quem tem culpa na eleição e se deve ou não apoiar Maduro) e dos seus possíveis desdobramentos, e desde já se anteciparem na sua articulação, na retomada dos trabalhos de base e na construção de uma contranarrativa preventiva, tentando impôr determinadas pautas no debate público - caso não queiram, outra vez mais, ser atropeladas pelas elites e pelo neofascismo ascendente.

26 de janeiro de 2019

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

A crise da democracia liberal-burguesa [Zeitgeist 2033]

Repentinamente o mídia internacional se interessou pela democracia na República Democrática do Congo, no centro da África - assim como se preocupou com a democracia venezuelana na América do Sul (por sorte, o Brasil passou ileso das atenções internacionais, apesar de suas eleições suspeitas desde o início). Se a Venezuela possui petróleo, o Congo tem enormes jazidas minerais, em especial de cobre o cobalto, essenciais para smartphones e carros elétricos. Em comum nas admoestações do "Ocidente", o discurso de preocupação com direitos humanos, pobreza e democracia - não sei se é relevante, porém é comum também o fato de que os vencedores dos pleitos congolês e venezuelano não agradarem ao capital internacional (por mais que a Venezuela faça negócios com os EUA, não entrega suas reservas a preço de banana de xepa, como certo país tropical). No caso do país africano, não deixa de ser significativo que o candidato declarado vencedor por observadores internacionais - Martin Fayulu - seja ex-executivo de uma petroleira, a Exxon Mobil (parênteses: vale também ressaltar que a tentativa de pintá-lo como um líder abnegado, alguém que se guia apenas por interesses comuns, nunca individuais, raro em qualquer parte do mundo [https://on.ft.com/2FNPo40], é de um farsesco ridículo, mas que tem marcado a mídia nestes tempos de ascensão neofascista, vide o "Mito" que ocupa o Palácio do Planalto, ou mesmo antes dele, a ridícula "necessidade" de Willian Corrêa provar que Michel Temer "é gente como a gente, o senhor existe realmente" [http://bit.ly/2HowEdL], na grotesca tentativa de criar uma mitologia para o golpista, reedição pós-moderna de "Carlos Magno e a Távola Redonda").
Contextualizando rapidamente para quem não tem tido tempo para acompanhar o que acontece além-mar, sufocado por Ibamas, carros, laranjas, milhões em nota de cinco, azuis e rosas, índios mortos, Lula preso, Moro solto e análises de Marx sobre a primeira guerra mundial: Congo era antigamente o Zaire, controlado por Mobutu, deposto por Laurente-Désiré Kabila, em 1997. Em 2001, Laurente-Désiré é morto e assume seu filho, Joseph Kabila, no poder desde então. Em 2016, acuado, Kabila convoca eleições, que são adiadas constantemente. O pleito se realiza, finalmente, em dezembro de 2018. O candidato do governo, Sharaday fica em terceiro; o oposicionista Fayulu, nos resultados oficiais, em segundo, e o oposicionista Félix Tshisekedi, filho do histórico líder oposicionista Etienne Tshisekedi, falecido em 2017, é declarado o vencedor. Observadores da igreja católica e vazamento de dados de urnas apontam vitória de de Fayulu com cerca de 60% dos votos. Tshisekedi, logo após o resultado, se encontra com Kabila, e isso é lido como um acordo entre o atual mandatário e o oposicionista conhecido do status quo do país, mais confiável para garantir uma transição "tranquila" - nem que se use de fraude nas urnas -, a entregar o poder a um outsider aventureiro. É de se acreditar que deveras houve fraude.
Vários questionamentos surgem a partir desse imbróglio, ressalto dois. O primeiro e mais óbvio: por que dois pesos duas medidas? Ainda que fraude no Congo seja grosseira - alteração dos votos -, a fraude na eleição brasileira, não é por ser mais sofisticada que deixa de ser fraude: o principal candidato ao governo é condenado e preso por "crimes" - sem se especificar qual, quando, como, por que: "atos de ofício indeterminado" ou "por causa de umas paradas aí, tá ligado?", para usar uma linguagem mais jovem. Com base em uma lei que não valeu para 1400 outros candidatos, é impedido de concorrer [http://bit.ly/2U9KWjQ]. Vence o candidato neofascista, e o articulador do impedimento de Lula, que tentou interferir na disputa também durante o pleito, assume cargo no novo governo como recompensa pelo bom serviço - causas e efeitos todos muito bem determinados. Outro questionamento nessa linha: por que toda essa atenção ao Congo e nenhuma ao Gabão, país rico em petróleo, onde houve uma tentativa de golpe de estado há duas semanas - será por que o presidente gabonês, Ali Bongo, é moço de recados da França na África enquanto sua família é a dona do petróleo do país (e da cadeira presidencial desde 1967)?

O segundo ponto é um pouco mais estrutural: das promessas do sistema liberal-burguês e sua impossibilidade de entregá-las. Na verdade, ele sequer é capaz (ou tem interesse) de oferecer o mínimo: informações suficientes para uma decisão racional por parte dos cidadãos - isso se é possível uma decisão racional ao molde do que defende a teoria liberal, o que temos visto cada vez mais são escolhas passionais e irrefletidas, mesmo por parte de gente tida por intelectualizada.
E o que promete o sistema democrático liberal-burguês? Basicamente liberdade política para os cidadãos se expressarem e escolherem seus representantes, os quais, durante a corrida eleitoral, apresentam suas propostas do que irão mudar ou manter no funcionamento da máquina pública e na sua relação com a sociedade civil.
Vale questionar o quão limitada é essa "liberdade política": o que pode ser dito, quem tem direito a se candidatar, quem tem o direito de votar, quais as regras do processo eleitoral? Se o discurso de liberdade marca a democracia liberal desde o início, desde seu início também corre em paralelo uma série de restrições - na verdade, desde a democracia grega, quando todos os cidadãos podiam participar dos negócios da pólis, mas apenas a minoria de seus habitantes eram considerados cidadãos. As restrições, contudo, não servem para salvar a democracia liberal - de fato, elas são seu coveiro -, e sim para salvar o modo de produção, que precisa manter a fachada de liberdade (que não se sustenta na realidade, ou alguém acha que a vendinha da esquina pode disputar livremente com o Walmart?). As restrições ao poder de ação do estado que acompanham a ampliação da participação democrática (ou sua possibilidade, ao menos), tem como intuito relegar a política à irrelevância (pontuado por Debord, em 1967, e por Chico de Oliveira, no século XXI), e permitir aos agentes econômicos atuarem pensando apenas na sua maximização de utilidade no mercado - sim, esse ideal de irrelevância política (o fim da história) é acompanhando de pressões contraditórias, desde a necessidade do Estado como balcão de negócios da burguesia até a do Estado limitador da voracidade do capital contra o trabalho.

Para disputar um cargo político, além das regras explícitas que delimitam quem tem esse direito, há a necessidade de capital - econômico e social - para ter realmente chance de vitória: a mera liberdade formal é apenas um faz-de-conta sem efeitos práticos (que o digam os que votaram 54 em 2018). A internet é uma mudança não esperada nessa relação, talvez por alterar os termos do capital social, e também por movimentar de modo bastante nebuloso vultosas somas de capital econômico. Não é um efeito menor, como atestam as eleições de Trump e Bolsonaro, e o Brexit. Entretanto, como seu uso tem sido antes favorável ao sistema, promovendo "revoluções conservadoras", o ímpeto de controlá-la não se faz tão urgente - me questiono agora o quanto a internet 5G vai além de aspectos econômicos, e daí o caso Huawei.
Assim como a ampliação a quem tem direito a disputar um cargo eletivo, a ampliação do direito de voto ocorreu por conta das lutas populares, ao pressionarem as elites, os detentores do poder, a seguirem os próprios ideais que apregoavam. Cada pequeno avanço na ampliação da cidadania é acompanhado de rearranjos do Estado e das regras eleitorais, de modo a tentar garantir que nenhuma grande mudança acontecerá - como a forma de composição de governo (como na Itália pós-guerra) ou mudanças na divisão dos distritos eleitorais (como nos EUA atualmente). Se acaso vence um operário, por exemplo, uma série de salvaguardas - do "vice caução" a uma carta ao "povo" com o dinheiro da nação - são tomadas para ter certeza de que não haverá solavanco.
Porém, não apenas a democracia é limitada por suas regras e sua dinâmica de funcionamento, o próprio Estado, no seu desenho, na sua continuidade no tempo, nas suas relações internas e internacionais, nas relações de forças que o permeiam, é bastante engessado, com poucas aberturas para inovações e rupturas, mesmo que expressas em voto popular - ao menos em tempos normais, em tempos de crise, a coisa muda de figura. Não cabe aqui classificar se tais limitações são boas ou ruins - "do bem" ou "do mal" -, há aspectos positivos e negativos, como tudo. A questão é que o discurso liberal oculta essa face do Estado e da política, e segue não apenas permitindo promessas, como ele próprio reitera tal parlatório que de modo algum tem como entregar - o "tem que mudar tudo o que está aí, tá ok?", ou mesmo a construção de um muro que resolveria todos os principais problemas de um país. Manter viva a esperança de mudanças drásticas e rápidas é uma forma de forçar as pessoas a seguirem acreditando que o imobilismo amanhã vai se tornar movimento - e redenção!
Fayulu, pelo que pude acompanhar, é um outsider do establishment político com ótimas ligações com grupos internacionais. Não que Tshisekedi dê pinta de ser nacionalista, socialista, a favor das causas populares e da independência de fato do país - também ele desembarcou há pouco no Congo, mas pelos laços familiares, soa um político mais bem relacionado com o status quo local, apto a fazer essa ponte com o exterior sem excluir dos novos arranjos os que sempre lucraram com o colonialismo e seu pretenso fim. Não parece haver dúvidas quanto à fraude, porém cabe a pergunta: o país resistiria à vitória de Fayulu sem entrar em uma nova guerra civil? (ou, para usar exemplo brasileiro: o país resistiria a uma vitória de Lula sem um novo golpe militar?).
Não se trata aqui de defender ou justificar a fraude! Estou propondo dar um passo atrás e questionar por quê se chegou a esse ponto: a democracia, no mundo atual, é capaz de realizar seus ideais? Eleições livres, partidos democráticos, liberdades ampas à população, autodeterminação aos povos? Definitivamente, não. Pela democracia liberal não nos é possível alcançar o que ela própria promete de mais básico, que é respeito às suas regras.
Portanto, antes de falar em mudanças, precisamos deixar muito claro qual a situação em que vivemos, encará-la sem ilusões: democracias de fachada, tuteladas, mutiladas, com regras que só valem se o resultado for a que interessa aos donos do poder. É a partir de uma análise desapaixonada da realidade que se pode discutir e articular a construção de novas bases de luta e reivindicações, sem cair na armadilha de esperar que os entes do Estado de Direito sejam garantia dos direitos, ao mesmo tempo em que não se pode negar que a luta institucional, explorando tais contradições e cobrando suas resoluções (afinal, enquanto ideais abstratos, não há muito que se reclamar do que propõe o liberalismo), é parte imprescindível da construção de um mundo melhor.
A falta desse tipo de educação/ilustração política, deixa em aberto o caminho para o desalento com a política, uma porta fácil para apelos a ressentimentos vários - para dar um pouco mais corpo e identidade a esse ressentimento inaugural com a democracia -, culminando na adesão a políticos "antipolíticos" "sinceros": são eles que denunciam o engodo desse ideal inalcançável. Entretanto, ao invés de proporem mudanças, melhorias, apenas convidam a uma adequação radical ao que está dado, de modo a enquadrar a todos - políticos, elites, movimentos sociais - na mesma trilha de conformismo e desesperança - e garantia de lucros aos de sempre.

21 de janeiro de 2019

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O judiciário como linha de frente no avanço neofascista [Zeitgeist 2033]

O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche, "o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos [um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente [...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução comum para essa diversidade de questões". 
"Nação em cólera em período de crise". Para além do momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico, hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI, novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que trabalhava para empresas chinesas,  preso desde 2017, teve sua prisão confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu [https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Possuidora de três grandes reservas petrolíferas - México, Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política - popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais - seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina, Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras, Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento, daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos "inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua "revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA, a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento. 
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas, antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas, um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente" as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos, como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...

11 de janeiro de 2019

domingo, 6 de janeiro de 2019

Euforia e ressaca com a ilusão neoliberal [Diálogos com a literatura]

As viúvas das quinta-feiras, da portenha Cláudia Piñeiro, retrata ascensão e queda do triunfo neoliberal na Argentina, em fins do século XX: o estreitamento mundo, reduzindo tudo a cifras e valores, acompanha o estreitamento existencial da vida entre muros, entre os pares, acerbando os narcisismos das pequenas diferenças (ao gosto dos subúrbios estadunidenses descrito por Lewis Mumford) e uma protocomunidade que não possui qualquer chance de se tornar comunitária de fato (tratei de, encerrado o livro, me embrenhar por Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, do psicanalista Christian Dunker; ainda não terminei, mas ao que tudo indica, trata-se da mesma lógica do condomínio destes Tristes Trópicos). Se o Brasil se safou de queda igual à dos nuestros hermanos, foi por conta da resistência popular (desde a falecida Constituição de 1988) ter impedido o país de entrar com todo ardor no 171 neoliberal - algo que o atual presidente e seus super ministros prometem realizar.
O quotidiano do condomínio Alto de la Cascada descrito por Piñeiro é feito de normatizações abusivas, violências mudas, dores vivas e desejos insatisfeitos - tudo isso abafado, soterrado pela imagem de felicidade que todos são obrigados a ostentar. O desejo das classes mais abastadas de viver em segurança, dentro de um enclave murado, sob os olhares permanentes dos vigias: releitura pós-moderna neoliberal da velha comunidade de bairro, onde todos se conhecem e se ajudam - ao menos em aparências -, onde impera a moral e os bons costumes de um passado mítico.
Dos empregados das casas aos seus moradores, não parece haver espaço para alegria ou felicidade, oprimidos por uma série de exigências contraditórias, controladas de perto. Um baile de máscaras de mau gosto em um mundo que exige autenticidade mas condena todo desvio da norma.
É quase um sistema de castas - alguém não pode ser aceito plenamente se não for "puro sangue" - branco, cristão, endinheirado. Se for judeu e já estiver dentro, ignora-se o fato; se ainda não entrou, não entra - assim como coreanos, negros ou outros indesejados. O mesmo ocorre com os funcionários: uma vez funcionário, sempre funcionário, não importa que sua companhia tenha ajudado sua patroa a superar a depressão e só frequente os locais destinados aos moradores junto de sua - dona? Não pode, e as duas serão personae non-grata por isso. A harmonia de um condomínio não permite qualquer diferença significativa.
Ou então na criança adotada, destoante na cor da pele, e que ainda por cima já veio com nome - que os novos pais desgostam e por isso mudam, de Ramona para Romina - e para poder se apresentar, precisa escrever seu nome verdadeiro na areia, impedida de dizer quem de fato é.
Um paraíso artificial, os moradores do Alto de la Cascada vivem uma vida artificial: mantém seu padrão de gastos, seu estilo de vida, como se a crise que assola o país não tivesse vez dentro de seus muros, ocultando que perderam seus empregos e veem seus rendimentos minguarem - até o ponto em que serão obrigados a fugir do condomínio como proscritos por uma grande vergonha, uma grande humilhação, como se fossem leprosos dos tempos de antanho. Enquanto a fuga não se faz necessária, fazem caridade aos deserdados da sorte, que sobrevivem fora do muro graças a sua benevolência em empregá-los - caridade que não deixa de ser mais violência muda: a empregada que comemora a blusa da filha da patroa que será jogada fora e já vislumbra presentar sua filha, mas se vê frustrada em seu desejo de consumo de migalhas quando a patroa doa a blusa para um bazar beneficente - onde ela poderá comprar a preços razoáveis, se a blusa específica não tivesse sido dada pela organizadora do bazar à sua própria filha.
As viúvas das quintas-feiras mostra a euforia e ressaca com a ilusão neoliberal: a vida da mais pura platitude, sem preocupação que não o desfrute do que seriam seus prazeres miúdos hipertrofiados por anos de discurso ideológico em todos os meios possíveis. A vida boa numa casa de filme, num condomínio de publicidade. Uma vida de publicidade - estreita, sufocante, vazia, de aparências, na beira do precipício. E a próxima crise a jogar parte de seus moradores de volta ao mundo real.

06 de janeiro de 2019

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Duas Floripas

A temporada que passei em Florianópolis foi também uma viagem no tempo - rememorações muitas brotaram nas duas semanas que passei na chamada Ilha da Magia, na casa de meu irmão, em companhia da minha mãe, da noiva do dono da casa, da minha companheira e seu filho. 
Floripa para mim, em minhas memórias afetivas, é duas cidades absolutamente distintas. Uma que vai de 1988 até 1994, outra que começa em 2000 e segue até hoje.
A Floripa atual me soa uma São Paulo que trocou a efervescência cultural por praias, uma especulação imobiliária mais selvagem e um trânsito muito pior que o da capital paulistana - levemente aliviado por um túnel que parece ter sido encomendado pelo Maluf (trem, metrô, corredor de ônibus pra quê?). Uma cidade em que o point de cooper, paqueras, passeios em família é a avenida Beira Mar, um calçadão estreito entre duas poluições: de um lado, um mar onde bostas boiam, do outro, uma highway a fazer barulho e levantar fumaça de óleo diesel - uma espécie de marginal Pinheiros que teve a sorte de ser escolhida pelos bacanas para fazerem seu "footing", seu "slackline". No mar, em quase todos os locais que frequentamos, lanchas e barcos "piratas" dão um ar brega à paisagem.
Quando o avião começava seu procedimento de aterrissagem, me lembrei o que ela foi para mim nos últimos vinte anos. É a cidade em que descobri o quanto minha família é preconceituosa, racista, estreita - e o quanto meu pai era ponto fora da curva. Meu tio que contava mil piadas e me divertia na infância imitando Pato Donald, descobri em 2000 que a grande maioria das suas "piadas" eram de negros (saí ofendido desse nosso derradeiro encontro). Em 2006, ouço outro tio questionar se eu achava que a Veja ia mentir, enquanto falava mal do Lula por ter escolhido um "preto" pro STF - afinal, o que se esperar de um presidente "cabeça chata"? Em 2011, na comemoração dos 80 anos de minha avó, começou a me cair a ficha do que eram as noitadas de meu primo de Curitiba, com seu grupo de amigos neonazi: não era para balada, era para humilhar, agredir, torturar (talvez matar?) negros, nordestinos, "viados", travestis, pobres e outros "lixos humanos" do tipo. Nesse encontro ele dizia ter mudado, era professor de yoga, tinha virado pai há pouco - não acreditei e esta eleição me fez ver que eu estava certo, segue o mesmo fascista de sempre, igual seu pai. Pior: foi nessa viagem para Floripa, em 2011, que recebi a notícia de que o câncer de meu pai voltara.
Ao ir para as praias me veio a velha Florianópolis, de quando eu era criança, ingênuo, não entendia bem o que acontecia no mundo dos adultos, e por isso a cidade era basicamente feliz. Viagem em família, nos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando mochilão não era moda - não aos habituais destes Tristes Trópicos -, tampouco viagens de turismo comercial - em lugares transformados em semi não-lugares para consumo. Férias era pegar o carro, comida, meia dúzia de fitas, e sair visitar parentes e amigos durante quase um mês. O roteiro básico da minha família era Pato Branco - Florianópolis - Curitiba - Matinhos - Ponta Grossa - Pato Branco. Os quatro no carro, eu incomodado de ter que usar cinto de segurança - mas na estrada é preciso, dizia minha mãe, sem chance de negociação -, e mal esperando a hora de chegar na cidade para tirarmos aquele trem que limitava o livre movimento em caso de acidente. Não raro minha mãe tinha que viajar atrás, entre mim e meu irmão, para evitar brigas. Em 1989, lembro do Corcel branco que passou por um buraco e precisou parar no acostamento, perto de uma lagoa - alegria para a criança que eu era. Meu tio com seu buggy, imitando Pato Donald; assistir à Pantera Cor de Rosa com meu outro tio; inventar um computador com duas folhas de papel e apresentar jornal de frente para o espelho, o quarto fechado, abafado, porque se abrisse a janela seria impossível dormir de tanto pernilongo; os ratos no quintalzinho do prédio de meus tios; Raça Negra fazendo versão de Legião Urbana no carro, Jorge Ben Jor cantando Engenho Dentro em "homenagem" ao meu conterrâneo no ministério da saúde de Collor, Skank com Indignação e Biquini Cavadão com Vento Ventania; meu irmão fazendo um escândalo desesperado para entrar na sala de dentista para tirar um dente de leite pendurado, eu descobrindo que sou daltônico, e meu irmão que é míope; meu tio agressivo contra o flanelinha dizendo que estava armando e não precisava "pensar duas vezes antes de dar um tiro na cara de um preto safado" (e eu não entendi o porquê de toda aquela agressividade gratuita, ainda não conhecia o que era o preconceito); a chica argentina tentando puxar conversa comigo na praia dos Ingleses; as dunas da Joaquina, onde achei uma nota alta de cruzeiro; a água viva queimando meus pés enquanto eu puxava meu irmão na prancha de body-board verde; os congestionamentos para voltar da praia e a parada, na volta da Lagoa da Conceição, numa venda de milho verde e rosca de polvilho, de onde víamos ao longe o trânsito fluir lentamente; o Pântano do Sul era uma praia nos cafundós da Ilha, quase deserta, três famílias de turistas que eram chutados da praia no fim da tarde pelos moradores locais, pois era hora de eles jogarem futebol, no meio do caminho (acho que era para o Pântano) uma igreja antiga, da época colonial, branca e dourada (ou seria amarela?), caindo aos pedaços, pela fresta na porta via seu interior, uma viga de sustentação caída sobre bancos rotos. Ruínas de uma cidade antiga.

04 de janeiro de 2019


quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O discurso mais enfático da posse de Bolsonaro

Não acompanhei a posse do presidente da República, apenas li algumas repercussões na mídia e na minha bolha do Fakebook (e aqueles que usam em sua foto de perfil a frase de que Bolsonaro não é seu presidente, precisam aceitar que ele é, sim, nosso presidente, e atuar a partir desse dado de realidade).
O discurso (verbal) foi o esperado, sem nenhuma novidade. Se alguém imaginava qualquer movimento digno de estadista, de homem público, de mínimo de bom senso, que seja, por parte de Bolsonaro, precisa voltar dez casas e rever sua trajetória política, dos primórdios à transição, sem esquecer de rever suas estratégias de campanha. Se alguém ousou dizer que Bolsonaro, em seus discursos, "desce do palanque" e fala em "governar para todos" ou usou de ironia de maneira infeliz e mal utilizada, ou sofre de sérios problemas mentais, ou é um canalha a serviços dos patrões, temerosos de perder a teta estatal, como Josias de Souza.
O desejo de demonstração do triunfo da vontade fascista, com até meio milhão de pessoas, foi frustrada, e tiveram que se contentar com 115 mil espectadores - pouco mais da metade do número de pessoas que foram na posse de Lula, em 2003 (quer dizer, nas fotos que vi, esses 115 mil parecem iguais seus seguidores na internet, considerável parte não existe de verdade).
O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o discurso não verbal em sua foto subindo a rampa do Planalto (ainda mais quando comparada à de Lula): tapete vermelho para o futuro presidente e ao fundo, uma linha de canhões, e o povo muito longe - a depender do enquadro, sequer aparece. Representa um bom retrato de nossas elites - que não tiveram pudores em abraçar (e financiar) o fascista - para consigo próprias: se julgam (naturalmente) merecedoras de recepcão com tapete vermelho, talvez por saberem não terem dignidade para tanto. Representa também seu ideal de democracia sem povo, seja pela ideia de "democratura" positivista - levantado por Alexandre Andrada, no The Intercept Brasil [bit.ly/2VpSSz4] -, seja pelo desejo de nulidade da política, de modo a garantir o bom andamento dos negócios - como denunciava Debord, em 1967. Ordem e progresso: o povo quietinho em seu lugar, feito gado em sua baia; e as elites gerindo o Estado no estilo mais tosco de "balcão de negócios da burguesia", sem disfarces e com a delicadeza de uma manada de búfalos selvagens. Democracia de fachada, sem povo, para os ricos: é por o que os donos da Havan, Riachuelo, Habbibs, Drogaraia/Drogasil e que tais pagaram; é o ideal ascéptico de FHC e parte do tucanato, é o que a grande mídia defende - abertamente em seus editoriais, ou disfarçadamente em seus programas humorísticos -, é a proposta vencedora em uma imagem: o povo sob ameaça de tiro, mantido longe do poder.
Para consumo da massa bestializada, entretanto, o presidente populista - pretensamente popular - despido do povo é o discurso do outro como perigoso, da multidão como local que não cabe aos cidadãos de bem - só em situações especiais, "protegidos" pelos militares -, a vida pública como local a ser esvaziado em favor de quem entende, dos técnicos, dos tecnocratas despidos de ideologia (e de interesses pelo bem comum, mas isso não é dito), para quem produz poder trabalhar sem outras preocupações que seu desempenho, seus rendimentos e suas contas a pagar. É também a imagem de um certo salvador da pátria, que agirá, se preciso, sozinho em favor do povo, que pode seguir sua vida de gado tranquilamente - no máximo denunciando um professor aqui, um colega acola, de modo a permitir a plena harmonia social, livre de toda "ideologia", de todo pensamento que não seja a submissão cega ao poder.

01 de janeiro de 2019