terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Literatura, publicidade e queijo

Todo mundo sabe que uma das funções da publicidade - imprescindível para a sobrevivência do sistema capitalista de produção de lixo sob o qual vivemos - é a criação de pseudo-necessidades, falsos desejos nos cidadãos do espetáculo. O "todo mundo" do início é forma de dizer: na verdade poucos sabem e entendem tal mecanismo, e mesmo entre os conhecedores, não raro esquecemos e vamos na onda da propaganda. Pois digo que a literatura também é criadora de necessidades e desejos alienígenas em seus leitores - e não me refiro à necessidade de mais literatura que as boas obras ensejam. Não que isso me seja novidade: quando entrei em filosofia, no início do século, obrigado a cursar uma língua clássica, optei por latim e não por grego, apesar de meu maior interesse por Atenas frente a Roma: é que latim era a língua falada por um dos Buendía, em Cem Anos de Solidão, do García Marquez, por isso a escolha (e só não me tornei um latinista por obra do destino que me pôs, logo no segundo semestre, nas mãos de um professor claramente perverso, que tinha como objetivo de vida desestimular qualquer aluno que se destacasse).
Nas últimas duas semanas o livro que esteve a mexer com meus desejos foi Queijo, de Willem Elsschot. Nunca tinha ouvido falar do livro, muito menos do autor: comprei-o numa dessas feiras de dois reais. O que me levou à aquisição, além do preço irrisório, foi a apresentação do Marcelino Freire - esse, sim, eu conheço. Por ser de bolso e de capítulos pequenos, escolhi pra ser minha literatura no metrô. Trata-se da história de um escriturário de um estaleiro, Franz Laarmans, que de repente se torna empresário, ao ter a oportunidade - arranjada por um amigo influente - de ser o representante de queijo holandês para a Bélgica e o Grão-Ducado de Luxemburgo. Boa parte do livro é Laarmans a abrir sua firma e tentar comercializar os cremosos queijos edam, vindos diretos da Holanda. Várias cenas Elsschot descreve o cremoso edam sendo cortado e oferecido a amigos, aos filhos, a clientes. E eu, apesar de não ter idéia do que seja um queijo edam, adoro queijo e fiquei a salivar diante de várias páginas. Me vinha à mente um queijo que eu vira com minha mãe, fim do ano passado, quando a levei para conhecer a zona. Era uma embalagem bonita, em que se via um queijo mais amarelo e firme por fora, e cremoso por dentro. Hesitamos em levá-lo, e preferimos um garantido emmental. Esta semana, tentado pelos cremosos edam da Grapfa, fui à zona (cerealista, se é que alguém ainda não havia entendido) comprar o maldito queijo, que não era um cremoso edam holandês - na verdade, nem edam, nem holandês, mas era cremoso. Por sorte, também não era dos mais caros.
Mal chego em casa, abro a embalagem. Estou salivante, desejoso. A embalagem não é de metal, como aparentava com o rótulo, mas de plástico. O queijo está envolvido em outro plástico. Ao tirá-lo, o cheiro não é ruim, tampouco dos melhores - tudo bem, os edam da Grapfa fediam muito, segundo o narrador de Queijo. Corto uma fatia, o queijo é cremoso por dentro e firme por fora, como mostrava a embalagem. Mas a tal fatia não mata minha vontade: por fora, um queijo mussarela de qualidade ordinária; por dentro, um composto de prato e mussarela e sei lá o que mais que lembra um requeijão. Não é que seja ruim, só não é bom. Quer dizer, é ruinzinho, ainda que não incomestível - eu devia ter desconfiado pelo preço. Olho para o queijo que resta: é uma peça de novecentos gramas - calculo que vai ser difícil dar conta dele. Para piorar: falta apenas um capítulo para eu terminar o livro, vou ter eu mesmo inventar ou lembrar de alguma historieta com queijo cremoso que me desperte vontade de encarar esse frustrante que comprei.

PS: ao buscar foto para esta crônica, descubro o que é um edam: parece um emmental.

24 de janeiro de 2017


domingo, 22 de janeiro de 2017

Teorias conspiratórias

A morte do ministro Teori Zavascki em momento tão oportuno aos golpistas (ainda que o ministro não fosse nenhum grande homem dentro do STF), num país de reiterados acidentes oportunos aos detentores do poder, não deixou de levantar uma série de teorias da conspiração. Nada mais natural,. Algumas, porém, soam um tanto excessivas.
Me contou uma amiga que faz um curso de férias: sexta, já meio pro final da aula, tendo vencido o conteúdo antes do tempo, sobrando minutos para assuntos diversos, a professora resolveu tocar no tema quente do momento, a morte do relator da Lava-Jato. Perguntou se achavam se era mero acidente, ou havia sido planejado. Uma das alunas de pronto defendeu a tese de assassinato. Conhecedores de suas posições políticas, todos olharam para ela intrigados: será que teria, não pensado, que é demais, mas saído da bolha? E se até ela estava admitindo a tese de morte planejada, sinal que a coisa estava descarada e o golpe começa a perder seus apoiadores ingênuos. Ainda descrente, a professora reiterou a pergunta, se ela achava mesmo que havia sido assassinato, e ela, convicta: "É óbvio! Está claro que foi a mando do Lula!". 
Tão claro como a luz que a lua emite. Inteligência manda lembranças.

22 de janeiro de 2017

domingo, 15 de janeiro de 2017

Doria Júnior abre a cidade ao pixo

Na semana que passou, o atual prefeito de São Paulo, o lobbysta e grileiro de terras João Doria Júnior, vestiu novamente uma fantasia e foi fazer o que melhor sabe: publicidade de si mesmo - com ajuda da publicidade oficiosa da auto-proclamada grande imprensa, que aos incautos diz fazer jornalismo com dinheiro estatal. Sem tentar segurar uma vassoura como se fosse um taco de golfe, se pôs a limpar graffitis e pixações da avenida 23 de maio. Houve quem apoiasse a iniciativa, houve quem condenasse. Ainda que eu seja do grupo dos contrários, devo admitir que é uma ação legítima, diferentemente da limpeza social que ele tem empreendido contra moradores de rua. O pessoal do pixo, se não apóia, vê com bons olhos as ações de Doria Júnior: é a oportunidade do pixo e do graffiti voltarem a ser o que são - pixo, graffiti - e não expressão engessada da periferia para desfrute de uma classe média descolada. E aqui entro no móbil de minha crônica: não o pixo e o graffiti - que não sou pixador nem graffiteiro -, mas a tentativa de apropriação deles pela classe média universitária - e que tem importância na medida em que é detentora de razoável capital simbólico, nos termos de Bourdieu.
Apesar do discurso ser de respeitar particularidades, a prática da esquerda formada nos bancos universitários demonstra o contrário: a dificuldade - quando não a incapacidade - de perceber o Outro como sujeito, assim como a dificuldade de se dar conta de que sua pesquisa e seu discurso não dáão conta da totalidade e seus valores não são valores universais.
Falo da minha própria experiência na apreciação do pixo. Segui, por bom tempo, a toada geral do grupo: de início criticava tudo, depois passei a aceitar o graffitti e a condenar o pixo. Isso até um amigo historiador - negro e morador da franja de São Paulo, Pirituba, e não da Vila Madalena ou Pinheiros - me jogou na cara que isso era mera questão de gosto de classe, e toda objetividade acabava aí, eu sequer entendia qual era a questão da arte na urbe. Pouco depois, li uma entrevista d'Os Gêmeos em que diziam que há muito não faziam mais graffiti, mas painéis com técnica de graffiti. A justificativa: graffiti implicaria uma contestação para além da temática do que é pintado. No meio, intervenção de Rafael Augutoitiz e seu grupo na FAAP, em 2008, e de pixadores na "Bienal do vazio", no mesmo, deixando claro o discurso político dessa forma de fazer artístico - e suas limitações também. Ainda ajudou a me fazer ver que não entendia nada um texto na Casuística, que comentava do aspecto conservador do pixo e graffiti, ao manter intacta a vaca sagrada tupiniquim - o automóvel individual. Um percurso meio délfico, em que assumir que não sabia permitiu ver o quanto eu era ignorante - a exemplo de meus amigos.
Nas críticas que vi a essa fase do programa Cidade Linda do prefeito (branca, classe média, fascista), a moral burguesa surge disfarçada como bons ideias, de cidade democrática, colorida, aberta a todas as manifestações. São lindas as intenções, mas carecem de auto-reflexão. Ouso dizer: são versões mais elaboradas, mas que seguem a mesma lógica da distribuição de desodorante e escova de dentes para moradores de rua pelo prefeito. A depender dessa visão, São Paulo se tornaria um enorme museu de arte-urbana, com um monte de graffitis históricos, antigos, e nenhum espaço para o novo. Talvez haja uma crença ingênua de que a "cidade-museu" evitasse o já observado "desvirtuamento mercadológico" do graffiti, mais propenso em uma "cidade-galeria", com novos artistas em exposição o tempo todo. Como se, na sociedade atual, a legitimação de dada manifestação artística não acabasse passando - goste-se ou não - pela sua valorização monetária. Entretanto, no caso da cidade-museu, ao invés de novos artistas a lucrarem com sua arte (desvitalizada da crítica inaugural do movimento), teríamos calcificados alguns pouco nomes como legítimos, os primeiros a vencer as resistências do bom gosto pequeno burguês. Se a cidade está tomada por belos painéis institucionais d'Os Gêmeos, do Cobra, e afins, onde haverá espaço para novos graffiteiros, para pixadores? Não por acaso, Doria Júnior falou que apagou apenas aqueles graffitis que haviam sido "vandalizados" - vinte anos atrás, o graffiti era o vandalismo. E ainda é: se se pensar para além da técnica, graffiti é vandalismo - dentro da concepção burguesa. A limpeza dos muros do Cidade Linda de Doria Júnior é o convite para a arte urbana retomar seu lugar de contestação política da cidade - incomum nestes Tristes Trópicos, as falas do prefeito-trator já inspiraram pixações de mensagem política explícita. Convém lembrar: a ascensão de governos progressistas, que dialogavam com movimentos sociais e de contestação, implicou um custo alto a esses movimentos, em especial sua desarticulação e enfraquecimento da luta; Doria Júnior, com seu traquejo de trator fascista, despe a política de tentativas humanizantes e relembra ao distinto público dos termos que o Estado brasileiro lida com os marginalizados: obrigação de adequação ao seu padrão (como quando Doria Júnior fala dos graffiteiros se tornarem "artistas de verdade", como se houvesse arte verdadeira e artistas fossem só quem a produzisse), ou porrada e extermínio (real ou simbólico).
Aos meus amigos e ex-colegas, a lamentar que São Paulo vai se tornar uma cidade cinza e feia, eu convidaria a serem menos fatalistas, e desconfiarem que as pessoas não agem como se fossem todas de classe-média remediada, disposta a nenhum risco, com medo de perder o conforto que têm. Sem saber, Doria Júnior chama a arte urbana para o debate nos termos que os pixadores melhor sabem discutir: na intervenção prática na cidade. Também não sejamos ingênuos: com a ascensão da extrema-direita e da intolerância, estimulada pelo discurso de ódio de Doria Júnior, o que é uma questão de contravenção penal e assim deveria ser lidado pelos órgãos competentes (o que nunca ocorreu) pode se tornar a deixa para ataques sistemáticos à margem da lei, a pixadores ou a quem pareça inoportuno, pela polícia militar ou por milícias civis, em nome da ordem e do progresso.

15 de janeiro de 2017

PS: buscava a entrevista d'Os Gêmeos (não achei), e encontrei este artigo com opinião de graffiteiros sobre as ações do prefeito-trator: https://freakmarket.com.br/blog/arte/viva-o-pixo-cidade

 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Globeleza vestida em 2017 pode ser um Cavalo de Tróia

No meu Fakebook pulula a notícia de que em 2017 a Globeleza aparece vestida - e não em um sumário tapa-sexo. Quem compartilha a notícia a apresenta em tom positivo, como vitória feminista pela igualdade de gênero. Olhando o fato em si, descontextualizado, realmente, vitória. Entretanto, ao tentar entender o que poderia ter levado a essa mudança em 2017, há muito mais motivos para se preocupar que para comemorar.
Fosse 2010 e, definitivamente, poderíamos ver as vestes da Globeleza como avanço na desconstrução do estereótipo feminino de corpo-objeto para satisfação sexual alheia, em nome de um protagonismo político da mulher. Convém lembrar: na Alemanha, Merkel seguia firme e intocável; na Argentina e no Chile, Kirchner e Bachelet ocupavam o executivo federal e enfrentavam, dentro da moldura liberal-burguesa, os setores mais conservadores de seus países; no Brasil, elegia-se a primeira mulher para a presidência desta república bananeira (que então achava que podia ser minimamente independente), e na metrópole, o segundo cargo mais importante era ocupado por uma mulher (muitos atribuem a Clinton, por sinal, o caos no mundo árabe e os retrocessos na América Latina). Então a Globeleza seguia sem roupa, anunciando o que a imprensa diz ser a festa mais popular do Brasil (diz ela mais que as festas juninas), e oferecendo seu corpo para desfrute alheio, chamariz para as belezas naturais desta terra que os civilizados europeus tanto gostam de desfrutar e gozar, desde 1500.
Mas estamos em 2017. Na Europa até cresce o protagonismo político das mulheres na França, Inglaterra e mesmo na Alemanha, em que a extrema-direita é encampada por delicadas figuras maternais a proferir discurso de ódio contra o imigrante, o estrangeiro e o muçulmano. Na Argentina, Kirchner é perseguida por ter sido eleita presidenta (uma versão mirim do que fazem com Lula aqui); enquanto no Brasil e nos EUA são eleitos para a presidência dois homens misóginos - nos Estados Unidos eleito democraticamente, no Brasil, eleito por um conchavo entre donos do poder, da bufunfa e da mídia, já que o povo votara "errado" em 2014, na candidata que cidadãos e cidadãs de bem classificavam como "vaca", "vadia", e outros termos lisonjeiros. Não só isso: não temos em Pindorama apenas um governo de homens, trata-se declaradamente de um governo machista, em que o papel da mulher é o de bibêlo mudo para enfeite do ambiente. Marcela Temer, anuncia a Veja, é a nova tentativa de marketing do governo golpista, não por qualquer traço marcante de personalidade ou aguda inteligência, mas por ser "bela, recatada e do lar" (e eu acrescentaria: uma oportunista do machismo) - e impedida de falar. Ao mesmo tempo, cresce o número de evangélicos ocupando cargos eletivos com a bandeira do proselitismo religioso, generalizado na pauta dos bons costumes e da moral (claro, para esse grupo pastor estuprar não é algo que atente a moral). É neste contexto, em que a mulher perde espaço na política para pautas conservadoras e de submissão da mulher a papéis "tradicionais", que a Globeleza aparece vestida.
Ainda que se tenha vestido a Globeleza para atender aos segmentos religiosos, majoritariamente aos evangélicos, não se poderia considerar isso positivo? Até poderia - eu mesmo achei simpática a idéia de mostrar o carnaval em suas diversas manifestações, as quais incluem, muitas vezes, pesadas indumentárias (e essa abertura da Globo à diversidade regional pode ser sintoma de crise de seu poder de afirmação de uma pretensa unidade nacional). A questão é tudo o que isso implica de negativo em 2017, que não pode ser ignorado por quem ainda preza pelo razoável e pela sensatez. Faço uma analogia: diante do catastrófico governo Dilma, sua saída poderia ser considerada positiva - desde que abstraiamos que tal saída se deu via golpe de Estado e levou ao Planalto uma corja de corsários sabujos do Tio Sam, que conseguem fazer com que sintamos saudades de Dilma, Mercadante, Levy e cia. Daí que há pouco a comemorar entre aqueles que defendem os direitos da mulheres o que se passa em nossos televisores.
A Globeleza de roupa não merece comemoração e deve fazer com que aumentemos os questionamentos. A que mais cabe neste 2017: que papel queremos às mulheres em nossa sociedade? Escolher entre as opções "corpo para consumo" e "submissa para a obediência" me parece uma falsa escolha - na verdade, não há exatamente escolha, mas construções coletivas, que devem ser protagonizada pelas próprias mulheres, que podem, sim, querer para si uma dessas opções. E outra questão, que eu faria em 2010, e ainda vale este ano: não é hora de retomarmos a antropofagia modernista e, ao invés de tentarmos vestir o índio, despirmos o europeu? Antes de cobrirmos a Globeleza, não seria mais interessante tirar a roupa de todo mundo - homens, mulheres, trans, velhas, adultos, crianças, brancas, negros, índios, asiáticas, gordas, magros - , como se fosse natural que por baixo da roupa houvesse um corpo (e não um pecado), e que num calor de 35, 40 graus fosse natural haver quem se sentisse mais confortável em trajes sumários, sem que isso implicasse em qualquer atento à moral?
Espero estar errado, mas a Globeleza vestida em 2017 me soa a chegada no Brasil do século XXI daquela civilidade que fez a Alemanha grande na década de 1930.

10 de janeiro de 2017


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Limpar a cidade

Em minha última crônica [http://bit.ly/cG170103] falei da técnica oriental de limpar o chão, que aprendi com a Bia Sano, durante a residência artística que fiz com o dançarino Eduardo Fukushima, e que fez com que criasse uma outra relação com o local de ensaio, que me irmanasse dele. Do ato de limpar, arrisquei em minha crônica, seria possível estabelecer novas relações, com o espaço e com as pessoas - para muito além de não jogar lixo no chão.
Nada mais distante disso que as aparições populistas do lobbysta e grileiro de terras, atual prefeito de São Paulo, João Doria Junior. 
Se a técnica japonesa faz despertar uma atenção cuidadosa pelo local que freqüentamos, permitindo percebê-lo em outras dimensões - até mesmo afetivas -, e dando chance para que nos abramos ao novo, o gesto de Doria Junior vestido de gari, empunhando uma vassoura pela primeira vez na vida, para ser fotografado por publicitários travestidos de jornalistas, não desperta atenção, não desperta cuidado, não desperta abertura, não desperta valorização de nada que não da figura do prefeito e da sua concepção de "cidade linda" - limpa, higienista, sem pobres, sem discordantes ou dissonantes, sem povo, e ainda com Romero Brito e Bia Doria.
Vestido para o trabalho reificado - o de gari -, Doria Junior passa o recado de que agora ele vai comandar um exército de faxineiros, prontos para limpar a sujeira feita pelos cidadãos de mal - aqueles que emporcalham a cidade jogando lixo ou com sua simples presença. O horário de seu primeiro happening midiático também foi propício à mensagem a ser passada: seis da manhã. Deixa avisado: logo cedo, durante a madrugada, antes da maioria das pessoas saírem de casa, será feita a faxina da cidade daquilo que fere o bom gosto dos cidadãos de bem. Não por acaso, alguns outros atos de "embelezamento" da cidade consistiram em esconder moradores de rua e criticar pixadores - desconfio que se ele desse a cada pixador os valores que sua mulher ganhou do governo, via leis de incentivo, para fazer "arte", o pixo sucumbiria vertiginosamente.
Perguntas retóricas: que abertura teve o prefeito para a cidade? Que olhar teve para os moradores de rua que vivem sob viadutos - sem dúvida uma questão das mais complexas a ser lidada, já que muitos preferem morar na rua? Que relação afetiva é capaz de ele criar com a cidade que vê passar pela janela de seu Audi de 200 mil reais (novo, já que não está na sua declaração de bens da campanha)? Conseguiu minimamente entender algo da vida daqueles garis que ganham por mês menos do que ele gasta em um almoço, e que fizeram figuração no seu show? (Tenho medo de resposta afirmativa a essa pergunta, e por isso ele achar que o salário de um gari é o suficiente, até demais).
Ficássemos por aqui, e eu até diria que está tudo bem, o populista tacanho de antanho repaginado de playboy semi-collorido. Convém lembrar, entretanto, que Doria Junior não é apenas representante da direita, ele é o atual novo nome da extrema-direita brasileira deste início de século - junto com seu padrinho, o Santo Alckmin. Se em 1930 usava-se a retórica de "ratos", atualmente a palavra da moda da extrema-direita é "lixo", usada para desqualificar o diferente e negá-lo não apenas a humanidade como o direito a ser considerado um vivente. É para esse cidadão de bem (que defende chacinas e atrocidades e logo mais estará aplaudindo câmaras de gás) que Doria Junior se veste de gari - convém lembrar, mesmo depois de eleito, ele não abandonou o palanque e o discurso de ódio que foi um dos que embasou sua campanha -, mais que para os órfãos de Jânio, Adhemar de Barros e Paulo Maluf.
As imagens de Doria Junior de gari, fingindo que varre, me fizeram lembrar das suspeitas de que o Papa Francisco andava se disfarçando de padre anônimo, para dar acolhida a sem-tetos, nas madrugadas romanas. Propaganda é arma da direita. Não por acaso, mancheteia a Folha de São Paulo, um dos porta-vozes da extrema-direita brasileira, no dia seguinte à posse do prefeito: "Doria assume SP, promete conciliação e diz que recuará quando necessário". Fosse sincera, a manchete seria: "Doria assume SP, defende adesionismo irrestrito e diz que recuará quando isso afetar sua imagem". Quem sabe não possamos, finalmente, mudar o hino da cidade para aquela canção dos anos 80 que tão bem encarna o fascismo paulista: "Dentro de mim sai um monstro/ Não é o bem, nem o mal/ É apenas indiferença/ É apenas ódio mortal/ Não quero ver mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue". Em algo concordamos: "Pobre São Paulo/ Pobre paulista".

09 de janeiro de 2017


sábado, 7 de janeiro de 2017

Limpar o chão

Lembro das imagens de torcedores japoneses recolhendo seu lixo no estádio, durante a Copa de 2014. A imprensa corporativa destes Tristes Trópicos apregoou como prova da civilidade nipônica em contraposição ao atraso brasileiro, enquanto algumas pessoas mais críticas diziam que era reflexo de um país onde fora superada a separação arcaica Casa-Grande/Senzala, Senhor/Escravo, em que um suja e os outros limpam. Nenhuma das explicações me satisfazia, mas eu não sabia exatamente o porquê.
Sobre a pretensa civilidade japonesa. Que é um gesto de civilidade recolher o lixo, sem dúvida; mas daí dizer que um país com vagão rosa no metrô - por conta de violência sexual contra mulheres -, altas taxas de suicídio, e boa parte da economia controlada pelo crime organizado seja um país civilizado, eu teria um pouco de cautela. Nossa elite e sua porta-voz midiática, desde sempre colonial e colonizada, não esconde seu desprezo por tudo o que cheire a povo, assim como não consegue disfarçar seu deslumbramento ingênuo com aquilo que vêm dos países centrais. Como comenta Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra: "A burguesia colonialista, quando registra a impossibilidade para ela de manter a sua dominação sobre os países coloniais, decide fazer um combate de retaguarda no terreno da cultura, dos valores, das técnicas, etc" (p. 61), reforçando com isso a idéia de que "a espécie dirigente é primeiro aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, 'os outros'" (p. 57). Para nossa elite e seus asseclas, a civilidade está sempre no exterior e este povo xucro dos trópicos dificilmente dará conta de aprender a se comportar decentemente.
A outra explicação corrente, de que o brasileiro jogaria lixo no chão por estar acostumado a ter quem limpe pra ele, é uma variação à esquerda, com leves toques sociológicos, do biologicismo das elites. Ainda que seja de grande auxílio, não há causalidade entre fazer a limpeza e não sujar. Fosse assim, todo profissional de limpeza seria muito asseado, mas sei de muitos que não são: o mero trabalho alienado de limpar não faz ninguém ter consciência de não sujar - até porque a lógica do "tem quem limpe" se mantém, e esses esperam o subalterno que possam humilhar [http://bit.ly/cG161230]. Ademais, sei de muitas pessoas que nunca fizeram uma faxina na vida e ainda assim se preocupam em não sujar, em recolher seu lixo dos locais públicos, etc. Posso estar enganado, porém não acredito que todo europeu faça a faxina de sua casa - idealmente seria lindo, mas me soa irreal. Fazer faxina ajuda muito a melhorar a percepção do que suja, o quanto suja, o quanto custa limpar algo. Ouso dizer que esse tipo de "civilidade" é uma questão de consciência, de reflexão e auto-reflexão, de empatia com o Outro que vai limpar, mais do que ter "sofrido" pessoalmente.
Entretanto, desconfio que o exemplo japonês está muito além desse utilitarismo rasteiro de que falei acima. Tal desconfiança me veio da residência em dança que fiz com o Eduardo Fukushima, assistido pela Beatriz Sano (já escrevi crônica sobre a experiência [http://bit.ly/cG161221]). Em certo momento, a Bia nos introduziu a uma técnica japonesa de limpar o chão: uma série de exercícios em que limpamos o chão sem rodo, apenas pano e as mãos. Contando, parece exercício banal, e cabe até mesmo perguntar por quê forçar pernas e costas se há rodo - e pessoal da faxina. A ligação com a cena que descrevi no início da crônica também parece óbvia: tal técnica nos ensina a ter consciência não só de não sujar como de manter limpo - no Japão, os próprios alunos fazem a faxina da escola [http://nao.usem.xyz/9tmd]. 
Não passou por aí o que aprendi com ela. Não sei por onde isso opera, mas limpar o chão conforme as regras dessa técnica, desde o preparo até as formas de esfregar o pano criaram uma outra de relação entre mim e a sala de ensaio - que seria também a de apresentação. Não por acaso, tive a impressão que a partir de então consegui me sentir muito mais à vontade para dançar e pude entrar com outro espírito (e outro corpo) na coreografia - foi como me irmanasse do espaço, rompendo com a lógica funcional que é o meu (nosso) natural. 
Empolgado com esse efeito, passei a limpar minha casa também conforte essa técnica, com algumas adaptações, claro, visto que não se trata de um amplo salão vazio e sim um apertado apartamento cheio de tranqueiras e móveis e dois gatos curiosos. Ainda que tenha sido menos drástica, por eu já possuir uma relação afetiva com meu lar, algo mudou na minha relação com meu espaço - dos pequenos mistérios que a razão não dá conta.
A partir dessa técnica ensinada pela Bia, também dos últimos tempos nestes Tristes Trópicos, tenho me posto a pensar na nossa relação não apenas com o Outro, com o que é público (aqui sinônimo de ninguém, Oudeis), mas com os espaços que nos cercam, com o que nos é familiar. Somos estrangeiros em nossa própria terra, ressentidos que ela não é a imagem idílica que a Suécia nos vende de si. Somos estranhos em nosso próprio lar, não criamos laços, não nos reconhecemos em nosso trabalho alienado, em nossas ações não menos alienadas, em nosso lazer desesperado, em nossas conversas sem profundidade, em nossos bibelôs e souvenirs sem história. E nos eximimos de qualquer responsabilidade atribuindo a culpa sempre ao outro.
Talvez uma alternativa para reverter esse quadro seja não apenas nos afetuarmos, mas nos irmanarmos dos lugares que freqüentamos - em especial os quotidianos. Uma das questões é como fazer isso num país ainda de espírito colonizado e mentalidade calcada na exploração do Outro, até sua aniquilação; de cada vez mais absolutização de valores parciais (como cristãos (sic), em especial evangélicos) e agudização da intolerância e da violência simbólica e bruta. Definitivamente, não sei. Tenho a impressão que nos irmanarmos dos locais freqüentados implica também em nos irmanarmos daqueles que o habitam e o freqüentam. Mas surgem novas questões: quantos de nós estão dispostos a sair do seu comodismo umbigocêntrico e se arriscar no desconhecido? Quantos ainda sabem o que é se irmanar, o que é se afetuar de algo ou de alguém e se deixar afetar por isso?
Nenhuma resposta me vêm, outras perguntas me surgem. Eu apenas sugiro experimentar limpar o chão da própria casa sem o rodo.


03 de janeiro de 2017