quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Casa nova (Farewell transmission)

Ao abrir a porta do apartamento, às sete horas de uma noite chuvosa, me sinto subitamente envelhecido. Um apartamento vazio com alguns pequenos consertos para fazer, as paredes por pintar, apagar as marcas do tempo que sublinhavam os quadros até ontem pendurados. Pela janela da sala há o escuro das árvores - sentirei falta de ver o skyline da Paulista. "Long dark blue". Lembro de Farewell Transmission, de Songs: Ohia. É este, digo ao Vini. E a mim mesmo me pergunto o que pensará o desconhecido que cruzar essa soleira depois de amanhã, para a pesquisa do IBGE ou das memórias do que era o mundo três gerações atrás, na virada do século XXI. Um velho melancólico em meio a livros, três móveis e dois gatos. Talvez eu devesse encher a casa de cacarecos, como a disfarçar a condição que nos habita? Vini inspeciona os cômodos, me avisa da fiação estranha dentro do armário, acha feio o guarda-roupa deixado para trás. Sinto que ali estou guarnecido como alguém que abre um guarda chuva para se proteger de um tempestade de granizo. "Foi tão fácil conseguir e então eu me pergunto e daí?" Estranho quem me parabeniza por ter herança, ainda mais por gastá-la assim, confrontado pelo princípio de realidade que não me permite sequer cogitar um apartamento classe média dos anos 1990 - janelas incrustadas no concreto cheio de quinas, o vidro escuro nas sacadas, as pastilhas na fachada, um peso que não descarta esperança. Com a idade do Vini eu ouvia vinil do Raul Seixas no rádio National de meu pai, usando uma raquete de tênis como guitarra e o esfregão como microfone. Isso foi ontem pela manhã, enquanto Cecília fazia o almoço. Agora preciso me preocupar em pintar as paredes sem manchar o chão, orçamentos e prazos - e viagem para a Venezuela, a trabalho, no meio disso tudo. Tenho um mês para me acomodar e começar a me irmanar do apartamento, sem mais a sensação de provisório que até então me acompanhava cada mudança - eu próprio me sentindo alguém em plena mudança (me sentindo provisório?). Ou seja, posso fazer isso com calma, sem o receio do efêmero - me iludo. E agora? "Stop/ A vida parou/ ou foi o automóvel?". A rua é temporariamente sem saída - até que o prédio vizinho conserte ou caia de vez. Nas manhãs, haverá sabiás e outros pássaros cantando, e o grito das crianças no recreio da escola - como na minha infância, a escola Dona Frida. Me vejo em reminiscências, confirmo meu envelhecimento repentino; leite derramado: não mais um jovem de quase quarenta anos, mas um idoso de quase quarenta anos - que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, não nos termos bíblicos, como a reafirmar a descrença na vida eterna e a adesão ao catastrofismo ecológico, mesmo sem tanta convicção (insisto em ter esperança e achar que melhoraremos, que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje). "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?". Dei o primeiro passo: tributável. Do resto ainda me esquivo. Do contrário disso também. Busco um fio de cabelo branco, para confirmar minha nova condição. Encontro, como sempre, uma espinha a brotar, que espremo com o prazer despreocupado das admoestações da mãe, de que vou ficar com a cara cheia de marcas, quando adulto - já sou adulto e ainda me faltam as marcas. Faço algumas medições, para as redes nas janelas, para os móveis que farei - uma estante de livro, uma escrivaninha, algo mais? A chuva que goteja fora me lembra de quando mudei para São Paulo, 30 de janeiro de 2012, havia um quê melancólico na garoa daquela noite - e uma nova vida iniciando. Deixamos o apartamento, Vini feliz por conhecer minha nova casa primeiro - finalmente algo que ele fez antes da mãe! Há tanto por fazer, uma porção de coisas grandes para conquistar, mesmo a um velho melancólico, um grandessíssimo idiota, ridículo, limitado, que insiste em palpitar sobre mil assuntos, só para dizer que não entende de nada, e assim prefere a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ao fechar a porta, em minha mente toca Mogwai, Yes! I am a long way from home.

05 de setembro de 2019

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Barbárie venezuelana: onde a civilização ocidental pratica tortura em larga escala

O texto de Mario Vargas Llosa sobre a Venezuela, "De volta à barbárie", no El País, me traz à lembrança o "Por qué no te callas" do rei Juan Carlos a Hugo Chávez, em 2007. Talvez tenha sido o grito da velha civilização contra a nova barbárie: de um lado o rei de um império decaído, que construiu seu breve esplendor com sangue e sofrimento, à base do saque, do assassinato, da pilhagem e da destruição, e que no século XX, restrito às próprias fronteiras, passou a fazer do próprio país um inferno/terra arrasada que antes fizera além-mar; do outro, um criollo rebelde que passado duzentos anos ainda acreditava na independência, na autonomia e era capaz de reivindicar a autodeterminação dos povos, na crença ingênua que uma terra de índios, mestiços e negros possa um dia ter algo digno de ser chamado de povo pelas elites civilizadas da Europa e Estados Unidos. Quem sabe essa tenha sido a senha para que a barbárie imperasse, deixando claro que a civilização ocidental nada mais é que um discurso sem fundo de verdade, a hipocrisia mais calhorda para satisfação narcísica de gente incapaz de autorreflexão.
Lembro da comemoração eufórica com a grosseria real por parte da mídia (brasileira e internacional) e dos opositores do governante de turno da Venezuela. Fosse dito por um outro país latino americano e a interpelação poderia entrar em discussão, com base em disputas seculares e atuais entre estados irmãos; vindo de quem veio, nada era aceitável que não a condenação veemente desse restolho de imperialismo e colonialismo, mancha vergonhosa do passado espanhol e cicatriz indelével nas terras americanas. Mas virou um mantra para as elites “cosmopolitas” (Jill Lepore permite uma outra interpretação sobre o que seria o cosmopolita) e seus asseclas, um troféu dos ressentidos com a ascensão dos miseráveis à condição de pobres e aspirantes a direitos, a lembrar que todos são humanos e tem direito à dignidade - basicamente aquilo que um certo senhor considerado bastião da cultura ocidental dizia há dois milênios.
O artigo de Vargas Llosa mesmo é desprezível, sua tese beira que o projeto bolivariano era de regresso à barbárie para lucro de uma pequena elite no poder, consequência natural do socialismo ou qualquer coisa que agrida a ordem natural do mundo do capital. Como a Espanha do veículo em que foi publicado, Vargas Llosa se sustenta por um título pretérito que nada garante do futuro - o país, pelo menos, graças a seu povo, busca se reinventar e está aberto a devires. No fundo, o peruano deve lamentar que o confronto entre Juan Carlos e Chávez tenha parado numa frase e não na invasão das esquadras espanholas, ou melhor, marines estadunidenses, e ignora que as guerras hoje possuem métodos muito mais sofisticados que os de Francisco Pizarro. Anos numa guerra não aberta - mas de efeitos concretos - jogaram a Venezuela em uma enorme crise, com mais de 30% de desemprego (vale lembrar que no Brasil que evitou a barbárie, graças a Temer e Bolsonaro, segundo Vargas Llosa, 40% da população está desempregada ou subempregada) após queda econômica de 56% em oito anos - um país que no seu apogeu, em 2008, ainda não havia conseguido livrar 10% da população da miséria. Mas a memória de Vargas Llosa afirma peremptoriamente que bons eram os tempos antigos, onde peruanos iam fazer negócios no país - quais peruanos e às custas de quantos venezuelanos, ele não explica.
A retórica feita de "fatos etéreos", de afirmações imprecisas, ocultando números e salientando adjetivos, atestam que o escritor usa do peso de seu Nobel para espalhar desinformação. Isso me lembra da minha velha máxima sobre a cobertura da situação venezuelana, desde que Chávez assumiu: sei que um lado oculta, mente e distorce deliberadamente, desavergonhadamente. Do governo, tenta combater a essa guerra híbrida como pode, e é obrigado, seguidamente, a usar das mesmas armas, o que faz com que provavelmente acabe incorrendo em omissões graves, no mínimo (se assumisse que dado aspecto noticiado por El País e outras mídias globais é verdadeiro poderia dar a deixa para uma campanha de que tudo o que está ali é verdadeiro, o que definitivamente não é, vide as coberturas do golpe de 2002 ou do atentado em 2018). Não que a situação venezuelana não seja dramática, ou não teríamos tantas pessoas deixando sua pátria em tão pouco tempo. A questão é que se os números dão alguma noção, mas não são capazes de descrever o comensal do dia a dia das pessoas comuns, a mídia internacional só verá tragédia e caos, e o governo tenta, como pode, evitar que a profecia do fim da experiência bolivariana se auto realize.
Sei que apenas uma semana em terras venezuelanas, em missão da Igreja Católica - vou pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, onde milito há anos -, provavelmente passando por regiões das mais precárias do país em frangalhos, não me dará grande panorama do país - minha esperança é que ao menos eu tenha alguma referência para perceber o que é verdade no meio de tantas mentiras de todos os lados sobre a vida na Venezuela.

03 de setembro