sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Por onde (não) andam os porcos? [Diálogos com a dança]

Entro na sala de espetáculo II do Sesc Belenzinho, para assistir a Por onde andam os porcos, com direção de Iara Izidoro e atuação de Marcela Aragão, Foster, Meujaela Gonzaga, Marcela Felipe e Iara Izidoro - os pernambucanos haviam vindo para o MITSP de 2020, mas eu não conseguira ingresso. As janelas estão abertas e por elas a cidade desponta na ruas e nos prédios, nas luzes do parque de diversões, logo ao lado, e no Edifício Platina 220, ao fundo - há um choque entre o antigo e o pós-moderno, entre a decadência do primeiro e a decadência do segundo. A distinção público-palco é sutil, pelo piso de linóleo, e ao cabo não existe: os artistas não se limitarão àquele quadrado, assim como o público que, se quiser, pode adentrar. A luz de serviço está acesa, porém a cena já corre e nela estão sete pessoas: os cinco dançarinos - duas mulheres cis, duas mulheres trans e um homem cis - e duas pessoas do público, que só descobrirei ao final que eram público. Eles correm pelo espaço, ora indo para frente, ora para trás. Às vezes param, se tocam - por pouco tempo: são pausas e toques efêmeros. Há uma banalidade, um ar desvitalizado nesse correr, nesse parar, nesse se tocar. Não há sinal de urgência, nem uma ansiedade latente: há apenas a necessidade de seguir em movimento. Nossa pressa-moto-contínuo do dia a dia, os porcos a correr por sobre as pérolas do tempo, cegos a tudo que é presente.

Quando começo a me familiarizar com esse preâmbulo, as cortinas se fecham, a cidade some, e o espetáculo entra em uma nova fase. Os dançarinos se despem e agora além do correr há o pular, os contatos tem outra intensidade, há risadas histéricas, há gestos mais densos, há o se atirar no chão - ao estilo Cena 11. A mudança, ainda que não seja brusca, leva o público de volta ao estado de estranhamento. A luz se torna mais cálida - noto que o que achei que era luz de serviço é, na verdade, a geral, a iluminar todo o espaço. É esse tom mais quente, junto a todo o gestual das cinco pessoas, que me remetem ao Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosh. Contudo, é um Jardim das Delícias sem cor, sem seres fantásticos, sem paisagem alucinógena. Há uma loucura que se pretende diversão mas é só desespero: o exuberante bacanal daquele jardim substituído pela pobreza da vida nua e desvitalizada do capital - o sem sentido e permanente crescer de mais do igual -, do correr correr correr por correr, e o parar sem de fato estancar o movimento; a nossa total falta de consciência do nosso agir e do nosso entorno, ali representada pelo palco nu, pelos atores nus. O ato termina com todos parados lado a lado, expostos para a contemplação do público, com um drone sobre suas cabeças a nos vigiar também - neste ponto, admito, senti falta de um corpo gordo para compôr o quadro.

Novamente, quando estou a me familiarizar, novo corte - desta vez abrupto -, novo jogar o público no estranhamento. É quando a “bad trip” se evidencia: a sala escura e os cinco apenas com lanternas em suas testas, de início tentando achar um caminho naquele vazio, com focos a iluminar pouco além do próprio nariz, a seguir em giro alucinado - e angustiante - por longos minutos, para terminar apenas com os rostos iluminados: seriam fantasmas ou demônios a vagar sem rumo?

Novo corte. Os dançarinos despontam por trás de placas semi-transparentes postas num canto da sala - quase como se fossem televisores. Os corpos aparecem recortados e deformados. Ao saírem de trás desse biombo, de fato estão deformados - me fez lembrar de um espetáculo da Taanteatro. Um deles traz longos braços, os demais possuem deformações menores. Do lado oposto da sala, outro dançarino pula, ri e se joga no chão, com um “equipamento” que liga seu anus ao rosto. A bad trip do Jardim das Delícias Terrenas está de volta - o homem-máquina almejado pela contemporaneidade transformado em impotente monstro de si próprio. No fim, o drone volta sobrevoar os dançarinos, até eles saírem de cena, sobrando apenas a máquina, à qual assistimos passivos e bestializados por longos minutos, até sua bateria acabar. As cortinas para a cidade se abrem, as palmas surgem hesitantes, sem saber se se trata mesmo do fim.

São Paulo, 26 de agosto de 2022

 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma passagem segura e rápida

Aproveito que atravessei o Anhangabaú para comprar um salgado para ir até o Sesc 24 de maio, acessar a internet (não tenho pacote de internet no celular e não há wi-fi onde trabalho) e comprar ingresso para o concerto da noite da Osesp - não, o programa não parece tão interessante, mas sinto que preciso sair de casa e tentar retomar o que me fazia bem antigamente (bem dizer num outro mundo, antes não só da pandemia como do golpe), e concertos sinfônicos eram das atividades que geravam em mim o que Helmut Rosa chama de “ressonância”.

Chegando no Sesc, encostado a um pilar da entrada, um homem está estranhamente curvado. O homem é negro e, no que posso notar, não está bem vestido e tem ao menos dois de seus dedos com tinta branca. Ao reparar com mais atenção vejo que está mexendo no celular: assim como eu estava prestes a fazer, ele se utilizava da internet livre do local. Dentro do Sesc, pouquíssimas pessoas, sete ou oito, e muitos bancos vazios - mas para uma pessoa negra e pobre, o prédio estava lotado ou então fechado. 

À noite, pego o metrô, desço na Estação República e opto por experimentar a passagem que vai da estação até o estacionamento da Sala São Paulo e da Estação Pinacoteca. Sem dúvida, essa passagem torna o trajeto bem mais rápido, além de proteger eventual chuva na maior parte. Não dá para dizer que não esteja bonita a cenografia dessa passagem, ainda que lembre cena distópica de qualquer videoclipe do Radiohead. No alarms and no surprises, please. Em dada altura, há bancos junto à parede de pedras que faz a contenção do terreno, com vista para os trens que passam resfolegando seus gemidos metálicos, como um trabalhador em fim de expediente. Eu só consigo pensar que do outro lado desse muro há a rua, com pobres, putas, desvalidos, trabalhadores com pouca qualificação; rente ao muro deve haver (se o governo não fez uma faxina social recente) pessoas encostadas com seus cobertores cinzas e seus poucos pertences, pessoas que hoje passam fome, e amanhã, segundo a previsão do tempo, estarão passando frio também. Por seis anos passei frequentemente por ali (pouco menos de uma vez por mês, creio), voltando da Sala São Paulo: dava um pouco de receio, em especial pela rua ser mal iluminada e em alguns trechos pouco movimentada, mas nunca vi nem sofri nada.

Ao chegar no estacionamento, um letreiro luminoso avisa: “Agora você pode acessar nossos equipamentos culturais por meio de uma passagem segura e rápida que nos conecta à Estação da Luz”. 

Entendo que muitas vezes a arte tenha o poder de nos alienar de nosso dia a dia, e acho isso mesmo saudável, pode ser de grande ajuda para depois darmos conta de encarar a realidade com um pouco mais de força e disposição, sem mergulhar na mediocridade claustrofóbica e depressiva da “utopia do possível” que tentam nos impôr - eu mesmo, ali, na Sala São Paulo, buscava (em vão), por duas horas, esquecer das muitas questões que me afligem.

O que me deixou incomodado é essa alienação se manter para depois do espetáculo, do concerto: foi o letreiro do governo a ostentar orgulhosamente a falência da nossa sociedade e chamar de segurança o que é tão somente fuga e negação da realidade.


19 de agosto de 2022

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Vinho estranho

Luciana vem me ver. Ao chegar, pergunto se quer beber algo: água, chimarrão, café (novidade na casa!), suco verde (que é vermelho, por causa da beterraba e não do meu daltonismo, apesar dos amigos não perderem a oportunidade para fazerem a piada), rum, gin, vinho tinto ou branco. Ela aceita vinho branco.

Mostro a garrafa do vinho argentino que comprei na minha última ida à fronteira, a Bernardo de Irigoyen, perto de Pato Branco, em 2018, junto com minha mãe e meu irmão. Saliento o guanaco em relevo acima do rótulo, e antes de ela formular a pergunta eu já respondo: “sim, comprei por causa da garrafa”.  Já tinha dado certo numa oportunidade, quando comprei saquê pela primeira vez, por que não daria de novo? Estava com Vannucci na Liberdade e nunca nenhum dos dois havia bebido saquê. Decidimos comprar um. Foi ele quem sugeriu comprarmos uma marca que não era a mais barata e cuja garrafa era bonita. Me pareceram argumentos sólidos. Alguns anos depois, quando fui na festa de aniversário da Paty, uma amiga cujo pai é dono de um restaurante japonês, vi que usavam do mesmo saquê - que encarei como prova insofismável da validade do argumento da garrafa bonita para bebida barata é sinal de qualidade.

Mas para agora o que há é vinho, e não saquê - retorno ao causo. Uma, duas, três tentativas, a cada vez que o saca-rolhas sai, só vem farelo de cortiça. A rolha está seca e só me sobra empurrá-la. Luciana assiste a tudo com desconfiança. Encho minha taça e experimento um gole sob o olhar atento dela. “Está estranho, mas acho que está bom, sim”. Ela recusa a oferta para provar: “eu preciso trabalhar amanhã, não posso passar o dia no banheiro por causa de um vinho ‘estranho’”. Eu ainda insisto, digo que não está ruim, ou melhor, não parece estar ruim, só um pouco estranho. Ela reitera a recusa e abro, então, o vinho tinto, comprado aquela semana numa promoção no mercado - os dois paguei praticamente o mesmo, entre R$ 30 e R$ 40, apesar dos quase quatro anos que separam as compras. Do tinto, a rolha sai sem problemas, deslizando macia para fora da garrafa, produzindo aquela exclamação sem falhas - “Pop!” -, que anuncia que ali tem vinho e não vinus acre - ou qualquer outra reação química que torne o líquido "estranho" -, o que tranquiliza Luciana. Devolvo o vinho branco à garrafa, passo uma água em minha taça e encho as duas com o vinho tinto.

Antes de continuar, a atenta leitora, o atento leitor vai se perguntar: por que raios pus o vinho de volta, se estava estranho? Ainda que eu seja de família classe média, meus pais vieram de famílias de classe baixa, nunca esqueceram disso (por questões de preconceitos vários, os termos costumam ser usados para nordestinos, negros e pobres, mas posso dizer que sou filho de um retirante com uma boia-fria) e fui criado em uma  simulação de economia de guerra, em que, por exemplo, não se joga nada fora sem motivo, porque “vai que precisa”. Sim, isso leva a situações sem sentido, como notou uma ex-namorada, quando eu havia instalado na cozinha o móvel que havia feito no curso de marcenaria, reorganizava meus víveres e vi que havia algumas castanhas portuguesas que eu ganhara de uma outra ex, cinco anos antes - certamente já impróprias para o consumo. Comentei isso com ela, e pus o pacote no armário, ao que ela perguntou: “se não dá mais para comer, por que está guardando?”, eu estava prestes a responder “vai que uma hora precise”, quando percebi que a razão era inconsistente, e com peso na consciência me vi forçado a jogar comida fora... Sobre essa ex-namorada, outro ponto bem a propósito neste longo parênteses: seus pais adoravam vinho, e tomavam apenas vinhos caros. Seu pai buscava qualquer pretexto para beber, e conversar comigo era um - eu gostava das conversas, ele contando, dentre outras coisas, da sua atuação no PC do B no final da ditadura e início da redemocratização. Numa conversa de uma hora e pouco, abria três garrafas, na qual eu bebia uma taça da primeira, meia da segunda e dois dedos da terceira - como forma de garantir que conseguiria voltar caminhando para casa -, e ele bebia o "resto". Não que ele não fizesse por hospitalidade (não era com todo mundo que ele aceitava dividir o vinho), mas, sem dúvida, eu era um ótimo interlocutor nesse sentido.

Retomemos o vinho presente, agora o tinto. Ao beber o primeiro gole, noto o que estava estranho no branco. Terminada a taça, aviso que vou voltar ao argentino. Luciana, reticente, recusa. Talvez a segunda taça tenha feito ela baixar a desconfiança, talvez tenha visto que eu, após um gole e uma taça, seguia vivo e normal (quer dizer, normal dentro do esperado após duas taças); talvez porque tenha notado que apesar das muitas partículas de rolha flutuando, o líquido era mais encorpado, mais denso que o tinto que bebia, e aceita quando insisto para que o prove. Pois tão logo bebe o primeiro gole, me critica: “Por que não me deu logo de cara este vinho!? É muito bom!”, “Mas eu te ofereci”, “Você falou que estava estranho”, “Mas eu estranhei”. Ela não dá conta de ir além de uma taça, de modo que me sobra boa parte da garrafa. 

No dia seguinte irei pesquisar na internet, para quem sabe comprar novamente, mas desistirei: meu salário de funcionário público desvalorizado não me permite: custa quase trezentos reais, mais o frete. Isso também explica meu estranhamento: desacostumado, desde que terminei com a ex acima citada, a beber vinhos de melhor qualidade, não fui capaz de reconhecer quando me deparei com um. Certamente se os pais da minha ex lerem esta minha crônica vão se perguntar por que não me ofereceram suco de uva, mesmo, diante de paladar tão primário.


10 de agosto de 2022